15 de dezembro de 2012

"Ah se eu fosse homem!..."

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Depois de ter deixado a família na Igreja para a Missa do Galo, um agricultor Canadiano regressava a casa fugindo da tempestade de neve que se avizinhava. De nada tinha valido a insistência da sua mulher para participar na missa. Para ele a encarnação de Deus não fazia sentido. Enquanto dormitava ao calor da lareira, foi sobressaltado pelo embate de Gansos na porta e nas janelas. Afastados pelo temporal da sua trajetória migratória para o Sul, estavam completamente desnorteados.

Movido de compaixão, abriu os portões do grande celeiro e começou a correr, a esbracejar, a assobiar, a gritar e a enxotá-los para que se abrigassem até a tormenta passar. No entanto, os gansos esvoaçavam em círculos, sem entenderem o que significariam o celeiro aberto e os gestos dramáticos do desesperado agricultor (que nem com migalhas de pão espalhadas na direcção do celeiro os tinha convencido). Derrotado no intento da salvação das pobres criaturas, suspirou: “Ah, se eu fosse ganso! Se eu falasse a sua linguagem!”. Ao ouvir o seu próprio lamento, recordou a pergunta que tinha feito à sua esposa: “Por que razão havia Deus de querer ser homem?”. E, sem querer, balbuciou a resposta: “Para o salvar!”... E foi Natal.

“Religião” vem do latim “religare”, que significa relacionar-se, estabelecer uma relação. Desde a sua natureza, o homem sempre foi religioso e perspectivo que sempre o será. Sabendo-se precário e necessitado, o ser humano procurou sempre os favores da “divindade”. Assim, em todas as culturas, surgiram indivíduos que, considerados como tendo uma especial sensibilidade para se relacionar com o divino, se sentiram enviados por Deus – os profetas, na tradição hebraica.

Estes profetas nunca conseguiram, verdadeiramente, estabelecer uma ponte de comunicação entre o divino e o humano. Isto porque a Palavra de Deus, sendo transmitida por eles (homens com as suas características pessoais e inseridos num determinado contexto sociocultural), acabou por sofrer influência de muitas variáveis mediadoras (personalidade, preconceitos, estereótipos, padrões sociais), perdendo-se o significado da mensagem original.

Isto continua a acontecer mesmo depois de Cristo. Por exemplo, quando São João menciona o número de vezes que Jesus apareceu depois da sua morte, não considerou a primeira aparição que foi feita a Maria Madalena; concomitantemente, São Paulo também não menciona esta aparição e, além disto, refere uma outra à qual nenhum evangelista faz menção - a que foi feita a Pedro.

Ao longo da história da humanidade, Deus, apesar da sua omnipotência, encontrou-se na mesma situação de impotência do homem que não conseguia estabelecer comunicação com os gansos para os salvar; por isso, chegada a plenitude dos tempos exclamou ah se eu fosse homem!... “E Deus fez-se Homem e habitou entre nós….

Cristo, sendo simultaneamente Deus e Homem, é a verdadeira ponte que une a humanidade e a divindade, é o ponto de encontro, é a comunicação plena, sem viés ou influências. Na Sua palavra, no Seu comportamento, nas Suas obras e na Sua vida como homem, Deus disse-nos tudo o que precisamos de saber sobre Ele próprio e sobre o ser (e o dever ser) do homem. FELIZ NATAL!

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de dezembro de 2012

O sentido da Vida

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O ser e o nada
Todo o homem e mulher que vem a este mundo pergunta-se: de onde venho? Para onde vou? Que sentido tem a vida? O ateu diz que vem do nada e volta ao nada. Que sentido pode ter algo que começa no nada e termina no nada?

A ciência e a técnica melhoraram a nossa vida nos últimos anos, mas não nos dizem, nem podem dizer-nos, qual é o sentido da vida. Contudo, a necessidade de dar um significado à nossa existência é comum a todos os mortais. De uma forma consciente ou inconsciente, todos tratamos de encontrar um propósito para a nossa existência e, de alguma forma, justificá-la.

Os que perdem ou nunca encontram o sentido da vida acabam por deprimir-se, sentindo a náusea do vazio, e frequentemente buscam pôr termo à vida. Depressa se apercebem de que uma vida sem sentido não vale a pena ser vivida.

Caminhante sem caminho
"Caminante, son tus huellas el camino y nada más;
Caminante, no hay camino se hace camino al andar.
" – António Machado

Por um lado, cada homem e cada mulher, que vem a este mundo nasce com um código genético único, que nunca existiu antes ao longo dos cinco milhões de anos de existência da espécie humana, nem existirá depois, até ao fim da história da humanidade.

Neste sentido, cada ser humano que vem a este mundo inicia um caminho novo, uma vida nova, que é sua e só sua. É nisto que consiste a dignidade da pessoa humana e a sua liberdade: pode viver a vida como quiser, encontrar e seguir o seu próprio caminho, que não existe previamente, como se estivesse predestinado, mas que vai sendo feito ao caminhar.

Como é ele quem faz o caminho, como intuiu o poeta espanhol, o único caminho que existe são as suas pegadas, ou seja, o percurso que vai traçando. Tal como os caminhos que surgem formados pelo facto de muitas pessoas passarem pelo mesmo lugar, feitos sem máquinas e sem intenção de os criar.

Por outro lado, ninguém chega aqui completamente isolado do que o precedeu. Tal como o nosso ADN é composto por material genético do nosso pai e da nossa mãe, também somos herdeiros de tudo o que a humanidade já fez ao longo da sua história. Cada indivíduo da espécie humana, consciente ou inconscientemente, acede ao que Jung chamava de inconsciente coletivo, que funciona como uma espécie de base de dados que contém a idiossincrasia da raça humana.

Neste sentido, cada ser humano que chega a este mundo dá continuidade ao que veio antes. Tal como numa corrida de estafetas, recebemos um testemunho, uma herança, uns talentos e, com a nossa vida, damos continuidade aos projetos que já existiam, imprimindo-lhes o nosso cunho pessoal e elevando-os a um nível mais alto.

É nesta continuidade que se acrescenta o nosso toque pessoal. Einstein recebeu a física mecanicista de Newton e, com a teoria da relatividade, elevou-a a um novo patamar. Mozart dedicou a sua vida à música e levou-a a um nível elevado; no fim da sua vida, passou o testemunho a Beethoven, que a elevou ainda mais. Cada atleta, em cada modalidade, estabelece novos recordes com base nos anteriores.

Caminho, verdade e vida
Todo o ser humano que vem a este mundo tem em Cristo o caminho, a verdade e a vida (João 14:6); ou seja, somos chamados a viver em Cristo, por Cristo e com Cristo. Humanismo e cristianismo são uma e a mesma coisa; o cristão é a medida do humano, e o humano é a medida do cristão.

"Quem não está comigo está contra mim, e quem não junta comigo, dispersa." (Lucas 11:23). Não existem dois humanismos, duas formas de viver a vida humana. Não há alternativa igualmente válida a Cristo; não existe outra forma de autorrealização, de viver a vida humana em plenitude e alcançar a felicidade. Portanto, quem não está com Ele, não está com outro, pois esse outro modelo alternativo não existe; assim, quem não está com Ele, está contra Ele.

No entanto, isso não significa que, sendo Cristo o modelo para todos os que querem ser autenticamente humanos, nos transforme em clones que se comportam como marionetas ou autómatos, com o mesmo tipo de personalidade, que pensam, atuam e vivem a vida da mesma maneira.

Quando afirmamos que Cristo é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, estamos a dizer que, até agora, na humanidade, só Deus em Cristo conseguiu ser autenticamente, plenamente, 100% humano. Só Jesus de Nazaré conseguiu realizar plenamente o projeto de humanidade que Deus tinha para o homem quando o criou. Só Jesus de Nazaré conseguiu realizar plenamente o sonho de Deus e torná-lo realidade.

“Deus fez-se homem para que o homem se tornasse Deus” (Sto. Ireneu); eis a razão da Encarnação. Sem Deus, o homem nunca seria plenamente humano.

Diferentes na igualdade, ou iguais na diferença
Sendo 100% homem, Cristo representa a totalidade do ser humano; é o padrão pelo qual todos nos medimos, o horizonte, a meta, o objetivo simultaneamente alcançável e inalcançável da vida humana. Alcançável, porque está ao alcance de todos; inalcançável, porque ninguém jamais o igualará completamente.

Mesmo São Francisco de Assis, chamado por alguns teólogos de "alter Christus", não chegou a ser 100% como Cristo. Cada santo, ou seja, cada cristão que atinge o sucesso espiritual, vive uma parte da humanidade de Cristo, tanto em quantidade como em qualidade.

"Aqueles que recebem a semente em boa terra são os que ouvem a palavra, a acolhem, dão fruto e produzem a trinta, a sessenta e a cem por um." (Marcos 4:20). Em quantidade, porque, como sugere a parábola da semente que cai em boa terra, uns produzem sessenta, outros trinta por cento. Dependendo de um número ilimitado de variantes, vicissitudes e circunstâncias, alguns imitam Cristo em 60%, enquanto outros apenas em 30%. Não importa a quantidade, como parece sugerir a parábola, mas sim ter Cristo sempre como o único referencial da nossa vida.

"(…) Com medo, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está o que te pertence." (Mateus 25:25). Em qualidade, porque Cristo possui a totalidade dos talentos; nós recebemos alguns talentos e não outros. Todos recebem talentos suficientes para tornar a sua vida viável, mas ninguém recebe todos os talentos. O importante é desenvolver e fazer frutificar os talentos recebidos, em vez de os esconder, admirar ou invejar os talentos dos outros, tentando viver a vida deles, o que nunca é possível.

Francisco de Assis e Francisco Xavier são ambos santos e até têm o mesmo nome, mas são bastante diferentes no caminho de santidade que seguiram. Francisco de Assis imitou Cristo na sua humildade, enquanto Francisco Xavier o imitou na sua impulsividade.

Existe uma teoria psicológica chamada Eneagrama, que defende que há nove tipos de personalidade diferentes e que cada ser humano pertence a um desses nove tipos. Cada um destes tipos desenvolve uma qualidade humana em detrimento de outras. Esta teoria sugere que Cristo, sendo 100% homem, incorpora a realização completa de todas essas qualidades.

Como Jesus é o modelo a seguir, o padrão da humanidade, a sua personalidade é formada pelo conjunto dos nove tipos. Na encarnação, Ele aceitou e viveu plenamente todas as formas da personalidade humana, por isso pode ser modelo e paradigma para todos os tipos de personalidade; caminho, verdade e vida para todos seguirem, cada um à sua maneira.

Conclusão - O sentido da vida reside em encontrar o nosso caminho único, inspirado por Cristo como modelo de plena humanidade, desenvolvendo os talentos recebidos e vivendo de forma autêntica e consciente.

