15 de março de 2020

3 Entidades da mente: Id - Ego - Superego

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Sigmund Freud (1856 – 1939), o Sócrates da Psicologia por tê-la libertado do reino dos mitos, lendas e opiniões e elevado à categoria de ciência humana, divisou como que um submarino para submergir abaixo do consciente e viajar ao mais profundo da mente humana.

O Einstein da Psicologia foi o primeiro grande psicólogo e psiquiatra que a humanidade teve. Parte da sua teoria foi, entretanto, ultrapassada, mas o fundamental permanece e é, tal como a teoria da relatividade, património científico da humanidade.

Se os nossos sonhos e os nossos projetos do futuro influenciam e configuram o nosso presente, o mesmo acontece com os nossos traumas, as nossas vivências do passado. Freud provou que tanto as vivências negativas como as positivas presentes no subconsciente, afloram inadvertidamente à nossa consciência, influenciando e até determinando as opções, sentimentos, desejos e decisões que tomamos no momento presente.

O nosso passado é muito mais que a nossa memória histórica que contém a nossa identidade, ou seja, quem somos para os outros e quem somos para nós mesmos. Freud provou que este passado não está “morto” no sentido de ter deixado de existir. O provérbio que alude a uma lei física “Águas passadas não movem moinhos”, não se aplica à existência humana. Efetivamente, na natureza humana, águas passadas movem moinhos. E movem-nos influenciando deterministicamente o nosso comportamento presente, de tal maneira que parecemos aviões que ao atingir a altitude e a velocidade de cruzeiro passam a funcionar em piloto automático.

A psicanálise é ao mesmo tempo um tipo de terapia e uma teoria da personalidade que enfatiza que a principal causa do nosso comportamento reside no inconsciente. O objetivo, é conhecer e trazer para a consciência o material do subconsciente, para poder analisá-lo e assim anular o poder que tem sobre nós e a influência que exerce sobre os nossos comportamentos. O que conhecemos do nosso passado conseguimos controlar, pois conhecer significa possuir, controlar; o que não conhecemos do nosso passado, controla-nos a nós. 

Mente trinitária ou tridimensional
Tal como Deus, os seres humanos são unos e trinos. Possuem uma dimensão individual e outra social, já que uma não existe mas coexiste com as outras duas. A existência de uma pressupõe a existência das outras duas, como vimos num dos textos anteriores. Para além da inegável dimensão social, somos sociais até na nossa própria individualidade. A nossa mente não é monolítica, feita de uma só peça, não poderia funcionar se assim fosse.

Como tudo o que Deus criou, a nossa mente também é trinitária ou tridimensional, pois está dividida em três partes, três repartições diferentes que interagem entre si no melhor interesse da pessoa. Frequentemente, esta interação assume a forma de um diálogo interior que temos connosco mesmos. Simplisticamente, podemos dizer que uma parte, a mais antiga, representa os nossos interesses, a outra representa os interesses da sociedade e, por fim, a última é o árbitro entres as duas, que tenta harmonizar as reivindicações de cada uma e decidir a melhor forma.

Quem virá a ser este menino?
(…) Por toda a montanha da Judeia se divulgaram aqueles factos. Quantos os ouviam retinham-nos na memória e diziam para si próprios: «Quem virá a ser este menino?» Na verdade, a mão do Senhor estava com ele. Lucas 1, 65-66

À nascença apenas possuímos uma das partes - o ID - as outras duas vêm depois, à medida que crescemos e evoluímos, surgem com relativa rapidez, de tal modo que por volta dos 5 anos, segundo pensava Freud, ou dos sete anos, conforme se pensa atualmente, a personalidade está completamente formada e o resto das nossas vidas, segundo o determinismo freudiano, é pura repetição. 

Mantém-se a crença de que os primeiros anos da nossa vida são essenciais para o resto dela. Como bebés, somos virgens em todos os sentidos. Sem nada escrito nas nossas mentes, os primeiros factos deixam naturalmente uma impressão muito mais vincada que os segundos ou terceiros e assim por diante; quando somos adultos ou idosos já poucas coisas nos impressionam.

3 níveis de consciência
A imagem que ilustra este texto mostra, dentro do sol, o busto de Sigmund Freud indicando que é dele a compreensão que temos atualmente do psiquismo humano. Como a imagem ilustra, Freud utilizou a metáfora do icebergue para nos explicar a constituição e o funcionamento do nosso psiquismo. Mais de dois terços do volume de um icebergue estão abaixo de linha da água. Assim acontece com a nossa mente.

Há na nossa mente uma “linha de água” invisível que divide o consciente do inconsciente. A mente divide-se em três compartimentos: ID, ego e superego, que correspondem a três diferentes níveis de consciência. Como a figura indica, o ego e o superego subdividem-se em duas partes - uma submersa na inconsciência e a outra acima da linha de água da consciência. O ID é todo ele inconsciente.

Inconsciência
O nosso subconsciente é constituído por sentimentos, emoções, necessidades, desejos, impulsos e instintos que estão para além da nossa consciência e esta não tem acesso aos mesmos. Ou seja, é como se não existissem. A nossa consciência não está preparada para lidar com estes desejos íntimos e secretos. Se eles pudessem aflorar livremente à nossa consciência, perturbariam a nossa vida do dia a dia de tal forma que nos tornaríamos completamente disfuncionais.

Por serem perturbantes, perigosos e ameaçarem a nossa paz, harmonia e o equilíbrio da nossa mente, o nosso psiquismo reprime-os no subconsciente que, neste caso, funciona como uma prisão de alta segurança. A nossa consciência não tem acesso a estes desejos, sentimentos e instintos reprimidos, mas eles sim, têm acesso à nossa consciência como visitantes não convidados e influenciam o nosso comportamento desde o pensamento ao sentimento e à ação. Influenciam e, em certos casos, até determinam o nosso comportamento sem que saibamos como, quando ou de que forma.

Grande parte do subconsciente é formado pelos dois instintos básicos de sobrevivência a que Freud chama Eros instinto de vida ou afetividade - e Tanatos - instinto de morte ou agressividade. Estes são como o polo negativo e positivo da nossa energia psíquica e encontram-se aqui como num reservatório de energia em estado bruto, sem serem transformados ou sublimados para poderem ser usados no dia a dia. No subconsciente encontram-se todas as experiências negativas e traumáticas da infância, experiências demasiado dolorosas que fizeram com que a criança fosse obrigada a desconectar-se por não ser o suficientemente forte naquela altura para lidar com elas.

Como adiante veremos, o superego é a última entidade a nascer na nossa mente e é formada pelas restrições culturais, morais e legais que a sociedade nos impõe. Apesar de aparecer durante o tempo da socialização da criança, como a imagem nos mostra, parte deste superego também se encontra submerso no subconsciente.

Carl Jung (1875 – 1961) foi um discípulo de Freud, mas deixou o mestre não tanto pelos princípios psicológicos, mas pelo ateísmo de Freud que entendia que a religião era um consolo doentio que impedia o ser humano de crescer e ser plenamente maduro.

Jung aprofunda o subconsciente e subdivide-o em dois: o subconsciente individual e o subconsciente coletivo, mais antigo e que, de alguma forma, precede o primeiro. Estas memórias ancestrais estão organizadas em arquétipos ou temas e quando a situação de existência da pessoa o requer, afloram à consciência influenciando o nosso comportamento. Existem arquétipos para todas as situações da nossa vida. As experiências dos nossos antepassados sobre qualquer tema estão organizadas nestes arquétipos que todos os indivíduos têm em comum no seu subconsciente coletivo.

Estes arquétipos existem sob a forma de pensamentos, símbolos, imagens, memórias, são um modelo, um paradigma, um protótipo que nos diz o que esperar dos outros e como devemos comportar-nos em cada situação na nossa vida. Por exemplo, existe um arquétipo ou conceito chamado “mãe” que regula a forma como as mães devem comportar-se com os filhos e os filhos com as mães, o que pode esperar-se ou não do outro, o que podemos fazer ou não fazer.

