15 de dezembro de 2020

3 Constituintes da justiça reparadora: Vítima - Comunidade - Transgressor

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O conceito de justiça reparadora está agora muito na moda. Há partidos políticos que já a incluem nas suas campanhas. Em certos países há versões deste tipo de justiça que se usam como prática legal. Mas o conceito em si não é novo - é tão ou mais antigo que o conceito contrário, o da justiça retributiva.

Há dois anos, quando falámos da comunicação não violenta, abordámos num texto os dois conceitos de justiça. Repetimos aqui muito do que dissemos na altura sobre os dois conceitos, pois não é possível falar de um sem falar do outro. Depois de distinguir um conceito de justiça do outro, o objetivo deste texto é demonstrar como funciona a justiça distributiva em contraposição com a justiça retributiva.

A justiça retributiva é binária pois só admite duas instâncias: o Estado e o transgressor. Entre os que não são tidos nem achados no processo estão, em primeiro lugar, a vítima, a pessoa que foi agredida, ferida; em segundo lugar, a sua família. Não somos ilhas, vivemos em relação íntima com a nossa família, portanto, quando algo de grave acontece a um dos elementos, todos sofrem de algum modo por solidariedade. “Um por todos, todos por um” diz o lema dos três mosqueteiros. Para além da família da vítima, a família do transgressor foi também vitimizada por ele e também sofre, carregando por vezes com parte da culpa. Por fim, temos a comunidade à qual pertencem a vítima com a sua família e o transgressor com a sua.

A justiça reparadora não separa o indivíduo, seja a vítima seja o transgressor, do seu ambiente familiar e comunitário. O delito acontece no seio de uma comunidade concreta, com os seus problemas sociais e estruturais. Nem a vítima nem o transgressor caíram de paraquedas neste mundo - são filhos das suas famílias que contribuíram para o que são no momento do delito.

A justiça reparadora é trinitária ou tridimensional, coloca frente a frente a vítima com a sua família, o transgressor com a sua família, no seio da comunidade à qual todos pertencem. A finalidade é reparar o mal feito, pôr termo à violência. Reconciliar o transgressor com a sua própria família, com a vítima e respetiva família e, por fim, com a comunidade no seio da qual o delito foi cometido.

A justiça retributiva não repara nem restaura porque paga na mesma moeda: é vingativa, responde a um crime ilegal com um crime legal e perpetua a violência. Depois de exercitada a vingança legal, a vítima sente uma certa satisfação, mas não se sente reparada nem reconciliada. A ferida não desaparece e transforma-se num trauma que atua no seu psiquismo, como se o delito continuasse a ser cometido. Só o perdão pode curar, a vingança piora as coisas, transforma uma ferida numa doença crónica. A seguinte história ilustra bem esta questão, de alguém que fica refém de um facto passado.

Um ex prisioneiro de um campo de concentração nazi foi visitar um amigo que com ele tinha partilhado tão penosa experiência. “Já perdoaste aos nazis tudo aquilo que nos fizeram?” Eu não lhes perdoarei, disse, ainda os odeio com toda a minha alma.” Ao ouvir isto, o amigo disse-lhe calmamente, “se é assim, se ainda os odeias, então ainda lá estás no campo de concentração, e os nazis ainda te mantêm prisioneiro”.

Algo parecido acontece com o transgressor, no momento em que toma consciência do mal cometido, também ele nunca mais encontrará paz, não se perdoará a si mesmo se a vítima não o perdoar. A culpa vai persegui-lo por todo o lado, mesmo depois de ter cumprido a pena prescrita pela lei. Só o perdão da vítima lhe dará saúde, o levará à reconciliação com o seu passado e consigo mesmo.

Génese da justiça retributiva
Decalcada neste aspeto do código babilónico Hamurabi, a Bíblia reconhece que os atos humanos têm consequências inevitáveis. Há como que uma lei de recompensa implícita no universo que dita que as pessoas colhem o que semearam (Gálatas 6, 7). Os conceitos retributivos básicos da culpa, expiação e proporcionalidade da pena estão amplamente atestados, tanto no Antigo como no Novo Testamento.

De facto, a Bíblia até termina com uma afirmação do princípio retributivo da justiça: “Eis que Eu venho em breve e trarei a recompensa para retribuir a cada um conforme as suas obras” (Apocalipse 22, 12). Portanto, a justiça bíblica é retributiva na medida em que gira à volta dos conceitos de culpabilidade moral, recompensa e o respeito pela Lei.

Seria, no entanto, um erro concluir que o conceito de justiça retributiva esgota ou engloba toda a ideia de justiça na Bíblia. Justiça no antigo Israel envolvia tudo o que fosse necessário para criar, manter e restaurar relacionamentos saudáveis no seio da comunidade.

Um ato criminoso era considerado errado, em primeiro lugar, porque violava os compromissos relacionais que mantinham a sociedade; em segundo lugar, porque os atos criminosos em si podiam conduzir a uma reação em cadeia de ruína e desastre se não fossem cerceados. Já no Antigo Testamento, mas sobretudo no Novo, os crentes são exortados a abdicar da retribuição ou retaliação, relegando-a para Deus e, no seu lugar, abraçar os princípios de perdão e reconciliação. (Mateus 5, 38-48, Romanos 12, 17-21, 1 Pedro 2, 21-23)

A justiça retributiva, tal como funciona nos nossos dias, nasceu no século XIII. Com o contrato social, dá-se a confiscação dos conflitos pelo Rei, Estado ou Lei. A partir deste momento, as ofensas não são feitas a pessoas concretas de carne e osso, mas sim ao Estado por via da transgressão das suas leis. Portanto, as vítimas reais desaparecem e, no seu lugar, aparece o Estado como lesado. A vítima real poderia até perdoar, o sistema penal não perdoa porque o crime foi cometido contra um coletivo: a sociedade, o Estado.

Nos países onde existe ainda a pena de morte ou mesmo a prisão perpétua, o crime que a justiça comete é bem pior que o crime do criminoso; este, porventura, atuou sob a influência de alguma emoção forte num momento reativo, movido pelo seu cérebro reptiliano, mais do que pelo seu neocórtex. Pelo contrário, o crime do sistema penal é totalmente premeditado e não só por uma pessoa, mas por um elevado número de pessoas; e o que é ainda mais cruel, nefasto e bárbaro, são os anos que decorrem entre o pronunciamento da sentença de morte e a sua execução.

Com a aplicação de castigos, pretensamente proporcionais às penas, o sistema penal existe para defender a sociedade do crime, mas o que esconde verdadeiramente é que está articulado como instrumento de dominação de umas classes sobre outras; basta olhar para as nossas prisões e ver que estão cheias de pessoas que pertencem às classes mais baixas por crimes de pouca importância, quando comparáveis a gente das classes altas que cometeram crimes bem graves e vivem em liberdade.

Funcionamento da justiça retributiva
O tipo de justiça penal que se pratica em todo o planeta é a justiça retributiva que consiste em retribuir, a um delinquente ou infrator, mediante um castigo ou pena, o mal cometido a outra pessoa (vítima). Esse castigo é imposto por um legislador para compensar o dano infligido à vítima e, na maior parte dos casos, a pena é a privação da liberdade.

Para a justiça retributiva, delito é um ato individual de infração das leis do Estado; a responsabilidade deve ser assumida pelo infrator. O delito é uma questão entre o Estado e o delinquente, não se levando em conta a vítima, que verdadeiramente foi a pessoa lesada, nem as pessoas indiretamente envolvidas, nem mesmo a comunidade que, de algum modo, também foi lesada.

Na justiça retributiva só existem duas instâncias: o Estado que se apresenta e assume como sendo ao mesmo tempo vítima do crime, poder legislativo, executivo e coercivo, e o infrator que sofre as consequências da sua infração à lei.