Pe. Jorge Amaro, IMC


16 de novembro de 2012

Celebrar e viver a fé

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Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem algo contra ti, deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois volta para apresentar a tua oferta. Mateus 5:23-24

Alguém dizia que a vida do cristão decorre entre a Igreja e o mercado. "Ite missa est", dizia o sacerdote em latim ao despedir os cristãos após a celebração eucarística dominical. Esta expressão não só significa que a missa terminou, mas também que estamos em missão. O cristão ou está em missa, celebrando a sua fé, ou em missão, vivendo a sua fé. A celebração e a vida são inseparáveis. Celebramos o que vivemos e vivemos o que celebramos.

Não é possível ser cristão sem ter uma relação pessoal com Cristo, que se expressa na oração, e sem celebrar esse mesmo Cristo na Eucaristia, em comunhão com os outros que partilham a mesma fé. Se a oração e a penitência são a celebração individual de Cristo, a Eucaristia é a celebração comunitária de Cristo com a comunidade à qual pertencemos, pois não se pode ser cristão sozinho.

Celebra-se o que se vive, vive-se o que se celebra
Iludimo-nos ao pensar que, mesmo sem qualquer manifestação pública ou privada da nossa fé, continuamos a ser católicos. Mas isso não é verdade. Quem não consegue viver conforme aquilo em que acredita, tarde ou cedo começa a acreditar conforme vive.

Tudo o que é valioso na vida só se alcança com esforço; a passividade, o “dolce fare niente”, não nos leva a lado nenhum, pois na vida o que é bom ou custa dinheiro, ou custa esforço, ou ambas as coisas.

Os motores de um avião não só o impulsionam para a frente, como também o mantêm no ar. De facto, quando o piloto quer fazer o avião descer, o primeiro que faz é reduzir a potência dos motores, e assim o avião vai descendo gradualmente. Porém, se reduzir a potência para menos de 200 km/h, o avião cai. Neste mundo, pela lei da gravidade, o que não tem força para subir, desce.

A nossa natureza caída e os nossos instintos já exercem sobre nós uma força gravitacional para o mal; para vencermos o mal e crescermos como pessoas, temos de nos esforçar e contrariar essa força. A oração, o confronto com a Palavra de Deus e todas as práticas religiosas são uma ajuda essencial. Sem elas, estamos à mercê dos nossos instintos e dos valores que a sociedade promove. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação.”

“O espírito está pronto, mas a carne é débil.” (Mateus 26:41). O próprio Jesus experimentou que a fraqueza da natureza humana requer a ajuda da oração como exercício de autoconsciência, para nos mantermos em estado constante de alerta, e como solicitação da assistência divina, pois, como disse Jesus: “Sem mim, nada podeis fazer” (João 15:5).

Dizer que alguém é "católico não praticante" é um contrassenso, uma falácia. Não há pianistas, cantores ou futebolistas "não praticantes". Os dons, talentos ou aptidões que temos, se não os utilizarmos, perdemo-los. A fé é um desses dons que só se mantêm na medida em que são vividos e exercitados. “O que não se usa, atrofia-se”, diz o provérbio.

“O amor é como a lua: quando não cresce, mingua.” A fé também é assim: ou está a crescer e a fortificar-se, ou está a minguar e a enfraquecer. A liturgia da fé são os sacramentos, sobretudo a Eucaristia, a oração e a escuta da Palavra de Deus.

O amor também tem as suas liturgias: se não se expressa em palavras, poesia, canções, carícias e intimidade, começa a decrescer. A fé leva à prática das boas obras, e estas fazem a fé crescer. O amor é a mesma coisa; amar é querer o bem do outro e colocar-se ao serviço desse bem.

Eucaristia e Caridade
O pão eucarístico repartido é uma imagem ou um ato simbólico que nos recorda que, para sermos cristãos, outros Cristos, devemos repartir o nosso pão com os necessitados. Neste sentido, a Eucaristia, além de ser a celebração da paixão, morte e ressurreição do Senhor, é também um sacramento da memória.

Não apenas dos factos históricos, mas um ato simbólico que nos lembra outros gestos de Cristo (como montar num jumento em Jerusalém, lavar os pés aos discípulos ou expulsar os vendilhões do templo). Tudo isso nos mostra que a celebração da Eucaristia ritual só tem valor para quem celebra também a Eucaristia existencial, ou seja, quem reparte o pão com os pobres.

O cristão autêntico, o cristão a 100%, é aquele que celebra a memória do Senhor com a comunidade na Igreja, mas também individualmente na sua vida, dando esmola, ajudando e pondo em prática as palavras de Mateus 25: "Tive fome e deste-me de comer…". Quem reparte o pão apenas na Igreja, mas não o faz na vida, é meio cristão, assim como quem reparte o pão na vida, mas não o faz na Igreja.

Cristo está no pão que se dá em alimento; assim também nós devemos transformar-nos em pão para os outros. Devemos repartir o nosso tempo, energias e recursos, até nos darmos a nós mesmos. Cristo é pão, o pão é Cristo, e o pão que repartimos é Cristo dado aos outros. Deste modo, a prática cristã une-se à praxis cristã. A Eucaristia estende-se pela vida. "Ite missa est": termina o ritual e começa o existencial. Quando repartimos o pão físico, após o espiritual, reconhecemos Cristo nos outros.

Conclusão – A fé é uma atitude ante a vida que se celebra nos sacramentos especialmente na eucaristia, e se vive na caridade para com os outros. Não se pode divorciar a vida da celebração nem a celebração da vida. Quem não celebra o que vive não vive o que celebra.

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de novembro de 2012

Fé: A Moeda das relações humanas

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Pois andamos pela fé, e não pela vista
. 2 Coríntios 5:7

O ser humano não é apenas um ser autónomo, livre e independente, mas também um ser profundamente relacional. Nascemos de uma relação de amor, crescemos como seres humanos se formos amados incondicionalmente. Podemos ter tudo na vida, mas sem amor, nada temos. Podemos alcançar o topo da sociedade mas, se não amamos e não somos amados, não seremos felizes. Mais importante do que saber por que vivemos é compreender para quem vivemos.

A vida humana nasce e desenvolve-se no seio das relações com os outros. Estas relações podem ser analisadas pelas ciências, especialmente pelas ciências humanas, mas possuem algo que ultrapassa o âmbito científico. A ciência serve para conhecer as coisas, mas não é suficiente para conhecer as pessoas. A fé e o amor são os alicerces das relações humanas, e nenhum dos dois pode ser objeto de estudo científico.

Conhecer e amar
Conhecer algo implica domínio e controlo. Se sei o princípio que regula a chuva, posso manipulá-la, como fizeram os chineses antes da abertura dos Jogos Olímpicos para garantir que não chovesse durante a cerimónia. No entanto, Deus não se conhece dessa maneira. Conhece-se a Deus como se conhecem as pessoas: através da intimidade e da relação.

Uma pessoa só se revela e se dá a conhecer quando é amada. Pelo contrário, quando um inimigo nos conhece, tornamo-nos vulneráveis. Tal como uma pessoa, Deus só se revela àqueles que O amam. Não podemos conhecer a Deus ou a outra pessoa sem nos envolvermos pessoalmente. Deus e as pessoas humanas não podem ser reduzidos a objetos de laboratório. Amar implica um compromisso; o conhecimento sem amor torna-se manipulação.

A fé: a base da confiança nas relações humanas
A fé é um salto razoável, sustentado pela razão. É como quem caminha por um caminho e, ao chegar a um precipício, precisa saltar para o outro lado. Fé é avançar rumo ao futuro ou ver o presente a partir de uma realidade ainda não concretizada. É como navegar sem uma rota visível ou, como uma criança que se lança para os braços do seu pai ou mãe, confiando que será apanhada.

No âmbito do conhecimento, a fé não se encaixa na análise lógica dedutiva. Relaciona-se mais com a síntese e o conhecimento intuitivo. Ter fé é intuir que algo é correto, mesmo sem garantias absolutas; é como passar um cheque em branco, emprestar dinheiro ou um livro, confiando que será devolvido. Fé é arriscar e apostar no incerto.

A teoria da relatividade geral de Einstein foi, durante muito tempo, um ato de fé, nascido de uma intuição do próprio Einstein e só recentemente conseguimos obter provas da sua veracidade.

Quando aceito um cheque por um serviço prestado, acredito que ele tem cobertura. Seria ofensivo e poderia perder um amigo se o recusasse. Ao entrar num avião, confio que as autoridades fizeram o seu trabalho para evitar qualquer perigo e que os pilotos estão preparados e bem-intencionados. Ao comer num restaurante, confio na qualidade da comida, sem exigir que seja analisada previamente. Em algumas culturas, como na Etiópia, a cozinheira prova a comida à frente dos convidados para garantir segurança, mostrando como a confiança está no centro de todas as interações humanas.

No casamento, acredito que a união será para toda a vida. Mesmo num empréstimo bancário, o banco, após a devida análise, concede crédito baseado na confiança de que o cliente devolverá o montante. Até o cartão de crédito funciona com base na fé. Fala-se em "fé nos mercados" como se fala em "fé em Deus".

Até a autoestima se relaciona com fé em nós mesmos. Podemos acreditar ou não nas nossas capacidades e essa crença influencia como nos lançamos na vida. Muitas vezes, arriscamos sem ter certezas, esperando que o sucesso confirme os nossos talentos.

Se Deus não existe, a vida humana carece de sentido
(...) Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé (...) aqueles que morreram em Cristo perderam-se. E, se esperamos em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.
1 Coríntios 15:17-19

O enigma da existência humana está profundamente ligado à existência de Deus. Se Deus não existe, o ser humano, de certa forma, também deixa de existir como pessoa, e a sua vida perde o sentido. Filósofos que seguiram a ideia da "morte de Deus" — Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Søren Kierkegaard — afirmaram que, sem a existência de um ser superior, a vida se torna absurda. Para que a vida tenha sentido, é necessário que existam critérios que guiem a nossa existência e que não sejam fruto da criação humana — princípios que transcendam a nossa origem e que possuam autoridade sobre nós.

Sartre afirmou: "O inferno são os outros". Assim como os soldados do sumo sacerdote prenderam Cristo, Deus foi aprisionado por Feuerbach, julgado por Marx e Freud — que, ironicamente, tal como Anás e Caifás, também eram judeus — e, por fim, condenado à morte e executado pelo "Pilatos" de Nietzsche.

Ironia do destino, com a morte de Deus, morreu também o ser humano, pois a vida perdeu o seu sentido. Após Nietzsche, os filósofos tornaram-se pensadores do absurdo e da náusea, como Sartre, não tanto em resposta ao "cadáver de Deus", que não possui corpo, mas ao do Homem.

Contudo, após reconhecermos que a existência do ser humano está intrinsecamente ligada à existência de Deus, e embora Deus preexista e exista independentemente do homem, o ser humano é a criatura para a qual Deus existe. Apenas uma criatura consciente de si própria pode atingir a consciência da existência de Deus.