Os tabus são o exemplo mais claro do que é um arquétipo; por exemplo, o tabu do incesto proíbe as relações sexuais entre pais e filhos e entre irmãos. O tabu do parricídio proíbe que filhos levantem a mão agressivamente contra os pais. Tudo isto faz parte do nosso superego inconsciente coletivo.

Pré-consciência
Factos, pensamentos, sentimentos, emoções de que não nos damos conta no momento presente, mas que estão ao nosso alcance caso seja necessário; podemos procurá-los como quem procura um livro numa biblioteca. A mente é como uma montra numa loja que tem o mais importante na frente, mas tem muito mais material guardado nas traseiras, para atender aos pedidos. Não penso constantemente no meu número de telefone ou no meu endereço de e-mail, mas se alguém me pedir estes dados posso fornecê-los imediatamente, já que estão armazenados e organizados na minha pré-consciência. 

Este material não está na mente consciente nem na mente inconsciente, mas sim num nível intermédio. O que distingue este material do material da mente inconsciente é o facto de a pessoa ter mais poder e controlo sobre ele e não ser acidentalmente influenciada por ele. Na maior parte das vezes, vem à nossa mente consciente apenas quando é solicitado, ao contrário do material da mente inconsciente sobre o qual não temos nenhum tipo de controlo.
À exceção dos traumas e tabus, o material da pré-consciência tem a mesma natureza que o material do subconsciente - memórias, sentimentos, pensamentos, factos - com a diferença de que não está reprimido e está sempre acessível à mente consciente, como se fosse uma base de dados.

Consciência
A mente consciente contém os pensamentos, memórias, sentimentos e desejos de que estamos conscientes no momento presente, no aqui e agora da nossa vida. Comparável à memória RAM de um computador, ou mesmo ao processador, o nosso consciente é a memória operativa que lida e processa os dados que a pré-consciência ou os sentidos lhe fornecem; é a razão, o pensamento racional que analisa, decide e parte para a ação.

O consciente é a capacidade que nos permite conhecer a nossa realidade e refletir sobre ela; estamos cientes do que percecionamos através dos nossos cinco sentidos, do que recordamos. A nossa consciência é a atenção que prestamos a um pensamento, o que experimentamos existencialmente através dos nossos cinco sentidos e através da nossa realidade interior, do mundo da imaginação e do pensamento racional, dos nossos processos mentais e das análises racionais.

Ao contrário dos outros níveis da nossa mente, a mente consciente está plenamente sob o nosso controlo, a menos que estejamos drogados ou a dormir. É através dela que nos relacionamos com os outros e connosco mesmos, é ela que nos permite ser livres, autónomos e independentes. Porém, dizem os entendidos que este nível de consciência em relação aos outros níveis e mantendo a imagem do icebergue, diz respeito a escassos 10% da nossa mente; os restantes 90% constituem o pré-consciente ou inconsciente.

Janela Johari
Criada pelos psicólogos Joseph Luft (1916–2014) e Harrington Ingham (1916–1995) é um dos mais populares conceitos de psicologia, uma aplicação direta dos conceitos freudianos de consciente e inconsciente. Baseando-se nos materiais que são conscientes e nos que não são conscientes, estes psicólogos distinguiram quatro tipos de identidades dentro da mesma pessoa: o eu aberto, o eu cego, o eu escondido e o eu desconhecido.

Eu – aberto – Aquilo que eu conheço de mim mesmo e que os outros também conhecem porque decido revelar. Ponto onde a minha opinião sobre mim mesmo coincide com a opinião dos outros sobre mim. Por exemplo, eu reconheço que sou bom orador e os outros também me reconhecem como tal.

Eu - cego – Aquilo que eu desconheço de mim mesmo, mas que os outros conhecem. Eu nunca vejo a minha cara tal como ela é, os outros sim, vêm. Eu tenho da minha cara a imagem que o espelho reflete, mas é uma imagem, não é verdadeiramente a minha cara pois não há espelhos perfeitos. O outro, precisamente porque está fora de mim, tem uma perspetiva que eu não posso ter. Só vê a floresta quem está fora dela, quem está dentro dela vê árvores. Temos uma experiência do eu cego quando comemos com os outros e um pouco de comida fica agarrada à nossa cara - eu não a vejo, mas os outros sim, vêm.

Eu – escondido – Aquilo que eu sei sobre mim e que decido não revelar; a minha intimidade e privacidade, os “esqueletos no armário”. Eventualmente, parte deste material é revelado a um amigo em quem confiamos, dependendo do nível de confiança e de quão antiga é a nossa amizade.

Eu – desconhecido – É aquilo que eu desconheço de mim e que o outro evidentemente também desconhece. Somos um mistério para nós mesmos e para os outros. Este é o subconsciente do qual já falámos, constituído por material que eu desconheço e que, a qualquer momento, pode aflorar e ser visto por mim ou pelo outro através da minha linguagem corporal.

3 divisões da mente
Segundo Freud, a nossa mente divide-se em três diferentes compartimentos que comunicam entre si. Podemos entendê-los também como três entidades com diferentes funções que interagem no interior da nossa mente.

Estas três entidades não têm a mesma idade; a mais velha, a primeira a ser formada, ou a que existe desde o princípio é o ID – constituído por um conjunto de tendências e impulsos instintivos descoordenados. A segunda a ser formada é o EGO, a parte organizada, operativa e realista da nossa mente; por fim, surge o SUPEREGO que é ao mesmo tempo, por um lado, um embaixador da cultura ou da sociedade no nosso psiquismo e neste sentido é constituído por regras, normas, leis e valores morais a ser respeitados e observados; por outro é também o advogado, que aconselha, o juiz que julga e o polícia que faz cumprir.

ID
Quando um bebé nasce apenas possui o ID, um psiquismo simples e arcaico. O bebé não tem consciência de si mesmo, não sabe que existe, apenas possui instintos de sobrevivência e necessidades que precisam de ser satisfeitas sem demora e, para tal ele utiliza o choro. Daí o provérbio, “Quem não chora não mama”.

Em modo de ID, o bebé está centrado em si mesmo, é completamente egoísta, sem o mínimo de consideração pelos outros: só ele existe e os outros devem orbitar à sua volta. Se tem fome às três da manhã chora a essa hora, pouco lhe importa se o pai e a mãe precisam de dormir para trabalhar no dia seguinte.

Quando o ID quer alguma coisa, não há neste mundo nada mais importante que o seu querer, pois opera segundo o princípio do prazer, ou seja, busca o prazer a todo o custo e evita a dor. Por mais velhos que sejamos o ID nunca desaparece, ou é substituído pelas instâncias que nascem depois. Permanece sempre como a sede dos instintos mais básicos, os de sobrevivência, eros e tanatos, afeição e agressão, assim como das necessidades mais básicas – fome, sede, calor, conforto e os desejos mais profundos. 

EGO
Por volta dos três anos de idade e em virtude da relação entre a criança e os seus cuidadores, do ambiente que a circunda, nasce uma outra entidade chamada EGO. A criança começa a entender que as outras pessoas também têm necessidades e desejos e que ser impulsivo e egoísta não é a melhor forma de satisfazer os seus desejos, podendo ser contraproducente a longo prazo.

O ego não está contra as necessidades do ID, pelo contrário, é plenamente solidário com ele, mas dá-se conta de que deve ser esperto ao procurar formas de satisfazer as necessidades do ID, tendo em conta os requisitos da realidade, sobretudo as necessidades dos outros. O ego opera segundo o princípio da realidade; tal não significa que tenha desistido do prazer e da autossatisfação, apenas desiste da sua realização imediata, tomando um caminho mais longo e mais demorado, e adotando uma estratégia mais realista e mais segura, conformando-se à realidade da situação.

