1 de julho de 2022

Colonos, Turistas ou Peregrinos?

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Não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a futura Hebreus 13,14

Coordenadas da vida humana
O ser humano é um ser espácio-temporal. Ocupa um espaço durante um tempo, pelo que, tal como acontece no universo e na natureza que nos rodeia e envolve, nada há de estático nem de permanente na vida humana. Não podemos instalar-nos no tempo nem no espaço: a vida implica movimento, é processo, é devir, é caminho, é mudança.

Pela forma como usamos e nos situamos no espaço ou nos relacionamos com ele, podemos ser colonos ou turistas; o evangelho, porém, exorta-nos a ser peregrinos.

Colonos, turistas e peregrinos, têm em comum o facto de não serem oriundos do lugar que habitam durante o tempo da sua vida; mas têm formas diferentes de se relacionar com o meio ambiente que os rodeia durante o tempo em que nele habitam.  

As pessoas foram criadas para serem amadas, as coisas para serem usadas. Só o peregrino encarna esta verdade na sua vida: ou seja, para ele as coisas são um meio, por isso devem ser usadas e não amadas, ao passo que as pessoas são um fim em si mesmas, pelo que não devem ser usadas para nenhum fim, mas amadas pelo simples facto de serem pessoas.

Os colonos têm como fim enriquecer o mais rapidamente possível. O fim são as coisas pois estão enamorados delas e é a elas a quem amam; as pessoas são rivais a eliminar ou a usar como meios para atingir a finalidade de serem ricos. Provavelmente abandonarão o lugar depois de o terem explorado suficientemente, assim como os nativos que nele habitam.

Os turistas vivem centrados em si mesmos e nas suas experiências, pelo que o objetivo são eles mesmos e as experiências prazenteiras que vão tendo e acumulando. As pessoas são coisas e as coisas são pessoas. É como aquele que diz amar os seus animais de estimação e se relaciona com eles como se fossem filhos ou amigos, ou seja, usa a mesma terminologia que usa com as pessoas e ao fazê-lo está a coisificar as pessoas e a personificar coisas ou animais. O importante é o prazer que tanto as coisas como as pessoas podem proporcionar-lhe.

O lugar em que habitamos
Com a Revolução Industrial, a mecanização da agricultura, a expansão do comércio e a globalização, o mundo ocidental e depois os países em vias de desenvolvimento e os países pobres experimentaram um desenvolvimento sem precedentes a todos os níveis: aumentou a produção, aumentou a população, aumentou o consumo, aumentou a necessidade de energia, aumentaram os meios de transporte, sobretudo o avião e o carro, a ponto de cada família dos países ricos ter mais de um carro. A poluição e a deterioração ambiental foram consequências inevitáveis deste desenvolvimento.

Só não aumentou o nosso planeta e, como este não aumentou, depressa surgiram os resultados deste crescimento tão rápido e desmesurado, sobretudo por causa da filosofia do “usa e deita fora” que vigorou por várias décadas. O conceito da reciclagem é recente e ainda não entrou em muitas mentes, o que é bem estranho, pois reciclar foi sempre a filosofia de vida do nosso planeta. No entanto, os seus habitantes viveram e muitos ainda vivem segundo a filosofia de “usa e deita fora” - é mais barato comprar novo que consertar. Para quem é mais barato? Para a economia ou para o planeta?

O nosso planeta é a nossa casa comum. O ser humano ainda não arranjou forma de colonizar outros planetas, pelo que ou cuidamos deste único que temos ou podemos cometer um suicídio cultural e ecológico, degradando as condições de habitabilidade até um nível insustentável.

A ideia do desenvolvimento sustentável surgiu na I Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e desenvolvimento, Rio de Janeiro 1992. É simples saber se o que fazemos é sustentável: basta que nos perguntemos se podemos continuar a fazer isto uma e outra vez, para sempre? A primeira instância a inquirir é o meio ambiente - compromete o meio ambiente para as próximas gerações? Em segundo lugar devemos perguntar se conduz a um crescimento económico.

E, em terceiro, se esse benefício económico abrange a todos ou só a alguns, se promove a paz, a justiça e a estabilidade social. Até agora, a riqueza que uns produzem é proporcional à pobreza que causa, ou seja, quanto mais riqueza mais pobreza.

O desenvolvimento visto unicamente como crescimento económico destruiu o meio ambiente e causou profundas desigualdades sociais. Para o desenvolvimento ser sustentável, tem de ser tridimensional, ou seja, os aspetos de justiça social e proteção ambiental devem ser tão importantes quanto o crescimento económico.