Tal como mencionámos ao falar do animismo, foi a constatação da morte do nosso corpo físico que originou o nosso "eu" espiritual; foi o reconhecimento da morte como um fim que moldou a nossa compreensão da existência como um "ser". A existência é temporal, mas o "ser" é eterno. O desejo de eternidade, em contraste com a realidade da nossa temporalidade, fez-nos acreditar na existência de Deus, criador de tudo e de todos, e alimentou a nossa sede de O conhecer.

Outra ironia do destino: agora, o outro, o meu semelhante, com quem vivia em harmonia na sociedade, como afirma Sartre, transformou-se num inferno para mim. E, segundo ele, a única forma de sair deste inferno seria eliminá-lo.

No auge do absurdo, estes pensadores chegam a negar a natureza trinitária do ser humano. Um ser humano não existe isoladamente, mas em coexistência com outros dois — o pai e a mãe. Ou existem três, ou não existe nenhum. Como podem os outros ser o inferno? É o amor ao próximo, como a nós mesmos, que garante a igualdade, um princípio fundamental para a sociedade e para o ser humano como ser social e integrante dela.

Sem o amor ao próximo, a vida em sociedade seria impossível e, sem esta, a própria vida individual cessaria de existir. Se todos pensassem como Sartre, este mundo seria verdadeiramente um inferno.

Por outro lado, é o amor a Deus acima de todas as coisas e pessoas que nos garante a verdadeira liberdade, um princípio essencial para a dignidade da pessoa humana. Sem liberdade, não há vida humana plena, não há indivíduo. Só nos libertamos das coisas e das pessoas quando entregamos o nosso coração a Deus e aceitamos o Seu senhorio.

Se não rendemos vassalagem a Deus, que nos faz livres, acabamos por nos submeter a outras realidades humanas e mundanas — o poder, o prazer, a riqueza, a popularidade, a beleza física — tornando-nos escravos dessas realidades e, consequentemente, idólatras, ou seja, adoradores de ídolos.

Conclusão – Sem Fé, a vida humana não é possível. Para viver como indivíduo livre, autónomo e independente, o ser humano precisa de confiar em si mesmo. Para viver em sociedade, na família, na comunidade, na sociedade em geral, é essencial confiar nos outros.

Pe.Jorge Amaro, IMC

16 de outubro de 2012

Física quântica e Fé

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Se a mecânica quântica não te chocou profundamente, é porque ainda não a compreendeste. Tudo o que chamamos de real é formado por coisas que verdadeiramente não podem ser entendidas como reais. 
Niels Bohr

A física é a mãe da ciência
A física é, por si só, uma cosmovisão, ou seja, a matriz do nosso pensamento. Não é o mesmo observar o mundo pela perspetiva mecanicista e materialista de Newton, do que vê-lo sob o prisma da física quântica.

O pensamento contemporâneo já não explica a realidade com base na física mecanicista de Newton, mas sim na teoria da relatividade e na física quântica. No entanto, a maior parte dos pensadores, cientistas e até teólogos ainda têm as suas mentes formatadas pela física newtoniana.

O mundo da política, das universidades, dos meios de comunicação e da economia é um mundo de causa e efeito, onde uma causa gera sempre o mesmo efeito; por isso, é um mundo ateu, materialista e mecanicista. A física quântica, sendo uma novidade, demorará ainda a estabelecer-se como a nova cosmovisão e, quando o fizer, será muito mais fácil acreditar.

As universidades, a política e os intelectuais estão, assim, desfasados, atrasados e fora de sintonia com a nova realidade. Vivem numa cosmovisão obsoleta. Para se atualizarem, devem divorciar-se de Newton e casar-se com Heisenberg. O mundo não é nem funciona da forma que eles acreditam.

Falar dos milagres de Jesus à luz da física mecanicista de Newton, onde a realidade funciona como uma máquina perfeita na rotina inalterável de um relógio, é mais difícil do que abordar os mesmos temas sob a ótica da teoria da relatividade e da física quântica, onde já não existem leis fixas e absolutas da natureza, mas sim probabilidades estatísticas.

O princípio de Heisenberg vai ainda mais longe ao sugerir que a realidade, longe de ser fixa e previsível, tem um elevado grau de incerteza e imprevisibilidade. A física quântica desafia até o senso comum.

Para Einstein, a matéria é uma forma de energia e a energia é uma forma de matéria; 95% do universo é constituído por matéria negra, que é invisível. Quão mais fácil se torna falar da ressurreição do corpo glorioso de Cristo e do corpo espiritual que teremos após a morte!

A mecânica quântica
A mecânica quântica altera profundamente os nossos paradigmas, desafiando a lógica que tem governado a ciência e a nossa vida, destruindo fronteiras que antes nos pareciam intransponíveis e acabando com dualismos que opunham realidades que julgávamos opostas, como:

•    Matéria e energia;
•    Estático e móvel;
•    Visível e invisível;
•    Tangível e intangível;
•    Previsível e imprevisível;
•    Material e espiritual;
•    Científico e filosófico.

Vejamos algumas destas oposições mais detalhadamente:
Matéria/Energia – O coração da matéria é tão intangível quanto a energia. O mundo dos átomos e partículas subatómicas é essencialmente energia. Embora possamos medir e pesar os átomos, as partículas que os compõem são constituídas por cargas elétricas e estão em movimento, exibindo assim as propriedades da energia. Em essência, a matéria é descritível e quantificável, mas, em existência, é energia, pois reage, cria ondas e manifesta uma potência voltaica.

A matéria visível e sólida é composta por elementos invisíveis e, quanto mais penetramos no centro da matéria, menos encontramos massa e mais espaço vazio. As partículas subatómicas são, de facto, manifestações de energia. Portanto, o que antes parecia sólido e visível, agora reduz-se a ondas eletromagnéticas. Assim, o nosso corpo e tudo o que existe materialmente não são mais do que energia vibratória condensada.

Matéria/Espírito – O materialismo perde a razão de ser, já que a matéria é constituída por elementos invisíveis, quase espirituais. O átomo, que é a "alma" da matéria, é tão invisível quanto a alma humana no corpo. Portanto, não são apenas os seres humanos que têm alma; a matéria também a possui.

Inerte/Vivo – Não é mais evidente que apenas a matéria orgânica tem vida. As partículas subatómicas mostram-nos que a vida pode existir também ao nível dos quarks, embora de forma distinta da vida que conhecemos.

Visível/Invisível – A fronteira entre o visível e o invisível também se esbate. A massa de um átomo corresponde a menos de 1% do seu volume total; o resto é vazio, o espaço entre o núcleo e o eletrão.

Estático/Móvel – A matéria que compõe os objetos parece estática, mas isso é uma ilusão. Na realidade, tudo está em movimento. O eletrão orbita o núcleo de um átomo a 2 200 quilómetros por segundo.

Em mecânica quântica, a matéria visível é composta por elementos invisíveis, é aparentemente estática quando, de facto, está em movimento e, embora pareça diferente da energia, é apenas uma forma desta.

A dignidade da pessoa humana
"Fizeste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração andará inquieto enquanto não descansar em Ti."
Santo Agostinho

O ateísmo são conjeturas intelectuais, enquanto o agnosticismo é uma preguiça intelectual, típica de uma pequena minoria que vive acomodada no consumismo de uma sociedade de abundância. A maior parte da população mundial é crente, e assim tem sido ao longo da História e em todas as culturas.

A evolução das espécies resultou num ser humano pensante, que se opõe ou sobrepõe ao resto da Criação, tal como o polegar se opõe aos outros dedos da mão. Este fato indica que o ser humano tem um destino diferente do resto dos seres vivos.

Só o homem anseia pela eternidade e tem sede de Deus. Se existe sede, deve existir água para a saciar. Logo, o desejo de Deus, presente em todo o ser humano, é prova da sua existência.

Acreditar é uma escolha livre
Apesar de todos os esforços dos cientistas para compreender os mistérios do universo e reduzir o campo da religião, nunca encontraram uma prova inequívoca que obrigue as pessoas a acreditar ou não acreditar. A ciência estuda o "como", mas não o "porquê". As respostas a essas questões pertencem à fé e à religião.

Conclusão
Enquanto os intelectuais estiverem presos à física mecanicista e materialista de Newton, o ateísmo parecerá uma escolha fácil. No entanto, à luz da física quântica, essa visão torna-se desatualizada. A realidade é muito mais fluida e imprevisível, onde as fronteiras entre o material e o espiritual, o visível e o invisível, se esbatem. A física quântica oferece uma nova perspetiva que desafia o pensamento ateísta e abre caminho para uma compreensão mais profunda da fé.

Enquanto a física newtoniana, com o seu materialismo mecanicista, pavimenta o caminho para o ateísmo, a física quântica desmantela essa visão limitada da realidade, dissolvendo as barreiras entre o visível e o invisível. Ao desafiar o materialismo, torna a fé na existência de Deus não apenas mais plausível, mas uma hipótese racionalmente mais coerente do que a crença na sua inexistência.

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de outubro de 2012

Acreditar depois de Nietzsche

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"É pelas nossas virtudes que somos mais severamente punidos." - Nietzsche

Nietzsche aborda a sua crítica à religião partindo da moral ou ética, compreendendo que a moral não deriva da verdadeira natureza humana, mas sim de uma religião que impede o Homem de ser feliz. São as nossas próprias virtudes, ou o esforço que fazemos para as incarnar, que nos punem e nos tornam infelizes.

Biografia de Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Nietzsche fez da moral e da religião o alvo dos seus combates, considerando que a sua guerra pessoal contra ambos foi a sua maior vitória. "Além do Bem e do Mal" é o centro dessa guerra, sendo o primeiro livro entre os seus escritos negativos e críticos, conforme ele próprio declara em Ecce Homo (1888), publicado postumamente.

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Röcken, Alemanha, a 15 de outubro de 1844. Era filho, neto e bisneto de pastores protestantes. Aos cinco anos, perdeu o pai e ficou aos cuidados da mãe, da avó e da irmã mais velha. Em 1869, com 25 anos, foi contratado pela Universidade da Basileia como catedrático de Filologia Clássica.

A Moral dos Senhores vs. a Moral dos Escravos
Nos seus livros Genealogia da Moral e Para Além do Bem e do Mal, Friedrich Nietzsche demonstra que a moral não é inata, imutável, nem derivada da natureza humana, mas sim um produto da História. Na pré-história, quando a linha entre o humano e o animal ainda não estava bem definida, alguns homens subjugavam outros pela lei do mais forte e mais capaz, uma regra que vigorava entre os animais. Os vitoriosos tornavam-se senhores, enquanto os derrotados se tornavam escravos.

Os senhores, ao triunfarem, julgavam a realidade com base em si mesmos e nos seus atos, devido à posição privilegiada que conquistavam após a vitória. Para eles, o "bom" era tudo aquilo que representava a sua forma de ser e agir: a violência, a guerra, a aventura, o risco, o poder, o prazer, a crueldade, a força física, a ação, a liberdade e a autonomia. Estes valores é que os colocavam numa posição de superioridade em relação aos outros.