A função do Estado é capturar o réu, acusá-lo, provar a sua culpa e aplicar-lhe uma pena adequada ao seu delito. A função do infrator é acatar e sofrer passivamente a pena que lhe foi imposta, sem voz ativa no processo. Sem voz ativa neste processo está também a vítima, aquela que verdadeiramente sofreu o delito, assim como a sua família e também a família do infrator e a comunidade local; nenhuma destas pessoas existe no sistema penal da justiça retributiva.

O objetivo da justiça retributiva é que o infrator sofra na sua pele o dano que causou ao Estado, que seja punido conforme a gravidade do seu ato, que a sociedade seja defendida dele, privando-o da capacidade de cometer novos delitos e, por fim, que todos em geral em virtude desta punição sejam dissuadidos de cometer aquele ou iguais crimes. Esta dissuasão era a função das crucificações romanas à beira dos caminhos.

Justiça reparadora na Bíblia
Porventura me hei de comprazer com a morte do pecador - oráculo do Senhor Deus - e não com o facto de ele se converter e viver? Ezequiel 18, 23

O caráter restaurativo da justiça bíblica é já evidente ao nível macro teológico da Bíblia, desde o princípio até ao fim. Para a Bíblia, o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus; com o delito dos nossos pais Adão e Eva, perdemos a semelhança, embora retendo a imagem. O assunto único da Bíblia é a história da salvação ou redenção ou, melhor dizendo, da restauração da dignidade que o género humano possuía antes, da sua semelhança com Deus.

Como vimos na justiça retributiva, a vítima, a sua família assim como a família do infrator e a comunidade local desaparecem, ao passo que na justiça reparadora ganham protagonismo. Na história da salvação, Deus é a vítima que se compromete a fazer tudo o que for necessário para restaurar a dignidade anterior da humanidade, como sugere a parábola do filho pródigo - e reparar o dano feito.

Para além da macro-história da salvação, já no Antigo Testamento encontramos elementos de justiça reparadora: em Números 5,6-7 Levítico 6, 1-7 os que ofendem devem reconhecer o erro, sentir remorso, confessar o pecado, restituir à vítima, agregando uma compensação.

Antes, porém, de chegar a fé, estávamos prisioneiros da Lei, estávamos fechados, até à fé que havia de revelar-se. Deste modo, a Lei tornou-se nosso pedagogo até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Uma vez, porém, chegado o tempo da fé, já não estamos sob o domínio do pedagogo.  Gálatas 3, 23-25

Se Caim foi vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete (Genesis 4, 24) – O objetivo da lei é evitar a escalada descontrolada da violência. Mas não era a intenção de Deus que a lei fosse uma solução permanente; por isso mesmo, Jesus, em Mateus 5, 38-48, revoga e substitui a lei de olho por olho substituindo-a por um sistema superior de perdão incondicional e amor ao inimigo, substituindo também a declaração de extrema violência de Lamec, pelo perdoar 70 vezes sete. (Mateus 18, 22)

 Estará então a Lei contra as promessas de Deus? De maneira nenhuma! Pois, se tivesse sido dada uma lei que fosse capaz de dar a vida, a justiça viria realmente pela Lei. Gálatas 3, 21

Para Paulo é Jesus que dá a vida; a retribuição e o castigo não são transmissores de vida pois só oferecem consequências negativas aos atos ofensivos, mas não têm nenhum poder para mudar os corações, para curar. A justiça reparadora, sana e cura, pois, a união com Cristo transforma-nos. A justiça retributiva não tem capacidade para nos fazer santos por isso não é, nem pode ser, o último plano de Deus. De facto, depois da vinda de Cristo, continuar a guiar-se pela lei é contraproducente e só faz mal.

Eu, sem a lei, estava vivo outrora. Mas, ao chegar o mandamento, ganhou vida o pecado e eu morri. E deparei-me com isto: o mandamento que me devia levar à vida, esse mesmo levou-me à morte. É que o pecado, aproveitando-se da ocasião dada pelo mandamento, seduziu-me e deu-me a morte, por meio dele. Romanos 7, 9-11

Qualquer coisa boa pode tornar-se má; a família é supostamente um lugar onde nos sentimos seguros e amados, mas também pode ser profundamente abusiva e deixar cicatrizes devastadoras. A Religião e a Lei, por si só, também são boas, mas, tal como a família, também podem tornar-se abusivas. Vemos esse abuso nos fariseus que Jesus confronta continuamente. Paulo era também ele um fariseu até se converter e tomar o caminho de Cristo.

Concluindo: a justiça retributiva sempre existiu; a Lei apareceu para evitar a escalada da violência. No entanto, como Paulo nos diz, a Lei era só um pedagogo; o plano definitivo de Deus é a justiça reparadora em Cristo. Jesus não acusa nem condena, restaura a saúde espiritual, moral e física das pessoas que vai encontrando no caminho; assim faz com Zaqueu, a pecadora apanhada em adultério, o paralítico, os leprosos, etc.

Como funciona a justiça reparadora
O livro de Howard Zehr, intitulado “A new focus for crime and justice” de 1990, é considerado como sendo o primeiro a articular de uma forma sistemática esta teoria. É certo que o conceito vem de trás e, como Zehr reconhece, devido crédito deve ser dado à prática da justiça nas tribos indígenas do Canadá, Estados Unidos e Nova Zelândia.

O sistema penal não resolve nenhum problema e cria outros, enche as prisões de pessoas, cria marginais e “personas non gratas” na sociedade que tarde ou cedo voltam a transgredir. O sistema penal é um sistema que produz muito mais dor e sofrimento e até violencia que a violência que pretende combater. A vingança não é justiça e a punição do infrator, por mais dura que seja, não traz nenhuma satisfação à vítima; impor a dor a outra pessoa não faz desaparecer a nossa dor, nem a diminui.

Para a justiça reparadora, delito é toda a ação que causa dano a uma pessoa. É um conflito interpessoal e, mais que uma transgressão às leis, é um malefício causado à vítima e à comunidade em geral. Se o delito tiver sido cometido contra a comunidade e uma pessoa concreta no seio dessa comunidade e não contra uma entidade abstrata como é o Estado, é na comunidade que o problema deve ser resolvido. Como diz o povo, “A roupa suja lava-se em casa, não fora”.

O lugar onde se aplica a justiça retributiva é o tribunal e a prisão; para a justiça reparadora, o lugar é o centro comunitário onde o infrator, a sua família e amigos se encontram com a vítima, com a família e amigos desta e com outras pessoas relevantes da comunidade à qual ambos pertencem. Curiosamente, nos lugares de aplicação da pena de morte estes encontros também se dão, quando os familiares da vítima vão assistir à macabra liturgia da execução do criminoso, mas são bem diferentes e bem tristes…

Os encontros da justiça reparadora são voluntários, devem decorrer no respeito mútuo, em clima de honestidade e humildade. O mediador ou facilitador deve encontrar-se com as partes em separado para preparar o encontro.

A justiça reparadora visa ajudar na recuperação da vítima e reintegrar o infrator na sociedade, tendo em conta a participação e mediação da comunidade. Como ferramenta, usa-se o diálogo e o encontro entre as partes direta ou indiretamente envolvidas. Para a justiça retributiva só havia duas instâncias: o Estado e o infrator. Para a justiça reparadora as instâncias são três: a vítima, o infrator e a comunidade.

VÍTIMA
O Estado deixa de usurpar o papel da vítima; esta volta a ter protagonismo, expressa as dores que lhe ocasionaram o delito, procura que o dano seja reparado e que não volte a acontecer. Tem a palavra a vítima, a pessoa que verdadeiramente sofreu, foi lesada e está ainda em sofrimento. O Estado não foi ofendido e não sofreu realmente, pois a dor não se pode delegar. A vítima explica, face a face, como o crime afetou a sua vida e mostra o dano que causou.

A finalidade é reparar o mal feito, dando voz à vítima que expressa os seus sentimentos e as suas necessidades, levando o infrator a reconhecer o mal e a fazer algo pela vítima, de forma a não voltar a ofender. O objetivo é conseguir a reconciliação e especificar o que o transgressor deve fazer para recompensar a vítima.