Se o objetivo da vida para o ID é evitar a dor e ser feliz, para o ego também o é, só que a estratégia é diferente. O ID pensa que pode ser feliz sozinho, o ego descobre que não pode ser feliz sozinho, que isso não é realista. A satisfação das necessidades do outro é tão importante para a minha felicidade como para a dele.

O ego é a parte consciente da nossa personalidade que usa a razão e a lógica para tentar obter a cooperação do ID irrealista. Opera sob o princípio da realidade, buscando conciliar as exigências do ID com as do superego, decidindo-se pela via mais realista.

SUPEREGO
Por volta dos cinco anos de idade nasce a última entidade da nossa mente. O SUPEREGO é a nossa consciência moral, o nosso “dever ser” que se desenvolve devido às restrições morais ou éticas que os nossos cuidadores nos impuseram. O superego ou consciência moral diz-nos o que é reto ou incorreto o que é bom ou mau, o que é adequado e socialmente aceite e correto, e o que não é.

É a nossa bagagem cultural, a forma como a sociedade espera que nos comportemos; é composto por listas intermináveis de normas, leis, regras, valores morais, tradições acerca de tudo e de todos. Se segues as ordens do que o teu superego, podes ser rígido e reprimido, mas sentes-te orgulhoso. Se não as segues, podes sentir-te ansioso e culpado.

Muitos dos nossos diálogos interiores são protagonizados por estas três entidades: o ID que revindica a satisfação incondicional das suas necessidades e a fruição do prazer; O Ego que busca o mesmo que o superego apenas sendo mais realista ao tentar harmonizar as próprias necessidades com as necessidades dos outros, e o superego, como voz da consciência moral que tenta persuadir o ID e o ego a abandonarem a procura do prazer para se dedicarem ao cultivo de ideias e altos valores morais  e nos faz sentir culpados quando não somos o que poderíamos ser.

Para diferenciar na nossa mente a voz do ego da voz do superego ou consciência moral, devemos prestar atenção a certas palavras. Se a mensagem interior começa por “Tens de…” “Devias…” provém do nosso superego e é uma voz interior que durante a nossa educação foi voz exterior. No processo de aprendizagem e interiorização destas mensagens exteriores, alguns pais observaram que, ao receberem estas mensagens, os seus filhos as repetiam em voz baixa para si mesmos.

O superego, como atrás dissemos, é o embaixador da cultura ou sociedade dentro do nosso psiquismo e funciona mais ou menos como o cavalo de Tróia, através do qual a sociedade invade os nossos pensamentos e nos conquista por dentro, fazendo-nos seus vassalos. Pelo superego somos acriticamente obedientes a ditames que foram impostos ao nosso ego sem serem por este verificados. Em suma, o superego é um pequeno ditador dentro de nós que reprime tanto o ID como o ego e se substitui a estes dois no comando dos nossos pensamentos, sentimentos e ações.

Por um superego consultivo não executivo
A título de exemplo, a interação entre estas três entidades da nossa mente processa-se da seguinte forma: o ID diz “apetece-me comer bolos”, o superego diz, “não podes, não deves”, o ego analisa a questão e decide dizendo “eu quero comer bolos” ou “eu não quero comer bolos”. A matéria pode ser diferente, mas estas são as linhas operativas do nosso comportamento; o ID diz “apetece-me”, o superego diz “não podes, não deves, tens de…”, o ego diz “eu quero, eu não quero”. O que para o ID, e eventualmente também para o ego, é bom, para o superego é ilegal, faz mal à saúde ou é pecado.

A comunicação não violenta ensinou-nos que tudo o que fazemos por dever, por obrigação, por imposição subverte o nosso psiquismo, faz de nós escravos porque não somos nós a decidir a ação, ela foi-nos imposta. Não nascemos para ser escravos, a vida humana só existe na liberdade. A liberdade é o oxigénio da alma.

“Tens de…”, “devias…” são palavras que um psicoterapeuta nunca usaria com o seu cliente, mesmo na eventualidade de o cliente solicitar um conselho dizendo, “Que devo fazer?” A resposta do psicoterapeuta seria certamente, “Que queres fazer? Que gostarias de fazer?” O que um psicoterapeuta não faz com o seu cliente, não devemos também nós fazer connosco mesmos.

Por isso e como diz Marshall Rosenberg, na vida só devemos fazer o que gostamos; “quem corre por gosto não cansa”, quem corre por dever ou obrigação, faz contra vontade e com uma energia negativa, pelo que tarde ou cedo abandona a ação.

Não precisamos de um superego que massacre e reprima o ID e o ego nos imponha um comportamento que não entendemos e não decidimos. Só precisamos do ego como árbitro, como regulador interno. O ego é filho do ID, nasceu de uma forma natural, quando o ID se deu conta por ele mesmo de que não era possível satisfazer as suas necessidades pessoais em detrimento das necessidades dos outros.

Por isso, o mesmo mecanismo que levou à formação do ego a partir do ID, é o que deve acompanhar cada uma das nossas decisões do dia a dia. É possível manter um diálogo entre o ego e o ID, sem que o superego tenha voz ativa, mas seja antes usado como uma simples base de dados consultiva, sem nenhum poder executivo de decisão.

Numa mente em que o superego tem poderes executivos, o ID e o ego são forçados a atuar desta ou daquela maneira, e muitas vezes atuam de uma forma escondida e subversiva como nas ditaduras. O superego é a lei, é o rei, não tem que dar satisfações a ninguém nem prestar contas a ninguém. O superego dá ao ego e ao ID o prémio de se sentirem orgulhosos pelo dever cumprido, apesar de terem atuado contra a própria vontade e natureza, apesar de terem sacrificado a sua verdadeira felicidade. Quando o ego e o ID se rebelam e, não querendo abdicar da sua identidade e felicidade, desobedecem ao superego, este castiga-os com o complexo de culpa.

Por outro lado, numa mente em que o poder executivo não pertence ao superego mas sim ao ego, este, fiel à forma natural como o ID se formou, não procura impor-lhe nada, pelo contrário, procura razões que o apaziguem e o façam ver por ele mesmo qual o caminho a seguir. 

A satisfação ilimitada dos desejos não produz bem-estar, não é o caminho da felicidade nem sequer do máximo prazer. ERICH FROMM Ter e Ser

O que Eric Fromm, discípulo de Freud descobriu, o ID pode descobrir por si mesmo: a satisfação ilimitada dos nossos desejos, sem nenhuma restrição, não leva ao máximo prazer, mas à autodestruição. As restrições que limitam o prazer não vêm do superego, mas sim da realidade.

Sabemos que uma quantidade pequena de álcool, sobretudo de vinho tinto, faz bem à saúde; exceder esta quantidade sobrecarrega o fígado. Se isto for feito regularmente, dará origem a uma cirrose e à morte. Para continuar a beber, ou seja, para continuar a usufruir do prazer da bebida, este deve ser limitado ou restringido. Esta não é uma imposição do superego no sentido de que beber seja pecado, mas sim uma “imposição” da realidade.

Para o ego, a questão não é o que devo fazer ou deixar de fazer, mas sim quais as consequências das minhas ações, onde me levarão elas, que tipo de pessoa serei seguindo este ou aquele caminho. Somos o que decidimos, cada decisão que tomámos contribuiu de alguma forma para a pessoa que somos.

Como atrás verificámos, o ID atua no nosso ego de uma forma inconsciente. O que se pretende é que o ego atue sobre o ID e assim os dois sejam interativos num diálogo constante em que o superego seja consultado. São Francisco de Assis utilizou esta técnica para vencer os chamados maus pensamentos ou pensamentos sexuais.

O ID diz ao ego apetece-me ter relações sexuais com aquela mulher, o ego não o reprime, segue-lhe a linha de pensamento e diz-lhe “muito bem, mas sabes que depois ela pode apaixonar-se por ti; estás disposto a uma relação com ela? Essa relação pode exigir um compromisso para a vida, estás disposto a isso? Esse mesmo ato sexual pode gerar uma vida, estás disposto a ser pai?” Com este tipo de diálogo, o ID acaba por aceitar que não é conveniente ter relações com aquela mulher por quem se sente atraído, pois isso o levaria para onde não quer ir.