Os senhores, aqueles que podem, querem e mandam, exteriorizam todos os seus instintos, agindo sem limitações. Podem matar, roubar, violar, banquetear-se e embebedar-se, pois ninguém os questiona — são eles que ditam a lei. Um exemplo disso, ainda nos dias de hoje, é o patrão, que tem mais liberdade para expressar os seus instintos em comparação com o empregado.

Os sacerdotes, ressentidos pela derrota e desejosos de vingança, ao não conseguirem vencer fisicamente os nobres, elaboram um plano para os superar mentalmente. Como a raposa que, não conseguindo alcançar as uvas, as declara verdes, assim fazem os sacerdotes à moral dos senhores.

Desta forma, nasce a moral dos escravos, que, não conseguindo impor-se no mundo real, inventam um mundo ideal, ascético, espiritual — Deus. Refugiam-se em mosteiros e negam a vida real, afirmando ser esta um "vale de lágrimas", para se concentrarem na vida do Além, onde serão felizes novamente. Negam a terra para afirmarem o céu, transferindo o valor da vida para fora da própria existência.

Em nome de Deus e da vida futura, abdicam desta vida, dos seus instintos sexuais, do poder, do prazer, e de tudo o que antes possuíam quando eram senhores. Os valores passam a ser o pacifismo, a humildade, a obediência, a pobreza, a prudência, o jejum, a abstinência, a igualdade e a fraternidade.

Nietzsche identifica os judeus como um "povo sacerdotal", e a moral dos escravos é, de facto, a moral do judaico-cristianismo, que gradualmente se impôs. Tanto o judaísmo quanto o cristianismo nasceram da escravidão: os judeus foram escravos no Egito, e os cristãos, durante séculos, foram a classe mais pobre, perseguida pelo Império Romano, até prevalecer sobre ele.

A moral dos senhores é autónoma, com valores definidos a partir da experiência individual; já a moral dos escravos é heterónoma, com valores impostos externamente, surgindo de normas como "Deus disse" ou "a Bíblia manda". A moral dos senhores é vital, baseada no corpo e nas suas necessidades e apetites; enquanto a moral dos escravos é abstrata, negando e sacrificando a vida real.

Critica à génese da ética de Nietzsche
A dicotomia de Nietzsche entre a moralidade de senhores e escravos é inegavelmente original e provocadora, lançando luz sobre as dinâmicas históricas da ética humana. Contudo, também corre o risco de simplificar em demasia a complexidade e riqueza dos sistemas morais. A sua associação da moralidade de escravos a valores como humildade, altruísmo e submissão — que ele afirma derivarem do ressentimento, uma postura reativa e vingativa contra os poderosos — pode diminuir injustamente as motivações genuínas e proativas por detrás dessas virtudes. Estes valores estão muitas vezes enraizados não na fraqueza ou no ressentimento, mas num profundo reconhecimento da interconexão e vulnerabilidade humanas.

As origens destes chamados valores de "moralidade de escravos" poderiam ser mais bem explicadas pela própria natureza humana, em vez de um quadro moral reacionário. Empatia, cooperação e o desejo de justiça são características profundamente enraizadas na evolução humana, essenciais para a sobrevivência e o florescimento das comunidades. A crítica de Nietzsche ignora estes aspetos naturais e construtivos do desenvolvimento moral.

Por outro lado, a moralidade de senhores que Nietzsche celebra, com a sua ênfase na dominância, força e autoafirmação, parece imitar a "lei da selva" ou a sobrevivência do mais apto. Esta perspetiva é problemática, pois pode ser usada para justificar sistemas ou comportamentos opressivos, priorizando os poderosos em detrimento dos vulneráveis. Essa valorização corre o risco de promover uma visão do mundo que desumaniza os considerados fracos e legitima a exploração, minando o progresso moral que visa garantir dignidade, igualdade e justiça para todos.

Além disso, a ênfase de Nietzsche no individualismo da moralidade de senhores em detrimento dos valores comunitários revela um ponto cego na sua filosofia. A sua famosa proclamação da "morte de Deus" e a celebração do Übermensch (Super-Homem) refletem a sua rejeição da moralidade tradicional e das obrigações comunitárias. No entanto, essa rejeição parece alheia às realidades da interdependência humana, onde as sociedades prosperam com o apoio mútuo e a responsabilidade coletiva.

Não obstante, a crítica de Nietzsche mantém o seu valor pela originalidade e pelo desafio que coloca às suposições morais inquestionadas. Ele identifica corretamente os perigos dos sistemas morais que retratam o mundo natural como um "vale de lágrimas" e desencorajam a agência humana. Contudo, uma abordagem mais equilibrada poderia procurar harmonizar os pontos fortes das moralidades de senhores e de escravos, enfatizando o florescimento individual juntamente com o bem-estar coletivo. Tal integração honraria os insights de Nietzsche, ao mesmo tempo que abordaria as dimensões mais amplas e ricas da ética humana.

Teísmo e Ateísmo
No que diz respeito à existência de Deus, Nietzsche segue os passos dos seus predecessores ateus. Para ele, a fé em Deus provém de um sentimento de impotência que o Homem experimenta em relação às realidades que o cercam.

Feuerbach, Marx e Freud, por exemplo, tiveram ligações ao cristianismo, seja pela sua formação teológica ou pela conversão dos seus pais. Parece que o ateísmo nasce do teísmo, ou é uma espécie de teísmo invertido, uma dialética semelhante à relação entre matéria e antimatéria no universo.

O ateu vive insatisfeito, sempre assombrado pela dúvida, à procura de mais provas para se convencer de que Deus não existe. O teísta também duvida, mas essa dúvida culmina num cogito ergo sum. O teísta opta por acreditar, encontrando na fé um sentido para o universo, o mundo e a sua própria vida, enquanto o ateu se instala no vazio, o que pode causar tormento e sofrimento.

Nietzsche, por exemplo, acabou os seus dias louco. Outros ateus preenchem esse vazio com a busca de poder, prazer, beleza ou dinheiro, dedicando-se quase religiosamente a essas causas. Muitos ateus, na verdade, podem ser considerados mais politeístas do que propriamente ateus.

Conclusão – Contrariamente à proposta de Nietzsche, a moralidade de senhores — enraizada na exaltação dos instintos e no individualismo descontrolado — não traz verdadeira felicidade, podendo antes fomentar injustiça social e conflito. Em contraste, a moralidade cristã, longe de ser submissão, assenta no amor e em valores que elevam a dignidade humana. O amor, como pedra angular da ética cristã, oferece um caminho para a transcendência, guiando os indivíduos além da mera sobrevivência para uma vida de significado e propósito autênticos.

Pe. Jorge Amaro, IMC


15 de setembro de 2012

Acreditar depois de Sigmund Freud

Sem comentários:

A religião e o sentimento religioso permeiam todas as esferas do pensamento e da vida humana. Karl Marx viu os efeitos da religião ou de uma certa religião na economia e na relação entre pobres e ricos. Freud vê a mesma religião desde uma outra perspetiva, a dos traumas sobretudo os de origem sexual.

Se para Marx a religião aliena o ser humano desde uma perspetivas sociologia e económica, para Freud a alienação atua a nível inconsciente e psíquico, a religião é neste sentido uma ideologia que impede o ser humano de ser livre, de ser ele mesmo, de aceitar a realidade e de se aceitar como tal.

Biografia de Sigmund Freud (1856- 1939)
Sigmund Schlomo Freud nasceu em Freiberg, na Morávia, então pertencente ao Império Austríaco, no dia 6 de maio de 1856. Filho de Jacob Freud, pequeno comerciante, e de Amalie Nathanson, de origem judaica, foi o primogênito de sete irmãos.

Tal como o pai de Marx, o pai de Freud também era um cristão convertido do judaísmo. A este respeito chegou a dizer que sempre se tinha considerado alemão, até ao dia em que os judeus começaram a ser perseguidos. Já refugiado em Londres, considerava-se judeu.

Aos quatro anos de idade, sua família mudou-se para Viena, onde os judeus tinham melhor aceitação social e melhores perspetivas econômicas. Na universidade de Viena se formou em medicina e mais tarde um mestrado em neuropatologia. Da neurologia passou para a psiquiatria e desta para a +psicologia ao estudar o inconsciente até se dedicar exclusivamente à psicanalise.

Durante dez anos, Freud trabalhou sozinho no desenvolvimento da psicanálise. Em 1906, a ele juntou-se Adler, Jung, Jones e Stekel, que em 1908 se reuniram no primeiro Congresso Internacional de Psicanálise, em Salzburg.

A religião como neurose obsessiva
Freud vê a religião como uma repressão dos instintos básicos do homem, sobretudo do sexual. Isto acontece porque a religião perverte os instintos naturais do ser humano, declara-os maus, impuros feios, sujos e animalescos e, como tal, devem ser reprimidos.

A religião é também um código moral que culpa os indivíduos de sentirem e expressarem os seus instintos. - Este tema vai ser retomado por Nietzsche na sua contraposição moral dos escravos, ou seja, entre a moral judaico-cristã e a moral dos Senhores, por outras palavras, a ética natural.

Segundo Freud, esta repressão conduz inexoravelmente a uma neurose obsessiva: o corpo pede algo, a mente não lho dá, esta acaba por entrar em curto-circuito e os fusíveis fundem-se. Tal como para Marx o socialismo e o comunismo seriam a solução para a alienação da religião, para Freud a psicanálise vai resolver a questão - removendo os traumas do passado, a pessoa reconcilia-se com ela mesma e com a sua verdadeira natureza.

Tal como acontecia com Marx, também Freud pouco sabia de religião, olhando mais o papel desta numa sociedade repressora e puritana. A sua teoria é mais que tudo uma reação ao puritanismo, como a de Marx era uma reação ao capitalismo desumano da época resultante da primeira revolução industrial na Inglaterra onde até crianças trabalhavam nas fábricas de sol a sol.  

Até agora, o único que tratou o assunto religioso do ponto de vista teórico foi Feuerbach na sua obra “A essência da religião”. Parafraseando o título desta obra, Marx e Freud trataram o assunto religioso desde o ponto de vista existencial, ou seja, de como a religião era uma arma dos ricos contra os pobres (Marx) ou uma repressão da natureza humana pela ideologia puritana para controlar os instintos básicos.

A religião como uma ilusão infantil
Para Freud o sentimento religioso é uma ilusão infantil, algo assim como acreditar no Pai natal. A maturidade humana acontece quando a criança abandona o Princípio do Prazer e abraça o Princípio da realidade. A religião mantém o ser humano numa eterna infantilidade porque é uma ilusão não é real.

Na sua obra “O futuro de uma ilusão”, Freud está convencido de que a religião nada mais é do que uma quimera que teve a sua função no mundo antigo, mas da qual agora nos devemos livrar para encontrar a verdade. À medida que a ciência avança, o futuro desta ilusão tornar-se-á cada vez mais incerto.

