15 de novembro de 2020

3 Caracteres arquétipos: Herói - Anti-Herói - Vilão

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As figuras do herói e do vilão são arquétipos da humanidade; como tal, estes paradigmas, padrões de comportamento ou formas de ser, estar e atuar pertencem ao inconsciente coletivo da humanidade. Consciente ou inconscientemente, são referências inexoráveis em todos os campos da vida individual, social e institucional.

Este dualismo está mais patente nos filmes: a maior parte deles descreve uma luta acérrima entre o vilão e o herói e, como os guiões destes filmes raramente se desviam do arquétipo, todos os espectadores sabem de antemão como vai acabar o filme.

Na nossa pesquisa sobre a tridimensionalidade da realidade criada por um Deus Trinitário, encontramos este dualismo e achamos que tem de haver um outro personagem para além destes dois. A sua função é tão inócua, ignorada ou discreta que nem sequer é nomeado; mas existe e é tão real como os outros dois.

Quando de eletricidade se trata, o nosso discurso gira quase sempre à volta do polo positivo e do polo negativo e, muitas vezes, esquecemos o neutro. Mas este também é importante, tanto quanto os outros dois. O mesmo se passa aqui: quanto mais não seja, tanto o vilão como o herói precisam de uma audiência ou buscam seguidores no meio do povo, que entendem como neutros, apáticos indiferentes à causa do vilão e à do herói.

O perfil dos dois primeiros protagonistas do nosso texto está bem definido: como dissemos, é um paradigma, um arquétipo da humanidade. O terceiro protagonista do nosso texto tem muitas caras e muitos nomes e, por isso, é difícil de definir; como é um zero à esquerda, nada ou quase nada, talvez nem sequer chegue a ser arquétipo.

Anti-herói foi o nome que lhe demos, mas pode ter outros como: indiferente, desinteressado, displicente, impassível, insensível, frio, indolente, inerte, amorfo, letárgico, desanimado, desapaixonado, blasé, tíbio, pusilânime, irresoluto, parado, passivo, preguiçoso, ocioso, nulo, observador, espetador, neutro, imparcial. Estas são as características que o diferenciam tanto do herói como do vilão.

Tanto no presente como no passado histórico, o herói é recordado e amado, o vilão é recordado e odiado, como Pilatos no Credo. O apático não é recordado, é ignorado e, como tal, não é amado nem odiado, a sua existência foi uma inexistência. Desfez o que Deus fez, ou seja, Deus criou-o do nada para ser alguém e ele foi um zé ninguém na vida, regressou ao nada.

Política: herói - vilão - eleitores
Tanto em tempo de eleições, o único tempo em que o povo tem poder e é soberano, como em tempo de governação, cada partido, quer esteja no poder ou na oposição, procura vilipendiar o outro, transformando-o em bode expiatório de todos os males e apresentando-se a si mesmo como herói, salvador da pátria.

Esta tática resulta e apresenta resultados porque os políticos habilmente apelam, usam e abusam do arquétipo que está bem impresso na mente dos eleitores que formam o povo. Para os partidos liberais e conservadores de direita, que proclamam o valor da liberdade como absoluto, o herói é o indivíduo, a pessoa singular e as suas liberdades; o vilão é o Estado.

Para os partidos de esquerda, de orientação marxista, o herói é o coletivo, são os trabalhadores, é o proletariado e, quando estão no poder, o Estado; o vilão é a burguesia, os capitalistas, os ricos, os patrões. Para o populismo dos nossos dias, o herói é um líder carismático, que engana e faz crer ao povo que é ele mesmo, povo, o verdadeiro herói. O vilão divide-se em dois: um interno, que é o “status quo” ou o sistema corrupto, e outro externo, constituído pelo terrorismo, pelos imigrantes, pelos muçulmanos etc.

Para a América de Trump, o vilão interno é a classe política, à qual ele chamava o “pântano de Washington”, que é a raiz de todos os males; o externo são os imigrantes ilegais mexicanos, assassinos, violadores, ao serviço dos cartéis da droga. Para Boris Johnson, o vilão interno é a União Europeia que não é democrática e que é a raiz de todos os males que afligem o Reino Unido, o externo são os turcos, os imigrantes sírios, etc.