Em todo este processo não precisamos do superego para nada, este permanece como base de dados que pode ser consultada em caso de dúvidas. Pertencem a esta base de dados as tradições culturais, a idiossincrasia da nossa cultura, a nossa fé, a Bíblia, a doutrina da Igreja, o exemplo dos santos e outros heróis da sociedade, o que a sociedade entende como dever ser.

Se este diálogo acontece entre o Id e o Superego, o Id diz eu quero ter sexo com aquela mulher, o superego diz não podes, o Id pergunta porquê? Porque é pecado e assim termina a conversa, como quando um pai diz a uma criança porque assim o quero.

O ego é racional e razoável, guia-se fundamentalmente pela realidade da situação, pelo conhecimento da natureza humana, pela sua própria experiência, aprendendo com os próprios erros e com os erros das experiências dos outros. Por exemplo, pela experiência dos outros sei que as drogas são nocivas, não preciso eu mesmo de fazer a experiência.

Resumindo, estas são as questões que devem estar presentes num diálogo construtivo entre o ID e o ego numa dada situação que exija uma decisão:
  1. De que se trata verdadeiramente? Análise realista da situação e do que esta realisticamente requer.
  2. Onde me levará este tipo de ação, em que tipo de pessoa me tornarei se seguir este caminho?
  3. Quem, além de mim, será afetado pela minha hipotética decisão e pelas ações que esta envolve?
  4. Há alternativas? Se não há alternativas, não há problema moral: o que não tem solução, solucionado está. A questão que se coloca agora é aceitar ou não a realidade.
3 fases do desenvolvimento
Freud entendia que os primeiros 5 anos são determinantes para o resto da nossa vida. Neste primeiro período do nosso desenvolvimento psicossexual, atravessamos três etapas. Em cada uma destas três etapas o nosso psiquismo dirige a sua atenção, focando-se exclusivamente numa parte do corpo. Quando a necessidade básica que essa parte do corpo deve satisfazer não é capazmente satisfeita, o indivíduo fica obcecado, fixado, preso ou retido nessa etapa, tendo dificuldade em transitar para a etapa seguinte.

Oral de 0 a 1
Como a comida é a principal preocupação da criança, a sua satisfação sexual é obtida por intermédio desta, que se torna ao mesmo tempo fonte de alimento e fonte de prazer. A criança encontra gratificação por meio das atividades orais tais como a alimentação, a chucha, ou o dedo se não lhe dão esta, e balbuciando. Não é de admirar, portanto, que na fase adulta exista uma prática sexual que se chama sexo oral.

Uma estimulação excessiva e uma estadia prolongada para além de um ano de idade, pode levar a criança a adquirir em adulto vício como o tabaco e o álcool e a ser muito faladora. Pelo contrário, uma estimulação deficiente e um forçar a criança a passar à etapa seguinte antes do tempo podem tornar esta criança num adulto sarcástico e demasiado argumentativo.

Anal de 1 a 3
Chega o tempo do treino do controlo dos esfíncteres, especialmente o do ânus. Este é o primeiro ato de humanidade da criança, pois os animais não têm controlo sobre os seus esfíncteres. Como a criança se dá conta que os pais dão muita importância ao controlo do ânus, começa a transferir o prazer que sente na boca ao comer, para o prazer que sente no ânus ao defecar, ao reter ou eliminar as fezes. Evidentemente a prática de sexo anal em adultos está ligada a esta etapa, tal como o sexo oral está ligado à fase oral.

Um treino excessivo fora de tempo, leva a criança a ser obstinada, mesquinha, a ter um carácter retentivo, a ser amante de riquezas e poupada. Pelo contrário, um treino desleixado leva a criança a ser deseixada, a ser uma adulta desordenada, pouco ligada a riquezas, gastadora.

Genital de 3 a 5
Provavelmente pela proximidade do ânus e pela autoexploração, a criança eventualmente descobre os genitais como fonte de prazer superior às primeiras duas áreas. A partir deste momento, é aqui que a criança busca o prazer. Nesta idade, a criança dá-se conta das diferenças de género, masculino e feminino, enamora-se do pai e tem ciúmes da mãe se é menina, ou enamora-se da mãe e tem ciúmes do pai se é menino.

Uma gestão inadequada desta etapa faz a criança ter medo e ansiedade nas relações com o outro sexo. Esta etapa é importante porque, enquanto que a satisfação oral e anal é egoísta e leva a criança a centrar-se em si mesma, a satisfação genital, em virtude de os genitais existirem em duas modalidades incompletas, leva a criança a sair de si mesma e a buscar o outro.

O princípio do prazer
Buscar a satisfação imediata das minhas necessidades, impulsos e desejos básicos, da fome, da sede, da ira, do sexo. Como atrás vimos, este é o princípio pelo qual se rege o ID: buscar a todo o custo o prazer, doa a quem doer e evitar a dor.

Uma pessoa fixada nesta etapa do desenvolvimento humano mata e esfola sem dó nem piedade, sem a consciência o acusar de nada. Busca o prazer sexual violando e abusando de crianças pois não lhe importa a dor que causa no outro, apenas o próprio prazer; o outro não existe, é apenas um instrumento de prazer.

O princípio da realidade
É o princípio pelo qual o ego atua; sob a influência deste princípio, a pessoa busca a satisfação dos mesmos desejos e impulsos, pois eles são provenientes da natureza humana, mas de uma forma realista e socialmente adequada, aceite e sustentável como os princípios da ecologia. O princípio da realidade avalia logicamente o custo e os benefícios, os prós e os contras de uma ação antes de decidir agir ou abandonar um impulso.

Para Freud, maturidade psicológica é a passagem da criança do princípio de prazer para o princípio de realidade. A pessoa que faz esta passagem com sucesso, não precisa do superego, da mesma forma que a pessoa que é justa, solidária, psicologicamente madura não precisa da polícia nem dos tribunais pois não prevarica na sua vida social. A polícia e os tribunais são precisos para os que verdadeiramente nunca transitaram do princípio de prazer para o princípio de realidade.

Mecanismos de defesa
São formas imaturas de resolver o conflito entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, entre o ID e o superego, perante um ego pouco influente na mente.

Repressão – Forma que o ego tem para evitar a dor perante experiências traumáticas. Uma criança abusada física ou sexualmente esquece tudo por completo pois não tem a capacidade de aguentar a dor; o seu consciente não tem capacidade para lidar com o evento.

Deslocamento – Direciona os sentimentos de agressão para um objeto menos ameaçador. Por exemplo, o patrão maltrata o empregado, este, ao não poder maltratar o patrão, maltrata a esposa, esta o filho, o filho maltrata o cão ou o gato.

Racionalização – Para se defender da dor ou de outros reveses, como a culpa, como tentar evitar assumir a responsabilidade pelo que passou, a pessoa encontra uma explicação lógica para justificar um comportamento. Um claro exemplo é a fábula da raposa e das uvas: como não consegue saltar o suficiente para colher as uvas, declara-as verdes.

Reação – Pensar e comportar-se de uma forma contrária ao que verdadeiramente pensa e sente. Uma mulher que ama um homem que não pode ter, comporta-se como se o odiasse. Vemos este mecanismo em ação em muitos filmes; existe também um provérbio que alude ao mesmo: “Quem desdenha quer comprar”. Quem coloca defeitos a um artigo é porque quer comprá-lo.

Projeção - Atribuir os nossos desejos e impulsos socialmente inaceitáveis a outras pessoas. Uma pessoa constantemente mal-humorada diz que é muito difícil relacionar-se com os membros da sua família.

Regressão - Voltar a formas de comportamento características de uma etapa anterior de desenvolvimento. Por exemplo, depois do divórcio dos pais, a criança não quer dormir sozinha e dorme com a mãe.

