15 de maio de 2021

3 Presenças de Cristo: Igreja - Eucaristia - Sacerdócio

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A vida do ser humano é espácio-temporal, ocupa um espaço limitado durante um tempo limitado. Ao fazer-se homem, Deus assumiu essa limitação (Filipenses 2, 6-11). Ao encarnar em pessoa humana, ao armar a sua tenda no nosso acampamento, aceitou viver num tempo e espaço precisos. Porém, não faria sentido que o filho de Deus, criador de tudo e de todos, quisesse limitar a sua ação salvadora ao tempo e espaço em que habitou.

A Igreja, a Eucaristia e o sacerdócio são instituições por Ele criadas para estender a sua ação salvadora a todo o tempo e lugar, até ao fim do tempo e do mundo. Estas três instituições são, em si mesmas e por si mesmas, três presenças de Cristo entre nós. Assim, a Igreja é o Corpo místico de Cristo, a Eucaristia é o Corpo Sacramental de Cristo, o sacerdócio é o Corpo Físico de Cristo.

3 Quintas-feiras – Quinta-feira santa – Corpo de Deus – Ascensão
Tres jueves hay en el año que brillan más que el sol: jueves Santo, Corpus Christi y el jueves de la Ascensión Dito popular espanhol

Quinta-feira Santa
A vida pública de Jesus começa nas bodas de Caná, onde transforma a água das nossas lágrimas no vinho da nossa alegria (Salmo 104, 14-15). E termina na Última Ceia, onde se dá a si mesmo como o pão do nosso sustento (João 6, 48-63). Entre estes dois banquetes, muitos ensinamentos de Jesus surgem no decurso de um convite para uma refeição. (Lucas 19, 1-10; Mateus, 26, 6-13)

Uma refeição, um banquete de boda é tema recorrente nas parábolas de Jesus: o Reino dos Céus é semelhante a um banquete… Boa comida, boa bebida, boa companhia, produzem a maior felicidade e alegria que este mundo pode oferecer-nos. Por isso, quando nos fala do Reino dos Céus, Jesus não encontra melhor comparação que o partilhar de boa comida, boa bebida e boa companhia.

O Senhor dos exércitos dará neste monte santo um banquete para todos os povos… (Isaías 25 6-9) O tema do banquete como símbolo da felicidade que Deus pode proporcionar ao homem é também muito recorrente já no Antigo Testamento. O povo hebreu celebra a sua saída do Egito, da escravidão e a entrada na Terra Prometida da liberdade com uma refeição onde se come o cordeiro, cujo sangue na ombreira da porta salvou os judeus, ao fazer passar longe o anjo exterminador.

Esta mesma refeição Jesus comeu com os seus discípulos e discípulas. Nela, ele é o cordeiro, como João Batista há muito tinha anunciado. Jesus transfere para o pão a sua presença física e dá-no-lo como sendo a sua carne. Transfere para o vinho a sua vida, o seu sangue, o seu Espírito, e dá-no-lo como sendo a sua força, a sua alegria, o seu Espírito.

Ascensão
Depois da Sua Ressurreição, e durante quarenta dias, como diz a escritura, Jesus não foi logo para o Seu Pai (João 20, 17). Dizem que os mortos não se dão conta, logo a seguir, de que morreram e consoante os temas a que se apegavam nesta terra, parece que vagueiam até os resolver. São as chamadas almas penadas ou apenadas, pois morreram subitamente por acidente antes do seu tempo e deixaram assuntos pendentes.

Já não limitado pelas leis do espaço e do tempo, Jesus no seu corpo glorioso deteve-se algum tempo nesta terra, antes de ascender ao Pai e, neste período, apareceu aos seus amigos e discípulos para os confirmar na Missão de continuarem a sua obra.

A festa da Ascensão era tradicionalmente celebrada numa quinta-feira. A despedida de Jesus acontece em Quinta-feira Santa, a sua partida não é a sua morte. Depois da sua morte, Jesus volta aos seus discípulos na realidade do seu corpo glorioso, volta a conviver com eles, volta a comer e a beber com eles, como nos contam alguns relatos das suas aparições, mas já está numa outra dimensão.

A partida do Senhor, o seu último adeus no verdadeiro sentido da palavra adeus, acontece quarenta dias depois da sua ressurreição de entre os mortos. Depois de os ter mandado por todo o mundo para continuar a sua obra, para estender o seu Reino, subiu aos Céus. Depois de ter encontrado outras formas de ficar entre nós, levou para o céu a nossa natureza humana divinizada no seu corpo, foi-nos preparar um lugar.

Corpo de Deus
Aos 60 dias da Ressurreição do Senhor, a Igreja celebra a sua presença sacramental na festa de Corpus Christi ou Corpo de Deus, a terceira quinta-feira que brilha mais que o sol. “Fazei isto em minha memória…” tinha dito na Quinta-feira Santa. Subiu aos Céus Quinta-feira da Acensão e deixou-nos na Eucaristia o memorial da sua vida, paixão, morte e Ressurreição.

Este é o meu corpo… Este é o meu sangue… são o abracadabra, a palavra passe, a palavra mágica que faz com que um pão normal se transforme no seu corpo, um vinho normal se transforme no seu sangue. Há uma mudança de substância, chamada transubstanciação, que não é acidental, ou seja, o pão continua com a mesma forma, cor, textura e sabor, assim como o vinho, mas já nem o pão é pão nem o vinho é vinho.

Alguns dos que duvidaram ao longo dos tempos e em diferentes lugares do nosso planeta, viram verdadeiramente esse pão transformado em carne, esse vinho transformado em sangue nos muitos milagres eucarísticos que aconteceram ao longo do tempo em diferentes latitudes e longitudes.

Como Jesus disse na sua Última Ceia, ele continua a estar verdadeiramente entre nós como aquele que serve e que nos serve de alimento, de viático nesta peregrinação para a pátria celeste que é a nossa vida. Se a Arca da Aliança no Antigo Testamento continha maná, símbolo do poder de Deus, o pão consagrado contém realmente o Senhor: o seu corpo entregado e o seu sangue derramado para que tenhamos vida em seu nome e a tenhamos em abundância.

Pentecostes
Na mesma sala de cima onde a Igreja foi concebida na Última Ceia do Senhor, quando ao Corpo místico de Cristo que é a Igreja se uniu o Espírito Santo, ali nasceu como alma dessa mesma Igreja. A Igreja, portanto, nasceu no dia de Pentecostes quando o corpo já preexistente formado pelo fundador desta, o Nosso Senhor Jesus Cristo em Quinta-feira Santa, recebeu o sopro divino pelo qual começou a viver e saiu fora desse seio onde tinha sido concebida no dia de Quinta-feira Santa.

Para entendermos a importância do Espírito Santo na Igreja, olhemos para Pedro vacilante, cobarde e cheio de medo adolescente que o associa a Jesus antes de Pentecostes, e a mesma pessoa, o mesmo Pedro cheio de energia, coragem e furor no dia de Pentecostes, chegando a desafiar os sumos sacerdotes depois de Pentecostes.

A Igreja é o corpo místico de Cristo, que se alimenta do corpo sacramental de Cristo que é a sua carne e o seu sangue e tem como alma o Espírito Santo que a inspira, alenta, governa, guia e lhe dá força na tribulação.

IGREJA: CORPO MÍSTICO DE CRISTO
O conteúdo da pregação de Jesus

Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando nas suas sinagogas, proclamando a Boa Nova do Reino e curando todo o tipo de doença e de enfermidade. Mateus 9, 35

Jesus não veio ao mundo para se pregar a si mesmo, ou acerca de si mesmo. Nos evangelhos sinópticos pouco fala de si e, quando o faz, é para dizer que faz a vontade do Pai. Refere-se a si mesmo como filho do homem e não como filho de Deus ou como Messias. O conteúdo da pregação de Jesus é o Reino de Deus que ele diz que veio trazer à Terra. Sobre o Reino de Deus, Jesus não só fala dele, como o concretiza em palavras e em obras.

O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa-Nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano aceite da parte do Senhor”. Lucas 9, 17-19

Na sinagoga da sua terra, logo ao princípio do seu ministério, lê uma passagem do livro do profeta Isaías afirmando depois da leitura que essa parte da escritura se cumpre na sua Missão e com ela. Quando João Batista já está na prisão, surgem-lhe dúvidas sobre a identidade de Jesus, e envia alguns dos seus discípulos a inquirir sobre a questão. Jesus, para quem uma pessoa se conhece pelas suas obras, responde:

Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: cegos recuperam a vista, paralíticos andam, leprosos são curados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e aos pobres se anuncia a Boa-Nova. Mateus 11, 4

Para definir o que é o Reino de Deus, Jesus utiliza muitas parábolas e em algumas delas a imagem de banquete é bastante frequente. Isto levou São Paulo a dizer que o Reino não é comida nem bebida, mas justiça e paz. (Romanos 14, 7). Jesus, porém, deixou o Reino definido na oração que ensinou aos seus discípulos: “Venha a nós o Vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”. Na mesma petição da vinda do Reino, Jesus define-o como sendo a terra onde se faz a vontade do Pai como já se faz no Céu; ou seja, quando a terra for como o céu, a terra será o Reino de Deus como o céu o é.

O conteúdo da pregação da Igreja
Irmãos, quero lembrar-vos o evangelho que vos anunciei e que recebestes, e no qual estais firmes. Por ele sois salvos, se o estais guardando tal qual ele vos foi anunciado. A menos que tenhais abraçado a fé em vão... De facto, eu vos transmiti, antes de tudo, o que eu mesmo tinha recebido, a saber: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e, ao terceiro dia, foi ressuscitado, segundo as Escrituras; e apareceu a Cefas e, depois aos Doze. 1 Coríntios 15, 1-5

O evangelho que os apóstolos do Senhor pregam é bem diferente daquele que o Mestre pregou. O que se depreende do texto acima citado de S. Paulo aos cristãos de Corinto, assim como do discurso de Pedro no dia de Pentecostes, (Atos 2, 14-41) como também do que diz perante os sumos sacerdotes e o povo depois de ele e João terem curado um coxo de nascença (Atos 3, 11-26), é que o Reino de Deus não faz parte do conteúdo da pregação, nem é o objetivo desta.

A pessoa e personalidade, os ditos e feitos e a vida de Jesus de Nazaré como sendo o Messias esperado das nações, é agora o conteúdo da pregação dos Apóstolos. No entanto, no tempo de Jesus, a título de aulas práticas e experiência de Missão, Ele mesmo os enviou a cidades e aldeias “a anunciar o Reino de Deus e curar enfermos” (Lucas 9, 1-2), ou seja, a praticar o tipo de missão que ele mesmo praticou.