Estes políticos dão-se a si mesmos ares de messias, redentores e salvadores e fazem crer que são revolucionários e que interpretam e executam a vontade do povo. Mas, uma vez no poder, não são diferentes dos ditadores fascistas do século passado: Hitler, Estaline, Mussolini, Franco, Salazar e outros. Entendo que o populismo dos nossos dias é, na verdade, um neofascismo.

Este tipo de líder confia na total adulação, apatia e cegueira do povo, pois quando a realidade não lhe é favorável, inventa uma realidade alternativa e os seus seguidores, tão acomodados, aceitam a realidade alternativa e desprezam a realidade verdadeira. A verdade já não é imparcial e objetiva, confunde-se com a subjetividade do líder. Para tal, o líder necessita de estar em contínua comunicação com o povo, bombardeando-o com a sua realidade e verdade alternativa. Disto são exemplo os tweets contínuos de Trump. A mentira muitas vezes martelada equivale a verdade; a verdade pouco publicitada equivale a mentira.

Uma prova e amostra dos tempos que correm é a afirmação de Donald Trump de que se ele desatasse um dia a disparar e a matar qualquer pessoa na Quinta Avenida de Nova York que os seus seguidores não o abandonariam. Por menos crimes e abusos de poder outros líderes caíram e ele continua de pé; a impunidade é característica dos fascismos europeus e latino-americanos do século passado, assim como deste neofascismo chamado populismo.

Religião: herói - vilão – fiéis/pecadores
São Miguel Arcanjo, defendei-nos neste combate, cobri-nos com o vosso escudo contra os embustes e ciladas do demónio. Instante e humildemente vos pedimos que Deus sobre ele impere e vós, Príncipe da milícia celeste, com esse poder divino, precipitai no inferno a Satanás e aos outros espíritos malignos que vagueiam pelo mundo para perdição das almas. Amém

No imaginário de praticamente todas as religiões, Deus assume o papel de herói, o diabo o papel de vilão. O povo é fiel quando alinha com Deus e pecador quando alinha com o diabo. Segundo a oração acima citada, muito popular aqui na arquidiocese de Toronto e recitada depois da missa em muitas igrejas, o diabo parece mais proativo que Deus.

Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo. Hebreus 1, 1

Segundo a carta aos Hebreus, é teologia comum que Deus, ao mesmo tempo imanente e transcendente, à exceção de quando enviou o seu Filho, não atua diretamente na História da humanidade. A oração a São Miguel parece sugerir que o mesmo não acontece com o demónio, este e outros espíritos malignos, vagueiam pelo mundo para a perdição das almas.

Passados já tantos anos depois de o teólogo Rudolf Bultmann nos ter convidado a desmitificar o evangelho, ou seja, a limpar o evangelho de todos e quaisquer mitos, crenças e superstições do mundo antigo colocadas lá pela idiossincrasia e imaginário dos autores bíblicos, o mito da existência do diabo parece estar agarrado à nossa fé como uma carraça a um cão.

O diabo não existe, é a ausência de Deus; as trevas não existem, são a ausência de luz; o mal não existe, é a ausência do bem. A personificação do mal fora de nós é um mito; o mal existe sim, mas em nós e não fora de nós. Personificamos o mal quando fazemos ações maldosas ou quando deixamos de fazer o bem.

Não é o diabo que nos tenta, “cada qual é tentado pela sua própria concupiscência, que o arrasta e seduz. Em seguida, a concupiscência concebe o pecado e o dá à luz; e o pecado”, (Tiago 1, 14-15). A tentação faz parte da natureza humana, vem de dentro e não de fora; não precisamos de nenhum diabo para nos sentirmos inclinados e tentados a esta ou àquela ação.

(…) nada do que, de fora, entra no homem o pode tornar impuro, porque não penetra no coração (…) O que sai do homem, isso é que torna o homem impuro. Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios.
Marcos 7, 18-23

O mal é como um vírus ou uma bactéria que infetou a humanidade. Os vírus e as bactérias não existem por si mesmos; são de natureza parasitária, precisam sempre de um hospedeiro que os acolha. O pecado original é como uma doença hereditária que passa de pais para filhos, de geração em geração. Como diz S. Paulo, quando um pecou, todos pecaram.   