Vejamos como funciona o papel da vítima no contexto da justiça reparadora no exemplo que se segue: uma criança cheira mal na escola e por isso é vítima de “bullying” por parte dos seus colegas. No âmbito da justiça retributiva, estes colegas vão ser punidos, o que provavelmente nada vai resolver e, passado algum tempo, estes voltam a reincidir ou outros fazem-no no seu lugar.

Ao contrário, no âmbito da justiça reparadora, o “bully” e a sua vítima, além de outras pessoas das respetivas famílias e da escola, assim como líderes da comunidade, vão ser convocados para uma reunião. O transgressor fica a saber a razão pela qual a sua vítima cheira mal; é um menino pobre, de um bairro de lata, não tem eletricidade nem água corrente em casa.

O infrator e a sua família vão ter uma compreensão mais profunda do problema que está por trás daquela situação de conflito, e desta reunião pode sair a possibilidade de mobilizar as forças sociais para procurar uma solução, na raiz do problema. No âmbito da justiça retributiva não chegaríamos tão longe: ela não resolve nada e pode criar mais problemas, como fazer aumentar a violência se tiver havido exagero, na aplicação da punição.

Na justiça retributiva, a vítima é a figura central do processo e não uma mera expetadora ou testemunha da acusação. Se desempenhou um papel de protagonista no crime que sofreu, deve poder assumir o papel de protagonista na resolução do conflito ou na cura da ferida que lhe foi desfechada. Neste processo, ela tem a oportunidade de revelar a sua dor, o seu sofrimento, os danos que lhe foram causados.

No encontro entre o transgressor e a vítima no seio da comunidade, os dois têm a possibilidade de se reconhecer mutuamente como pessoas humanas e não apenas como vítima e transgressor. Neste encontro humano, o crime é visto com uma luz nova tanto pelo transgressor como pela vítima. Esta luz nova que é o crime cometido pelo transgressor no contexto da sua vida, assim como o mesmo sofrido pela vítima no contexto da sua vida, vai levar à cura psíquica e emocional de ambos.

No sistema retributivo, a vítima é ignorada, a sua dor e sofrimento ficam contidos, reprimidos, a ferida escondida. O sistema restaurador constitui uma terapia, tanto para o transgressor como para a vítima - esta tem oportunidade de dar voz à sua dor, num espaço protegido diante de pessoas significativas e não de desconhecidos curiosos, tem a oportunidade de expressar medos, temores,  mal-estar, sofrimento e raiva, assim como sentimentos e perguntas relativos ao transgressor.

TRANSGRESSOR
Entende a vítima, reconcilia-se com esta e repara o dano. O réu fica a saber o impacto real da sua ação, coisa que não acontece na justiça retributiva. Assim, mais facilmente é responsabilizado, coisa que raramente acontece no sistema retributivo, onde procura provar a sua inocência ou fugir à justiça.

A justiça reparadora deposita grande esperança no encontro entre a vítima e o infrator. Um crime é sempre um encontro desumano e desumanizante entre duas pessoas, uma vez que estas se encontram superficialmente descontextualizadas. O encontro procura colocar as pessoas no seu ambiente vital com as suas relações. Vejamos no seguinte exemplo como o infrator pode mudar perante um conhecimento mais profundo da sua vítima e de como o seu crime tocou negativamente a vida de muitas pessoas.

Um jovem que mata um taxista e é julgado no contexto da justiça retributiva, nunca chega a conhecer a vítima e o seu ambiente, apenas vai ser punido e mais nada. Pelo contrário, na justiça reparadora ele conhece melhor a dimensão do seu crime: na verdade, ele matou um taxista que era casado e que deixa uma viúva sozinha a criar 8 filhos. A perceção clara do sofrimento que o criminoso causou tem um efeito interno de transformação, já que apela obrigatoriamente à sua compaixão, à humanidade que decerto deve possuir.

Ao contrário da justiça retributiva, pela qual ele nem sabia a magnitude do sofrimento causado nem lhe era pedido que reparasse os danos, na justiça reparadora, pode participar ativamente, ajudando a resolver o problema que o seu ato criou e até mesmo a mudar a sua vida neste processo. No âmbito da justiça retributiva, ficaria na prisão matutando no que correu mal, no âmbito da execução do crime que ele tinha idealizado como perfeito, como se deixou apanhar ou o que podia ter feito para fugir à justiça.

Na justiça reparadora, o transgressor tem a possibilidade de conhecer a vítima, de a olhar nos olhos e avaliar todas as consequências do seu crime, de o avaliar à luz das circunstâncias - tanto das suas como transgressor, como das da vítima. Tem a possibilidade de se arrepender, de se reconciliar com a vítima e consigo mesmo e de reparar os danos.

Para a justiça retributiva, o crime é uma infração à lei, a responsabilidade é exclusivamente individual, os protagonistas são o transgressor que infringiu e o Estado que julga e aplica o castigo correspondente, o procedimento é adversarial, ou seja, o réu procura defender-se e provar a sua inocência, mesmo sabendo-se culpado, para que o Procurador não consiga provas que o incriminem. Todo o processo acontece fora da comunidade, num ambiente artificial e referindo-se a algo que ocorreu no passado; o presente e o futuro não contam.

Para a justiça reparadora, o delito não é uma infração à lei, mas sim um conflito entre duas pessoas, a responsabilidade não é só individual, mas também social, pois o infrator não é uma ilha, vive em relação com a sua família e amigos, no seio de uma comunidade concreta. Os protagonistas são a vítima, o transgressor e a comunidade; a metodologia seguida é o diálogo e encontro entre pessoas; o objetivo é resolver o conflito, apurar e assumir as responsabilidades e reparar os danos. O lugar onde este processo se dá é o centro comunitário e não o tribunal e tem em conta que o ser humano não é só passado, mas também presente e futuro.

COMUNIDADE
Acompanha, facilita o processo e vela pelo cumprimento das condições pactuadas entre o réu e a vítima. Na justiça retributiva, o Estado usurpa o papel da vítima e da comunidade, só ele atua, só ele tem papel ativo na solução do problema. Na justiça reparadora, o problema é resolvido onde surgiu e pelos que o criaram e junto dos que o sofreram. No diálogo entre as partes, a comunidade é mediadora na reconciliação e facilita o processo.

Em conclusão, na justiça retributiva o Estado assume o papel de vítima abstrata e pune o infrator. Na justiça reparadora interagem a vítima, que expõe a sua dor e os danos causados, o infrator, que se apercebe da magnitude do seu ato e se compromete a repará-lo, e a comunidade, que arbitra, medeia e facilita esta relação que é reparadora tanto para a vítima como para o infrator.

Fazem parte da comunidade a família, tanto da vítima como do transgressor, os seus amigos e todos os que fazem parte do círculo de convivência da vítima e do transgressor pois ambas contribuíram diretamente para a educação de ambos e frequentemente estão, ainda que muito indiretamente, envolvidas no conflito. A comunidade é formada por todos os que partilham o mesmo espaço geográfico, tanto da vítima como do transgressor, trabalho, igreja, vizinhos, rede de serviços, médicos e outros.

Um novo contrato social
Acima ficou dito que a justiça retributiva, tal como a conhecemos, começou a funcionar já no século XIII com o contrato social que confiscou os conflitos entregando-os ao Rei ou ao Estado, assumindo este o papel da vítima, sendo o corpo de delito a transgressão de uma lei.

A justiça reparadora requer um novo contrato social segundo o qual o povo, a comunidade, não abdica do direito de julgar os crimes cometidos no seu seio. Em todas as culturas tribais há um conselho de anciãos que decide sobre os conflitos que surgem no interior da comunidade, de forma que estes não tenham que chegar aos tribunais que estão cheios de processos, o que torna a justiça demorada e, consequentemente, injusta.

Fundamentalmente, trata-se aqui de fazer uso do princípio de subsidiariedade que é a emenda 14 à Constituição dos Estados Unidos e uma das normas da União Europeia consagrada pelo Tratado de Maastricht no artigo 5. O Princípio de Subsidiariedade não nasceu na política; foi decalcado da doutrina social da Igreja e apareceu pela primeira vez mais na encíclica “Quadragesimo anno” do papa Pio XI de 1931.