Agora, porém, o conteúdo da pregação dos apóstolos é exclusivamente a pessoa de Jesus e o objetivo da pregação já não é o Reino, mas sim a implantação da Igreja. Não é por isso de admirar que a “Implantatio ecclesia” tenha sido durante muitos séculos o objetivo da Missão desta mesma. Ou seja, a Igreja em vez de pregar o Reino, como fez o seu fundador, andou muitos séculos e até há bem pouco tempo, a pregar-se a si mesma; a fazer-se grande, a angariar membros para o seu redil.

Pretendeu Jesus fundar a Igreja?
A Igreja e o cristianismo de per se não foram fundados por S. Paulo como dizem as más línguas. É certo que Jesus só menciona o nome “Eclésia” duas vezes e só no evangelho de Mateus. Dessas duas vezes, duvida-se que uma delas tenha saído da sua boca e acredita-se que a outra fosse mesmo inventada. Do conjunto dos quatro evangelhos se depreende com toda a certeza e segurança que Jesus pensou deixar alguma estrutura depois da sua morte.

“Uns dizem João Batista; outros, Elias; outros ainda, um dos profetas” (Marcos 8, 28) – Os contemporâneos de Jesus conceptualizaram a sua identidade como sendo um profeta. Até mesmo alguns, se não a maioria dos seus discípulos viam em Jesus não o Messias, mas sim um profeta; prova disso é o que dizem os discípulos de Emaús, “um profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e diante de todo o povo” (Lucas 24, 19).

Mesmo encaixando Jesus no contexto dos profetas de Israel, é certamente um profeta diferente de todos os seus antecessores, pois nenhum anterior a ele elegeu 12 discípulos entre os seus muitos seguidores. Sendo o povo de Israel constituído por 12 tribos, é certo que Jesus pretendia criar uma estrutura. E quando estes doze se viram reduzidos a 11 pela morte de um deles, a preocupação dos apóstolos, sobretudo de Pedro, em restaurar o número não pode dever-se a outra coisa que o ser fiel à intenção do Mestre.

Se Jesus tivesse tido o cuidado de chamar um discípulo de cada uma das tribos de Israel, poderíamos concluir que a sua intenção era restaurar, reformar o povo de Israel; mas não foi assim. Ao manter o simbolismo do número 12, Jesus pretendeu criar uma estrutura equiparável ao povo de Israel. Porém, ao não chamar para discípulo uma pessoa de cada tribo de Israel, pretendeu criar uma estrutura nova e não restaurar ou reformular Israel.

Concluímos que Jesus pretendeu criar uma estrutura que desse continuidade à sua obra e deixou até muito claro que essa estrutura, para se manter em pé, devia ter um líder. O primado de Pedro, como já dissemos num texto sobre ele, também se depreende em todos os quatro evangelhos de muitíssimas formas.

Igreja ou Reino de Deus?
Para além de opiniões, teologias ou ideologias, o que contam são os factos. É um facto que a palavra Igreja em grego “Ekklesia” que significa assembleia, aparece 112 vezes no Novo Testamento, a maior parte das vezes nas cartas de Paulo e nas dos outros apóstolos, assim como no livro dos Atos. Como acima dissemos, não aparece no evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito, nem no último, o de João; também não aparece em Lucas e, em Mateus que é precisamente o evangelho do Reino, aparece também a palavra Igreja duas vezes:

(…) tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as forças do Inferno não poderão vencê-la. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”. Mateus 16, 18-19

É provável que Jesus tenha dito isto, se bem que nenhum dos outros evangelhos o mencione, nem sequer o de Marcos, escrito em Roma, que tem como base a pregação de Pedro. Ele mais do que ninguém estaria interessado em afirmar o primado de Pedro sobre os outros apóstolos.

Porém, Marcos não traça um retrato muito favorável de nenhum dos apóstolos, nem sequer de Pedro. Para Marcos, quem descobre e afirma a verdadeira identidade de Jesus não é Pedro em Cesareia de Filipe, como nos conta Mateus, mas sim o centurião romano quando Jesus deu o último suspiro.

Poderíamos concluir que esta frase, no caso de não ser histórica, é pelos menos verdadeira. Ou seja, ainda que esta frase não tivesse sido historicamente proferida por Jesus, “Ipsissima iesum verbum”, pelo contexto de todos os evangelhos referente ao primado de Pedro, expresso tantas vezes e de tão variadas maneiras, a frase é verdadeira porque expressa uma verdade do evangelho.

Se ele não vos der ouvidos, dize-o à igreja. Se nem mesmo à igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um publicano. Mateus 18, 17

Esta frase com toda a certeza não foi proferida por Jesus, trata-se de uma norma de disciplina praticada na comunidade para a qual o evangelista escrevia. Jesus manda perdoar sempre, não dá ninguém por irrecuperável e acredita sempre na conversão; não mandaria, portanto, excluir ninguém do que veio para justos e pecadores.  

Vejamos o número de vezes que as palavras Igreja e Reino aparecem no Novo Testamento:

 

REINO

IGREJA

NOVO TESTAMENTO

162

112

EVANGELHOS

127

2

ATOS E CARTAS

35

110

Em flagrante contraste com a palavra IGREJA que aparece 112 vezes e quase só nos Atos dos apóstolos e nas cartas, a palavra REINO, aparece 162 vezes e destas só 35 vezes aparece no livro dos Atos e nas cartas; as restantes 127 vezes aparecem nos evangelhos. Fica assim demonstrada a importância que o Reino de Deus tinha para Jesus e a pouca importância que este mesmo Reino tinha para a Igreja nascente e por Cristo fundada.

Caminho – verdade – vida (João 14, 6)
O ser humano tem uma dimensão individual e pessoal para a qual o valor a cultivar é a liberdade, e uma dimensão social para a qual o valor a cultivar é a igualdade. Jesus veio ao mundo com dois projetos: um para o ser humano como único, indivisível, independente e livre, e outro para o mesmo ser humano como parte de uma comunidade.

O projeto de Jesus, para o mundo, para a sociedade, para o ser humano enquanto ser social, é o Reino de Deus; o projeto de Jesus para o ser humano enquanto ser individual e pessoal não redutível à comunidade, mas livre e independente, é ele mesmo, Jesus. Jesus veio ao mundo para se propor a si mesmo como caminho, verdade e vida.

Jesus de Nazaré é o caminho de volta para o Pai de onde viemos, Jesus de Nazaré é a verdade plena de Deus e do Homem porque ele é Deus e homem verdadeiro, e é o arquétipo da vida humana, ou seja, o modelo, o paradigma, a narrativa, o mito, a lenda, porque ele e só ele encarnou a humanidade tal como Deus a tinha idealizado ao criar Adão e Eva.

Seja cristão, ateu, agnóstico, muçulmano ou budista, quem quiser ser autêntica e genuinamente humano mede-se em relação a Jesus pois ele é a medida padrão de humanidade. Não há nenhuma alternativa igualmente válida para além de Jesus, pois ele não disse que era um dos caminhos, uma das verdades e uma das vidas. Pelo contrário, disse que ninguém vai ao Pai se não por mim, (João 14, 6) e o que não recolhe comigo, dispersa, pois não há ninguém mais com quem possa recolher. (Mateus 12, 30)

Igreja - Missão - Reino
Depois do Concílio Vaticano II, a Igreja deixou de olhar para o seu umbigo e começou a olhar para o mundo como Jesus olhou e a ver nele o Reino que já está no nosso meio desde que Jesus veio ao mundo, mas ainda não na sua plenitude. A Missão começou com Deus ao enviar o seu filho primogénito ao mundo. O objetivo desta missão sempre foi o de transformar o mundo no Reino de Deus; antes deste momento, o mundo era do pecado dos nossos pais.

A Igreja, como corpo místico de Cristo, não pode ter outro objetivo senão continuar a obra de Cristo. Portanto, o objetivo da sua existência não é implantar-se em todos os cantos desta terra, mas sim levar a Boa Nova do Reino a todos os cantos da Terra.

O objetivo principal não é produzir cristãos, aumentar o número dos seus membros, mas sim juntar-se a todos os homens de boa vontade, de outras religiões, ateus ou agnósticos e, com eles, ajudar na construção de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa e mais fraterna, onde reina a justiça, a paz e a harmonia e o amor entre os povos. Se este tivesse sido o objetivo da Igreja desde início, tal como foi do seu fundador, não teria havido fundamentalismos como a Inquisição, nem guerras santas como a movida pelas cruzadas.

A Igreja não existe para si mesma nem deve pregar-se a si mesma, pois o seu Mestre e fundador não se pregou a si mesmo: a Igreja existe para a Missão, ou seja, para continuar a obra do seu fundador e o objetivo da Missão que é o Reino. Igreja é o que somos, é a nossa identidade, o Reino é a nossa missão, o que fazemos.

Precisamente o evangelho de São Mateus, o evangelho do Reino, recorda-nos no capítulo 25 que ao fim não seremos julgados pelo que somos, pela nossa identidade, por termos sido ou não cristãos, ateus ou muçulmanos, mas pelo que fizemos ou deixámos de fazer, se assistimos ou não assistimos os sedentos, os famintos, os nus, os peregrinos, os presos, os estrangeiros e os doentes. Porque a assistência a estes últimos foi o objetivo da vida de Jesus e da sua vinda ao mundo, este mesmo tem de ser o nosso objetivo.

(…) não vivais preocupados, dizendo: ‘Que vamos comer? Que vamos beber? Como nos vamos vestir?’ Os pagãos é que vivem procurando todas essas coisas. Vosso Pai que está nos céus sabe que precisais de tudo isso. Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo. Mateus 6, 31-33

A nossa Missão ou evangelização é viver Cristo e estender o Reino. Não deve ser primariamente o pregar a figura de Cristo, mas tornar o Reino realidade. Era isto que queria dizer Francisco de Assis quando dizia “Em todo momento fala do evangelho e só quando for necessário usa palavras, a maior parte das vezes não será necessário, a tua vida falará por si”.

Por isso Jesus mesmo nos disse para sermos o sal da Terra e a luz do mundo que são dois símbolos silenciosos cuja identidade não está ligada ao que dizem mas ao que fazem: a sua ação de expor e destruir as trevas e dar cor ao mundo, no caso da luz, e a de preservar, evitar a corrupção e dar sabor e sentido à vida, no caso do sal.

EUCARISTIA: CORPO SACRAMENTAL DE CRISTO
Unus christianus nulus christianus

Dizia Sto. Agostinho, um único cristão, é um cristão nulo. O cristianismo nasceu em comunidade e só pode viver em comunidade. Sem comunidade não há cristianismo. Como todos os animais têm um habitat onde vivem e prosperam, assim o cristão só pode viver e prosperar no seio da comunidade cristã.