Podemos entender como o povo ainda vive a sua fé com estes estereótipos ou categorias, mas que sacerdotes, bispos, cardeais e papas possuam ainda este imaginário, é triste. De alguma forma, os que acreditam na existência do demónio ou demónios são politeístas, já que, do modo como o demónio é descrito na sua essência e existência, é como se fosse o deus do mal. Os fiéis que caem, não uma nem duas vezes, nas ciladas destes espíritos, como sugere a oração, são, pelo menos nesse momento, adoradores do demónio e, portanto, politeístas.

O herói e o vilão em nós
Homo simul justus ed peccattor – santo, santo, santo é só Deus, nós sempre somos pecadores, pois algum grau de pecado está sempre presente em nós. Por isso somos fiéis e pecadores ao mesmo tempo. Se não estamos com Deus, não estamos com ninguém, pois não há ninguém para além d´Ele. Quem não recolhe comigo, dispersa, diz Jesus no evangelho (Lucas 12, 15-26)

Todo o santo já foi e ainda é pecador; todo o pecador pode ser santo. Existe no nosso interior um vilão e um herói, assim como um zé ninguém: tudo depende das opções que tomamos em cada momento da nossa vida. Os filmes antigos só mostravam as virtudes do herói e os defeitos do vilão. Na realidade, nem o herói tem só virtudes, nem o vilão tem só defeitos; a realidade desenha-se a preto e branco, mas entre estas duas cores primárias, há uma infinidade de tons de cinzento. Consequentemente, uns abeiram-se mais do preto, outros mais do branco.

De uma vida normal, sem problemas, não nasce um herói nem um vilão, mas muito provavelmente nascerá um neutro, um apático, um zé ninguém. Tanto o herói como o vilão tiveram um passado difícil e traumático. Vemos isso nos filmes, em especial nos desenhos animados: Bruce Wayne (Batman) viu morrer os seus pais assassinados. Peter Parker (Spiderman) causou, ainda que indiretamente a morte ao seu tio que o criara; Clark Kent (Super-homem) é órfão de um planeta onde todos os seus entes queridos foram destruídos.

Os filmes não revelam normalmente o passado dos vilões, para que não nos identifiquemos com eles. Mas também o vilão, tal como o herói, teve um passado traumático, no qual também foi vítima. O vilão utiliza o seu passado para justificar consciente ou inconscientemente as suas motivações e atos negativos. Sabemos que as vítimas de abusos sexuais se transformam, elas mesmas, em abusadores.

Portanto, tanto o herói como o vilão tiveram um passado de vítima e ambos passam o resto da sua vida vingando-se: o herói daqueles que cometem os crimes de que ele próprio foi vítima, encontrando prazer em repor a justiça, ajudar os desvalidos como ele um dia foi, sem que alguém o tivesse ajudado. O vilão é uma pessoa irrecuperável, uma vez que se vinga do mal que lhe fizeram nos inocentes de agora, ou seja, reproduz e perpetua continuamente a injustiça e o delito que sofreu.

No caso do herói, muitos filmes apresentam-no num  processo que começa por uma pessoa que a vítima conheceu, um mestre, um noviciado, um tempo de convalescença de ferimentos que faz com que a vítima se confronte com a sua dor, supere as ambições de vingança, o egoísmo e orgulho pessoal e a obrigue a sair de si mesma, vendo nos outros a dor que sofreu. É essa empatia adquirida que será o motor da sua vida de herói. Tomemos como exemplo Nelson Mandela: o tempo da prisão foi um tempo de deserto, de confronto consigo mesmo e com as atitudes de violência do tempo da juventude.

Neste sentido, o vilão é um herói irrecuperável, uma pessoa que não passou por este processo, ou que não teve a possibilidade de o fazer, ficou vítima toda a vida e vai reproduzir uma e outra vez no presente o crime sofrido no passado. Deste modo, pagará o justo pelo pecador, exatamente como aconteceu no seu caso, quando ele se transformou em vítima.

A maior parte de nós não se identifica totalmente com o herói nem com o vilão, mas com um meio termo: o anti-herói. Por isso, nos filmes modernos, é quase mais comum a figura do anti-herói com o qual mais gente se identifica que a figura do herói, que resulta entediante e inalcançável. Em tempos, o cinema exercia na sociedade uma função educativa e pedagógica de formação nos ideais humanos. Nos filmes de antigamente, quase não havia anti-heróis: os personagens eram heróis ou vilões.