Fundamentalmente, este princípio estipula que os problemas devem ser resolvidos onde surgem, pelas autoridades locais, e que o Estado só deve intervir quando se esgotam as soluções a nível local. A justiça restaurativa que se inspira na prática de tribos indígenas, tanto no Canadá como noutros países, é uma aplicação deste princípio e tem subjacente um novo contrato social: devolver os conflitos aos seus protagonistas, no seio da comunidade onde ambos vivem.

“Os sobreviventes de uma violação devem ocupar o assento da frente” são palavras de Marlee Liss, vítima de violação, cujo caso relatamos a seguir e, que encontrou recuperação e cura na justiça reparadora, depois de ter experimentado as deficiências da justiça retributiva, na qual a vítima não tem voz nem voto num assunto que é seu e de mais ninguém.

O caso de Marlee Liss
No dia 11 de novembro de 2019, Marlee Liss de 24 anos de idade deu uma entrevista no canal de televisão CTV acerca da sua organização educacional sobre justiça reparadora, organização que ela fundou depois de ter passado pelo trauma de ter sido violada e de não ter encontrado sanação no sistema de justiça retributiva.

Marlee afirma que, no seu caso, o processo do julgamento criminal no tribunal foi quase tão mau e tão traumático como a própria violação. “Sentar-me no banco dos réus para ser bombardeada com perguntas invasoras da minha privacidade e intimidade, diante de gente desconhecida que manifestava uma curiosidade mórbida em relação aos pormenores da violação, com os quais pareciam deleitar-se, é uma tortura que não desejo a ninguém. Senti-me nua ante os olhos inquisitivos de tanta gente e para cúmulo não acreditaram em mim, obrigando-me a revelar mais pormenores e cada vez mais íntimos.”

“É um grande erro” diz Marlee “fazer da justiça um sinónimo de castigo, deveria ser sinónimo de paz e saúde, de reconciliação. No processo de justiça reparadora, o transgressor fica livre, não vai para a prisão, o que leva muita gente a pensar que, por um lado, a justiça não foi feita, por outro, não é seguro que o transgressor fique livre pois pode reincidir.”

A estas duas questões Marlee responde de forma cândida e taxativa “Duvido que todos os sobreviventes de uma violação se sintam curados pelo facto de os seus agressores terem sido condenados a anos de prisão”. Como atrás dissemos, a vingança não é saúde, nem dá saúde. Com a prisão do transgressor, depois de ter passado aquele primeiro sentimento de satisfação por se sentir vingada ao ter infligido sofrimento ao seu agressor, a vítima continua doente, o trauma persiste.

A este trauma junta-se a ansiedade em relação ao futuro, quando o transgressor sair da prisão. A vingança é violenta e, como tal, engendra mais violência. A vítima vingou-se, encarcerando o transgressor, este, depois de anos de prisão, pode agora considerar-se vítima do sistema injusto e vingar-se sobre a pessoa por ele violada ou sobre outra pessoa.

Portanto, em relação à segurança da comunidade em relação ao transgressor, Marlee diz que “a justiça reparadora, longe de ser perigosa, aumenta a segurança pública. Há muitas estatísticas que mostram que o encarceramento leva à reincidência, a mais violência e reincidência”. De facto, Marlee foi vítima de reincidência do seu violador que já tinha cumprido pena na prisão por uma violação anterior.

Se o processo de justiça reparadora for bem conduzido, sobretudo se o transgressor conseguir sentir empatia pelo sofrimento e dor da vítima, se conseguir vê-la como pessoa, como uma irmã sua e não como objeto de prazer, e se for minimamente humano, ou seja, se não tiver graves deficiências psicológicas, é certo que vai sentir arrependimento e compaixão.

Quando, diante da comunidade, a vítima se sente ouvida, entendida na sua dor, quando parte desta dor é partilhada pelo transgressor, genuinamente arrependido ali presente diante dela, e disposto voluntariamente a oferecer compensação pelos danos infligidos, a vítima experimenta sanação e uma grande paz interior, pelo que perdoar o ofensor é a coisa mais natural do mundo. Por outro lado, é este perdão que vai fazer com que o transgressor se perdoe a si mesmo, encerre o caso e não seja perseguido pela culpa pelo resto dos seus dias.

Marlee Liss, no seu processo de justiça reparadora, sentou-se diante do seu violador que a olhou olhos nos olhos e reconheceu o seu erro. No momento em que ele se responsabilizou pelo que tinha acontecido, Marlee diz que se desfez em lágrimas e experimentou uma grande paz interior. Em dado momento, o infrator até afirmou que queria colaborar para acabar com a violência sexual no mundo.

O processo de Marlee Liss deu-se em Toronto. Foi usada a abordagem indígena da justiça reparadora como alternativa ao sistema de justiça criminal do Canadá, concentrando-se na reparação em vez da punição. Aconteceu num centro comunitário, ao qual Liss chamou de santuário de sanação; os mediadores sentaram-se em círculo; da parte de Liss estavam o seu advogado, a sua irmã e a sua mãe; da parte do infrator estava o seu advogado e um dos seus amigos. Foram 8 horas de extenso diálogo com um final feliz. O processo penal legal levaria muitas mais horas e muitos mais dias.

Em relação à identidade do seu violador, Liss disse o seguinte: “As pessoas que cometeram um crime sexual são muitas vezes ostracizadas na sua comunidade. Se a vítima está satisfeita com o resultado do processo, e a polícia e o Procurador da Coroa decidem não apresentar queixa contra o indivíduo, é lógico que a sua identidade fica protegida".

Conclusão – O encontro humano e o diálogo entre a vítima e o transgressor, com a mediação da comunidade onde se deu o delito e se criou um conflito, são a única forma de curar o passado de ambos, reconciliando-se no presente para assim poderem olhar o futuro com esperança.  

Pe. Jorge Amaro, IMC





1 de dezembro de 2020

3 Meios de Comunicação: Som - Imagem - Palavra

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A palavra escrita dos jornais, livros, revistas, cartas, faxes, e-mails, SMS, e de conversa pela Internet; o som da rádio, do telefone e Internet; a imagem da televisão e do cinema, da Internet, são os meios pelos quais materializamos os nossos pensamentos e as nossas ideias e comunicamos, fazendo deste mundo uma aldeia global.

Estudemos cada uma destas 3 realidades em separado e depois em combinação para entender os meios pelos quais comunicamos e que possibilitam e facilitam a vida humana tal como a vivemos e entendemos hoje.

SOM
A palavra “som” vem do latim sonus que, por sua vez, provém da base indo-europeia swen- e significa “soar, fazer ruído”. O som é uma onda mecânica que se propaga em todas as direções por ser tridimensional. Graficamente, a sua propagação dá-se em forma de círculos concêntricos, como aquela que acontece quando lançamos uma pedra nas águas calmas de um lago.

O som é mais uma dessas realidades criadas por Deus uno e trino, pelo que não é unidimensional, nem bidimensional, como são as ondas concêntricas da pedra lançada nas águas calmas de um lago; estas ondas espalham-se em todas as direções, mas num único plano, o da superfície da água. O som é tridimensional pois propaga-se tanto para a direita como para a esquerda, para cima e para baixo. Como veremos mais tarde ao falar da imagem, a luz tem as mesmas características do som: também é tridimensional.

Sendo uma onda mecânica, o som não existe em qualquer lugar do universo, pois depende da matéria para se propagar. A velocidade com que as ondas sonoras são propagadas depende exclusivamente das características do meio em que se deslocam. No ar, a velocidade do som é de aproximadamente 340 m/s. Já a luz é uma onda eletromagnética, pelo que pode propagar-se tanto em meios materiais, como o ar e a água, como no vácuo, tal como a luz solar.