O seu amigo pastor protestante Pfister provavelmente tendo em mente Pascal responde a esta obra dizendo: Se a realidade se resume a uma visão materialista e aleatória da vida, que futuro podemos esperar? Ao contrário, se a este mundo gelado e materialista veio um Deus de sabedoria e amor podemos desejar a felicidade aqui e agora e esperar por um futuro risonho.

O burro tem esperança de poder a vir a trincar a cenoura; a esperança é o que o motiva a esperança é o que lhe dá uma razão de vida. É a esperança em poder vir a comer a cenoura que motiva o seu presente que o faz andar para o futuro. O presente de andar para alcançar a cenoura é motivado pela esperança de a alcançar. Sem essa esperança o presente não teria sentido.

Quem não tem futuro, quem não tem esperança anda a roda. Dá voltas sobre si mesmo e dessa forma atinge o aborrecimento de sempre o mesmo, o enjoo e a náusea da qual os filósofos do nada falam, Nietzsche e Sarte. Sem futuro, o presente é nauseabundo por mais prazenteiro que seja. Assim o experimentou Sartre, Nietzsche antes dele e Camus depois dele: “se vens do nada, não há Fé, se vais para o nada, não há Esperança o mais certo é que não haja Caridade pelo que a vida carece de sentido, é nauseabunda.

Não tem sentido a vida do ateu que afirma que vem nada e vai para o nada. O que vive instalado na pura mundanidade, vive num presente sem passado nem futuro como aconselham as filosofias e espiritualidades do extremo oriente como o Budismo. Só os animais não têm passado memoria histórica e futuro um objetivo para a vida. Os humanos só são humanos se vivem os três tempos, passado presente e futuro em harmonia.  

A Fé em Deus Pai abre-nos à Esperança que encontramos no Filho pela sua ressurreição e motiva um presente de Caridade, fazendo-nos ver a Cristo em cada irmão. E quem vê o Filho vê o Pai, como Jesus disse a Filipe. A Esperança é a filha unigénita da mãe Fé, como Cristo é Filho de Deus Pai e, tal como o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, assim a Caridade procede da Fé e da Esperança.

As três virtudes funcionam na nossa vida como um GPS: a Fé, conecta-nos com Deus, a nossa estrela orientadora ou satélite, dizendo-nos onde estamos e o que somos, ou seja, pecadores. A Esperança diz-nos para onde queremos ir e o que queremos ser, isto é, Santos. A Caridade é o único meio e roteiro para chegar à santidade.

Freud parece não saber que o sonho comanda a vida
Eles não sabem que o sonho /é uma constante da vida/tão concreta e definida/como outra coisa qualquer, /como esta pedra cinzenta/em que me sento e descanso, /como este ribeiro manso, /em serenos sobressaltos, /como estes pinheiros altos, /que em oiro se agitam, /como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.


Eles não sabem que o sonho/é vinho, é espuma, é fermento, /bichinho alacre e sedento, /de focinho pontiagudo, /que foça através de tudo/num perpétuo movimento. (…)

Eles não sabem, nem sonham, /que o sonho comanda a vida. /Que sempre que o homem sonha /o mundo pula e avança /como bola colorida /entre as mãos de uma criança.
António Gedeão

Como diz António Gedeão, no extrato da sua poesia acima citado, o sonho comanda a vida. A ilusão é sonho de facto em espanhola ilusão não tem sentido de quimera de imaginação de algo falso, mas sim sentido de sonho de sonhar com um futuro melhor e já no presente fazer por ele, ou seja, trabalhar para que esse sonho se torne realidade.

O ser humano não se coloca problemas que não tenham solução, se existe um problema é porque existe a solução para ele, porque o que não tem solução, como diz o povo, solucionado está. Da mesma forma o Homem não sonha com impossíveis, não sonharia com a água se a água não existisse.

A própria teoria da relatividade de Einstein foi um sonho, foi uma intuição. Neste sentido o sonho é a antessala da realidade. O sonho é uma utopia no sentido grego da palavra, algo que não é realidade agora, mas que pode ser e muitas vezes é no futuro.

O melhor está para vir
É provável que o Senhor tenha criado a esperança no mesmo dia em que criou a primavera. Bern Williams

Não caminhamos para o ocaso das nossas vidas, mas para a aurora da vida eterna. Por isso, por mais felizes que estejamos, o melhor está para vir; por mais sofrimento que tenhamos, decrépitos, limitados, enfermos e velhos, o melhor está sempre para vir, não é aqui nas circunstâncias e vicissitudes do aqui e agora que colocamos a nossa confiança, pois sabemos que não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a futura (Hebreus 13,14)

Conta-se que uma paroquiada, mulher de muita fé e esperança na vida eterna, padecia de uma doença incurável pela qual lhe restava pouco tempo de vida. Preparou o seu funeral de tal forma que fosse para todos uma lição sobre a fé e a esperança que a animava. No caixão entre os dedos das suas mãos em vez de estar o Rosário, empunhavam uma faca e um garfo.

O sacerdote explicou ao povo que estava estupefacto pela sua ousadia e disse que ela durante os anos da sua vida não perdeu um jantar de gala da paroquia e que sempre que ia a devolver o prato como talher lhe diziam fique com o garfo e com a faca porque o melhor está para vir.

A morte, portanto, não é o fim, mas a passagem para o melhor que está para vir. Isso motiva a vida do cristão por mais doloroso e limitado que seja o seu presente.

Conclusão – Freud diz que a religião é uma ilusão infantil, como acreditar no Pai Natal… Mas o Pai Natal em que as crianças acreditam existe mesmo… é a imagem de Deus Pai que tanto amou o mundo que enviou o Seu Filho e foi Natal.

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de setembro de 2012

Acreditar depois de Karl Marx

Sem comentários:

"Até aqui, os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo."Karl Marx

Karl Marx é mais sociólogo e economista do que filósofo. Embora continue a reflexão filosófica ateísta, aceita as ideias de Feuerbach e procura aplicá-las nos campos da economia e sociologia na sua crítica ao capitalismo. Como ele próprio afirma, não está interessado em teorias que não tenham uma aplicação prática com o intuito de mudar o mundo.

Está interessado em compreender qual tem sido o desempenho da religião ao longo do tempo, para que tem servido e a quem tem servido. Descobre que tem sido um instrumento de opressão usado pelas classes dominantes contra os mais pobres. Esta é uma visão simplista, que até o próprio Marx deve ter reconhecido, mas é a que melhor serve a sua teoria. Ou seja, o materialismo dialético ao serviço do materialismo histórico.

Biografia de Karl Marx (1818-1883)
Karl Marx nasceu em 1818 na cidade de Tréveris, então território da Prússia, no seio de uma família de classe alta alemã. O seu pai foi um bem-sucedido advogado e conselheiro de governo. Aos dezassete anos, Marx ingressou no curso de Direito na Universidade de Bonn, seguindo os passos do pai.

No entanto, o jovem universitário envolveu-se em festas e numa vida boémia. Para interromper esse estilo de vida, Heinrich Marx, seu pai, transferiu-o para a Universidade de Berlim. Lá, o contestatário e desafiador Marx descobriu a Filosofia, área em que se licenciaria.

Aos 23 anos, Marx defendeu a sua tese em Filosofia, obtendo o título de doutor, o que lhe permitiu ingressar na carreira académica. Contudo, devido às suas críticas ao governo prussiano, foi impedido de lecionar em universidades, obrigando-o a trabalhar como jornalista.

As posições radicais de Marx levaram a que fosse expulso de vários territórios prussianos, alemães e franceses, sendo definitivamente expulso de Colónia, na Alemanha, em 1848. Já na Inglaterra, nesse mesmo ano, publicou o "Manifesto Comunista" em conjunto com Engels. Desde 1843 até ao fim da sua vida, Marx sobreviveu das heranças, da ajuda de Friedrich Engels e de artigos que escrevia ocasionalmente para jornais. Foi em Londres que escreveu a sua obra mais importante: "O Capital".

A Religião como Ópio do Povo

Filho de um judeu convertido ao cristianismo protestante, Marx chegou a casar-se pela Igreja. No entanto, foi um revolucionário. Na sua obra emblemática, “O Capital”, analisou os males do capitalismo e viu na religião um obstáculo ao progresso, ou seja, à evolução do capitalismo em direção ao socialismo e comunismo.

Marx concorda plenamente com Feuerbach: Deus é uma projeção do homem, e a religião é então “o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma época sem espírito. Ela é o ópio do povo.” Além de ser uma projeção, a religião é uma droga, um comportamento alienante que nos impede de sermos nós mesmos, de tomarmos as rédeas do nosso destino ou o leme do nosso barco. Em conclusão, constitui um entrave ao progresso.

O ateísmo de Marx é mais económico e social do que filosófico. Ele não tem interesse na essência da religião, seja ela judaica ou cristã, e de facto desconhece Cristo e os princípios sociais do cristianismo.

O que lhe interessa é o papel que a religião desempenha na sociedade. Portanto, o ateísmo de Marx pode dever-se ao tipo de religião praticada naquela época, que em si mesma poderia ter pouco a ver com o cristianismo de Cristo. De facto, a sociedade comunista sem classes do futuro poderia muito bem ser a Terra Prometida dos judeus, o Reino de Deus de Jesus de Nazaré e dos cristãos.

O que em Feuerbach era apenas uma ideia filosófica, em Marx é um manifesto, uma ideia operativa. No entanto, é preciso ressalvar que Marx acreditava firmemente que tanto o capitalismo quanto a religião cairiam por si só, sem necessidade de intervenção, como um fruto que amadurece, apodrece e cai da árvore.

Contudo, os seus seguidores entenderam que era preciso dar-lhes um empurrão, e foi precisamente isso que Lenine, Estaline e Mao Tsé-Tung fizeram com o ateísmo militante, que resultou na morte de milhões de pessoas durante a maior parte do século XX. O pobre Marx, ao perceber ainda em vida que havia tantas versões das suas teorias, chegou mesmo a declarar-se não marxista.

Escuta, Marx
A Marx, eu diria que até agora foram mais os religiosos que trouxeram benefícios à humanidade do que os ateus, que trouxeram gulags, ditaduras e perseguições religiosas, resultando na morte de cerca de 30 milhões de pessoas durante o século passado. A religião pode ser vivida como ópio do povo quando desligada da vida e da realidade social; porém, ópio do povo, na sua essência, não é.

Como dizia Karl Marx, o ser humano é o momento em que a Natureza ganha consciência de si mesma. De todos os seres vivos, somos os únicos com capacidade para pensar e com algum domínio sobre o nosso destino e a nossa vida. Não faz sentido que o nosso destino seja o mesmo do piolho e da pulga: o nada. Se assim fosse, eu e muitos outros preferiríamos não ter nascido, a partilhar com o piolho, a barata e a pulga o mesmo destino: o nada.