Hoje, pelo contrário, os filmes quase não possuem heróis ou vilões, mas um sem número de variantes de anti-heróis para todos os gostos. São pessoas que se parecem connosco para nos dizerem subliminarmente que está bem o que fazemos; esquecemo-nos que “mal de muitos, consolo de tontos”, como diz o provérbio.

O filme já não é uma exortação a crescer como ser humano, a abraçar valores e ideais humanos, mas uma exortação a permanecer como somos. Esta é a razão do sucesso das séries e telenovelas, onde se espelha a vida do dia a dia, com personagens correntes, em nada diferentes de nós, e que confundem o ser com o dever ser. A ética desaparece, tudo está bem e é aceitável.

O mito da violência redentora
Quando o herói utiliza métodos violentos e menos convencionais, como por exemplo quando não confia no sistema judicial e faz justiça pelas próprias mãos, está a dizer-nos subliminarmente que a violência redime, que é justificada e que é a solução para repor a justiça ou resolver um problema. Na verdade, está a propagar um mito falso, pois a violência gera cada vez mais violência, ou seja, não resolve o problema e cria outros problemas.

Desde muito cedo que as crianças são doutrinadas neste sistema de domínio, por intermédio do culto e admiração pela figura do herói nos desenhos animados e depois em todos os filmes. A um herói invencível opõe-se um vilão aparentemente invencível também. As crianças, os jovens ou nós mesmos, identificamo-nos conscientemente com o herói. Neste caso, temos um bom conceito de nós mesmos. Mas inconscientemente também nos identificamos com o vilão, no qual projetamos a nossa ira reprimida, a nossa rebeldia e luxúria e desfrutamos da nossa maldade durante três quartos do filme em que o mau parece prevalecer.

Quando por fim, o bom acaba por prevalecer, depois de muito esforço e sofrimento, é como se no nosso íntimo conseguíssemos restabelecer a ordem sobre as nossas próprias maldades e maus instintos. Por isso gostamos tanto de ver filmes ou talvez necessitemos deles para manter a nossa agressividade sob controlo ou a um nível manejável. Este tipo de sublimação acontece também com o desporto: sempre é preferível que os grupos ou os países rivais se defrontem no estádio ou nos jogos olímpicos que no campo de batalha.

Os filmes funcionam então como uma catarse libertadora, pois a punição do vilão no cinema corresponde a uma autopunição das nossas tendências negativas. A salvação encontra-se na identificação com o herói, ficando assim justificado e reforçado o uso da violência e auto violência e a perpetuação do sistema de domínio.

Tal como nas antigas arenas romanas, onde os gladiadores lutavam entre si até à morte, onde os cristãos eram devorados pelas feras e tal como acontece, ainda hoje, nas arenas das touradas, a violência não é apenas um meio para obter a justiça e a paz: a nossa cultura tem feito dela um espetáculo agradável e gratificante.

HERÓI
O herói, no sentido mais clássico dos filmes antigos, costuma ser o protagonista da história, que procura alcançar objetivos nobres e de bem, através de meios justos e moralmente aceitáveis. Possui qualidades admiráveis num ser humano, como coragem, fé, determinação, perseverança e honra. E frequentemente sacrifica a própria vida para alcançar os seus objetivos, sobretudo quando estes têm a ver com pessoas que necessitam de ser salvas.

Os heróis na antiga Grécia eram semideuses, ou seja, eram filhos da união entre um deus e um ser humano. Por isso tinham características divinas, como Aquiles e os seus poderes sobre-humanos. Porém, também possuíam um calcanhar de Aquiles, ou seja, as suas vulnerabilidades que fazem com que nos pareçam mais terra-a-terra e mais suscetíveis e com que nos identifiquemos com eles.

O herói pode ser vulnerável, mas não tem defeitos, sobretudo defeitos morais. Ele é um puro altruísta, filantropo, amante da humanidade e, sobretudo, dos mais pobres, humildes, explorados e vitimizados, por quem está disposto a dar a vida. O herói pode também cometer erros, mas só porque pensava que estava a fazer uma coisa certa, ou seja, pode cometer erros de cálculo, erros acidentais.

Valores humanos em ação
O herói é um modelo de perfeição, encarna os valores humanos e aplica-os no seu dia a dia. Representa o nosso dever ser, na medida em que vive a natureza humana comum a todos da melhor maneira possível. É edificante ver os valores humanos a serem praticados por um personagem, seja na realidade, num filme ou num teatro.