A Igreja, um grupo de pessoas unidas na mesma fé, existe como tal e manifesta-se como tal, na Eucaristia. Um clube, uma associação de pessoas que nunca se reúne, deixa de existir como tal, não consegue subsistir. “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome eu estou no meio deles” disse Jesus; portanto, a reunião, o encontro é essencial. Sem eucaristia não há Igreja, tal como sem Igreja não há eucaristia, ou seja, não há nada que celebrar. Como muitos grãos de trigo formam um só pão e como muitas uvas formam um só vinho, assim é a eucaristia: a todos reúne em comunidade.

O nosso corpo físico é formado por triliões de células muito diferentes entre si, como as células da pele, do fígado, dos músculos, do sangue, etc. Cada uma das nossas células é, em si mesma, um ser vivo diferenciado e independente; há de facto seres vivos unicelulares. O que mantém então os triliões de células unidas num só corpo é o código genético que cada uma dessas células tem e que é o mesmo em todas elas.

De facto, quando um dos nossos órgãos deixa de funcionar e nos transplantam um órgão pertencente a outra pessoa, o nosso corpo naturalmente rejeita-o porque esse órgão é constituído por células com um código genético diferente. O que mantém todos os cristãos unidos na Eucaristia é a fé em Jesus Cristo, que é o código genético ou ADN do corpo místico de Cristo.

Os triliões de células do nosso corpo têm o mesmo ADN porque todas elas são filhas de uma mesma célula primigénia, que se formou quando meia célula do nosso pai, o espermatozoide, se uniu a meia célula da nossa mãe. A célula que resultou dessa união, foi o princípio da nossa vida, foi a célula mãe dos triliões de células que formam atualmente o nosso corpo. Assim também o corpo místico de Cristo, que é hoje a Igreja, se originou no próprio Cristo, no próprio corpo físico de Cristo.

Tal como a nossa célula primigénia se implantou no seio da nossa mãe e ali cresceu, prosperou e se foi diferenciando e aumentando em número até formar o nosso corpo físico atual de triliões de células, assim Cristo, “imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criação” (Colossenses 1, 15), foi a primeira célula que, pela incarnação, ao ser implantada no seio do mundo, cresceu e prosperou dando origem à Igreja.

Fé vivida e fé celebrada
A fé, como tantas outras realidades que temos vindo a estudar ao longo de três anos, é tridimensional: a fé vivida, a fé estudada e a fé celebrada.

A fé vivida manifesta-se em obras – Um católico praticante não é o que participa nos sacramentos, mas sim o que vive a sua fé; o que a encarna, o que faz da sua fé comportamento do dia-a-dia. S. Tiago recorda que a fé sem obras é morta. Não são as obras que nos salvam, pois não há obras suficientes que nos fizessem merecer a salvação e, se assim fosse, a vinda de Cristo ao mundo não teria sido precisa. “Sem mim nada podeis fazer, disse o Senhor”, por isso é a fé que nos salva. No entanto uma fé que não se manifesta em obras é inexistente.

A fé celebra-se nos sacramentos – Crescemos na fé quando a praticamos na vida e quando a celebramos nos sacramentos com os outros membros da comunidade com os quais a partilhamos. Foi o próprio Senhor que nos disse que celebrássemos a sua memória. A festa tira-nos do ordinário da nossa vida. O ser humano precisa de festas, de manifestar individual e socialmente aquilo em que acredita.

A eucaristia é o coração da Igreja. No corpo humano, a função do coração é a de ser o motor que move o sangue das células ao coração e do coração às células. Do mesmo modo, a vida do cristão é um vaivém entre a Eucaristia e o mundo. Quando a missa era em latim, no final o sacerdote dizia “Ite missa est” que queria dizer “podeis ir, a missa terminou”, mas também significava “terminou a missa, começa a missão”.

Ao voltarem, (da Missão) os apóstolos contaram a Jesus quanto haviam feito. Ele tomou-os consigo e retirou-se, à parte, para uma cidade chamada Betsaida. Lucas 9, 10.

A fé é um obséquio razoável – (…) estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que a pedir. 1 Pedro, 3, 15. A nossa fé deve também ser objeto de estudo. O Concílio Vaticano I definiu-a como sendo um obséquio razoável. A fé não é racional, pois não se trata de um conhecimento científico, mas também não é irracional, como a superstição. A fé deve ser razoável, humanamente credível, plausível, deve fazer sentido, pois se Deus nos deu uma razão é para fazermos uso dela.

Em relação à eucaristia, já no tempo de Jesus, os judeus se perguntavam como podia ele dar-nos a comer a sua carne e a beber o seu sangue. Estará a convidar-nos para sermos canibais e vampiros? Ainda hoje, se algum ateu, agnóstico ou membro de outras religiões colocar esta questão, muitos cristãos não sabem o que responder. Adiante daremos a nossa resposta.

Cordeiro de Deus… história da eucaristia
Segundo o autor da carta aos hebreus, o objetivo da religião é o de aceder à amizade com Deus. Este objetivo era conseguido pela obediência à lei de Moisés. Porém, mesmo que o espírito seja forte, a carne é fraca quando se prevarica, ou seja, quando a lei era desobedecida a única forma para voltar à amizade com Deus era a de oferecer um sacrifício. Isto não só é verdade na religião judaica, como também em todas as religiões do mundo.

Os sacrifícios impessoais do Antigo Testamento
A única forma de apaziguar a ira divina quando a Lei era violada era restabelecer as boas relações com Deus. Como ninguém é perfeito, sem o sistema sacrificial a Lei seria completamente inútil. O sacrifício tinha diferentes contornos, mas era sempre o sacrifício de algo exterior a mim. O livro do Levítico (16,10) fala-nos do bode expiatório que era um “macho cabrío” sobre o qual eram projetados os pecados do povo, sendo depois mandado para o deserto para lá morrer.

Esta ideia de expiar os pecados alheios, de pagar o justo pelo pecador, está entranhada na nossa natureza. Na monarquia inglesa existia a figura do “weeping boy” que era um pobre desgraçado que era punido em vez do príncipe que, por ser príncipe, não podia ser punido pelo mal que fazia.

Esta mesma ideia encontrei num acampamento de escuteiros; quando um escuteiro cometia alguma falta, não pagava só ele: o castigo era estendido a todos os membros do seu grupo. Do ponto de vista psicológico, esta punição surtia melhor efeito do que se fosse individual e, ao mesmo tempo, transmitia a ideia de que quando pecas, mesmo individualmente, pecas semprecontra a comunidade.

O sacrifício de si mesmo
Jesus é o derradeiro “bode expiatório” da humanidade. Como disse João Batista, ele é o cordeiro de Deus que de uma vez por todas tira o pecado do mundo. O sacrifício de Cristo no contexto da Páscoa judia, o momento que Jesus escolheu para morrer, é o último do Antigo Testamento, porque morreu no nosso lugar, foi o nosso “bode expiatório”. Este mesmo sacrifício é o primeiro da nova aliança porque se trata não de oferecer algo alheio a mim, mas sim de me oferecer a mim mesmo.

Para ser válido, de uma vez por todas, o sacrifício de Jesus tinha de ser perfeito. Uma coisa perfeita é uma coisa singular, não pode ser repetida nem melhorada; assim foi o sacrifício de Jesus, pois ele não podia morrer duas vezes. Foi perfeito o sacrifício de Jesus porque ele mesmo era o templo, o altar, o cordeiro e o sacerdote.

O templo é o lugar onde habita Deus: Jesus era o próprio Deus, por isso era um templo perfeito; o altar era o lugar dentro do templo onde se oferecia o cordeiro: Jesus é o altar porque o sacrifício acontece em si mesmo não é exterior a si; o cordeiro devia ser sem mancha: Jesus foi em tudo igual a nós, exceto no pecado, por isso era um cordeiro perfeitíssimo; o sacerdote da antiga aliança, antes de oferecer um sacrifício pelo povo, devia oferecer um sacrifício por si mesmo para se purificar; Jesus, como Sumo sacerdote, era puro, não precisava de oferecer nenhum sacrifício por si mesmo; por outro lado, o sacerdote era um pontífice, uma ponte entre Deus e os homens; Jesus, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem ao mesmo tempo, era a ponte perfeita entre Deus e o homem. Assim se conclui que não era possível aperfeiçoar o sacrifício de Jesus, pelo que vale para a humanidade de todos os tempos.

Na Última Ceia com os seus discípulos, Jesus celebra, como todo o judeu, a Ceia Pascal. Desta vez, porém, ao pronunciar sobre o pão e o vinho “este é o meu corpo, este é o meu sangue”, Jesus declara-se o Cordeiro Pascal que substitui para sempre os cordeiros da Antiga Aliança. Cristo morreu na hora em que se imolavam no Templo milhares de cordeiros. (Cf. João 19,14). S. Paulo diz, “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” 1 Cor 5,7.

Foi instituída em pão
O homem já foi carnívoro e já foi vegetariano e coletor de frutos. Mas, nessa qualidade, nunca prosperou nem constituiu nenhuma civilização, pois tal como os animais selvagens de hoje em dia, as 24 horas do seu dia eram ocupadas a procurar comida – a vida era uma luta pela sobrevivência.

Com a descoberta da agricultura, sobretudo dos cereais, o homem conquistou a sua independência em relação à Natureza. É possível armazenar os cereais por muitos anos, como o prova a história de José do Egito e, de facto, foram encontrados grãos de trigo no túmulo de Tutankamon com mais de 5 000 anos e que ainda germinaram. Ao ter comida armazenada, o homem tinha tempo para dedicar a outras coisas.

Onde não houve cereais, não houve cultura ou civilização. Isto aconteceu com os índios da América do Norte e com os africanos da África subsaariana. É interessante que a palavra cultura seja ambivalente: tanto se aplica ao cultivo da ciência e da arte como ao cultivo da terra. Como demonstramos já num texto anterior, a cultura europeia assenta essencialmente no cultivo do trigo. A cultura asiática teve como alimento básico o arroz, a do Continente Americano, onde houve cultura, dependeu do cultivo do milho.

Por outro lado, podemos dizer que os cereais integrais são a base da alimentação do ser humano pois fornecem energia lentamente e por muito tempo, quando ingeridos integralmente. A base de qualquer dieta saudável é sempre o cereal.

Se o grão de trigo não morre…
Em verdade, em verdade, vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só. Mas, se morre, produz muito fruto. Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem não faz conta de sua vida neste mundo, há de guardá-la para a vida eterna. João 12, 24-25

A eucaristia revela-nos a verdade da vida que se desprende destas palavras de Jesus. Jesus interpretou a sua morte como sendo necessária para a vida e para nos ensinar que não há vida sem morte nem morte sem vida. Que a morte é uma passagem entre uma forma de vida baseada no espaço e no tempo para a vida eterna, para além do espaço e do tempo.