Se algo explode no espaço, podemos ver a explosão, mas não ouvi-la, porque o som não se propaga no vácuo. O som viaja mais rapidamente na matéria em estado sólido que na matéria em estado líquido e gasoso. O som é medido em decibéis; o decibel resulta de um logaritmo que Alexander Bell, inventor do telefone, criou para medir a intensidade do som. A zero não ouvimos nada, a 85 o nosso ouvido sofre lesões, a 130 rebentam os tímpanos. O espetro audível do ser humano situa-se entre 20 e 20 000 Hz; os sons abaixo deste intervalo são chamados de infrassons e acima deste intervalo, ultrassons.

O som mais alto da História
O som mais alto registado na História da humanidade aconteceu numa explosão vulcânica na ilha de Krakatoa, entre as ilhas de Java e Sumatra, na Indonésia, no dia 27 de agosto de 1883. O vulcão matou mais de 35 000 pessoas que estavam nas proximidades e o som gerado foi ouvido nitidamente num raio de 4 800 km. Deu 4 voltas ao planeta e rompeu os tímpanos a marinheiros que se encontravam num raio de 64 km.

Pensa-se que ultrapassou em 10 000 decibéis o som provocado por uma bomba atómica. O clima do planeta alterou-se, arrefeceu em média 1,2 graus durante 5 anos devido à quantidade de enxofre libertado na atmosfera. Esta explosão deu origem a uma pintura famosa do pintor norueguês Edvard Munch, em 1893.

O som da voz e da fala
O ar sai dos pulmões e entra na traqueia; ao chegar à laringe faz vibrar as duas cordas vocais que ali se encontram e produz-se um som. Este som é depois modificado pela posição da língua em relação ao palato e aos dentes, e pela forma como toca o palato e os dentes. Por fim, volta a ser modificado pela posição dos lábios antes de sair da boca. Isto no caso de a língua ser totalmente oral, como o espanhol, o italiano e o inglês; se tiver sons nasais, como o francês e o português, o som sai também pelo nariz. Os sons são vocálicos se a passagem da corrente de ar não for interrompida, consonânticos se houver algum tipo de obstrução total ou parcial da passagem do ar.

Pensa-se que o Homem terá aprendido a falar há cerca de 60 000 anos. Esta hipótese foi levantada após a descoberta de um osso hióide - um pequeno osso em forma de U que segura e permite a articulação da língua - e que foi descoberto nos Neandertais encontrados numa caverna do Monte Carmelo, em Israel. A adoção da posição bípede terá também sido fundamental para libertar as mãos e a boca dos hominídeos e permitir os dois processos fundamentais para o aparecimento da fala. Lucy, o famosos esqueleto completo de uma australopitecos afarensis que se encontrou na Etiópia,  que viveu há três milhões e meio de anos e que já era bípede, não falava e, de facto, não tinha o tal osso hióide. Para além do desenvolvimento do aparelho buco-faríngeo que permite a fala, foi igualmente importante o desenvolvimento da inteligência.

Som e palavra - Onomatopeias
Parafraseando o prólogo do evangelho de São João, no princípio era o som e o som encarnou-se em palavra. É provável que as primeiras palavras que os seres humanos pronunciaram tivessem sido onomatopeias. Onomatopeia é um som que se transforma em palavra, ou uma palavra que é a transliteração ou imitação de um som da natureza. Em grego significa criar nomes em forma de som. As línguas primitivas devem ter sido sensoriais, ou seja, é provável que os seres humanos tenham criado palavras para representar sons, cores, cheiros, texturas.

Na aprendizagem da língua por um bebé dos 0 aos 3 anos revela-se um processo que pode assemelhar-se à evolução verificada na humanidade. O bebé começa por balbuciar, emitir sons; muitos destes sons são onomatopaicos. Por exemplo, na minha terra, durante a minha infância, “bua” era a palavra usada para designar “água” por ser esse o som que o bebé ou mesmo o adulto faz no momento em que termina de beber água.

O som da música
A palavra música é de origem grega e significa a “arte das musas”. É constituída por uma associação de sons entremeados por pausas ou curtos períodos de silêncio ao longo de um determinado tempo. A música é, de facto, a arte de combinar sons com silêncio.  A história da música acompanha a par e passo o desenvolvimento da inteligência, da linguagem e da cultura humanas. Também há quem pense que a música é anterior à humanidade, se considerarmos o canto melodioso de alguns pássaros.

É provável que na espécie humana a música tenha surgido há 40 000 anos, a julgar pelas cenas de dança que aparecem nalgumas pinturas rupestres e que sugerem um provável acompanhamento musical. Ao longo do tempo, foram aparecendo flautas primitivas e outros instrumentos, como o xilofone. Os instrumentos musicais dividem-se em três tipos: de percussão, de cordas e de sopro. A voz humana é o instrumento musical mais complexo, pois é, ao mesmo tempo, de cordas e de sopro.

A palavra comunica o pensamento, a música comunica o sentimento, a emoção. Neste sentido, é a linguagem de comunicação universal, utilizada como forma de sensibilizar para uma causa, para fins religiosos, para protestar, para acompanhar filmes e intensificar uma mensagem ou emoção. Tal como a língua, faz parte da idiossincrasia de um povo e fala da sua cultura - por isso existe a chamada música popular. Traduz atitudes, sentimentos e valores culturais de um povo.

A música teve um papel central nas grandes civilizações do Egito, da Grécia e de Roma. Com a queda do Império Romano, a Igreja teve um papel fundamental no desenvolvimento e evolução da música. Foi o monge Guido d’Arezzo que criou as notas musicais a partir das seis sílabas tiradas das primeiras seis frases do texto de um hino a São João Batista. O texto reza assim:

Ut queant laxis, Resonare fibris, Mira gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum. Sancte Ioannes - Para que os teus servos possam cantar as maravilhas dos teus atos admiráveis, absolve as faltas dos seus lábios impuros, São João. “Ut” foi mais tarde substituído por “Dó”. Curiosamente um acorde musical é constituído por três notas, sendo, portanto, tridimensional.

Gravação sonora
No ano de 1877, o inventor norte-americano Thomas Edison desenvolveu o primeiro aparelho de gravação sonora. O som era registado por meio de uma agulha que riscava um cilindro de cera. Nesse sistema, os sulcos feitos pela agulha, quando novamente percorridos, revelavam a gravação feita.

Depois veio o LP (long playing) feito de vinil flexível e mais resistente que os discos de gramofone. Seguidamente, nos anos 60 surgiu a fita magnética, primeiro em grandes bobinas, depois em pequenas cassetes. Em 1978, surgiu o CD (compact disk) que já não era lido fisicamente por uma agulha, mas oticamente através de raios laser. Em 1995, a tecnologia avançou significativamente com o surgimento do DVD e mais tarde do Blue Ray. Finalmente, apareceu o som digital dos nossos dias, com o formato do MP3.

Invenção da rádio
Foi o primeiro grande meio de comunicação a grande distância. Usa ondas eletromagnéticas para enviar um sinal através de uma antena que é amplificado por meio de impulsos elétricos que viajam no ar e são recebidos por um recetor, também chamado rádio. Em 1888, o alemão Heinrich Hertz deu o primeiro grande contributo prático para a criação da rádio: provou a existência e funcionamento das ondas eletromagnéticas. A unidade de medida da frequência dessas ondas passou a ser designada com o seu nome - Hertz (Hz). Estas ondas foram também batizadas de hertzianas mas, como eram de irradiação eletromagnética, adotou-se mais tarde o nome de ondas de rádio.

As primeiras experiências com a rádio foram levadas a cabo por Nicola Tesla, nos Estado Unidos, quando realizou a primeira demonstração pública de uma transmissão sem fios. Guglielmo Marconi, baseando-se nos estudos de Tesla, enviou repetidas vezes a letra S de um porto ao outro no Canal da Mancha, entre a França e Inglaterra. Assim se provou que as ondas eletromagnéticas eram resistentes, pois percorriam enormes distâncias a uma rápida velocidade. Outras invenções, como a da válvula anterior ao transístor, foram melhorando o funcionamento da rádio.   