Humildade – É a qualidade mais importante da pessoa humana, é a base de todas as virtudes. Quando existe humildade, muitas das outras virtudes podem existir; a não existência de humildade torna difícil a existência das demais virtudes. Ela é uma virtude e alicerce de virtudes.

A pessoa humilde assume a responsabilidade pelo erro e não busca bodes expiatórios para a sua culpa. O líder humilde dá o exemplo e não pede a ninguém que faça o que ele mesmo não está disposto a fazer. O líder humilde entende o poder como serviço.

Honra – É respeitar os teus superiores e merecer o respeito dos que estão sob o teu comando. É a reputação que conquistas junto daqueles a quem serves e dos que te servem a ti.

Coragem – A coragem não é a ausência do medo; o medo é próprio da natureza humana, só um tolo não o tem. A coragem é a força que vence o medo.

Compaixão – É ter misericórdia perante a miséria humana, é sentir a dor de quem a tem e procurar remediar o seu mal.

Fidelidade/Lealdade
- Permanecer fiel a si mesmo e aos outros quando estes enfrentam a adversidade.  Nunca desistir de alguém, não importa o quão difícil seja, pelo tempo que for preciso: essa é a verdadeira medida de qualquer grande relacionamento. Ser fiel à palavra dada, ao compromisso assumido, aconteça o que acontecer.

Honestidade – Ser pessoa de uma só palavra. Ser sincero em todo o momento, em todas as situações, sem subterfúgios, quando estamos sob observação e quando estamos sós. É evitar toda a tentação de corrupção, de dizer uma coisa e fazer outra, de ter duas caras. Ser honesto é ser fiel a si mesmo.

Prudência - Prudência é a capacidade de enfrentar a realidade de frente, sem permitir que a emoção ou o ego se intrometa, e fazer o que é melhor para todos.

Magnanimidade – É não abusar do poder, é perdoar e negar-se a si mesmo o direito de vingança segundo a lei de “olho por olho dente por dente”.

Bondade – Manifesta-se num simples sorriso, palmada nas costas, pequenas coisas que podem mudar a vida de uma pessoa. Para além dos gestos, também se manifesta em atos de caridade, conforme as circunstâncias e as necessidades dos outros.

Paciência – É saber esperar para que as coisas aconteçam; “Roma e Pavia não se fizeram num dia”, é dar tempo ao tempo, respeitar o tempo e o ritmo dos outros, assim como aceitá-los tal como são.

Generosidade – “Obras são amores e não boas razões”, diz o provérbio espanhol. “Palavras leva-as o vento”, as pessoas recordam mais o que fizeste por elas que o que disseste. Ser generoso é sair fora de si mesmo, é verdadeiramente amar o próximo como a ti mesmo, entendendo-o como tendo os mesmos direitos que tu.

Empatia – É a arte ou a capacidade de sentir como o outro sente, de ver a realidade como o outro a vê, de se imbuir na sua situação, de chorar com quem chora e de rir com quem ri. É saber comunicar ao outro que estamos com ele, sentimos com ele e com ele buscamos solução para o problema.

Cooperação – É trabalhar em equipa, é aceitar que os outros também têm ideias; é fracassar em grupo e ter êxito em grupo.

Assertividade – É o domínio da ira; é dizer o que tem de ser dito sem criticar nem atacar ninguém; é rejeitar o pecado sem rejeitar o pecador; é denunciar a injustiça sem acusar o injusto. É defender-se a si mesmo sem atacar o outro.

Integridade – A pessoa íntegra é uma pessoa que pauta a sua vida por valores humanos, aos quais presta vassalagem absoluta. A pessoa íntegra é inamovível nas suas convicções que são resultado da prática de todas as virtudes.

Conclusão - Em qualquer tempo e em qualquer lugar, em qualquer situação ou em qualquer circunstância, nesta ou naquela matéria, neste ou naquele facto histórico, o herói usou estas virtudes, estes valores humanos como couraça e espada e, por isso, é sempre bem-sucedido.

VILÃO
O vilão rompe a rotina, a harmonia, a paz, cria um conflito para o qual arrasta o herói. Se o herói é normalmente o protagonista da história, o vilão é o antagonista que contracena com ele. Também não olha a meios para alcançar os seus objetivos, que normalmente são mesquinhos, egoístas e giram à volta de valores temporais, do prazer, da riqueza, do luxo, do poder, da fama. Ao contrário do herói que se sacrifica pelos outros, o vilão sacrifica os outros pelo seu bem próprio.