Aliás é isso mesmo que vemos na Natureza. “Na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma” dizia Lavoisier. Morte e vida sucedem-se uma à outra, sendo a morte só uma passagem e a vida uma constante. A erva cresce e morre nos dentes da gazela, a erva transforma-se na gazela que, por sua vez, morre nos dentes do leão transformando-se em leão. O leão morre e a hiena e os abutres comem-no; estes morrem e são comidos pelos vermes; estes morrem e fecundam a terra, rica em húmus onde volta a crescer a erva. Na cadeia alimentar, tanto na terra como no mar, toda a forma de vida é uma forma de alimento.

Esta é a lei da natureza e o ser humano que vive nela não se rege certamente por outras leis. Agora entendemos a questão do canibalismo ou vampirismo acima levantada. Não vivemos para comer a carne dos outros e beber o seu sangue, mas sim para ser comidos por eles e bebidos por eles. Quem quiser ganhar a sua vida há-de perdê-la. Para viver fisicamente, devemos matar, sejam grãos de trigo, vegetais ou animais como a galinha, o porco, a vaca, mas para viver humanamente com sentido, para viver espiritualmente, devemos morrer, devemos dar-nos aos outros em alimento.

Ninguém tem maior amor que o que dá a vida pelos seus amigos, disse Jesus. Uma mãe vive pelo seu filho e, no princípio da vida, o alimento do bebé provém do corpo dela. Por isso, a mama de donde brota o leite deu origem à palavra mamã. E quando a criança cresce, o primeiro alimento sólido que come é a papa, tradicionalmente constituía por cereais cultivados pelo pai, a quem o bebé aprende a chamar papá.

Beethoven deu a sua vida à música, foi alimento da música, de tal forma que ao fim já nem ouvia. Dedicar-se a uma tarefa humana, a um valor humano, de alma e coração é dar a essa questão a nossa vida é ser alimento para essa questão, assim como foi Ghandi para a independência da Índia, assim como foi Nelson Mandela contra o racismo.

O grão de trigo pode morrer no moinho transformando-se em pão, ou na terra transformando-se noutros grãos de trigo. Mas imaginemos que o grão de trigo não aceitasse morrer nem no moinho nem na terra e que fugisse do moleiro e do semeador: ao fim morreria na mesma, pois todo o organismo vivo morre. Mas como morreria? Morreria apodrecido.

Mas antes de morrer imaginemos que o grão de trigo se perguntava “para que serviu a minha vida, que sentido teve a minha vida, quando me subtraí às leis da natureza e tentei salvar a minha vida do semeador e do moleiro?” Certamente que não teve sentido pois só teria tido sentido se aceitasse morrer. Razão tinha o Senhor Jesus ao dizer que quem se apega à sua vida, quem a retém para si, perde-a e quem a dá ganha-a. Viver é sempre dar a vida por uma causa, e ser alimento de uma causa humana à qual nos entregamos totalmente, pondo toda a carne no assador, como diz uma expressão espanhola, sem reservar nada para si.

Abandonar a eucaristia é abandonar a Igreja
Os primeiros discípulos a abandonar o Mestre fizeram-no porque não entendiam nem aceitavam que Jesus se pudesse dar-se a eles como alimento (João 6, 51-69). Desde aquele tempo até aos nossos dias, os que abandonam a Igreja começam por deixar de participar na Eucaristia, ou seja, deixam de celebrar a memória de Jesus tal como Ele mesmo tinha pedido.

O episódio dos discípulos de Emaús é outro exemplo no qual se prova que o abandono da Eucaristia é o abandono da Igreja e vice-versa. Jesus apanha-os deixando Jerusalém, abandonando a comunidade; durante o caminho, o que Jesus faz ao explicar-lhes as escrituras é como que a Liturgia da Palavra, a primeira parte da missa. Mais tarde, quando sentado à mesa partilha com eles o pão, acontece o ofertório e a comunhão. O voltar a participar na eucaristia levou os discípulos de Emaús de volta a Jerusalém, à vida da comunidade cristã que ali vivia.

SACERDÓCIO: CORPO FÍSICO DE CRISTO
A Missão, segundo Lucas, não é tarefa exclusiva dos 12 Apóstolos, mas sim de todo o discípulo, de todo o cristão. Isto é claro desde o princípio da Igreja: o nome ou título de apóstolo foi dado a todo aquele que atuava como tal, ou seja, ao que pregava o evangelho e não só ao que foi diretamente escolhido por Cristo, como os doze. Paulo e Barnabé são claro exemplo disto: não eram da companhia de Jesus, mas reivindicam com toda a razão o nome de apóstolo.

É hoje mais que claro que na Última Ceia, onde foi instituída a Eucaristia, os comensais não eram só os 12 apóstolos, como retrata Leonardo da Vinci na sua famosa pintura, ou mesmo como descrevem os evangelhos que não incluem nem excluem as discípulas de Jesus, como Maria Madalena e todas as outras que o tinham seguido desde a Galileia e que contribuíam com os seus recursos para o sustento do grupo.

Também podemos concluir que Jesus, como indicou no episódio de Marta e Maria em Betânia em que aceitou que Maria deixasse de lado o serviço doméstico próprio das mulheres, teria admitido algumas mulheres, certamente a sua mãe e Maria Madalena, precisamente na refeição mais importante que ia partilhar com os seus mais chegados. Aliás uma Ceia Pascal judaica começa com o acender das velas e uma oração ritual cantada; este rito era sempre feito pela mãe da casa, neste caso muito possivelmente pela mãe de Jesus. Podemos então concluir que sim, havia mulheres na Última Ceia que se encarregaram do serviço doméstico, mas também haveria mulheres sentadas à mesa com os discípulos, pelo menos Maria, mãe de Jesus e Maria Madalena.

Os sacerdotes de hoje são os sucessores dos apóstolos de Jesus, do círculo mais íntimo dos que o acompanharam desde a Galileia até Jerusalém. A sucessão apostólica que confere hoje e sempre a legitimidade sacerdotal a um indivíduo, refere-se ao rito da imposição de mãos dos 12 apóstolos aos seus sucessores de geração em geração, até aos dias de hoje. O clero protestante não é legítimo, porque Lutero rompeu com essa sucessão ao romper com a Igreja.

Pontifex Maximus
Ou Sumo Pontífice, ou engenheiro máximo de pontes, era o título do imperador romano e é hoje o título do Papa como bispo de Roma. Um dos contributos dos romanos para o mundo antigo foi a criação de estradas e de pontes. Muitas das atuais estradas da Europa assentam sobre as vias ou calçadas romanas. O conceito de ponte é original no mundo antigo; os gregos foram grandes filósofos e artistas, mas fracos construtores e arquitetos. O máximo que fizeram foi o Pártenon de Atenas, uma construção que necessitava de muitas colunas para se manter em pé. Com um arco, os romanos conseguiam unir duas realidades diferentes sobre o vazio que as separava, por exemplo, as margens de um rio.

“O sumo sacerdote é um homem como qualquer outro, mas constituído para representar os homens nas suas relações com Deus”. Hebreus 5:1

Cristo sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, tem um pé em Deus e outro na humanidade: é a verdadeira ponte entre Deus e os homens. Jesus Cristo é o único sacerdote, mediador entre Deus e os homens. O sacerdote católico representa hoje a Cristo, é um alter Christus, é Cristo aqui e agora porque atua “In persona Christi”, em nome de Cristo, como vemos que Pedro e João fizeram quando disseram ao coxo de nascença que pedia esmola à porta do templo: “em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda!” (Atos 3, 6)

Consagrado para um serviço
“Eu estou no meio de vós como aquele que serve”. Lucas 22:27

O sacerdote vive já na terra a vida que todos esperamos viver no Céu, por isso não casa, não acumula riqueza. Como ponte entre Deus e os homens, vive com um pé na terra e o outro no Céu; não vive completamente no Céu, porque tem um corpo físico a satisfazer, nem vive completamente na Terra, porque não vive a vida do comum dos mortais: casar, ter filhos, ter um trabalho ou uma profissão para sustentar a família…

Fiel às duas margens, firmemente assente nelas, não pertence a nenhuma delas pois não está totalmente numa delas: tem um pé em cada uma delas. Como não vive com o resto dos mortais, não vive para si mesmo, não tem vida pessoal, é uma pessoa pública; está, como Cristo, 24 horas por dia inteiramente ao serviço dos outros. Não poderia ser ministro de Cristo se não fosse testemunha e dispensador de outra vida que não a vida terrena, mas também não podia servir os homens se permanecesse completamente alheio às suas vidas e condições.

A ponte suporta o peso dos que passam por ela, é um lugar de passagem, as pessoas não vivem numa ponte, passam por ela. Quem busca afetos que busque outra profissão, outro tipo de vida onde possa encontrá-los. A ponte não vale pela sua beleza, mas pela sua utilidade. A ponte é esquecida, porque a pessoa que a atravessa lembra a margem que deixou e abraça a margem em que vive, mas nem se lembra da ponte que uniu essas duas margens, toma-a como garantia. Do mesmo modo, o sacerdote que serve de intermediário entre Deus e os homens, é um canal, não uma concha.

O sacerdote está sempre chamado a ser ponte e mediador entre os homens, os povos, entre ideias, entre gerações. Mediador, pacificador, reconcilia o fiel consigo mesmo, com o próximo e com Deus. É por isso instrumento da misericórdia divina.

Abandono do sacramento de reconciliação
Em relação ao corpo místico de Cristo, as pessoas abandonam a Igreja ao abandonar a eucaristia; em relação ao corpo físico de Cristo, muitos abandonam a Igreja ao abandonar o sacramento da reconciliação, deixam de estar em comunhão com Cristo ao rejeitarem no sacerdote o poder ou a faculdade de perdoar os pecados em nome de Cristo.

Ultimamente, muitos outros abandonos da Igreja se devem ao escândalo que certos sacerdotes deram não vivendo o seu ministério como deviam e como prometeram perante a Igreja no dia da sua ordenação ou imposição de mãos. Os que abandonaram a Igreja sentiram-se defraudados pelo comportamento do sacerdote que, segundo eles, deveria ser santo.

A Igreja é santa porque foi fundada por Cristo, mas é humana porque é constituída por pessoas humanas com os seus defeitos. Um certo idolatrar do sacerdote, promovido pelo próprio ou devido à veneração dos fiéis, é também responsável por este escândalo, quando se percebe que o sacerdote não é a nível pessoal quem parece ser em público.