Como funciona a rádio? – O som, que é uma onda mecânica, é recebido por um microfone que o transforma em impulsos elétricos. Estes são amplificados e enviados a uma antena que os transforma em ondas eletromagnéticas ou hertzianas e as envia. Estas são captadas pela antena de qualquer recetor de rádio que as amplifica, volta a transformar em impulsos elétricos que, ao saírem da coluna de som, se transformam outra vez em ondas mecânicas que chegam ao nosso ouvido.

IMAGEM
"Imagem", proveniente do latim “imago”, que significa representação visual de uma pessoa ou objeto ou paisagem, imitação, retrato, fotografia, reprodução gráfica impressa da realidade ou imaginação, representação mental de um objeto, pessoa ou paisagem. A imagem pode ser estática ou ter movimento, como acontece com o vídeo que, fundamentalmente é composto por muitas fotografias reproduzidas com tanta rapidez que criam a ilusão do movimento.

A imagem não é a realidade, mas a representação da realidade: não podemos abrir a janela e dizer “que bela imagem!”, mas sim “que bela paisagem!”, pois à nossa frente temos a realidade e não uma representação dela. No entanto, a imagem que temos de uma pessoa não pode ser confundida com a própria pessoa - uma coisa é a pessoa e outra é a forma como a representamos para nós mesmos, ou seja, a nossa visão subjetiva dela.

História da imagem
Não há gravações de som antigas que remontem aos primórdios da humanidade e nos indiquem como era a vida daqueles nossos antepassados; mas há gravações de imagem: as pinturas rupestres que tão bem ilustram o homem pré-histórico, a sua vida, os seus costumes e até os seus sentimentos.

Estas gravuras ou manifestações artísticas do Paleolítico, Mesolítico e do Neolítico, representam frequentemente cenas de caça, mas também danças e outras cenas da vida diária, fenómenos cósmicos, mitos religiosos, costumes, campanhas militares. Desde que o Homem começou a pintar, nunca mais deixou de o fazer. Muito do que sabemos das primeiras civilizações da Mesopotâmia, Egito, Grécia foi-nos transmitido por estas gravuras, imagens, desenhos, grafitis que estas civilizações nos deixaram.

A imagem foi a primeira forma de expressão do ser humano e foi a evolução desta forma de expressão por imagens que nos levou aos pequenos desenhos que traduziam ideias - a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, juntamente como os hieróglifos egípcios, que foram os antecessores do alfabeto grego e romano.

Outras línguas, como o chinês, mantiveram e mantêm até aos nossos dias uma escrita pictórica, ou seja, cada letra é uma pequena gravura ou desenho que representa um conceito, uma ideia; por isso necessitam de milhares de desenhos para poder expressar-se. Se considerarmos que o ser humano começou a usar imagens há 40 000 anos e que a escrita só foi inventada há 3 500 anos, a imagem pode ser considerada como a pré-história da escrita.

Desde o início, a imagem nasceu da comunicação e para a comunicação; nasceu da necessidade de comunicarmos e também como forma de comunicação. Atingiu o seu apogeu na segunda metade do século XX quando foi inventada a fotografia, ou seja, a fixação ou gravação da imagem em fotografia. Na nossa sociedade visual, é frequente ouvir que “uma imagem vale mais que mil palavras”

A invenção da fotografia
Dois são os processos que concorrem para a invenção da fotografia: a câmara escura e o material químico que reagia em contacto com a luz para a fixação da imagem. A primeira fotografia conhecida foi produzida pelo francês Nicéphore Niéppce com uma placa metálica coberta por betume, e foram precisas 8 horas de exposição ao sol.

Em 1835, Talbot criou o processo negativo/positivo ao preparar uma folha de papel com cloreto de prata. Conseguiu produzir uma imagem negativa na câmara escura, ou seja, as áreas escuras ficavam claras e as claras ficavam escuras, tal como os negativos fotográficos que conhecemos até há bem pouco tempo.

A fotografia era só para profissionais e para os ricos, até que George Eastman criou uma empresa chamada Kodak em 1880. Mas só em 1940 se introduziu o filme de 35 mm que usámos até à invenção da fotografia digital. O tempo que demorava a revelação fotográfica podia chegar até uma semana, pelo que nos anos 60 ganhou fama a máquina fotográfica Polaroid com a célebre fotografia que se revelava segundos depois de ser captada e que saía pela frente da máquina fotográfica. Em 1990 foram inventadas as máquinas fotográficas digitais que armazenavam as fotografias eletronicamente. Este tipo de fotografia está intimamente ligado a outra invenção e não existiria sem ela: o computador.

A invenção do cinema ou das imagens em movimento
Foi no final do século XIX, em 1895, em França, que os irmãos Louis e Auguste Lumière inventaram o cinema. Porém, tal como aconteceu com a fotografia, antes de chegarmos ao produto final que conhecemos hoje, foram necessários muitos processos de investigação sobre os fundamentos da ciência ótica.

No século XIX, muitos aparelhos procuravam estudar o fenómeno da persistência retiniana; este fenómeno mantém a imagem na retina por uma fração de segundo. Joseph-Antoine Plateau foi o primeiro a medir o tempo da persistência retiniana, concluindo que uma ilusão de movimento necessita de uma série de imagens fixas sucedendo-se à razão de dez imagens por segundo.

PALAVRA
Se o ser humano fosse um ser solitário como o tigre, nunca teria desenvolvido uma língua. A língua nasceu no seio da sociedade, da comunidade, como forma de os seres humanos comunicarem entre si. Esta necessidade aconteceu quando os humanos se tornaram bípedes e conseguiram olhar-se nos olhos.

Começou provavelmente por expressar necessidades, como acontece quando viajamos para um país estrangeiro cuja língua não falamos e procuramos comunicar as nossas necessidades por sons e gestos. Numa fase posterior, os seres humanos expressaram emoções, sentimentos, necessidades e, mais tarde, pensamentos.

Já falámos da palavra oral quando falámos do som: ela permitia que os seres humanos comunicassem entre si no momento presente e, por via da cultura oral, passassem os conhecimentos, tradições e costumes de uma geração para a geração seguinte. No entanto, era uma técnica que não permitia recolher tudo e dependia demasiado da memória para conseguir reter grandes quantidades de informação.

Apesar de facilitar a transferência de conhecimentos de geração em geração, não foi esta necessidade que fez nascer a escrita, mas sim uma necessidade de índole mais comezinha: a administração de pessoas e bens nas cidades da Mesopotâmia e do Egito há 3 300 anos antes de Cristo.

Foi a necessidade de registar que levou os habitantes da Mesopotâmia e do Egito a recorrer ao uso de imagens pictóricas, ou seja, de desenhos que lembravam a forma física daquilo que representavam.

A primeira escrita eram sinais codificados feitos de argila; cada objeto era um sinal codificado que representava uma realidade; havia um para representar mulher, outro para representar homem, carneiro, etc. Os pequenos objetos de diferentes formas ou sinais eram usados para representar a maioria das coisas comercializadas naquela época, como azeite, escravos, cereais. Isto acontecia na Mesopotâmia e depois em todo o Médio Oriente antes da invenção da escrita.

Com o desenvolvimento das cidades e das relações comerciais, o sistema tornou-se impraticável: as pessoas acumulavam muitos daqueles objetos simbólicos, tinham jarros cheios deles. Então, em vez de os acumular, começaram a desenhar em tábuas de argila os símbolos que antes eram objetos.

Os sumérios inventaram a escrita triangular cuneiforme. Esta era registada em tábuas de argila e era utilizada mais para o comércio de bens e registo de propriedades do que para fins culturais. Quando os registos efetuados eram importantes, como acontecia com os de propriedade, as tábuas eram cozidas em fornos para resistir ao tempo. Mais tarde, os egípcios passaram a fazer os registos em folhas de papiro que eram folhas de papel feitas a partir da planta chamada papiro.