Negação – Distorce a realidade para acomodar os desejos mais profundos. Por exemplo, o alcoólico que diz que não o é; o fumador que afirma que, se quiser, deixa de fumar; ou outro que diz que deixar de fumar é fácil, que já deixou de fumar 20 vezes.

Técnicas de terapia psicanalítica
Como dissemos, a psicanálise é não só uma teoria geral da génese e estrutura da nossa personalidade, mas também uma forma de terapia. Cinco são as técnicas que Freud usa para chamar o subconsciente à consciência do ego e poder assim interagir com ele, resolvendo os seus problemas.

Livre associação - O paciente é convidado a dizer o que lhe vem à mente de uma forma acrítica, sem esconder nada, nem julgar previamente; dizer tudo o que aflora à mente sem ter em conta o quão doloroso, irrelevante, estúpido isso possa ser.

Interpretação – O analista explica ao paciente o significado de tudo o que disse na livre associação.

Análise de sonhos – É a autoestrada para o subconsciente; algumas memórias estão tão longe da consciência do paciente, tão reprimidas e escondidas, que se revelam somente em sonhos e se expressam de uma forma fantasmagórica e simbólica para chamar a atenção da mente.

Análise da resistência – No decurso da terapia podem criar-se resistências por parte do paciente que se manifestam ao não pagar as consultas, ao chegar tarde ou inventar razões para não vir à terapia. Este tipo de resistências deve ser analisado para que a terapia tenha sucesso.

Análise da transferência – Por último, a transferência é algo que nasce no decurso da terapia. Tanto da parte do paciente, como da parte do psicoterapeuta. Para evitar a colisão entre os assuntos pessoais do terapeuta com os assuntos pessoais do cliente, o terapeuta necessita de tratar a sua transferência com o seu supervisor que é um terapeuta com quem se reúne periodicamente; o paciente deve dar-se conta do que o terapeuta pode vir a representar para ele, no decurso da terapia, uma pessoa significativa do seu passado.

Conclusão
Um comportamento humano maduro requer que o SUPEREGO (Moralista) seja unicamente consultivo, exonerado, portanto, do seu poder legislativo e executivo os quais passam a ser exercidos pelo EGO (Razão) com quem o ID (Instintos & emoções) se dá melhor.
Pe. Jorge Amaro, IMC


1 de março de 2020

3 Valores humanos básicos - Liberdade - Igualdade - Fraternidade

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É quase impossível ler este título e não pensar imediatamente na Revolução Francesa. Estes três valores, por esta ordem, são geralmente associados à dita revolução e apresentados como a sua marca com direitos de autor, como se não pudéssemos falar deles sem falar dela. A verdade é que se estes são valores humanos básicos da natureza humana, então necessariamente antecedem a Revolução. Não foram, portanto, os revolucionários de 1789 que os criaram ou descobriram; na verdade, podemos dizer que eles reinventaram a roda.

Evolução – involução – revolução
A própria Revolução Francesa, associada ao fim da sociedade medieval dividida entre clero, nobreza e povo, foi muito mais que uma revolução e muita mais que francesa, pois alastrou ao resto da Europa e do mundo. Foi designada como revolução talvez porque, como todas a revoluções, fez correr muito sangue. Mas, em termos culturais e civilizacionais, a Revolução Francesa não foi mais que um renascimento social e político, ou seja, um regresso à antiguidade clássica greco-romana.

Como explicámos no texto anterior, as culturas e civilizações do Crescente Fértil que deram origem à civilização ocidental, (Suméria, Creta, Egito, Mesopotâmia, Síria, Babilónia, Pérsia, Grécia e Roma) foram-se sucedendo umas às outras de uma forma linear e sem grandes tumultos, quase como uma corrida de estafetas onde um atleta, depois de receber o testemunho do atleta precedente, corre e dá tudo por tudo para entregar o testemunho recebido ao atleta seguinte, com um valor acrescido fruto do seu esforço pessoal, ou seja, com vantagem sobre os demais participantes rivais.

A invasão do Império romano por povos germânicos, como os hunos, os vândalos, os visigodos, os ostrogodos, os francos, os lombardos e os anglo-saxões do nordeste da Europa, todos eles mais primitivos e menos desenvolvidos e por isso mesmo chamados bárbaros tanto pelos gregos como pelos romanos, foi para a civilização ocidental o equivalente do meteorito que chocou com a Terra e levantou tal poeira que escureceu o sol durante anos e mergulhou o planeta na escuridão e num longo inverno, originando a extinção dos dinossauros e de muitas outras espécies animais.

Depois da escuridão invernal da Idade Média, o Renascimento é entendido com a primavera da Europa. Os renascentistas entenderam a Idade Média com um acidente, um parêntesis, um período em que a corrida cultural e civilizacional de estafetas tinha sido abruptamente detida ou congelada. Entendendo que pouco ou nada tinham a aprender com a Idade Média, os renascentistas evitaram-na por completo e ligaram-se diretamente à Antiguidade Clássica greco-romana como por um bypass.

Curiosamente, tal como o mito da ave Fénix que renasce das próprias cinzas, o Renascimento começou precisamente onde o “meteorito” tinha caído, na Península Itálica. Comummente associada a um regresso à filosofia, à arte, à ciência e à arquitetura do mundo clássico, esta revolução pacífica foi bem mais profunda e duradoira, sendo a Revolução Francesa a sua última manifestação no campo da estrutura da sociedade e do governo político.

Ao fim e ao cabo, os revolucionários franceses não inventaram a república nem a democracia, estas já vinham de trás: a democracia dos gregos, a república dos romanos. Os três ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, também vêm de trás; a nossa tese é que foram decalcados do Evangelho.

Até ao fim do Império Romano, o mundo tinha evoluído linearmente, com a queda deste nas mãos de povos primitivos, o mundo involuiu durante a Idade Média. Para deter este movimento de involução, foi necessária uma revolução.

A Revolução Francesa e o fim do sangue azul
A civilização e a cultura não pertencem ao mundo rural, mas sim ao mundo urbano. Polis para a Grécia, Urbe para Roma, o lugar por excelência da cultura é a cidade, porque é aí que acontece o maior número de interações e intercâmbios entre diferentes tribos e a todos os níveis, do comércio às ideias. Os povos invasores da última expressão da civilização ocidental - o Império Romano - eram povos rurais rudes que odiavam a cidade. Por isso estas foram morrendo à medida que a sociedade rural feudal se foi estabelecendo.

Durante a Idade Média, a sociedade europeia, estava estruturada em três classes sociais que, de alguma forma, imitavam o sistema de castas da Índia: clero, nobreza e povo. Porém, mais tarde, com a maior abertura da Europa ao comércio, foram-se criando pequenos núcleos populacionais chamados burgos que não viviam diretamente da agricultura.

Assim nasceu uma nova classe social - os burgueses - que eram fundamentalmente comerciantes e artesãos e que tinham um poder económico superior ao dos nobres ou do clero. No entanto, ao contrário destes, não tinham poder social nem político e muito menos estatuto, ou seja, não tinham lugar na sociedade das três classes.

Para além do nascimento da burguesia, a Revolução Francesa representou a eclosão de muitos outros fatores: as filosofias de Descartes, Espinosa e Locke, além das ideias sociopolíticas de Montesquieu, Voltaire e Rousseau. Os factos históricos das guerras do século XVIII criaram a necessidade de aumentar os impostos, o que levou o rei a convocar uma reunião dos Estados Gerais, clero, nobreza e povo, para o dia 5 de maio de 1789.

O povo, mais numeroso e dinamizado pelos burgueses, exigiu que as deliberações fossem votadas por cabeça e não por classes sociais. Desta forma, a vontade popular foi-se impondo sobre as outras duas classes sociais ou estados. Como é sabido, o acontecimento que desencadeou a Revolução Francesa foi a tomada da Bastilha no dia 14 de julho de 1789; a Bastilha era um castelo inexpugnável que na altura servia de prisão, tal como a Torre de Londres.