Os fiéis devem recordar que o sacerdote é só um intermediário, é só uma ponte, que a sua fé é em Cristo, que o sacerdote por muito bem que O represente nunca O representa perfeitamente; só Cristo é Santo, Santo, Santo. Um representante é um ator; há bons atores e maus atores. O sacerdote santo como o Santo Cura de Ars e tantos outros, representa bem a Cristo; outros há que o representam mal, em virtude de certos comportamentos.

Como alguém dizia, faz mais ruído na floresta uma árvore que cai que mil árvores que crescem. Os fiéis devem também recordar que, por cada sacerdote que escandaliza, há 20 ou mais que edificam. Os 20 que edificam deveriam ser razão mais que suficiente para os fiéis se manterem na Igreja pondo os olhos em Cristo. Os primeiros sacerdotes, os 12 que Jesus escolheu também tinham os seus defeitos, Pedro negou-o, Judas atraiçoou-o, os restantes abandonaram-no e, no entanto, Jesus não os rejeitou por isso nem rejeitou o seu projeto – a Igreja. 

Conclusão
A Igreja é Cristo no seu corpo místico, a Eucaristia é Cristo no seu corpo sacramental, o sacerdote é Cristo no seu corpo físico. Igreja, Eucaristia e Sacerdote representam a Cristo aqui e agora e atuam em Seu nome. 


Pe. Jorge Amaro, IMC


1 de maio de 2021

3 Marias: Mãe de Jesus - Madalena - Mulher de Cleopas

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“As três Marias” é uma expressão popular que se pode aplicar a qualquer grupo de três mulheres que façam algo em conjunto; é nome de filmes e novelas, é também o nome de três estrelas extremamente brilhantes na constelação de Oríon.

O nome “três Marias” refere-se às três mulheres que estavam ao pé da cruz de Jesus no momento da sua crucificação. No referente à identidade destas mulheres, Marcos (15, 40-41) diz que são Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago Menor, irmão do Senhor e Salomé. No início do capítulo seguinte, Marcos diz que estas mesmas três mulheres são as que visitam o sepulcro no primeiro dia da semana.

Em Mateus (27, 55–56) são Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago Menor e mãe dos filhos de Zebedeu. Lucas não menciona, mas não deviam estar longe, pois estão presentes na sua sepultura se bem que não aos pés da cruz do Senhor (23, 55-56). A sua identidade, porém, é-nos revelada quando vão ao sepulcro, como sendo Maria Madalena, Joana e a mãe de Tiago Menor, irmão do Senhor. João coloca aos pés da cruz do Senhor Maria, sua mãe, a sua irmã também chamada Maria e mulher de Cléofas e Maria Madalena.

Por ser mencionada nos quatro evangelhos, damos Maria Madalena como segura aos pés da cruz do Senhor, como diz João, ou à distância, como dizem os sinópticos. Depois desta, a mais provável é a mãe de Tiago Menor e irmão do Senhor, mencionada por Marcos, Mateus e Lucas. Se Cléofas, como diz a tradição, é irmão de José, esposo de Maria, ele e a sua esposa, são cunhados de Maria. A terceira Maria seria então a mãe de Tiago Menor e irmão do Senhor que João menciona como sendo a mulher de Cléofas.

Como Maria, a mãe do Senhor, só é mencionada no evangelho de João, o mais provável é que não tenha estado lá e que no seu lugar esteja a mãe dos filhos de Zebedeu, como menciona Mateus e que seria a Salomé do evangelho de Marcos.

Assim sendo, aos pés da cruz do Senhor ou à distância, estavam Maria Madalena, Maria mãe de Tiago Menor também conhecida por mulher de Cléofas, e Maria, mãe dos filhos de Zebedeu (Tiago Maior e João), também conhecida por Salomé.  

Se em vez de nos referimos às mulheres testemunhas da morte, sepultura e ressurreição de Jesus, nos referirmos às três mulheres mais importantes da vida de Jesus, segundo nos falam os evangelhos, Maria, sua mãe, vem em primeiro lugar, seguida de Maria Madalena e Maria de Betânia. Ao fazermos uma síntese das mulheres mais significativas para Jesus durante a sua vida e no fim desta, ficamos com Maria, sua mãe, Maria Madalena, líder das discípulas de Jesus e uma incógnita Maria sobre a qual não existe consenso, pelo que a designamos como Maria X.

Neste texto falaremos de Maria, mãe do Senhor e de Maria Madalena. Sob o título de Maria X falaremos das outras discípulas de Jesus, com nome ou sem nome, assim como de todas as mulheres que se cruzaram com o Senhor e que fizeram parte do seu ministério.

MARIA – MÃE DE JESUS
Os nossos irmãos protestantes têm uma certa relutância em chamar a Maria mãe de Deus. Porém é lógico que assim seja, o que pode ser demonstrado por um silogismo simples. O silogismo é uma forma logico-dedutiva de raciocinar que consta de duas afirmações ou premissas verdadeiras com uma conclusão lógica deduzida das duas premissas. Primeira premissa: Maria é mãe de Jesus, segunda premissa Jesus é Deus, logo Maria é mãe de Deus. Se as duas premissas são verdadeiras até para os protestantes, não aceitar que Maria é mãe de Deus é desafiar a lógica.

A nossa mãe é histórica e cronologicamente anterior a nós, não é neste sentido que Maria é mãe de Deus, pois não preexiste a Deus Pai nem à segunda pessoa da Santíssima Trindade. Maria é mãe do Verbo encarnado, por isso também têm alguma razão os protestantes quando dizem que Maria é mãe só da parte humana de Jesus. Porém Jesus é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus; tal como quando meia célula proveniente do homem se une a meia célula proveniente da mulher, formando uma célula indivisível, assim também a união da natureza divina e humana na pessoa de Jesus são indivisíveis.

Algumas parábolas de Jesus ilustram a encarnação de Deus como um casamento entre o filho de Deus e a humanidade. Quando Deus enviou o seu filho ao mundo casou com a humanidade; o casamento é a união de dois destinos num só destino. O matrimónio é indissolúvel, por isso a segunda pessoa da Santíssima Trindade possui um corpo humano, ainda hoje sentado à direita do Pai. Foi isso mesmo que nos quis dizer Jesus quando disse que nos ia preparar um lugar; Jesus levou para o Céu a nossa humanidade.

Maria ficou a ser mãe da segunda pessoa da Santíssima Trindade no momento em que a segunda pessoa da Santíssima Trindade encarnou no tempo em Jesus de Nazaré. Maria é hoje mãe de Deus porque é mãe da segunda pessoa da Santíssima Trindade.

Apesar de ser mãe de Deus, Maria não é divina, não é Deus, permanece humana pois é a sua humanidade que a liga a Deus, não a sua divindade que é de todo inexistente. A existência de Maria, para além de dar um rosto humano ao filho de Deus, leva o género feminino para um Céu excessivamente masculinizado e patriarcal, representando hoje o rosto feminino de Deus.

É neste sentido que o Papa João Paulo I disse um dia que Deus não é só Pai, também é mãe. Se Jesus representa a Deus na sua masculinidade e na sua paternidade, Maria, sua mãe, passou a representar a Deus na sua maternidade e feminilidade. Graças a Maria, temos uma visão mais equilibrada de Deus; por ela e com ela, o ser humano reconcilia-se com as suas raízes, com o tempo em que conceptualizava a Deus como Mãe. De facto, nos primórdios da civilização humana, na mente do homem primitivo, Deus antes de ser Pai foi Mãe.

Conceptualização de Deus como Mãe
Somos o objeto do amor imortal de Deus. Sabemos: Ele tem sempre os olhos postos em nós, mesmo quando parece estar escuro. Ele é o nosso pai; mas acima de tudo, Ele é nossa mãe. Papa João Paulo I – Angelus, 10 de setembro e 1978

Segundo as lendas contadas pelos antigos para conseguirem os seus objetivos políticos “Deus é Pai”. Segundo o que realmente sabemos, “Deus é Mãe”. João Paulo I – numa audiência com bispos filipinos a 28 de setembro de 1978.

Existe absoluto consenso entre os antropólogos de que a primeira divindade adorada pelos seres humanos era uma deusa, não um deus. Reverência era dada à divindade como a mãe de todas as coisas vivas, e era identificada com a terra ou o solo. A terra, até hoje, é feminina na maior parte das línguas e mitologias de todo mundo. O facto de ainda hoje nos referirmos à Natureza como “Mãe Natureza” é uma prova incontornável de que na mente do homem primitivo o Ser Superior em que a humanidade sempre acreditou era mulher, não homem, Deusa não Deus.

Os homens primitivos observam como a vida das plantas nasce ou brota da terra, o mesmo acontecendo com as fêmeas dos animais e sem exceção com as fêmeas humanas. A fertilidade da fêmea humana era a origem tanto dos varões como das mulheres. A mulher era dadora de vida individual e de imortalidade para a sua tribo. Além do dom reprodutivo da própria vida, o homem também era atraído pela mulher por prazer e alívio sexual.

Como a conexão entre o ato sexual e o parto ainda não tinha sido estabelecida, as mulheres da tribo detinham o verdadeiro poder. A inteligência dos homens primitivos era ainda muito reduzida, ainda viviam em simbiose com a Natureza, como se a ela estivessem ligados por um cordão umbilical, não destacados dela, como hoje nos entendemos; a autoconsciência era ainda muito reduzida.

Pela inteligência que hoje possuímos, torna-se difícil entender como os humanos não se davam conta de que os bebés eram o resultado de um ato sexual, mas assim era, porque a causa, o ato sexual e o efeito estavam separados por nove meses; era demasiado tempo para que os primitivos pudessem estabelecer uma ligação de causa-efeito.

A analogia sobre o melhor veneno para matar ratos ajuda-nos a entender este ponto. Se colocarmos um determinado veneno de cor amarela num canto da casa um rato passa por ali e come o veneno e morre logo a seguir; os outros ratos são capazes de estabelecer uma ligação de causa e feito e nenhum outro rato tocará no veneno.

Porém, em vez do pó amarelo podemos colocar um outro pó apetitoso que não provoca nada, mas liquefaz o sangue de tal modo que se o rato que o comeu tiver uma luta ou um acidente e sangrar, sangra até à morte. Como o efeito está longe da causa, os ratos não conseguem estabelecer a conexão. Recordemos que houve um tempo em que a nossa inteligência não era muito superior à do rato de hoje.