Aqui se verifica o absurdo do ateísmo: não faz sentido que um Universo ordenado inteligentemente, que progrediu até à vida humana, tenha o mesmo destino que o resto dos seres vivos. Para que teríamos chegado até aqui? Para termos maior consciência da nossa miséria e sofrermos mais que todos os seres vivos?

Precisamente no momento em que temos consciência de nós mesmos, da nossa existência e do poder relativo que temos sobre ela, também nos damos conta de que um dia morreremos, ou seja, de que um dia deixaremos de existir. Ao menos os animais, que também morrem, são poupados a este sofrimento. Não pensam, não sabem que existem e não sabem que hão de morrer.

Por que motivo temos consciência? Para experimentarmos de forma masoquista o sofrimento, a dor, a angústia e a ansiedade perante a morte, a nossa condição miserável em relação aos outros seres vivos?

Os animais não têm nenhum poder sobre as suas próprias vidas: a Natureza colocou-lhes no sistema um “chip”, o instinto, que governa automaticamente as suas vidas. Os seres vivos viajam em piloto automático; não podem enganar-se, nunca estão certos nem errados, ou melhor, estão sempre certos, sempre realizam a vocação para a qual foram criados. Ao contrário deles, os seres humanos têm algum poder sobre as suas vidas e podem transformá-las num céu ou num inferno ao se equivocarem. Não seria melhor vivermos também nós em piloto automático, visto que todos temos o mesmo destino?

Para os animais, a Natureza é uma mãe pródiga, que tudo lhes dá e até os veste. Ao sair do ventre das suas mães, já têm tudo o que precisam para viver. O ser humano nasce como o mais vulnerável e desamparado de todos os seres vivos e leva muito tempo até atingir a idade adulta: anos de educação, escola e universidade, e depois, para sobreviver, tem de trabalhar grande parte do dia para ganhar o pão com o suor do seu rosto, enquanto os nossos congéneres animais comem, dormem e se divertem. Para quê tudo isto? Não seria melhor a vida do animal se tudo acabasse em águas de bacalhau?

Conclusão
Embora certo tipo de religião possa tornar-se alienante, a religião de Jesus, longe de ser ópio, é o fermento de um mundo mais fraterno, baseado na igualdade e na justiça.o isto? Não seria melhor a vida do animal se tudo acabasse em águas de bacalhau?

Pe. Jorge Amaro, IMC


 

1 de agosto de 2012

Acreditar depois de Feuerbach

Sem comentários:

O sentimento religioso pertence à natureza humana, faz parte desta, e refere-se em geral a Deus como amigo do homem – toda a religião tende a estabelecer uma relação de amizade com Deus. Pelo contrário, os ateísmos negam que o sentimento religioso seja conatural ao ser humano e tendem a ver Deus como um inimigo do homem, um obstáculo à sua autorrealização, crescimento e progresso.

Já houve culturas e civilizações sem ciência e tecnologia, mas nunca houve uma sem sentimento religioso, sem religião. Porque a autoconsciência, que ocorre na vida humana por volta dos 6 ou 7 anos, é contemporânea da certeza de que um dia morreremos.

Por causa do cogito ergo sum, penso logo existo, sei que um dia deixarei de existir. As três perguntas que todo o ser humano se faz – de onde venho, para onde vou e que sentido tem a vida – afloram à nossa consciência no dia em que nos tornamos autoconscientes. A religião é a resposta a essas três perguntas.  

Biografia de Ludwig Feuerbach (1804-1872)
Nascido em Rechenberg em 1804, Ludwig Andreas Feuerbach foi um filósofo alemão conhecido pelo estudo da teologia humanista. Foi aluno do filósofo Hegel, mas abandonou os estudos hegelianos para, em 1828, iniciar estudos em ciências naturais.

A sua obra mais importante chama-se a “Essência do cristianismo” na qual discute a verdadeira essência ou antropologia da religião e conclui que toda a religião é uma forma de alienação na qual as pessoas projetam o seu conceito de “ideal humano” num ser superior. Feuerbach faz a transição do idealismo alemão para o materialismo histórico de Karl Marx e para o materialismo cientificista da segunda parte do século XIX.

A religião como projeção do Homem
Homo homini Deus est - O cristianismo fixou para si mesmo a meta de satisfazer os desejos inatingíveis do homem mas, por essa mesma razão, ignorou os seus desejos atingíveis. Prometendo ao homem a vida eterna, privou-o da vida temporal, ensinando-o a confiar na ajuda de Deus, retirou-lhe a confiança nos seus próprios poderes; ao dar-lhe a fé numa vida melhor no Céu, destruiu-lhe a fé numa vida melhor na Terra e o esforço para alcançar essa mesma vida. O cristianismo deu ao homem o que a sua imaginação deseja mas, por essa mesma razão, não lhe deu o que ele realmente deseja.

Para Feuerbach, a teologia é pura antropologia, pois não foi Deus que criou o Homem à sua imagem e semelhança mas, ao contrário, foi o Homem que criou a Deus à sua imagem e semelhança. Tudo o que se diz de Deus pertence ao homem, as imagens de Deus e tudo o que dele sabemos é antropomórfica. O Homem projeta, fora de si mesmo, num ser abstrato a que chama Deus, todas as suas aspirações, desejos e ideais. “Deus nada mais é do que o espírito humano projetado para o infinito.”

“O meu primeiro pensamento foi Deus, o meu segundo pensamento foi a razão, o meu terceiro e último pensamento foi o homem”.  Este brilhante filósofo começou a sua carreira como estudante de teologia, abandonando-a mais tarde para se tornar discípulo de Hegel. Feuerbach foi o primeiro grande ateu dos tempos modernos. Uma autêntica labareda de fogo, é o que o seu nome significa. Na verdade, julgo que todos os que vieram depois dele pouco ou nada disseram de verdadeiramente novo, apenas repetiram as suas ideias basilares por outras palavras.

Por esta razão, Feuerbach é o grande inspirador e é o precursor de Karl Marx, no sentido em que é o primeiro a proclamar e lutar pela emancipação do homem da tutela da religião que o enfraquece e priva do seu próprio poder. Para Feuerbach “A moralidade que não visa a felicidade é uma palavra desprovida de significado.” E avisa-nos de que “sempre que a moralidade se baseia na teologia, sempre que o correto se torna dependente da autoridade divina, as coisas mais imorais, injustas e infames podem ser justificadas e impostas.”

Por brilhante que possa parecer, a crítica que Feuerbach faz à fé e à religião, não passa de um sofisma. A projeção do Homem fora de si nada diz sobre a existência ou não existência de Deus: este pode existir com projeção ou sem ela.

A projeção humana, precisamente porque é humana, tem mais a ver com a natureza humana que com a natureza de Deus. Assim sendo, a projeção humana pode explicar por que motivo o pensamento de Deus sempre existiu na mente de todos os homens em todos os tempos; mas não tem nada a dizer sobre a hipotética existência de Deus. Pelo contrário, a persistência do próprio pensamento de Deus na nossa mente é mais uma prova da existência de Deus que uma prova da sua não existência.

Se uma pessoa tem sede ou desejo de beber água é porque deve haver água; é mais lógico pensar que a água cria o desejo que pensar que o desejo cria a água; até porque, cronologicamente na história do Universo, quando ainda estava longe a aparição do Homem, já havia água; portanto, a água preexiste ao desejo de a beber. Tenho para mim que se não existisse a água também não existiria a sede.

Voltando à sequência dos pensamentos de Feuerbach de Deus ao Homem, infelizmente, Feuerbach não parou no terceiro pensamento, Deus – razão – homem. Depois de ter rebaixado e degradado Deus à categoria de pura conjetura humana, não parou aí e continuou com o seu quarto pensamento que foi o sensível, com o quinto que foi a natureza e com o sexto que foi a matéria, chegando estupidamente a afirmar “o homem é o que come”.

Ou seja, quando se degrada Deus, acaba por degradar-se em consequência a criatura por Ele criada à sua imagem e semelhança. De acordo com o livro de Génesis, Deus tirou-nos da matéria (argila) e constituiu-nos como pessoas à sua própria imagem e semelhança. Se negamos a existência de Deus como pessoa, também negamos a nossa existência como pessoas, pois a Ele a devemos.

Se nós não somos uma pessoa, então voltamos ao que éramos antes de Deus nos ter criado, ou seja, matéria. Em conclusão, o que Feuerbach faz com o ser humano é uma involução darwinista...

Conclusão – Feuerbach argumenta que o Homem criou Deus à sua imagem, projetando nele as suas aspirações e ideais, e não o contrário. No entanto o desejo humano por algo transcendente pode ser uma prova da existência de Deus. Não existe sede sem agua nem agua sem sede.

Pe. Jorge Amaro, IMC

 












1 de julho de 2012

Ano da Fé

1 comentário:

¿Qué tengo yo, que mi amistad procuras?
¿Qué interés se te sigue, Jesús mío,
que a mi puerta, cubierto de rocío,
pasas las noches del invierno oscuras?

¡Oh, cuánto fueron mis entrañas duras,
pues no te abrí! ¡Qué extraño desvarío,
si de mi ingratitud el hielo frío
secó las llagas de tus plantas puras!

¡Cuántas veces el ángel me decía:
«Alma, asómate ahora a la ventana,
verás con cuánto amor llamar porfía»!

¡Y cuántas, hermosura soberana,
«Mañana le abriremos», respondía,
para lo mismo responder mañana!
Lope de Vega

Sempre ouvimos dizer que a fé é um dom de Deus e assim é de certa forma pois como diz São Paulo é o Espírito Santo que grita dentro de nós Aba Pai (Gálatas 4,6); ou como diz Jesus em João 15, 16, “Não foste vós que me escolhestes, fui eu que vos escolhi…”; No entanto, se a fé é fundamentalmente um dom de Deus, não seria Deus injusto porque não deu esse dom aos que se dizem ateus ou agnósticos?

Deus só ama os que o amam, gosto eu de repetir retoricamente nos meus sermões. É claro que é falso mas só é falso em teoria na prática é como se fosse verdadeiro. O que nos aquece não é o sol diretamente mas sim o feedback ou resposta da terra. De facto quanto mais alto e longe da terra estivermos mais frio temos (já todos vimos nos painéis informativos que a temperatura exterior de um avião que vai a 10.000 metros de altitude é de 50 graus negativos).

A salvação é gratuita mas não é automática; Deus alimenta as aves do céu mas não lhes deita a comida no ninho; elas têm que procurá-la. O que nos salva não é tanto a fé como dom de Deus mas sim a fé como opção e como resposta ao dom de Deus. Deus ama a toda a gente por igual; amava a Hitler e a Francisco de Assis da mesma maneira. A diferença entre estes reside na sua resposta ao dom de Deus: negativa no primeiro, positiva no segundo.

Eis que estou à porta e bato, se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo. Apocalipse 3:20

A porta só se abre por dentro, Jesus não tem como abri-la por fora. É na aceitação da graça de Deus que somos salvos, é na rejeição de Deus que somos condenados. A fé pode ser um dom de Deus, mas é também uma escolha humana. Diante da nossa liberdade, Deus Todo-Poderoso é impotente porque nos criou livres.