É curioso que o castelo, símbolo do mundo feudal medieval e do poderio da nobreza, tenha caído nesse dia. E com ele caiu o estatuto da nobreza e desapareceu o sangue azul. Um sangue que nunca tinha existido, um mito criado pelos mesmos nobres a partir do facto de terem a pele mais branca por não trabalharem como o povo de sol a sol, sobretudo as donzelas; por baixo da pele branca podiam observar-se as veias azuis, coisa que não era observável no povo, com a pele queimada do sol.

Na Idade Média, o estatuto social e influência política dependiam do nascimento, do título hereditário e da posse de terras. Depois da Revolução Francesa, foi-se impondo a ideia de que nascemos todos iguais e de que os méritos e as honras se conquistam a pulso, com o esforço individual. Ainda existem algumas monarquias na Europa, porém os reis não têm verdadeiro poder, reinam anacronicamente, mas não governam. Existem ainda alguns nobres, ou seja, gente que herdou títulos de condes e duques; mas a nobreza em si esvaziou-se de significado: vale mais uma pessoa do povo rica que um nobre pobre. Atualmente, é o dinheiro que confere o estatuto social às pessoas.

Para quando a "Revolução Francesa" na Igreja católica?
A Revolução Francesa conseguiu acabar com a nobreza, mas não acabou com o clero. Na Igreja, a distinção clara entre o leigo e o clero faz lembrar a Idade Média e o sistema de castas da Índia. A Igreja católica mais parece uma monarquia absoluta, com o Papa como um rei Sol com um séquito de Duques (ou Cardeais) e de Condes (ou Bispos). Não é por acaso que os Cardeais se designam por príncipes da Igreja.

O concílio Vaticano II pretendeu suavizar esta distinção entre clero e leigos, assim como democratizar mais a Igreja ao nível do seu governo, através de uma maior colegialidade ou participação. Assim, entre o Papa e os Bispos, instituíram-se os Sínodos; entre o Bispo e os sacerdotes criaram-se os conselhos presbiterais; e entre o sacerdote e o leigo, nas paróquias, criaram-se os conselhos pastorais.

Porém, como todos estes conselhos são apenas consultivos, facilmente são ignorados pela autoridade que os convoca e que muitas vezes escolhe a dedo os seus membros para que concordem com tudo o que a autoridade eclesiástica decide. O Vaticano II vaticinava uma igreja de círculos concêntricos, onde o sucessor de Pedro ocuparia o centro, sendo verdadeiramente o “servo servorum Dei”. No entanto, embora a teoria esteja correta na prática continua a prevalecer a mesma Igreja piramidal, governada por um monarca absoluto, mais ou menos iluminado, acreditamos, pelo Espírito Santo.

Num sistema onde a chave e o motor de tudo o que acontece na Igreja é o clero, o protestantismo vai ganhando terreno porque os leigos católicos, ao contrário dos protestantes, não têm consciência de serem evangelizadores. Tal acontece porque na Igreja católica, a evangelização é feita pelos clérigos. Por outro lado, como os clérigos são muito poucos ou se dedicam ao sacramentalismo ou às burocracias próprias de uma paróquia, também não evangelizam. Como prova disto, vejamos as estatísticas dos cristãos na Etiópia onde fui missionário. Os católicos que estão no país desde os Descobrimentos portugueses, são 0,5% da população; os protestantes, que apenas chegaram à Etiópia no século XX, são mais de 2% da população.

Liberdade
A ideia que aflora à nossa mente quando se fala de liberdade é a de viver de forma independente e autónoma, sem constrangimentos. A liberdade, no sentido de autonomia, é inerente a todo o tipo de vida ou matéria orgânica; é fazer coisas por si mesmo, como a árvore que com o processo da fotossíntese produz o seu próprio alimento, como vimos em texto anterior.

Muito mais que para os animais, a liberdade é condictio sine qua non para a vida humana. Os animais ou plantas fazem o que a natureza tem predestinado para eles, não saem fora desses moldes, pelo que não têm poder sobre a própria vida, não têm poder de opção. O ser humano, pelo contrário, não está predestinado pela natureza nem esta exerce poder sobre ele. Os animais estão vivos; o ser humano não só está vivo, como vive porque pode fazer da sua vida e com a sua vida o que quiser, orientá-la como quiser e até acabar com ela se assim o decidir.

“Dai-me a liberdade ou dai-me a morte” foram palavras pronunciadas num discurso por Patrick Henry durante a guerra da independência dos Estados Unidos. A liberdade é, portanto, um valor inerente à vida. Que entendiam por liberdade os teóricos da Revolução Francesa?

O conceito de liberdade na Revolução Francesa
O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto eles. Jean-Jacques Rousseau

O conceito de liberdade nascido da Revolução Francesa era mais político que outra coisa. Era sobretudo liberdade da opressão que o Estado exercia sobre os cidadãos; uma opressão que se traduzia em prender e executar pessoas sem o devido julgamento, o que aconteceu a Voltaire em virtude do seu uso da liberdade de expressão nos seus escritos.

A Revolução Francesa produziu a 16 de agosto de 1789 um documento chamado “Declaração dos direitos humanos” que influenciou não só a sociedade francesa daquele tempo, mas também a do resto do mundo naquela época e nos tempos que se seguiram.

O conceito de liberdade no evangelho
Se perguntarmos a um adolescente o que significa liberdade, imediatamente e sem pensar muito dirá “Poder fazer o que quero”. Porém esta não é a parte mais importante da liberdade. Para poder fazer o que quero, devo ser livre; poder fazer o que quero é o livre arbítrio e é a liberdade que me dá a capacidade de escolha. Sem liberdade não há livre arbítrio, é uma ilusão, uma quimera. A verdadeira liberdade é a liberdade de… o livre arbítrio é a liberdade para…

LIBERDADE DE… E LIBERDADE PARA…
A “liberdade de…” é sinónimo de emancipação, de conquista. Neste sentido, eu não sou livre à nascença, a liberdade deve ser adquirida como tudo o que a vida tem de bom, com esforço e com trabalho. A epopeia do povo hebreu ao libertar-se da escravidão do Egito, a passagem pelo deserto de purificação para entrar na Terra Prometida da liberdade onde corre leite e mel, é um paradigma da conquista da liberdade, da longa caminhada para a liberdade.

Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres. João 8, 31-32

A mensagem de Cristo é composta por três partes: pela sua pregação ou doutrina, ou seja, por tudo o que Ele disse, por tudo o que fez, pelos seus milagres e obras pois, como Ele próprio disse, as pessoas conhecem-se pelas suas obras como as árvores pelos seus frutos (Cf. Mateus 7, 16) e, por fim, pela forma como ele se comportou em todas as situações da sua vida. Tudo isto é normativo para nós, tudo isto é “Caminho, verdade e vida” (João 14, 6), tudo isto é natureza humana.

O Criador fez-se criatura para ensinar os homens a ser homens. Na sua vida, Jesus revela a natureza humana e a forma de a viver; Ele é o padrão da natureza humana: quem quer ser autêntico e genuinamente humano mede-se por Ele. É neste sentido que devemos interpretar “a verdade vos fará livres”. Conhecer é poder e controlo, conhecer a verdade das coisas significa poder controlá-las, ter poder e exercer esse poder sobre elas.

Em psicologia dizemos “o que sabes sobre ti, em especial sobre o teu inconsciente ou vida passada, tu consegues controlar; o que não sabes, controla-te a ti”. O conhecimento da natureza que te rodeia, da própria natureza humana ao nível físico, espiritual e psicológico, dá-te liberdade, pois podes dominá-la e assim saber o que pode acontecer; conheces também os limites e dentro desses limites és livre, pois a liberdade absoluta não existe; sabes até onde podes correr, o que podes ou não podes comer, a quantidade de álcool que podes beber, etc. O conhecimento da verdade das coisas emancipa-te delas, deixando de estar à sua mercê; passas a não ser dominado por elas, és livre, independente e autónomo.