Conceptualização de Deus como Pai
Quando a conexão entre o coito e o parto foi estabelecida, o estatuto do homem começou a subir. O varão começou a ser então percebido como crucial para o processo reprodutivo que garantia a vida. A deusa original da Mãe Terra passou então a ser complementada por um consorte, primeiramente pensado como o Deus Pai do Céu. A chuva que ele envia do céu é o sémen divino que vai engravidar a Mãe Terra para que a vida possa dela brotar. No caso do coito, o homem começa a ter consciência de que a mulher é só o terreno fértil onde ele coloca o sémen, a semente do ser humano.

Com estes pensamentos, nasceu a autoconsciência do ser humano e a oposição do Ego à Natureza, do pensamento ao instinto. Pensa-se que a autoconsciência tenha nascido uns 7 000 anos antes de Cristo. O ser humano já não se vê ligado à Natureza por uma espécie de cordão umbilical, mas contraposto a esta desde o momento em que estabelece uma diferença entre a pessoa e o solo que sustenta a vida da pessoa.  

A história de Abraão, é a história de um homem que por obediência a um chamamento que escuta e sente no interior do seu Eu, se emancipa, rompe os laços com a terra que o viu nascer, Ur, e empreende uma viagem em busca da sua identidade e do Deus que a sustenta. O Deus Céu, o Deus Pai passa a ser agora mais importante que a Mãe Natureza, pois esta, sem a chuva vinda de cima, nada podia produzir. Este Deus Pai promete a Abraão uma grande descendência e obriga-o a romper com o culto dos sacrifícios humanos oferecidos às deusas da fertilidade.

Crescei, multiplicai-vos e dominai a terra (Genesis 1,28). A sobrevivência passa agora a ser menos uma função das capacidades reprodutivas da mulher e mais uma função da capacidade do homem de fazer a Natureza atender às suas necessidades. É esta a grande diferença entre o Neanderthal e o Homo Sapiens: o Neanderthal adaptava-se à natureza, o Homo Sapiens adapta a natureza a si mesmo.

A partir desta altura, Deus é masculino, Pai e dominador absoluto. O ser humano não só domina a terra e a natureza, mas também a mulher que era imagem e semelhança da Natureza. A chave da fertilidade para a terra era a chuva que vinha do alto e era enviada por Deus Pai. A fertilidade da mulher vem também de fora dela, pois é o homem que deposita nela a semente da qual surge o ser humano; depende, portanto, da vontade do varão e não da vontade da mulher.

Desde este tempo, até à descoberta do óvulo em 1928, a mulher era passiva no ato de dar à luz, era entendida apenas como o terreno onde crescia o ser humano, não se sabia que metade do material genético provinha dela como se sabe hoje. S. Tomás chamava ao sémen humano o homúnculo, ou seja, o pequeno homem. O ato de benzer com água que jorra do hissope, tão parecido com o ato de ejaculação do varão, faz-nos recordar o quão atado ainda está o ato de bênção ao domínio do varão.

Maria e a restauração da maternidade e feminilidade divinas
Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os que eram sujeitos à Lei, e todos recebermos a dignidade de filhos. Gálatas 4, 4-5

Maria pode ser muito bem vista como uma deusa pois, por ela e nela, foi o mundo recriado ou salvo. De Maria e por Maria nasceu Jesus, sem concurso de varão, tal como o homem primitivo entendia que os seres humanos vinham ao mundo. Do ponto de vista humano, ela e só ela é protagonista, o varão não tem arte nem parte na vinda de Cristo ao mundo, na encarnação de Deus em ser humano.

Por isso, vemos em Maria a reposição da verdade, a tão esperada libertação da mulher da tutela e da escravidão a que o varão a submeteu ao longo da História. Em Maria, a mulher vê-se vingada. Afinal, Deus precisou de uma mulher para vir ao mundo e não de um homem. S. Paulo di-lo de uma maneira clara, Cristo é nascido de mulher por obra e graça do Espírito Santo, sem concurso de varão.

Contraposta a um mundo patriarcal onde a mulher é sempre propriedade de um varão, pertence ao pai até este a ceder ou mesmo vender ao futuro marido, em função de quem vive o resto dos seus dias, Maria é uma mulher livre da tutela do varão e não vive em função de nenhum varão, a não ser do seu filho. Isto é particularmente visível no livro sagrado dos muçulmanos, onde Maria é o único nome de mulher que ali aparece e a quem é dedicado um longo capítulo. Todas as outras mulheres ali mencionadas nunca aparecem com o nome próprio. Por exemplo fala-se de Sara, mas não como Sara, mas sim como mulher de Abraão; de Rebeca, mas não como Rebeca, mas sim como mulher de Isaac.

Em Maria dá-se uma compensação e um reequilíbrio entre o feminino e o masculino; em Maria dá-se uma restauração do poder feminino, os valores de virgindade e maternidade. O poder masculino do sexo foi destronado em Maria. Na sua Assunção, Maria leva a sua feminilidade para um Céu excessivamente masculino, habitado por Deus Pai e miríades de anjos masculinos e, de lá, recorda-nos como o papa João Paulo I o fez no seu tempo, que Deus é tanto Pai como Mãe e é até mais Mãe que Pai.

MARIA X
A outra Maria, não sabemos ao certo quem é. Queremos por isso que represente todas as mulheres que se cruzaram com Jesus. A humanidade de Jesus, o seu carácter, a sua personalidade, a sua forma de ser, é-nos revelada mais pela forma como se relacionou com as pessoas que se cruzaram no seu caminho do que pelos seus sermões e milagres. Vejamos então como se relacionou Jesus com as mulheres do seu tempo.

Uma história de vexame, humilhação, abuso e submissão
(…) como é da roupa que sai a traça, assim é da mulher que procede a malícia feminina. Menos dano te causará a malvadez de um homem do que a bondade de uma mulher (…) Eclesiástico Ou Bem Sira 42, 13-14

Desde que o varão estabeleceu a ligação entre o ato sexual e o nascimento, começou uma história de domínio da mulher em todas as culturas e civilizações que existiram à face da terra até ao presente momento. Em todas as cosmogonias, a mulher é culpada pela vinda do mal ao mundo; a cosmogonia judaica do Génesis e a caixa de Pandora da mitologia grega são dois exemplos retirados da cultura ocidental.

Não precisamos de ir ao passado para encontrar exemplos de abusos contra a mulher que representa um pouco mais de metade da população mundial. Quando encontramos abusos no momento presente, debaixo do nosso próprio nariz, em pleno século XXI não é difícil imaginar o que terá acontecido ao longo da História anterior a nós.

Nyotaimori – É o nome dos restaurantes japoneses onde a comida é servida em cima do corpo nu de uma mulher, geralmente uma adolescente. Muito popular no Japão e em muitos países para onde os japoneses emigraram, é algo impensável na cultura ocidental.

Se pensamos que o abuso da mulher divide o mundo rico do mundo pobre, estamos enganados. O abuso da mulher e a sua submissão, como dissemos, é comum a todas as culturas, a umas mais que a outras. A cultura ocidental é onde se abusa menos; prova disso é mesmo este restaurante impensável no pais vizinho do Japão, as Filipinas, culturalmente não muito distinto, sendo a única diferença marcada entre os dois a religião. As Filipinas são um pais cristão desde há 500 anos a esta parte e isso faz a diferença.  

O cristianismo é fundamentalmente uma religião patriarcal, mas quando a comparamos com todas as outras religiões e culturas dela resultantes é um mal menor. Foi no mundo ocidental que surgiu o movimento de libertação da mulher e é ainda na cultura ocidental onde a mulher mais se iguala ao varão em dignidade e direitos.

Apedrejamento da mulher adúltera – não me refiro ao episódio evangélico, mas a uma prática contemporânea em certos países muçulmanos, como o Afeganistão e o Paquistão. Se pensarmos que Jesus perdoou uma mulher apanhada em adultério há dois mil anos, parece impensável que as mulheres ainda hoje sofram esta pena capital, executada tantas vezes por hipócritas adúlteros. O mesmo pecado não tem o mesmo peso entre o homem e a mulher. O que Jesus quis dizer é que tão adúltero é o homem com a mulher, a mulher não comete o ato de adultério sozinha, porém só a mulher é punida.

Epidemia de violações na Índia – é notícia dos nossos dias a violação de meninas na Índia e a impunidade endémica que se verifica na sociedade e sobretudo nos tribunais e polícia. É frequente escutar em tribunais que a culpa é dela que não ia bem vestida, como se a mulher não fosse livre de se vestir como quiser para agradar a si mesma, ao seu marido ou ao seu namorado. Para este tipo de homens que não têm controlo sobre os seus impulsos, as mulheres têm que ir vestidas como um saco e burca para evitar espoletar a luxúria masculina.

Formas de vestir – a burca e o saco que vestem as mulheres muçulmanas em certos países é a forma mais deformadora da beleza feminina. Como se a beleza do corpo da mulher fosse intrinsecamente má, ou intrinsecamente provocadora. Uma mulher toda tapada dos pés à cabeça deslocando-se dentro de um saco, é como uma prisão ambulante. Se as formas e a beleza feminina perturbam alguns, o problema não está nessas formas e nessa beleza queridas e criadas por Deus; o problema e a maldade está em quem vê e interpreta.  

Circuncisão ou mutilação – na maior parte dos países de África ainda se pratica a circuncisão masculina que é relativamente simples e sem problemas; o mesmo não acontece com a circuncisão feminina. A circuncisão como preceito religioso é proveniente de Israel, mas ali nunca existiu a circuncisão feminina, pois a prática da religião era coisa de homens e não de mulheres.

A circuncisão feminina nasceu como instrumento de dominação, para limitar o prazer sexual das mulheres quando só a ponta do clítoris é cortada; esta é a circuncisão cristã da Etiópia. A circuncisão muçulmana consta da erradicação do clitóris desde a sua raiz de tal forma que uma mulher muçulmana nunca sinta o prazer sexual.

Rapto da noiva – na Etiópia, onde vivi como missionário, para além da circuncisão feminina, um outro instrumento de humilhação das mulheres é o ato do casamento. O varão escolhe a sua esposa e um belo dia, sem esta saber, rapta-a; assim, esta acaba casada contra a sua vontade com alguém que muitas vezes nunca viu. Não estou a falar do passado, estou a falar do que vivi na Etiópia e do que acontece ainda hoje.

Tudo isto porque o casamento tradicional fica muito caro; os pais das donzelas pedem preços exorbitantes para ceder a sua filha, então os noivos raptam-na e, depois da primeira noite, o preço desce vertiginosamente.

Virgindade física – sempre a entendi como objeto de domínio, vexação e humilhação. Por questões de anatomia feminina, a vagina está parcialmente fechada para evitar a entrada de agentes patogénicos que levariam a infeções. Não existe virgindade física masculina porque, sendo a uretra no homem mais longa que na mulher, as infeções são menos frequentes.