Pe. Jorge Amaro, IMC

15 de junho de 2012

Autoconhecimento

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Conhece-te a ti mesmo, Oráculo de Delfos (469 AC)
Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres. João 8, 32

Depois de me dar conta de quem sou, do lugar que ocupo e do tempo em que vivo, pela prática da autoconsciência, a busca do sentido da minha vida requer que eu me questione sobre a minha identidade, que me conheça, que saiba quem sou, o que sou e como sou.

Para viver a vida com sentido preciso de conhecer os meus talentos, as minhas inclinações naturais e tendências, os meus defeitos, a minha forma de ser e atuar, para saber com o que posso contar antes de decidir o que fazer com a minha vida.

Processo contínuo
O ser humano não é um objeto físico que possa ser delimitado, medido e pesado, não pode ser colocado num tubo de ensaio, não é estático, pelo que não é sempre o mesmo ao longo do tempo, cresce, muda e transforma-se. As regras gerais são tantas como as exceções, pelo que não é possível uma definição final, porque o ser humano sempre escapa a todo o tipo de conceptualização.

Não sendo possível delimitar e definir o ser humano por completo e de uma vez por todas, podemos no entanto encontrar constantes, sentimentos, emoções, formas de agir e de pensar que se repetem, deixando antever um determinado tipo de caráter e personalidade que nos sirvam de orientação para viver com sentido o momento presente. São conclusões inconclusivas que servem para formular outras perguntas e para ir dando um rumo e um sentido ao nosso viver.

A janela de Johari
É uma técnica que nos faz entender de uma forma clara a relação que estabelecemos com os outros e connosco próprios. Como as janelas clássicas das nossas casas, divide-se em quatro pequenas janelas e duas áreas que se intercetam. A primeira área diz respeito ao que os outros conhecem e desconhecem de mim; a segunda diz respeito ao que eu conheço e desconheço de mim. Da interceção destas quatro áreas resultam vários tipos de eu: o eu aberto, o eu cego, o eu escondido e o eu desconhecido.

O Eu aberto – É formado pelas atitudes, valores, comportamentos que eu conheço e que os outros também conhecem acerca de mim. Trata-se do eu público, uma área que contém informação que é do conhecimento de todos: nome, idade, factos, talentos etc.

O Eu cego – Formado por coisas que eu desconheço acerca de mim e que os outros conhecem. Esta é a prova de que o ser humano é um ser social. A nossa individualidade é formada no confronto contínuo com os outros, começando pelas pessoas que são mais significativas, os nossos pais e irmãos.

Somos incapazes de ver a nossa cara tal qual ela é. A imagem que vemos no espelho sempre é uma distorção da realidade pois não há espelhos perfeitos. Os outros veem a minha cara tal qual ela é; por isso, uma das chaves para a minha intimidade, para o meu autoconhecimento são os outros que a têm. Quem está dentro da floresta só vê árvores, não vê a floresta, não tem uma visão global; o outro traz-me objetividade e uma visão global do que eu sou…

Quem dizem os homens que Eu sou? (…) E vós, quem dizeis que Eu sou? (Marcos 8, 27,29) Os outros podem ter uma ideia e uma imagem bem diferente daquela que possuímos, e tão verdadeira é a deles como a nossa. Eu sou, ao mesmo tempo, o que eu penso que sou e o que os outros pensam que eu sou.

É importante manter uma relação de amizade com uma pessoa significativa para nós, de modo a que possa dar-nos sempre o feedback sobre o que somos e como estamos a ser vistos pelos outros. O próprio Jesus precisou deste feedback dado pelos seus discípulos.

O Eu escondido – Formado pelo que nós conhecemos de nós mesmos e que decidimos não revelar, por medo ou outras razões; é o que chamamos a nossa privacidade e intimidade, sentimentos e experiências passadas que preferimos não revelar. Em geral, se esta área for muito grande, podemos ser julgados por falta de autenticidade.

É psicologicamente saudável ter alguém que sabe tudo ou quase tudo acerca de mim; é importante que eu possua uma pessoa amiga com a qual sou um livro aberto, com a qual o meu Eu é totalmente aberto. Mas, por segurança, não podem ser muitas, estas pessoas.

Não sem razão o povo diz, “Livre-me Deus dos meus amigos que dos meus inimigos me livro eu”, ou ainda “ninguém descubra o seu peito por maior que seja a dor, pois quem o seu peito descobre de si mesmo é traidor”.

O Eu desconhecido – Constituído por todo o material que está no meu inconsciente e que às vezes aflora sem aviso prévio quando algo acontece; é material que não é conhecido por mim nem pelos outros. Trata-se de informação sobre nós mesmos que ainda está por descobrir; áreas de reconhecido talento, potenciais, motivos ou memórias de infância que estão adormecidas e influenciam o nosso comportamento de uma forma desconhecida para nós.

Ao eu desconhecido aplica-se uma máxima da psicologia que bem poderia ser escrita no Oráculo de Delfos dos tempos modernos: o que sabemos de nós próprios, conseguimos controlar, o que não sabemos controla-nos a nós. É neste sentido que Jesus nos aconselha a conhecer a verdade, pois só conhecendo a verdade acerca de nós mesmos podemos ser livres, podemos ter a nossa vida nas nossas mãos, possuir-nos para nos podermos doar.

Quanto ao eu desconhecido, somos um mistério para os outros e para nós mesmos. Só não o somos para Deus. Neste sentido, podemos comparar-nos a um iceberg: há uma grande parte da nossa personalidade que não é acessível de uma forma direta e voluntária, como uma base de dados para a qual eu não possuo a palavra-passe.

No entanto, não está completamente velado e trancado como uma caixa-forte. Há momentos e circunstâncias em que o inconsciente se revela; são momentos que estão fora do nosso controlo e que devemos aproveitar. Podemos dizer que são mensagens que o nosso inconsciente manda ao consciente, mensagens que devem ser entendidas, descodificadas e aproveitadas na vida do dia-a-dia.

Lapsus linguae – São afirmações que fazemos inadvertidamente sem querer e, às vezes, fora de contexto: é o que o povo chama de fugir a língua para a verdade. É uma forma que o inconsciente tem de se revelar ao consciente. Como são inconscientes, quem as diz não se apercebe delas mas um amigo ou um psicoterapeuta pode revelá-las através de feedback.

Sonhos – Todos sonhamos, sempre sonhamos e os sonhos são sempre e exclusivamente acerca de nós. Cada objeto, cada personagem, faz parte de nós. O sonho é sempre subjetivo, nunca objetivo: se sonho com o meu pai, não é verdadeiramente com ele que estou a sonhar mas com o tipo de relação que tenho com ele, como o conceptualizo, etc.

Trabalhar ou analisar um sonho é como viajar ao subconsciente. Muitas vezes os sonhos são metafóricos, fantasmagóricos e até ridículos; estas são formas que o inconsciente tem para nos chamar a atenção para algo.

Linguagem corporal – O que digo, o que faço, é consciente; a linguagem corporal é inconsciente, só o outro se apercebe dela e a pode interpretar. Como é inconsciente é mais verdadeiro o que digo com a linguagem corporal que o que digo de viva voz. De facto, como dizemos em português, o gesto é tudo e grande parte da nossa comunicação é não-verbal. Ela diz mais do que o que digo por palavras porque não a controlo.

Crescer como pessoa humana é sinónimo de crescer no conhecimento de mim mesmo. Este conhecimento não é só resultado da introspeção; um psicoterapeuta disse um dia que para nos conhecermos a nós próprios, não há quantidade de introspeção ou autoexame será suficiente. Podemos autoanalisar-nos por semanas ou meditar por meses e não avançamos nem um centímetro: é como tentar cheirar o próprio hálito ou rirmos ao fazermos cócegas a nós próprios.

A introspeção é evidentemente um fator no processo para um maior autoconhecimento, mas não é o único. O processo é constituído por outros dois fatores que atuam em forma de triângulo dinâmico.

O que aprendo sobre mim mesmo pela introspeção é completado pelo feedback das pessoas que são importantes para mim; desta forma, ficam harmonizados os quatro eus e de alguma forma fundidos num só Eu. Quando vivo uma relação de amor com pessoas que querem o meu bem, o seu feedback pode ajudar-me também a conhecer cada vez mais e mais do meu inconsciente.

A aventura de viver
“A situação faz o ladrão” – o feedback sobre o que sou verdadeiramente nem sempre me é dado pelos outros mas pelas situações em que me encontro e pelas experiências que vou tendo. Os erros, os insucessos e os sucessos dizem mais de mim que a introspeção. Para saber quem sou, devo observar a minha atuação, se estou ou não à altura do que se espera de mim. Só posso saber se tenho ou não um talento quando tento usá-lo na altura devida.

“Quem não arrisca não petisca” – não sei se tenho ou não um talento até ao dia em que sou confrontado por uma situação que o requer. Winston Churchill e o que representou para a Inglaterra na II Grande Guerra não podem ser entendidos sem ela. Foi a resposta deste homem ao desafio do momento, a II Guerra Mundial, que o fez grande. Os heróis, os santos fazem-se e conhecem-se quando são postos à prova, quando confrontados por grandes desafios.

Ferramentas de Autoconhecimento
Há teorias psicológicas que se fizeram muito populares e que podem ajudar as pessoas a conhecer-se melhor. Na linha da religião e mística temos o Eneagrama; na linha da psicologia existencial de Freud temos a Análise Transacional; na linha de Jung temos Myers/Briggs.

Conclusão
Autoconhecimento é um processo contínuo e nunca acabado de desvendar quem somos, harmonizando os nosso talentos e as nossas limitações, para viver com sentido, propósito e autenticidade.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de junho de 2012

Autoconsciência

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(…) E, caindo em si, disse: “Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai.Lucas 15, 17-18

No momento em que o filho pródigo pediu ao pai a sua parte da herança, ele estava deslumbrado pela perspetiva dos prazeres que o aguardavam e, enquanto esses prazeres duraram, ele esteve fora de si. Frequentemente, o prazer torna as pessoas irrealistas e inconscientes, enquanto a dor tem o poder de trazê-las de volta à realidade, como ocorreu com esse jovem.

Da inconsciência à consciência
Antes do "Big Bang", há 15 mil milhões de anos, toda a matéria do cosmos existia sob a forma invisível de uma partícula subatómica extremamente densa e quente, que eventualmente explodiu, dando origem ao Universo em expansão. À medida que as temperaturas se suavizaram, os átomos, que compõem a matéria, começaram a se agrupar em moléculas cada vez mais complexas, as quais se uniram formando membranas que deram origem às células primitivas.

Todas as formas de vida na Terra – vírus, micróbios, bactérias, plantas, animais, e humanos – compartilham elementos comuns, pois procedem de um tronco comum. A célula é a forma mais simples de vida; os primeiros organismos formados na Terra foram unicelulares, como a ameba, que ainda hoje sobrevive nas águas contaminadas da África. A transição de organismos unicelulares para formas de vida mais complexas, compostas por múltiplas células, levou cerca de 3 bilhões de anos.