Colonos
Veni vidi et vincit, como diria o conquistador César Augusto, o colono vem para conquistar e possuir tanto as pessoas como as coisas. Conquista, explora tudo e todos sem escrúpulos: os recursos do planeta sem se importar com a ecologia. Neste sentido, possui a mentalidade do burro que dizia, “Depois de eu morrer que não cresça mais erva sobre a terra”. Também explora os outros, regulando-se pela única regra que conhece: o lucro e o interesse pessoal.

O colono veio para ficar ou fixar-se por um tempo determinado até esgotar os recursos da riqueza que procura. No tempo em que está não se move, agarra-se às coisas e às pessoas como uma carraça. Pode fazer amizade com as pessoas, mas é sempre uma amizade interesseira, é um falso amigo porque não se coloca ao serviço de ninguém nem de nenhuma causa humana; pelo contrário, coloca os outros ao seu serviço.

Na Bíblia, o colono está representado por Caim que é agricultor e, portanto, sedentário, deixou de buscar, deixou de caminhar e vive instalado na vida como se tivesse chegado já à Terra Prometida, disfrutando de tudo o que a vida lhe dá como se nunca tivesse de a deixar. Deus rejeitou Caim e aceitou Abel que era pastor, caminhante, peregrino, destacado de tudo e de todos.

O colono vive instalado no ter cada vez mais, vive a vida amealhando, aumentando desmesuradamente meios de vida, pensando erradamente que por ter mais meios de vida vai ter uma vida mais longa. Instalado neste mundo e nesta vida como se nunca tivesse de a deixar, acaba por morrer sem nunca ter vivido, ou seja, sem nunca ter sabido o que é verdadeiramente a vida. Não cultivou o ser, mas o ter, não a vida eterna, mas a vida temporal e finita na pura mundanidade.

Turistas
Ao contrário do colono, o turista vive superficialmente. Tudo tem o mesmo valor: coisas e pessoas. Procura divertir-se, não está interessado em possuir nada nem ninguém, apenas fotografias de tudo e de todos, vídeos e recordações dos lugares que visitou e que lhe proporcionaram prazer ou mesmo alegria.

Para o turista tudo é paisagem e, sendo passageiro, o valor das coisas mede-se pelo potencial que tem de divertir ou satisfazer os seus cinco sentidos. Por isso, tudo o que é exótico, erótico, invulgar, excêntrico, que produz emoções fortes e espevita a adrenalina é que tem valor.

O turista não chega a penetrar na realidade, vê o mundo como se fosse um teatro ou um cinema que o diverte, mas não sabe nem está interessado no que se passa nos bastidores. Não se compromete com nada nem com ninguém, busca diversão e foge de tudo o que tenha que ver com sofrimento e compromisso. O turista no espaço corresponde ao vagabundo no tempo: não se compromete com nada nem com ninguém, é superficial.

O colono vive instalado no ter, o turista vive instalado no prazer; as coisas têm valor consoante o gozo que dão e anda à procura de prazeres cada vez mais sofisticados e refinados. O passado é fotográfico, o futuro ainda não foi. Não está em lado nenhum, goza aqui e ali, vive centrado em si mesmo.

Superficial e snob faz-me lembrar naquele casal em lua de mel pela Amazónia que viajava numa canoa; estava tão absorvido pela beleza da floresta tropical que perdeu o contacto com a verdadeira realidade. Enquanto a canoa se afundava e vindos das margens do rio os crocodilos mergulhavam, a esposa comentou, “Oh querido, isto é tudo tão bonito e tão chique que até os nadadores salvadores são da Lacoste!”   

O peregrino
Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do batismo que João pregou: como Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder a Jesus de Nazaré, o qual andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele. Atos dos Apóstolos 10, 37-38

Jesus, como modelo de ser humano, deve ser imitado não só no que disse e no que fez, mas também na forma como se comportou em relação às coisas, ao espaço e às pessoas. Passou pelo mundo fazendo o bem, não se fixou num lugar onde já tinha ganhado fama e popularidade, como os seus discípulos pretendiam (Marcos 1, 38). Nem ficou com aqueles sobre quem já tinha ganhado poder e que o queriam fazer rei (João 6,15).

Comprometido com o reino de Deus e a sua justiça, Jesus não viveu apegado a nada nem a ninguém, passou pelo mundo fazendo o bem, semeando as sementes do reino sem se sentar.

Era uma vez um homem que todos os dias ia buscar água ao rio com um balde em cada mão. Um dos baldes estava furado, pelo que chegava a casa só com metade da água. Por esta razão sentia-se triste, inferiorizado e até envergonhado diante do seu colega. Ao referir isto mesmo ao seu senhor, este sorriu e disse: “Já reparaste que o caminho do teu lado está cheio de flores e não há nenhumas do lado contrário? Como eu sabia que estavas quebrado, semeei flores do teu lado e tu cada dia te encarregavas de as regar...”