O uso cultural deste detalhe da anatomia feminina para controlar o comportamento da mulher em matéria sexual tem sido um instrumento de opressão ao longo da História em quase todas as culturas. Acuso a minha própria Igreja de ser conivente com esta ideologia, quando exalta a virgindade feminina esquecendo-se da masculina. Na Igreja quando se usa o termo “virgem” sempre nos referimos à mulher e não ao varão. Acaso há valores masculinos e valores femininos?

Violência doméstica – “quanto mais me bates mais gosto de ti” diz um provérbio português. Pobres mulheres que são levadas a olhar para a violência como normal, como fazendo parte do matrimónio. Muitas mulheres vivem um autêntico inferno matrimonial sem terem ninguém que as ajude, sofrem muitas vezes em silêncio praticamente toda a sua vida matrimonial.

Denunciar estes delitos numa sociedade onde a violência doméstica é vista como normal, agrava a situação. Porém a impunidade também a agrava e às vezes a denúncia já não vai a tempo. Todos os anos morrem mulheres nos países ocidentais, vítimas de violência doméstica e muitas mais no resto dos países.

Senhora de deveres não de direitos – em todos os países, a mulher é obrigada aos mesmos deveres que o varão e a muitos mais que o varão; porém, quando se trata de direitos, este tem mais que a mulher. Na Arábia Saudita, só agora a mulher foi legalmente autorizada a conduzir um carro; nos EUA, a mulher só alcançou o direito de voto a partir do princípio do século passado, em 1920. Em todos os países do mundo ocidental, mesmo fazendo o mesmo trabalho que o varão e às vezes com mais eficiência, a mulher recebe um salário que é sempre mais baixo.

A mulher antes de Jesus
“Mulher, perna quebrada e em casa” diz o provérbio português. A mulher devia viver fechada em casa e dedicar-se à vida doméstica. Moía o grão, fazia o pão, cozinhava, fiava, tecia, remendava, lavava a roupa, cuidava das crianças, lavava o marido, as suas mãos, face e pés e tratava-o por Senhor.

Todo o varão judeu no recitar da sua Shema Israel, Escuta Israel Amarás o Senhor teu Deus…, oração que funcionava com um credo para todo o judeu varão, a determinado momento depois de dar graças por tantos benefícios recebidos de Deus, dava também graças a Deus por o ter feito varão e não mulher.

A mulher é sempre vista como suspeita, frívola, sensual, perigosa; é interessante que a palavra “bruxo” em muitas línguas tenha uma conotação positiva ou não tão negativa como a palavra “bruxa” que é sempre negativa. A mulher era tida como preguiçosa, mexeriqueira, desorganizada, ignorante, pouco inteligente, tenho de viver submetida ao varão. De facto, era sempre propriedade do pai, até ser cedida por este e começar a ser propriedade do marido. Na rua, nunca andava sozinha, mas sempre acompanhada por um varão da família.

Não tinha deveres religiosos, porque era difícil que estivesse pura para poder praticar a religião. Todos os meses ficava impura 5 ou mais dias; quando dava à luz um varão ficava impura por uma semana; se desse à luz uma menina, ficava impura por duas semanas. Não era obrigada a ir a Jerusalém, nem ao Templo nem a pagar o imposto do templo; aliás, não teria com que pagar, pois a mulher não podia ter nada seu.

Por qualquer razão, porque não cozinhava bem, porque o marido encontrou outra mais bonita e mais jovem, ou até por mau hálito, uma mulher podia ser forçada a divorciar-se. Mas a mulher, nem que quisesse, não podia divorciar-se do marido. Se era repudiada pelo marido e se ainda fosse jovem, a solução seria a prostituição; se já não fosse jovem, partilharia a mesma sorte de tantas viúvas em Israel, abusadas e vituperadas.

A mulher depois de Jesus
Passamos por cima de Jesus para falar da forma com os primeiros cristãos tratavam as mulheres. Alguma influência da forma como Jesus tratava as mulheres ainda se encontra aqui e ali, quando nos damos conta da importância de certas mulheres na expansão do Cristianismo, sobretudo de mulheres que pertenciam à alta sociedade.

Porém, logo após a morte de Jesus, a Igreja nascente deixou-se levar muito mais pela cultura circundante do que pelo comportamento do Mestre em relação às mulheres; e isto acentuou-se aina mais quando o mundo antigo, culturalmente superior, foi conquistado pelos povos sem cultura do norte da Europa.

Propositadamente, deixámos a forma como Jesus se relacionava com as mulheres do seu tempo para o fim, para verificarmos que contrasta tanto com a forma como os varões tratavam a mulher antes dele como depois dele. Jesus foi um caso à parte sem antecedentes nem consequentes por muitos séculos.

O teólogo ou intelectual ou ideólogo dos primeiros tempos da Igreja é certamente S. Paulo e nenhum dos pescadores que Jesus escolheu como discípulos. Vejamos como pensava S. Paulo para daí inferir como eram tratadas as mulheres logo que Jesus deixou este mundo.

(…) as mulheres guardem silêncio nas reuniões. Não lhes é permitido tomar a palavra, mas que sejam submissas, como diz também a Lei. Se desejam informar-se sobre algum assunto, perguntem a seus maridos, em casa. Pois não fica bem para a mulher falar numa reunião. 1 Coríntios 14, 34-35

O homem não deve cobrir a cabeça, já que ele é imagem e reflexo de Deus, ao passo que a mulher é reflexo do homem. Pois a mulher é que foi tirada do homem e não o homem tirado da mulher. Mais: a mulher foi criada por causa do homem e não o homem por causa da mulher. 1 Coríntios 11, 7-9

Durante a instrução, a mulher fique escutando em silêncio, com toda a submissão. Não permito que a mulher ensine, nem que mande no homem. Ela que fique em silêncio. Com efeito, Adão foi formado primeiro; Eva, depois. E não foi Adão que se deixou seduzir, mas a mulher é que foi seduzida e se tornou culpada de transgressão. No entanto, ela será salva pela geração de filhos, se, perseverarem na fé, no amor e na santidade, com bom senso, unida à modéstia. 1 Timóteo 2, 11-15

Já em plena Idade Média, o grande teólogo Tomás de Aquino defende que a mulher é de uma natureza inferior ao homem, por essa razão o inferior deve servir o superior. Para ele não existiria nenhum impedimento para a ordenação das mulheres se estas fossem iguais ao homem em dignidade. E conclui que como não podemos ordenar um escravo sacerdote, tampouco se pode ordenar uma mulher.

Jesus e as mulheres do seu tempo
Mesmo do ponto de vista humano, colocando a fé de parte, Jesus é certamente a pessoa que chegou mais alto em humanidade, Ele e só ele pode ser considerado modelo, paradigma ou arquétipo de humanidade. Jesus é a medida padrão de humanidade; por isso, quando queremos saber se alguém é genuína ou autenticamente humano, é com Ele que nos comparamos e se procuramos ser 100% humanos é em relação a ele que nos medimos.

Igualdade de género
Nem antes nem depois de Jesus houve alguém em toda a História da humanidade que tenha tratado as mulheres de igual para igual, com a mesma dignidade e respeito que os homens, nem sequer os apóstolos, seus seguidores imediatos, assim trataram as mulheres; pelo contrário, imediatamente se deixaram influenciar pela cultura vigente no mundo circundante.

Habituadas ao tratamento que tinham tido com Jesus, as mulheres devem ter tido algum protagonismo na comunidade cristã após a morte de Jesus. Isto explicaria as duras palavras de S. Paulo como uma tentativa para as fazer regressar ao lugar que a cultura circundante lhes atribuía. S. Paulo, para as rebaixar à sua condição de inferiores, chega a citar o capítulo segundo do Génesis, para dizer que foram criadas em segundo lugar, em função do Homem.

Fulminou todos os preconceitos contra as mulheres
Em clara oposição e contraste com S. Paulo, ao falar do divórcio, Jesus citou antes Génesis 1, onde se diz “homem e mulher os criou”, afirmando assim a sua convicção da igualdade de género. Jesus é o único fundador de religião que nunca fez uma afirmação depreciativa sobre a mulher, nem as prostitutas ele criticou. Não fez como os rabinos do seu tempo, nunca alertou ninguém sobre o perigo no trato com elas pelos seus truques sedutores. Pelo contrário, advertiu os homens contra a sua própria luxúria e exortou-os a assumir a responsabilidade pelos seus impulsos e instintos. (Mateus 5,28-29)

Ignorando completamente o código de pureza, nunca as considerou como fonte de contaminação; falava com elas tanto em público com em privado, e comia com elas assim como com os que a sociedade declarava pecadores e proscritos. As mulheres sentiam-se bem e seguras na sua companhia; talvez por isso e apesar de todos os discípulos varões o terem abandonado, elas nunca o fizeram e foram as únicas testemunhas da sua morte, sepultura e Ressurreição.

Teve mulheres discípulas
Jesus percorria cidades e povoados proclamando e anunciando a Boa-Nova do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, e também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças: Maria, chamada Madalena, de quem saíram sete demônios; Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e muitas outras mulheres, que os ajudavam com seus bens. Lucas 8, 1-3

Só Lucas admite abertamente que Jesus tinha mulheres discípulas que o seguiam tal como os doze. Porém, os outros evangelistas, por muito que escondessem não conseguiram ocultar a verdade dos factos e, ao mencionarem que aos pés da cruz do mestre ou à distância estavam mulheres, tiveram que dizer que não estavam ali por casualidade, mas que o tinham acompanhado desde a Galileia.

As mulheres eram protagonistas nas suas parábolas
Dentro do tema da igualdade de género, porque Jesus pregava tanto para homens como para mulheres, tinha sempre o cuidado de incluir de forma equilibrada nas suas parábolas protagonistas homens e mulheres. Assim, ao contar a parábola da ovelha perdida, (Mateus 18,12-14) conta também a da moeda perdida (Lucas 15,8-10), a parábola do semeador (Marcos 4, 1-20) e a da levedura (Lucas 13, 20-21).

Na parábola do filho pródigo como as mulheres não podiam ter propriedades, apresenta um Pai com uma personalidade marcadamente feminina e maternal. Rembrandt soube captar este aspeto na sua pintura, onde se vê claramente que o Pai tem uma mão masculina – a que está sobre o ombro do filho – e uma feminina – a que está mais abaixo, sobre o coração do filho.