Como a vida procede de um tronco comum, podemos concluir que a ontogénese recapitula a filogénese, ou seja, o processo de desenvolvimento de um indivíduo da espécie humana, desde a sua conceção até à idade adulta, recapitula ou sintetiza a história da vida neste planeta. O nosso organismo em estado adulto é composto por uns 300 triliões de células; mas, no momento da nossa conceção, quando meia célula do nosso pai se une a meia célula da nossa mãe, somos uma única célula.

O que acontece a nível de um só indivíduo reproduz o que acontece a nível global; a vida que começou com uma única célula, ao longo de milhares de milhões de anos de evolução, diversificou-se em muitas espécies de seres vivos. Assim, desde o momento da nossa conceção até ao nosso nascimento, recapitula-se a evolução das espécies até chegar ao ser humano.

Desde o nascimento de um bebê até a idade adulta, revivemos a evolução humana que, há cinco milhões de anos, começou a se desviar dos primatas, seus ancestrais mais próximos. Assim como um bebê aprende primeiro a andar e depois a falar, a humanidade também evoluiu até alcançar a autoconsciência. No contexto da evolução, para Karl Marx, o Homem é o momento em que a Natureza ganha consciência de si mesma.

A autoconsciência é a capacidade para a introspeção, é debruçar-se sobre si próprio, reconhecendo-se como um indivíduo diferente e separado do meio ambiente e dos outros indivíduos. A autoconsciência é a subdivisão ou duplicação do indivíduo que se torna, ao mesmo tempo, sujeito e objeto dos próprios pensamentos.

Cogito ergo sum dizia Descartes, mas também se pode dizer senso ergo sum: sinto alegria ou tristeza, prazer ou dor, logo existo. A autoconsciência é o significado que atribuo às minhas vivências do dia-a-dia, no contexto geral do que é a minha vida para mim.

Alguém dizia que estamos acordados quando dormimos e dormimos quando estamos acordados. Temos consciência do que verdadeiramente somos durante o sono, nos sonhos. Os sonhos revelam a nossa verdadeira identidade, pois por muitas personagens que apareçam neles, estas não são mais que partes de nós mesmos.

Freud e toda a psicologia depois dele deram muita importância aos sonhos, pois neles está uma das chaves para a nossa verdadeira identidade. Quando estamos acordados usamos máscaras que não só velam a nossa identidade aos outros mas também a nós mesmos. Aliás, a palavra pessoa significa isso mesmo, máscara, personagens que representamos durante o dia.

Estar vivo não é igual a viver
Uma vida que não seja auto-reflexiva, não merece a pena ser vivida, Sócrates (469 AC)

No mesmo momento em que a criança, por volta dos 7 anos de idade, toma consciência de si mesma, de que existe, de que está viva, nesse mesmo momento se dá conta da sua finitude, de que não existirá sempre e de que um dia vai deixar de existir como existe agora. É a morte que dá sentido à vida; ou melhor dizendo, é a existência da morte que nos faz buscar um sentido para a vida.

Neste sentido não é o mesmo estar vivo e viver. Os animais estão vivos mas, como não sabem que um dia deixarão de existir, acabam por não saber também que existem, que estão vivos; como não sabem que estão vivos, não vivem. Não vivem porque não têm muito poder e controlo sobre a própria vida; obedecem cegamente ao seu instinto, pelo que são autómatos.

Somente os seres humanos realmente vivem, porque compreendem que, entre o presente de suas vidas e a morte certa, possuem tempo e energia para moldar o que desejam da sua existência.

Ser consciente é desligar o piloto automático
Com frequência, tranco o carro com o comando e depois de me afastar um pouco pergunto-me se verdadeiramente o fechei; na dúvida, volto ao carro e verifico que sim que o tinha fechado. Como este, todos temos automatismos, coisas que fazemos por rotina e das quais não temos consciência no momento em que as fazemos.

Mais vezes do que gostaríamos de admitir, temos o piloto automático ligado: o nosso comportamento é reativo, muito parecido com o dos animais; a um dado estímulo segue-se uma dada resposta, prevista e previsível. Quando nos comportamos como se estivéssemos em piloto automático, não temos consciência, não estamos em nós mas fora de nós.

O que dizemos ou fazemos não é fruto de uma decisão proativa depois de avaliar a realidade ou situação, mas de uma reação mais ou menos instintiva, pré-determinada, repetitiva e rotineira. Algo parecido com um reflexo, como quando involuntariamente retiro a mão de uma superfície quente para evitar queimá-la.

Ter consciência significa dar-se conta de tudo o que se passa dentro e fora de si.
Ter consciência significa estar instalado no presente, no aqui e agora.
Ter consciência significa ter a alma onde se tem o corpo.
Ter consciência significa auto observar-se.
Ter consciência é estar totalmente presente em cada um dos seus pensamentos, sensações, emoções e ações.

A oração é um exercício de autoconsciência
Quando o filho pródigo voltou a si, voltou ao Pai; enquanto esteve longe do Pai, também esteve longe de si mesmo; enquanto esteve fora da casa paterna, também esteve fora de si mesmo; enquanto esteve dissociado, divorciado, de costas para Deus, também esteve dissociado, divorciado e de costas para si mesmo.

Deus intimior intimo meo dizia Sto. Agostinho, Deus está mais além do meu íntimo, pelo que a oração não é só o encontro com Deus é também um encontro comigo mesmo; não é só um dialogar com Deus mas um dialogar comigo mesmo. A oração é, antes de tudo, um exercício de autoconsciência.

Os que rezam conhecem-se melhor do que aqueles que não rezam. Se Deus, como diz Santo Agostinho, está além de nosso íntimo, além de nós mesmos, não podemos chegar a Deus sem primeiro passar por nós; não podemos conhecer a Deus sem antes conhecer melhor a nós mesmos.

Conclusão
No passar de uma existência inconsciente para a profunda autoconsciência, percebemos que viver não é apenas existir; é moldar o nosso destino, tornando-nos o autor consciente da nossa própria história.

Pe. Jorge Amaro, IMC







15 de maio de 2012

Reiki e Cristianismo

13 comentários:

Voluntários de Reiki - Cenif - Guimarães
Quem não é contra nós é por nós. Marcos 9,40

Se Eu expulso os demónios por Belzebu, por quem os expulsam, então, os vossos discípulos? Por isso, eles próprios serão os vossos juízes Mateus 12, 27

Reiki é a união de duas palavras japonesas: Rei, que significa universal, total ou essência; Ki, que significa energia vital. Criado por um budista Japonês, Mikao Usui, o Reiki é uma terapia natural, não invasiva, que visa restabelecer a saúde e o bem-estar espiritual e psicofísico da pessoa. Pela imposição de mãos, o terapeuta, ajuda o paciente a ganhar acesso à energia vital, universal e divina, que alivia o stress e acelera o processo de cura natural do corpo e da mente. O terapeuta é só um catalisador ou facilitador; sendo o paciente que se cura a si mesmo, ao conectar-se à energia vital divina e sanadora.

Em todas as curas milagrosas de Cristo a fé do requerente era uma condição "sine qua non". Também no Reiki é o paciente, por meio do terapeuta, que se conecta com a energia vital e sanadora de Deus. Esta fé é catalisadora da energia salvífica que imana de Deus como vemos no episódio da cura da mulher que padecida de hemorragias: ela tocou na orla do manto de Jesus, sem Este se dar contra, e ficou curada. (Lucas 8 43-48)

O pensamento contemporâneo já não explica a realidade com base na física mecanicista de Newton, mas sim com base na teoria da relatividade e na física quântica. No entanto, a maior parte dos pensadores cristãos, os teólogos, ainda tem a mente formatada pela física newtoniana, sendo esta no fundo, uma das razões pelas quais rejeitam o Reiki como técnica de cura física e psicológica.

Sendo a fé, como diz o Concilio Vaticano I, um “obséquio razoável” no quadro de uma física mecanicista de Newton, onde a realidade é governada por leis fixas inalteráveis, torna difícil explicar os milagres e curas de Jesus, a ressurreição de Cristo e subsequentemente a nossa. Estes mesmos mistérios têm uma explicação mais razoável se os explicarmos com base na teoria da relatividade, da física quântica e do princípio de Heisenberg, para os quais já não se fala de leis da natureza mas sim de probabilidades estatísticas, que comportam um alto grau de incerteza e imprevisibilidade. Para Einstein a energia e a matéria são transmutáveis e equivalentes; a energia é uma forma de matéria, e a matéria, uma forma de energia.

A mentalidade maniqueísta, que entende que na criação há coisas boas e coisas más e que advoga Deus como o senhor das boas e o diabo como o senhor das más, esquece que Deus criou tudo do nada e tudo o que Deus criou é bom. Tudo na natureza são manifestações da sua bondade e não há forças supernaturais que não sejam manifestações do poder de Deus.Cristo tem ovelhas de outro redil (João 10, 16) e basta que elas não estejam declaradamente contra nós para estarem a nosso favor. (Marcos 9, 40)

Também há quem relacione Reiki com New Age e que por isso deve ser condenado. A New Age é um sincretismo de religiões e por esse motivo não deve ser considerada totalmente negativa. Rejeitando a ideia de que Deus não é um ser pessoal mas sim uma energia, tudo o resto pode ser adaptado ao cristianismo. Acaso, nós cristãos, não construímos igrejas, onde antes eram templos pagãos? E não substituímos o culto a deusas pela veneração a Maria a mãe do Senhor? Quem não gosta das músicas de Enya e da magia dos livros de Paulo Coelho? E no entanto são New Age. “Não deitemos fora o menino com a água da banheira”.

O Reiki, tal como o Yoga, o Zen, a meditação transcendental e outras terapias orientais, não são uma religião nem sequer uma filosofia, mas sim técnicas de cura e crescimento espiritual. O Reiki não proclama que Deus é uma energia cósmica mas que, essa energia cósmica é divina. Também não diviniza o seu fundador Mikao Usui, apesar de ele se ter inspirado em Jesus e nas suas curas milagrosas pela imposição de mãos. A sua técnica é seguida, mas o seu nome não é invocado durante a terapia. Não existe nenhuma normativa no Reiki que proíba terapeutas cristãos de invocarem o nome de Jesus ou o Espirito Santo, para obter a graça da cura.

Tirei um curso residencial de psycho-spiritual counseling, com a duração de dois anos, num instituto católico em Inglaterra, fundado pelo Cardeal Hume de Londres. Durante esse tempo, formei-me em várias técnicas de cura, entre as quais Reiki,. Os meus mestres, sacerdotes  como eu e algumas religiosas, não vemos nenhuma contradição entre a fé cristã e a prática de Reiki, pelo contrário, achamos que até se podem complementar.
Pe. Jorge Amaro, IMC