As coisas foram feitas para ser usadas e as pessoas para ser amadas. Esta é a verdade da natureza das coisas e das pessoas. Considerando esta verdade, és livre porque sabes o que fazer, ou seja, como relacionar-te com as pessoas e com as coisas de forma a seres feliz. O não conhecimento desta verdade far-te-ia andar às apalpadelas como um cego que não vê o caminho e por isso não é livre: a qualquer momento a falta de conhecimento pode ser fatal.

Portanto, a “liberdade de…” refere-se a duas realidades que podem escravizar-nos às coisas, ou aos bens materiais e às pessoas. Para conquistar a minha liberdade em relação às coisas e às pessoas, devo prestar vassalagem ao Criador das coisas e das pessoas, Senhor de tudo e de todos. Quando amo a Deus acima de tudo e de todos, conquisto a minha liberdade em relação a tudo e a todos.

Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. Marcos 12, 29-30

Liberdade em relação às coisas
(…) se as vossas riquezas crescerem, não lhes entregueis o coração. Salmo 62, 11

O autor do Salmo deixa bem claro que o problema não é ser rico ou ser pobre, mas antes a relação que estabelecemos com as coisas. Um pobre agarrado ao pouco que tem, para o evangelho, é rico. Um rico desprendido do que tem, para o evangelho, é pobre. O amor é devido às pessoas não às coisas. Quem tem uma relação amorosa com as coisas, perverte a sua natureza humana, pois toda a relação amorosa pressupõe um intercâmbio simbiótico; eu dou-me a ti e tu dás-te a mim, pelo que parte de mim vai para ti e parte de ti vem para mim.

Assim é entre pessoas. Porém, se a mesma relação amorosa é estabelecida com coisas materiais, estas coisas ganham valor espiritual, ou seja, espiritualizam-se como se fossem pessoas, ganham alma. Do mesmo modo, a pessoa que se enamora das coisas materiais ganha valor material, ou seja, materializa-se, coisifica-se. É isto que queremos dizer quando definimos uma pessoa como materialista.

No amor verdadeiro entre pessoas, uma vez que te dás, te entregas, já não te possuis. Porém, como a pessoa a quem te deste partilha a tua natureza e também se deu a ti, podes estar seguro. O mesmo já não acontece quando dás o teu coração a algo não a alguém, a algo que não tem a mesma natureza; esse algo te domina e tu transformas-te em seu escravo. É neste sentido que se diz que o dinheiro é um bom escravo, pois podes fazer com ele muitas coisas; mas é um mau senhor, pois exige uma rendição completa ante a sua majestade.

Isto mesmo é o que verificamos no episódio do jovem rico que foi ter com o Senhor para inquirir se, depois de ter observado todos os mandamentos que apenas dizem o que não fazer, havia alguma coisa que ainda lhe faltava para adquirir a vida eterna. O Senhor gostou dele, como diz o evangelho, mas enganou-se a seu respeito pois este homem não era livre.

Contabilisticamente possuía muitas riquezas, mas do ponto de vista psicológico, como atrás explicámos, era possuído por elas. Por isso não era livre e, embora gostasse de ter seguido o Mestre, não conseguiu, pois, estava casado com a sua riqueza e esta nunca lhe concedeu o divórcio, não o deixou ir. (Cf. Mateus 19, 16-25).

O que dissemos em relação aos bens materiais “mutatis mutandis”, vale para a relação que muitas pessoas estabelecem com substâncias aditivas, como o tabaco, o álcool, a droga, etc. e com comportamentos aditivos, como a ira, a gula e a luxúria.

Liberdade em relação às pessoas
Quem amar o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem amar o filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim. Mateus 10, 37

O mandamento do amor a Deus tal como está descrito tanto no livro do Deuteronómio como no capítulo 12 de Marcos que acima citámos, estabelece prioridades e hierarquias. Se amamos a Deus, Ele deve vir em primeiro lugar: a Ele, o Criador, devemos amar acima de todas as criaturas, sejam coisas ou pessoas.

Custa-nos amar a Deus como um ser pessoal e espiritual, precisamos de coisas concretas, palpáveis e visíveis; por isso, a tentação de abandonar a Deus para idolatrar alguma realidade física ou pessoa é constante. O povo de Israel via em Moisés um sacramento palpável de Deus. Quando este subiu ao monte Sinai e por lá ficou muito tempo, ficaram sem essa presença sacramental de Deus no meio deles, uma vez que era Moisés que O representava de forma mais imediata. Sentiram-se sós e procuraram construir um bezerro de ouro para substituir a Deus e a Moisés. (Cf. Êxodo 32,21-24).

O mesmo aconteceu a Abraão depois de ter obtido de Deus o dom de Isaac e o princípio do cumprimento da promessa de Deus de uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu… Abraão agarrou-se a Isaac e de alguma forma esqueceu Deus que lhe tinha dado Isaac. Deus, vendo isto, pediu-lhe Isaac de volta, e este foi o teste de Abraão, o teste para verificar se amava mais a Deus ou a Isaac a quem de alguma forma tinha idolatrado. Abraão passou o teste pois sacrificou Isac, só não o matou porque Deus não o permitiu, mas a intenção era essa e a intenção é o que conta. Abraão provou que amava mais a Deus que a Isac. Se não tivesse cedido Isac, este não seria o filho da promessa e Abraão não seria o nosso Pai na fé.

Depois de me emancipar, ou seja, de conquistar a minha liberdade, autonomia e independência em relação às coisas e às pessoas ou afetos desordenados, então sou “livre para…” me dedicar, para me entregar de alma e coração às pessoas ou a uma causa humana. Só damos o que temos; por isso só me posso dar se me possuo e para possuir-me devo conquistar a minha liberdade a minha soberania. Controlar os outros é fácil, controlar-se a si mesmo é o maior dos impérios. Frequentemente buscamos controlar os outros porque não conseguimos controlar-nos, não somos senhores do nosso nariz, não nos possuímos.

Igualdade
Como o primeiro valor da Revolução Francesa dizia respeito à relação entre indivíduo e sociedade, o segundo dizia respeito à relação entre os indivíduos no interior da sociedade. O ser humano é um ser pessoal individual, mas não é uma ilha, sempre faz parte de uma família, de um clã, de uma tribo, de uma nação. Como já refletimos num texto anterior, o ser humano é uno e trino, tal como Deus e a sua criação. São precisos dois seres humanos para dar origem a um, pelo que um não existe, mas coexiste com outros dois.

O valor base de um ser humano como ser pessoal e individual é a liberdade; o valor onde assenta o ser humano como ser social é a igualdade. Vejamos o que dizia a Revolução Francesa a este respeito.

O conceito de igualdade na Revolução Francesa
No contexto da Revolução, a igualdade era bem menos idealista do que se pensa. A nova classe social, a burguesia, que por não possuir estatuto se confundia em grande medida com o povo, buscava igualdade com o primeiro e segundo estratos sociais, ou seja, com o clero e a nobreza.

Os burgueses favoreciam a meritocracia, ou seja, uma sociedade onde o estatuto e os privilégios fossem definidos e atribuídos consoante o mérito, os talentos e as obras realizadas pelo indivíduo e não em virtude de direitos inerentes ao berço onde nasceu. Neste ponto, os revolucionários franceses inspiravam-se no país que acabava de formar-se os Estados Unidos da América - onde a revolução tinha transferido o poder de governo para homens de talento e habilidade: uma imitação do governo dos sábios da antiga Grécia.

É claro que os burgueses da época procuravam equiparar-se ao clero e à nobreza, mas não se julgavam iguais ao povo e certamente não desejavam partilhar o poder com o povo. Prova disso é que não lutavam pela igualdade universal de direitos nem pelo princípio democrático “um individuo, um voto”; entendiam que votar era privilégio das classes mais abastadas.