Na nossa peregrinação para o ocidente, para o ocaso, como os discípulos de Emaús, deixemo-nos alcançar por Jesus, que Ele seja o nosso companheiro de caminho, que nos explique as escrituras e nos diga o sentido das coisas. Ele é Caminho, é Verdade, é Vida, entremos, convidemo-l’O para cear, para ficar connosco e Ele repartirá o pão.

Não colonos, mas sim imigrantes que vão para explorar o peregrino, apanhar aqui e soltar ali, como o pucarinho que perde a água e deixa flores; deixar algo de si mesmo por onde passa. Um pároco de Loriga na visita pascal visitando a casa de todos os seus paroquianos, tanto ricos como pobres, recolhia o dinheiro que lhe era dado em casa dos ricos e deixava-o na casa dos pobres. Dessa forma, no dia de Páscoa ele passava o raseiro pela sua paróquia nivelando a riqueza, sendo fator de igualdade.

O peregrino não possui coisas nem pessoas como o colono, nem as usa e deita fora como o turista; não está instalado no aqui e agora como o colono, nem caminha desinteressado com o turista. No seu caminhar, compromete-se, entregando-se totalmente a pessoas e a causas humanas concretas, mas como não busca ser amado, mas amar, dá-se sem se prender às pessoas que ama.

Muitos dos peregrinos de Santiago eram jograis que deixavam música e alegria por onde passavam. A nossa língua, o galaico-português, nasceu destas cantigas de amigo, amor, escárnio e mal dizer. Por outro lado, o caminho português está embelezado por pontes e igrejas românicas; o caminho francês, por igrejas e grandes catedrais góticas. 

Um rabino visitou um peregrino da Terra Santa e, ao verificar que vivia pobremente, perguntou: “Rabino, onde estão os teus móveis? O rabino olhou-o fixamente e respondeu: “E onde estão os teus?” “Os meus?” respondeu o peregrino, “Eu sou peregrino” ... “Eu também, respondeu o rabino” ...

A gramática do peregrino
(...) todos quantos em Cristo fostes batizados, de Cristo vos revestistes. Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. Gálatas 3, 27-29

Como não busca possuir, o peregrino não usa pronomes possessivos, nem com pessoas nem com coisas.

Com as pessoas - Usa pronomes de relação. Por isso, em vez de dizer “o meu pai”, diz, “para mim é pai, pois esta mesma pessoa para a minha mãe é marido, para o meu avô é filho, para o meu tio é irmão, para o patrão é operário, etc.”

Com as coisas - Usa pronomes administrativos, pois tem consciência de que em verdade não somos proprietários de coisa nenhuma; de todos os recursos que dizemos possuir, inclusive da “nossa” vida, apenas somos administradores e desta administração daremos um dia contas ao verdadeiro proprietário que é Deus Senhor de tudo e de todos.

Os pronomes pessoais - São só três: EU, porque me reconheço como uma pessoa livre e independente de tudo e de todos, com direitos e deveres. TU, o meu semelhante a quem considero um alter ego e, por ser igual a mim, devo amá-lo como me amo a mim mesmo. NÓS, uma vez que, tal como na trindade divina, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, na trindade humana o filho procede do Pai e da Mãe e na trindade dos pronomes pessoais, o nós procede do eu e do tu unidos.

Os pronomes discriminativos – São os restantes pronomes chamados “pessoais”, porque qualquer que seja o contexto em que os usemos, discriminam. O ele e ela são pessoas que não são da minha relação, o que não é bom pois devo estar aberto a todos; o vós, são os outros que não são do nosso grupo, que não são como nós, e eles ainda soa mais distante que o vós. Deus é Pai de todos, todos somos seus filhos, todos somos irmãos.

Narcisismo das pequenas diferenças – É como chama Freud às diferenças que artificialmente buscamos, como se, para defender a nossa idiossincrasia, tivéssemos que aniquilar a do outro... É muito mais o que nos une do que o que nos divide de facto; se houvesse uma ameaça extraterrestre  num dado momento, todos nós, habitantes deste planeta, esqueceríamos essas pequenas diferenças e nos transformar íamos no que sempre fomos e sempre seremos: um grande NÓS.

Conclusão - O colono instalado no Ter, vive acumulando coisas; o turista instalado no prazer, vive acumulando experiências prazenteiras. O peregrino pode ser rico como o colono e gozar a vida como o turista, mas não vive apegado a nada nem a ninguém, porque vai deixando um pouco de si mesmo nos lugares e nas pessoas com quem se encontra.

O Peregrino não se prende com coisas ou pessoas, como o colono, mas também não vive sem compromissos como o turista. O peregrino compromete-se com pessoas e causas sem se prender a elas, permanecendo livre e independente de tudo e de todos.

Fr. Jorge Amaro, IMC