Os contravalores do vilão
Os anti-valores do vilão são a antítese dos valores do herói. Quando os filmes tinham uma função educativa na sociedade, ou seja, quando eram histórias com mensagem e não uma nua e crua reprodução do que acontece no dia a dia, como são as telenovelas, as séries e muitos filmes da atualidade, a atuação do vilão, o seu objetivo, o seu comportamento, as suas obras e a consequência destas eram tão pedagógicos como a atuação do herói.

Se o herói nos dizia como tínhamos de nos comportar e provava a excelência desse comportamento no final feliz do filme, o vilão dizia-nos sub-repticiamente como não devíamos comportar-nos e provava-o na consequência das suas más obras, ou seja, no final infeliz para ele. Hoje, os filmes têm finais abertos e às vezes infelizes e deixam que sejamos nós, os espetadores, a tirar as nossas próprias conclusões. De certo modo, para o realizador do filme, qualquer que seja a conclusão, mensagem ou anti mensagem que tiremos do filme, tudo é aceitável para ele.

Orgulhoso, arrogante e fanfarrão - Demonstração ofensiva de superioridade ou autoimportância; orgulho arrogante. O vilão precisa de manifestar estas atitudes perante os outros para esconder o sentir-se insignificante em si mesmo, com o intuito de que os outros não descubram o que ele sabe de si mesmo. Alguém dizia acertadamente “quando vires um gigante diante de ti, certifica-te de que não é a sombra de um anão”. Só usa saltos altos quem não aceita e quer disfarçar a sua baixa estatura.

Egoísta – A pessoa egocêntrica pensa que o mundo gira à sua volta. O egoísta demonstra ser superior aos outros, pelo que os outros devem servi-lo. Dá-se uma importância que verdadeiramente não tem. Busca sempre o seu interesse, tirar partido dos outros e das situações, não pensa nas consequências que o seu comportamento pode ter para os outros ou como pode magoá-los, pois sofre de “miopia”, não vê bem à distância.

Dependente – Por causa do seu egoísmo, é dependente dos outros, precisa deles ao seu serviço, pois não consegue fazer as coisas por ele mesmo. É pessimista e desconfiado, pensa que os outros são como ele, por isso acha que o ataque é a melhor defesa. Os outros são seus inimigos à priori, razão pela qual vive sempre ansioso no confronto com os outros, não sendo livre e independente como o herói.

Desonesto – Em pecados cometidos e de omissão. Conta mentiras ou esconde a verdade, quando a diz é uma meia verdade, finge, faz-se de vítima. Oculta informações importantes e adiciona detalhes falsos a histórias e situações. Rouba, ludibria…

Enamorado do poder e do controlo – Não tem nenhum poder nem controlo sobre si mesmo, sobre a sua ira, as suas paixões e, por isso mesmo, quer ter poder e controlo sobre os outros. Exerce este poder e controlo sempre em proveito próprio, manipulando, chantageando, punindo, torturando, enganando, estendendo armadilhas e armando ciladas para os outros caírem.

Ressentido, vingativo, intolerante, violento – Não perdoa nunca e nem sequer tem o sentido da justiça de “olho por olho e dente por dente”, ou seja, paga na mesma moeda, quer sempre ficar por cima e por isso excede a violência que lhe foi feita, ou seja, tira os dois olhos a quem lhe tirou um.

Preconceituoso – Tem opiniões sobre tudo e sobre todos que nunca viram a luz da razão, ou seja, nunca foram analisadas à luz da razão. Os pretos são assim, os ciganos são assados, os ingleses são assim, as mulheres… tudo são opiniões sobre grupos de pessoas e sobre tudo em geral, guiando-se na vida por estes preconceitos e não pela razão nem pela realidade presente.

Racionaliza – Encontra uma justificação para tudo o que faz; neste sentido, facilmente se perdoa a si mesmo pelo ato mais cruel. Os outros nunca têm justificação para fazer o que fazem contra ele, mas pelo contrário, ele está sempre certo. É com os gatos que sempre caem de pé.

Invejoso – Por isso também é mexeriqueiro, fala mal dos outros, critica-os nas suas costas, nunca vê o bem em ninguém. Mas, no fundo, quer ter o que eles têm ou mesmo ser o que eles são.