O conceito de igualdade no evangelho
Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor. - Levítico 19, 18

O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes. Mateus 12, 31

Não há em todo o mundo uma definição melhor de igualdade. O outro é um alter ego, ou seja, é um outro eu; não um tu, uma entidade, externa, estranha, estrangeira, distante, mas sim o meu próximo, tão próximo que é um outro eu, um alter-ego, de onde provém a palavra altruísmo.

O que me é devido a mim, é-lhe devido a ele, pois é um ser humano como eu e todos viemos do mesmo tronco comum nascido no Vale do Rift há 5 milhões de anos. A igualdade e a convivência na sociedade assentam no princípio de que os meus direitos são os deveres do meu próximo e os meus deveres são os direitos do meu próximo.

– Um missionário canadiano descobriu que existe em todas as religiões uma versão desta máxima e por isso lhe chamou a “regra de outro” - e verificou que enquanto nas demais religiões, incluindo o judaísmo, a regra era formulada negativamente: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”, disse o Rabino Hilel, “no cristianismo esta mesma regra como vemos pela citação do evangelho, é formulada positivamente”: “ Portanto, o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas.» Mateus 7, 12

O evangelho não nos exorta a não ser pacíficos, mas a ser pacificadores, não nos exorta a evitar o mal, mas a fazer o bem, e a ser os primeiros a tomar a iniciativa.

Não julgueis, para não serdes julgados; pois, conforme o juízo com que julgardes, assim sereis julgados; e, com a medida com que medirdes, assim sereis medidos. Mateus 7, 1

- É uma exortação divina à igualdade não nos colocarmos acima dos outros, julgando-os, pois somos todos iguais. Ninguém nos constituiu juízes, e só o seríamos, só poderíamos atirar uma pedra, se não tivéssemos pecado. Mas pecámos e frequentemente julgamos os outros pelos mesmos pecados e defeitos que nós temos, pelo que o nosso julgamento é hipócrita.

Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. Gálatas 3, 28

- Jesus curou estrangeiros e frequentemente exaltou a sua fé. Tratava o homem e a mulher de igual para igual, foi o único Rabino que teve discípulas. Nas parábolas que contava procurava um equilíbrio entre os homens e mulheres como protagonistas. Combateu o cliché de que a mulher devia dedicar-se exclusivamente ao trabalho doméstico, tendo como única vocação ser mãe. Desta forma, 2000 anos antes, já Jesus era a favor da integração da mulher no mundo do trabalho ao lado do homem. (Cf.  Lucas 10, 38-42, Lucas 11, 17)

Fraternidade
Este terceiro valor da Revolução Francesa parece qualitativamente distinto dos outros dois. Enquanto que liberdade e igualdade são princípios do Direito, regras normais que apelam à razão, a fraternidade parece apelar mais ao sentimento, à emoção que à razão. Neste sentido, enquanto que os outros têm um certo grau de obrigatoriedade e apelam a regras concretas e verificáveis, a fraternidade é menos normativa e mais deixada ao livre arbítrio de cada um, por ser matéria mais dos sentimentos que da razão. E os sentimentos não se podem obrigar nem comandar. Que entendia a Revolução Francesa por fraternidade?

O conceito de fraternidade na Revolução Francesa
No contexto da Revolução Francesa, este é o conceito mais idealista e utópico dos três. Difícil de definir, pois é mais abstrato, e de concretizar, pois é mais idealizado. Por aquele tempo, significava irmandade, união e solidariedade entre todas as classes sociais e cidadãos em torno do valor da pátria, França. Este ideal, com o decorrer da Revolução esfumou-se por não ter tido grandes concretizações históricas. Ficou apenas como o terceiro valor do ex libris ou lema da Revolução: liberdade – igualdade – fraternidade.

O conceito de fraternidade no evangelho
Quanto a vós, não vos deixeis tratar por “mestres”, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso “Pai”: aquele que está no Céu. Mateus 23, 8-9

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, diz George Orwel na sátira da revolução dos animais que pode ser vista com uma crítica à Revolução Francesa. Teoricamente e só mesmo teoricamente, os homens são todos iguais perante a lei. Na prática, uns são mais iguais que outros. Há práticas da justiça para todos os bolsos: frequentemente não ganha uma causa quem mais razão tem, mas quem mais dinheiro tem.

Não é porque não há ninguém acima da lei que nos faz a todos iguais, mas sim pelo facto de que Deus é Pai de todos, dos bons e dos maus, Ele é o único que não distingue entre de pessoas e faz chover sobre justos e injustos.

A igualdade perante a lei é um mito porque, como sarcasticamente diz, sempre haverá alguns que são “mais iguais que outros”.

O amor nasce entre iguais ou faz as pessoas iguais – Como este provérbio, podíamos descartar o valor da fraternidade, pois como nos diz o princípio dos vasos comunicantes, quando dois recipientes com desigual quantidade de água se ligam, o que tem mais cede água ao que tem menos, nivelando a água entre os dois recipientes.

A nível social, isto acontece quando um rico se casa com uma pobre, como no conto popular do príncipe que casa com a Cinderela. O príncipe rico casa com a Gata Borralheira e reparte a sua riqueza com ela e até parte do seu estatuto, já que ela passa a ser princesa. Também Deus, quando enviou o seu Filho para desposar a humanidade, elevou-a à categoria de filha adotiva; com Cristo tornámo-nos seus irmãos e herdeiros do Reino. (Cf. Marcos 2, 18-20 e Efésios 1, 5)

Neste mesmo princípio se baseou Karl Marx, de alguma forma o inspirador da segurança social, com a ideia de cada um segundo as suas capacidades, e a cada um segundo as suas necessidades. Isto é a fraternidade que permite que o que não tem trabalho por culpa do sistema possa, mesmo assim, satisfazer as suas necessidades básicas inerentes à dignidade de toda a pessoa humana. Esta mesma solidariedade é intergeracional, ou seja, existe entre as gerações numa sociedade moderna. Os que agora trabalham, descontam para pagar as reformas dos que já não têm força para trabalhar, mas precisam do seu sustento diário.

(…) Vieram, por seu turno, os primeiros e julgaram que iam receber mais, mas receberam, também eles, um denário cada um. Depois de o terem recebido, começaram a murmurar contra o proprietário, dizendo: “Estes últimos só trabalharam uma hora e deste-lhes a mesma paga que a nós, que suportámos o cansaço do dia e o seu calor. (…) Mateus 20, 1-16

Os trabalhadores desta parábola são jornaleiros que trabalham como trabalhadores temporários durante a época das colheitas, e o empregador percebe que todos precisam do salário de um dia completo para alimentar as suas famílias. Não foi por sua culpa que não trabalharam o dia inteiro. De facto, quando o empregador lhes perguntou porque estiveram inativos todo o dia, eles responderam que ninguém os contratara. No meu entender esta parábola é tão ou mais inspiradora da ideia de segurança social que a máxima de Karl Marx.

Conclusão
O valor humano da dimensão individual do ser humano é a liberdade; o valor humano da dimensão comunitária do ser humano é a igualdade. Liberdade e igualdade são os valores sobre os quais assenta a vida humana e sobre os quais assentam os sistemas políticos e económicos da sociedade.

O capitalismo exacerba a liberdade, o socialismo exacerba a igualdade. O equilíbrio ou harmonia da liberdade e da igualdade são tão difíceis de interiorizar para o indivíduo como para a sociedade. O mundo mundano não tem uma fórmula ideal para harmonizar as duas dimensões; mas o cristianismo tem: o mandamento do amor.

A cruz, símbolo do cristianismo, é onde a verticalidade do amor a Deus sobre todas as coisas e a horizontalidade do amor ao próximo como a sim mesmo se encontram e harmonizam. Sem liberdade não há vida humana, sem igualdade não há vida social, sem fraternidade não há uma nem outra.
Pe. Jorge Amaro, IMC