Os hieróglifos eram funcionais para registar assuntos simples, mas quase inúteis quando se tratava de registar assuntos complexos como ideias e pensamentos. Foi assim que séculos de evolução acabaram por transformar os hieróglifos em alfabetos fonéticos. Assim, as palavras deixaram de ser representadas por ilustrações e passaram a ser representadas por símbolos: a cada símbolo correspondia um som. Com a invenção da escrita, o Homem passou a deixar a marca da sua existência, dos seus feitos, sentimentos e pensamentos de maneira fidedigna.  

Conclusão - Som, imagem e palavra são realidades diferentes, de diferente natureza. No entanto, como vimos, a imagem fez por si só um caminho independente das outras duas realidades; mesmo assim, também faz parte da pré-história da palavra escrita. A mistura ou combinação destas realidades resultou nos meios de comunicação que conhecemos hoje: o jornal, a rádio, o telefone, a televisão e a Internet, entre outros.

O livro, o jornal, a revista
Na época em que a escrita era feita em papiro, era difícil juntar estas folhas para formar um livro. Quando começou a ser realizada em pergaminhos, ou seja, em peles de cabra, cordeiro ou ovelha, esta tarefa ficou mais facilitada. Os primeiros livros, em forma de rolos, adquiriram a forma que hoje conhecemos em plena Idade Média; era tarefa dos monges fazer cópias sucessivas dos livros para os preservar.

Tanto no tempo em que eram escritos à mão como depois de 1454 quando Johannes Gutenberg inventou a impressão, a função dos livros foi sempre a de ser um armazém de cultura e conhecimentos. Privilégio de alguns a princípio, dos escribas, copistas e intelectuais, só ficaram acessíveis a toda a gente praticamente nos nossos dias, devido à redução drástica do seu preço.

O livro não perdeu ainda totalmente a sua posição como meio transmissor de cultura, embora nos últimos tempos tenha sido substituído pela revista. As revistas hoje em dia são temáticas; praticamente todas as atividades humanas – as várias ciências, a filosofia, a psicologia, a teologia, etc. têm uma revista onde se vão relatando os avanços nessa matéria.

Neste sentido, a revista vulgarizou-se mais que o livro, pois leva menos tempo a escrever e também a ler. Quando um cientista descobre algo, facilmente escreve um artigo que sai na edição do mês seguinte de uma revista. Um livro leva mais tempo a ser escrito e, à exceção dos livros de texto de escolas e universidades, já quase não há livros publicados acerca de muitas matérias porque os avanços em qualquer ciência ou área do conhecimento humano não podem esperar pela edição de um livro: são divulgados ao público através de uma revista no espaço de um mês. As novelas e obras de literatura continuam a ser publicadas em livros.

Enquanto que a revista e o livro são mais formativos que informativos, o jornal é mais informativo que formativo. Prova disso é, por exemplo, o tipo de papel usado na sua impressão que envelhece em pouco tempo e é difícil de preservar. Os jornais existem e continuarão a existir por algum tempo, mas estão a ser substituídos pela rádio e pela televisão. Já há jornais que se publicam apenas na Internet, que já não têm versão impressa, o que é uma boa notícia para a ecologia, por diminuir a devastação que as florestas têm sofrido desde os anos sessenta com a proliferação do papel como meio de informação e formação.

A rádio
Alguém dizia que a rádio ia desaparecer com a introdução da televisão, mas é mais provável que a rádio continue a existir e a televisão seja absorvida pela Internet. É que a televisão requer a atenção total da pessoa, ao contrário da rádio. Pode escutar-se a rádio enquanto se conduz para o trabalho, enquanto se passa a roupa a ferro, cozinha, tricota e borda, para além de um número infinito de outras atividades. Por esta razão, entendemos que a rádio veio para ficar e, apesar de ter nascido antes da televisão, é bem provável que morra depois dela, se morrer.

O telefone
O telefone sempre foi um meio de comunicação entre pessoas, tendo permanecido fixo por muito tempo. Hoje, ao ser móvel, aumentou exponencialmente a comunicação entre as pessoas. Ironicamente, o som e a imagem do telefone permitem-nos hoje estar virtualmente com alguém geograficamente distante de nós, enquanto por outro lado pode afastar-nos daqueles que estão ao nosso lado.

O telemóvel tornou-se num autêntico invasor, interrompendo a qualquer momento conversas entre amigos, aulas, missas, refeições, atividades, a atenção de quem conduz, podendo até provocar um acidente. Se por um lado é um invasor, porque em qualquer momento ou situação pode soar e invadir, por outro lado é um evasor, pois permite à pessoa evadir-se de qualquer situação, acabar com qualquer atividade ou conversa.

A televisão
Como meio de formação, é inferior ao livro; têm sido levados a cabo estudos que provam que a pessoa aprende mais em 10 minutos de leitura que em duas horas de televisão. A maior parte das pessoas vê televisão ao fim do dia, quando está cansada e deitada no sofá; para muitos, funciona como uma cantiga de embalar e, de facto, até acordam quando o aparelho é desligado. Atualmente, a sua principal função é ser um meio publicitário.

O seu som rompe o silêncio da casa e substitui o diálogo das pessoas à mesa de refeições. Há uns anos atrás era omnipresente, estava sempre ligada mesmo quando ninguém lhe prestava atenção. Muitas pessoas, com medo do silêncio e da solidão, ligam a televisão mal entram em casa. Os canais de TV são hoje tão numerosos que há quem se divirta mudando simplesmente de canal para canal, parando apenas alguns segundos em cada um.

A Internet
A Internet é o meio de comunicação mais completo e mais complexo. Substitui ou engloba todos os outros. Através da Internet, podemos ler o jornal, ouvir rádio, ver TV, telefonar, ver um filme, assistir a uma sessão do Parlamento, participar em reuniões, conferências e tirar um curso universitário.

A grande revolução da Internet, ou seja, o que a Internet tem de verdadeiramente único é o facto de permitir a comunicação nos dois sentidos. Para todos os outros meios de comunicação, somos sempre público, espetadores, audiência. Na Internet posso ser autor de um blog, posso publicar um vídeo, divulgar uma ideia, convidar para um evento, transmitir em tempo real um evento no qual estou a participar ou a realizar. Em suma, na Internet eu sou autor, emissor e não apenas um recetor passivo, como acontece nos outros meios de comunicação.

Os meios de comunicação social e a cultura
Entendendo a cultura como a idiossincrasia de um povo, como a sua forma de ser e estar no seu ambiente, as suas tradições, costumes e língua, podemos dizer que os meios de comunicação social em geral, fortalecem a cultura, uma vez que a divulgam, estimulam e são fator de união entre as pessoas em determinada localidade.

No entanto, podem também ter o efeito adverso de matar as culturas regionais e criar uma cultura única nacional uniformizada. Certos Estados, com medo do regionalismo e autodeterminação de algumas regiões dos seus países, têm usado os meios de comunicação social para fazer crescer a identidade nacional em detrimento da identidade regional, da língua nacional em detrimento dos dialetos ou línguas regionais.

O que acontece ao nível de um país, vem acontecendo a nível global e universal. Neste caso, a cultura ocidental, com os seus poderosos meios de comunicação, invade os espaços nacionais e regionais e impõe-se, tornando obsoletas certas tradições, usos e costumes locais e impondo os seus padrões de moda, de forma de vestir, de comer.

A globalização não acontece só comercialmente, também acontece culturalmente. Há línguas que estão a desaparecer e, a este ritmo, o mundo do futuro falará uma única língua. Neste sentido, os meios são perversos porque acabam com a diversidade e riqueza cultural.

O indivíduo, a sociedade e a socialização
O ser humano é essencial e intrinsecamente social. São precisos dois (um homem como pai e uma mulher como mãe) para que seja engendrado um indivíduo da espécie humana. Depois de engendrado e nascido, o convívio num clima de amor incondicional é imprescindível para que essa cria da espécie humana se torne eventualmente numa pessoa humana.

É este convívio com os seus semelhantes, que permite ao indivíduo concretizar e desenvolver os elementos recebidos geneticamente e transformá-los em talentos ou competências cognitivas, afetivas, sociais e culturais. Sem este convívio, a cria da espécie humana não se tornaria pessoa humana e seria um Tarzan, incapaz de andar e de falar, com uma inteligência diminuta, sendo apenas humano em teoria, por ser filho de humanos.   