Opôs-se aos clichés da maternidade e trabalho doméstico
Enquanto Jesus assim falava, uma mulher levantou a voz no meio da multidão e lhe disse: “Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram”. Ele respondeu: “Felizes, sobretudo, são os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática”. Lucas 11, 27-28

Neste episódio, a maternidade é colocada como sendo o ideal mais alto, quase obrigatório para a mulher, algo como a sua razão de ser, o seu lugar na sociedade. Jesus não desvaloriza nem a sua própria mãe nem o valor da maternidade na sua resposta, mas coloca-o em segundo lugar: o mais importante para todo o ser humano é ouvir a palavra de Deus e colocá-la em prática, tanto para homens como para mulheres.

Implicitamente neste texto coloca-se também o valor da paternidade, tão importante como a maternidade; a sobrevalor-ação da maternidade tem muitas vezes implícita a infra-valoração da paternidade e a aceitação da prática comum do pai ausente. Uma família humana equilibrada requer menos mãe e mais pai, menos a presença de uma mãe galinha e mais a presença de um pai solícito.

Implicitamente também está neste texto a aceitação de que a mulher também pode realizar-se profissionalmente, que a maternidade não deve ser um impedimento para que esta realize qualquer outra vocação. A maternidade é, como a paternidade, uma vocação básica e comum a mulheres e homens; por isso, não conta como vocação profissional.

 “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda, pois, que ela venha ajudar-me!” O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu preocupas-te e andas agitada com muitas coisas. No entanto, uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”. Lucas 10, 40-42

Para além da maternidade, o outro serviço relegado à mulher era o serviço doméstico. O lugar reservado à mulher na sociedade era o de ficar em casa; a vida pública era só para os homens. Marta recorda esse estereótipo a Jesus quando implicitamente lhe diz que a sua irmã Maria está a comportar-se como homem na sua atitude de escutar o mestre como discípula.

Numa sociedade onde as mulheres nem sequer tinham deveres religiosos, como pagar o imposto do Templo, visitar Jerusalém, Jesus recorda a Marta que na sua escola há lugar para discípulas. Mais uma vez, fica aqui implícita uma oposição ao serviço doméstico como única realização profissional feminina; esta realização deve estar ao alcance de todos. O serviço doméstico dever ser feito sim, mas não é uma vocação, pelo que deve ser dividido por dois ou até por todos os restantes membros de uma família.

Jesus propõe certas mulheres como modelos a seguir
Nos dias de Jesus, quem colocasse uma mulher como modelo do que quer que fosse arriscava-se a ser apedrejado ou ridicularizado. Jesus não hesitou, contra os ventos e marés culturais do tempo, em utilizar certas atitudes de mulheres concretas como exemplos da humanidade autêntica a serem seguidos tanto por homens como por mulheres.

A profetisa Ana (Lucas, 2,36-38) – somos batizados como sacerdotes, profetas e reis; o Antigo Testamento só tem profetas varões, o Novo Testamento tem profetizas e teve diaconisas. A profetisa Ana é modelo de oração paciente e insistente e também modelo de missionária, pois a todos fala do menino Jesus.

Tal como a profetisa Ana, o evangelho apresenta-nos outras missionárias: a Samaritana (João 4, 1-42) que experimentou a salvação que Jesus lhe proporcionou e imediatamente fez desta experiência testemunho, entoou ante os seus conterrâneos o seu magnificat, “O Senhor (Jesus) fez em mim maravilhas…”

Os seus acreditaram nas suas palavras, vieram ver e também eles experimentaram a salvação ao ponto de acabarem por dizer “já não acreditamos pelo teu testemunho, mas nós mesmos experimentamos”. Neste episódio, vemos o ciclo completo da missão. Outra grande missionaria é Maria Madalena (João 20, 11-18), a única que é testemunha dos acontecimentos finais de Jesus – morte, sepultura e Ressurreição. Missionária dos Apóstolos, a ponto de ser chamada proto apóstolo.

A sogra de Pedro (Marcos 1, 29-31) – é a primeira mulher que aparece na vida pública de Jesus que nos ensina que a saúde é um dom de Deus, assim como a vida. Ao recuperar a sua saúde, coloca-se ao serviço de Deus em Jesus e dos irmãos, os discípulos colegas do seu genro Pedro. Viver é servir, quem não vive para servir não serve para viver. Jesus vai dizer sobre ele mesmo, “eu vim ao mundo para servir não para ser servido, e estou no meio de vós não para ser servido por vós, mas para servir”.

Tal como a sogra de Pedro, temos Marta e Maria de Betânia e as mulheres que seguiam Jesus, como Joana e Susana que colocaram os seus recursos, tempo e energias ao serviço do Mestre e da evangelização. Mulheres que, como a viúva que no templo, deu tudo por tudo (Marcos 12, 41-44);

A viúva de Nain (Lucas 7,11-17) – levavam a sepultar um rapaz, filho único de sua mãe que era viúva. Dificilmente algum escritor conseguirá colocar em tão poucas palavras tanto sofrimento. Jesus devolve a vida ao moço, sem que a mãe lho pedisse. Sempre vi neste episódio uma projeção pessoal de Jesus; Jesus viu na viúva de Nain a sua própria mãe, que dentro em pouco também sepultaria o seu filho único sendo já viúva.

Uma mulher impedida de ser mãe, uma menina empedidad de ser mulher (Marcos 5, 25-43) – pelo facto de que a mulher já sofria de hemorragias há 12 anos, o que a impedia engravidar e ser mãe, e a menina morria com a idade de 12 anos sem chegar à adolescência, ou seja, sem chegar a ser mulher, não é difícil ver a conexão entre os dois episódios. “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.

Modelos de fé, esperança e resiliência – Jesus vai ao Antigo Testamento para nos falar da fé da viúva de Zarepeta (Lucas 4, 24-26) e da Rainha do Sul que veio de tão longe para ver a Salomão (Lucas 11, 31). A mulher sirofenícia não se deixa intimidar pelos testes de Jesus e insiste na cura da sua filha (Marcos 7, 24-30). As 10 virgens da parábola que, ao contrário dos três discípulos de Jesus, não adormecem e permanecem alerta e vigilantes (Mateus 25, 1-13) e, por fim, uma viúva que não cede ante um juiz corrupto e não desiste até a justiça ter sido reposta (Lucas 18, 1-8).

MARIA MADALENA – AMOR DE PERDIÇÃO
Havia três que sempre caminhavam com o Senhor: Maria, sua mãe, a irmã da sua mãe, e Madalena, aquela a quem chamavam de sua companheira. Sua irmã, sua mãe e a sua companheira todas as três se chamavam Maria. Evangelho apócrifo de Filipe do século III

Nenhum evangelista a consegue esconder, até mesmo Mateus que não gosta de nomear mulheres tem que se vergar perante ela. Desde o princípio ao fim, em todos os quatro evangelhos, ela está ali omnipresente. Sendo ela a única testemunha da morte e sepultura do Senhor e a primeira da sua Ressurreição, dá quase raiva que S. Paulo, o primeiro a escrever no Novo Testamento, tenha dito em 1 Coríntios 15, 5, “Cristo ressuscitou e apareceu a Cefas e depois aos 12”, colocando Maria Madalena de parte.

Outra forma de a deixar e lado vem da própria Igreja, que nos fez crer de que era uma prostituta convertida. O Papa Gregório, o Grande, que inventou esta teoria, pensava assim resguardar Jesus da sua relação com ela. Tudo o que o evangelho nos diz (Lucas 8, 1–3) é que era uma pessoa muito, muito doente: é este o significado dos sete demónios. Antes de Jesus, ela nunca tinha conhecido a saúde; encontrar Jesus foi para ela começar a viver.

Era agora livre, podia escolher marido ou disponibilizar-se para casar, mas não o quis fazer decidindo seguir Jesus, fonte e origem da sua saúde; seria fonte e origem da sua vida também, como discípula de Jesus e chefe das outras discípulas, tal como Pedro o era dos discípulos. Maria Madalena é a única mulher que aparece nos evangelhos sem referência a nenhum marido; Jesus, a quem ela se entregou de alma e coração, parece ser o único homem da sua vida. Também parece que, entre todos os amigos e amigas de Jesus, ela ocupava um lugar especial no Seu coração.

Sobre a natureza desta relação muito se tem dito, muito se tem inventado e fantasiado. Tendo em conta o único texto dos evangelhos que pode trazer alguma luz sobre o assunto, a aparição de Jesus a Maria Madalena depois da sua Ressurreição (João 20, 11-18) permito-me afirmar o seguinte:

Levaram o meu Senhor - a relação que tinham não era de igual para igual, ou seja, não era uma relação de amizade, mas sim uma relação amistosa. Jesus possui um círculo interno de discípulos composto por Pedro, Tiago e João e, para além deste, um discípulo amado do qual se desconhece a identidade, mas que, pelo evangelho de S. João, se sabe que era um homem. Por isso diz a sua mãe eis to teu filho e não filha.

Supõe-se que era mais íntimo com os três discípulos e até mesmo com o discípulo amado que com o resto dos doze, mas mesmo com estes, a relação era de Mestre-discípulo, ou seja, uma relação de autoridade e não uma relação de amizade, pois as relações de amizade são de igual para igual. Tal como acontece com as relações de professor-aluno, psicoterapeuta-cliente, estas relações podem e devem ser amistosas, mas não podem nem devem ser de amizade. Maria Madalena refere-se a Jesus, quando não vê o seu corpo no sepulcro, como o seu Senhor, não como o seu amigo, pelo que podemos concluir que era uma relação de autoridade.

Meu mestre – Jesus trata-a pelo seu primeiro nome ao chamá-la Maria; esta, porém, ao reconhecê-lo, responde em aramaico, a língua da Galileia, com o nome diminutivo de mestre, que podemos traduzir por mestrezinho, meu mestre ou querido mestre, mas sempre mestre. Portanto, mais uma vez concluímos que era uma relação amistosa de mestre-discípulo.

Não me detenhas, pois, ainda não subi para junto do Pai – dá impressão que Maria Madalena se atirou aos pés do Senhor e os abraçou, tal como a pecadora que verteu neles o perfume caríssimo; nisto manifestou todo o seu amor e entrega o que levou Jesus a ter de lhe dizer, “não me segures, não me amarres, não me detenhas, pois agora o mais urgente é que vás anunciar esta grande notícia aos meus irmãos”.

Conclusão – Quando as coisas ficaram feias para Jesus, Judas traiu-o, Pedro negou-lhe, o resto fugiu. Apesar deste facto vergonhoso, e ignorando a forma respeitosa como Jesus tratou as mulheres, os discípulos varões marginalizaram descaradamente as discípulas, apesar de estas, ao contrário daqueles, não terem abandonado o Mestre na Sua paixão e cruz, o terem acompanhado até ao seu túmulo, e serem as primeiras a vê-lo na Sua Ressurreição.

Pe. Jorge Amaro, IMC