Por intermédio dos pais na família, dos professores na escola e dos meios de comunicação social em geral, a sociedade forma, informa e “formata” a pessoa humana em todos os aspetos da vida, de forma afazer dela um membro, um espelho ou reflexo da própria sociedade. O processo pelo qual o indivíduo se integra no grupo social onde nasce, adquirindo costumes e tradições, atitudes, crenças e os valores normativos mais significativos que definem esse grupo e o identificam entre outros, chama-se socialização. Este processo é um tipo de formação permanente, pois começa com o nascimento do indivíduo e nunca termina verdadeiramente.

Socialização e opinião pública
Os meios de comunicação social não só contribuem para a nossa formação ou socialização básica, como também atuam como motores de mudança no decurso da nossa vida. A sua omnipresença e o martelar contínuo das suas mensagens, acabam por formar ou modificar a forma como encaramos o mundo, como nos encaramos a nós mesmos e aos outros, os nossos gostos, as nossas preferências, o que consideramos mais íntimo e mais pessoal.

Ed pluribus unun - Os meios de comunicação social fazem de um conjunto de indivíduos um povo. Neste sentido, a sua influência é evidentemente positiva. Porém, pode também levar uma sociedade ao pensamento único ou unidimensional, ao “Maria, vai com as outras”. Este aspeto já não é tão positivo, porque costuma ter sempre por trás alguém que quer manipular as massas.

Neste texto tive o cuidado de não usar nunca a palavra “mass media”, porque o povo sempre é povo e não quero olhar para ele como uma massa onde se perdem as individualidades, as diferenças e as diversidades. Os meios de comunicação social dirigem-se ao povo que é a sua audiência, e a sua audiência não é uma massa de pessoas, é um povo.

Socialização e moda

Os meios de comunicação de massa, enquanto agentes de socialização, destacam a importância do visual, da aparência física e exibem um tipo de corpo magro que é publicitado e que surge como um ideal.

Nos últimos anos, a influência dos meios de comunicação social na imagem corporal tem merecido a atenção de vários estudiosos da comunicação devido ao crescente desenvolvimento de perturbações alimentares como a anorexia nervosa e a bulimia em adolescentes, sobretudo do sexo feminino.

Certas normas no mundo da alta costura foram modificadas; os modelos têm agora de ter peso e medidas mínimas. Mas apesar do amplo debate a este respeito, a magreza escanzelada como moda continua a ser o padrão seguido pelos modelos, tanto femininos como masculinos.

Os meios de comunicação social e a religião
Servem para formar na fé, reforçar a fé, mas não suscitam a fé. Se numa tribo perdida da Amazónia descarregássemos por via aérea milhares de bíblias e os nativos as lessem, isso não faria deles cristãos. A fé é como um poderoso “vírus” positivo e bom. Para que se propague tem de haver contacto pessoal, correspondente ao contacto físico para a propagação dos maus vírus.

O livro dos Atos dos Apóstolos (Atos 8, 26-39) relata o episódio de um eunuco etíope que regressava da sua peregrinação a Jerusalém e que, sentado na sua carruagem, lia o livro do profeta Isaías. O apóstolo Filipe abeirou-se dele e perguntou-lhe se ele entendia o que estava a ler; o eunuco respondeu que não. Uma coisa é ler, outra é interpretar, entender o que se lê.

O mesmo acontece com o ver; todos tinham visto os acontecimentos de Jerusalém nos últimos dias, inclusive os discípulos de Emaús (Lucas 24, 13-25) e, no entanto, poucos ou nenhum tinham entendido o que tinham visto. Para estes dois, foi preciso que o mesmo Jesus lhes explicasse as escrituras para que entendessem o que tinham presenciado.

O Papa Francisco disse que a Internet é o sexto continente e foi esta ideia que me levou a escrever este blog ao qual tenho sido fiel desde o ano de 2012. Mas não o faço com o intuito de levar alguém à fé. Serve antes como reevangelização, para trazer de volta ao rebanho aqueles que perderam ou vacilam na sua fé; para tornar esta fé mais razoável, mais plausível e credível (1 Pedro 3, 15). Para formar, informar, tornar mais humanamente credível, atualizar a nossa fé, mas não para a suscitar. Para isto servem os meios de comunicação social.

Para suscitar a fé necessitamos do testemunho e anúncio do evangelizador e sobretudo da sua entoação pessoal do magnificat ou, melhor dizendo, do seu magnificat. Precisamos de ver e ouvir alguém que nos conta as maravilhas que o Senhor operou na sua vida. É isso que leva as pessoas a abrir-se a esse Senhor e a ter fé de que Ele também fará maravilhas nas suas vidas. Este mesmo testemunho, visto na televisão, não tem a mesma força, porque a televisão e os filmes, com os seus efeitos especiais, habituaram-nos a pensar que não é real o que vemos, que é uma fantasia.

Os meios de comunicação social e a economia
Ao falar de meios de comunicação social e economia, duas palavras nos vêm à mente de imediato: publicidade e propaganda. Tanto a comunicação como a economia necessitam uma da outra: os meios de comunicação social mantêm-se vivos graças ao dinheiro que recebem da economia e, sem ele, não poderiam fazer outras coisas mais nobres. Por outro lado, a economia, para poder escoar os seus produtos e serviços, necessita dos meios de comunicação social para os dar a conhecer ao público em geral.

Por via da comunicação social somos expostos a diversos e a diferentes tipos de anúncios de um mesmo produto e cada um de nós tem a capacidade de fazer os seus próprios juízos de valor em relação ao produto que nos é mostrado. Mas a maior parte das vezes somos levados a comprar esse produto apenas pelo que nos é exposto à primeira vista, ou seja, pelas aparências, ou simplesmente porque estamos demasiado ocupados para fazer essa apreciação crítica.

Em todo o momento, em todo o lugar, somos, bombardeados por anúncios, alguns bastante subliminares dos quais quase não nos apercebemos. Muitos destes anúncios não apelam ao nosso neocórtex, não apelam à nossa razão, aproveitando-se antes dos nossos defeitos, dos nossos instintos mais básicos. É publicidade abusiva aquela que explora o medo, a superstição, a sexualidade, as crianças, a discriminação de género ou o grupo étnico.

Os meios de comunicação social e a política
O sistema político e partidário do mundo ocidental só é possível no mundo ocidental. Vivi em certos lugares da Etiópia onde as pessoas não sabiam quem era o primeiro ministro. Onde não há estradas, eletricidade, rádio, televisão, é impossível haver uma democracia parlamentar representativa. Sem meios de comunicação é de todo impossível.

Estes países em vias de desenvolvimento bem querem imitar o sistema partidário ocidental mas falta-lhes o desenvolvimento suficiente para isso acontecer como aqui. Na verdade, onde há partidos políticos verificamos que todos os seus membros são da mesma tribo – portanto, votar neste ou naquele partido é irrelevante.

Um político hábil é a pessoa inteligente que sabe gerir bem os recursos económicos e humanos do seu país e resolver os problemas que a governação vai apresentando. Porém, no ocidente, existe a tradição de que o político hábil não é tanto o que melhor faz, mas o que melhor fala. Portanto, enquanto o político for sinónimo de pessoa bem-falante que domina a arte da retórica como acontece na maioria das democracias ocidentais, os meios de comunicação social são de extrema importância, pois são eles que lhe proporcionam a audiência que o vai fazer conhecido, popular e ganhar votos.

Conclusão: o ser humano, nasce por via da comunicação, cresce pela comunicação e vive em contínua comunicação. Dos cinco sentidos que temos, dois - o olfato e o paladar - são de índole individual; os outros três - a audição, a visão e o tato - são eminentemente sociais. Pela audição ouvimos a palavra oral e a música, pela visão vemos a imagem e a palavra escrita, pelo tato entramos em íntima comunicação com os outros.

Pe. Jorge Amaro, IMC