Avarento – Guloso, é avarento excessivo em tudo o que faz e quer. Quer tudo de tudo e de todos: ser o centro das atenções, ter dinheiro, riqueza, luxo, gozar a vida, usufruir de todos os prazeres, sexo, droga, comida, bebida. A vida é para ser gozada, morra Marta morra farta.

Conclusão – Qualquer que seja o guião, no filme ou na vida, real o vilão exerce algum destes defeitos ou muitos deles sempre no intuito de vencer, de tirar o melhor partido dos outros e das situações, porque fundamentalmente ele acha-se o centro das atenções e o mundo está todo em dívida para com ele.

ANTI-HERÓI
 
Má reputação
Na minha aldeia sem pretensão
Tenho má reputação,
Faça o que faça é igual
Todos o consideram mal

Penso que a ninguém faço dano
Por querer viver fora do rebanho;

As pessoas não gostam que
Um tipo tenha a sua própria fé (bis)
Todos, todos me miram mal
Salvo os cegos é natural.

No dia da festa nacional
Fico na cama igual,
Pois a música militar
Nunca foi capaz de me levantar.
Neste mundo não há maior pecado
Que o de não seguir o abandeirado.

Se pela rua corre um ladrão
E o persegue um ricalhão
Ao ladrão passo-lhe uma rasteira
E esmago o ricalhão
Onde tinha eu a tola
Pois acabo de meter o pé na argola
 George Brassens
 

O morcego
A Águia, rainha das aves, e o Leão, rei dos bichos, estabeleceram uma trégua à guerra que travavam já havia algum tempo e reuniram-se um dia para decidir o que fazer com o morcego. A Águia denunciava o comportamento do morcego porque se juntava com as aves, quando estas eram vitoriosas, dizendo ser como elas, pois voava. O Leão fazia a mesma queixa, pois quando os bichos o acusavam de ser uma ave espia, ele dizia que era bicho pois não tinha bico, mas boca e dentes, não tinha penas, mas pelo. No fim tanto os mamíferos como as aves condenaram-no a viver sozinho e a voar só à noite.
Fábulas de Esopo

Os textos acima citados revelam algumas características do perfil do anti-herói, pessoa difícil de categorizar, ovelha negra do rebanho, com muito amor próprio e um certo egoísmo sem exagero. Não se mete com ninguém mais ai de quem lhe pise os calos! Oportunista, busca o próprio interesse com o mínimo esforço e sem grande prejuízo dos outros.

O anti-herói tem caraterísticas de herói, mas também tem traços comuns com o vilão: não encarna ideais como o herói, é um personagem normal e corrente, não é mau nem é bom. Não é altruísta como o herói, mas sim egoísta como o vilão, embora não desça tanto como este, nem suba tanto como aquele.

Uma das grandes diferenças em relação ao herói é que, enquanto para este os fins não justificam os meios que se utilizam para os atingir, por mais nobres que sejam, para o anti-herói os fins justificam os meios, por mais violentos e imorais que estes sejam. O anti-herói tem-se a si mesmo como pessoa realista, não idealista, busca soluções práticas a curto prazo, não acredita no sistema de justiça estatal que considera demasiado brando e não resolve os problemas.

Atua na lógica do olho por olho dente por dente. Por isso, costuma ser mais justiceiro que justo, igualando-se ou até mesmo superando o vilão no uso da violência que considera plenamente justificada. Egoísta e motivado mais pelo interesse próprio que pelo interesse comum, em caso de conflito, nunca sacrifica o interesse próprio, ao contrário do herói. Se coincidirem, muito bem; se não coincidirem, ele procura sempre puxar a brasa à sua sardinha. O anti-herói nunca coloca a sua própria vida em risco em prol dos outros, como o herói faz.

Entre o branco do herói e o preto do vilão há um sem número de matizes cinzentos que correspondem a múltiplas formas de ser anti-herói. Há exemplos para todos os gostos: anti-heróis, mas próximos dos heróis e outros mais próximos dos vilões.

Como exemplos de anti-heróis, temos o anão Tyrion da Guerra dos Tronos, com quem muitos se identificam; tem uma certa nobreza, mas, como se diz em português, é dos que só dá um chouriço a quem lhe der um porco; tudo tem sempre um preço, um “quid pro quo”. O anti-herói é sempre uma pessoa limitada: pode faltar-lhe sentimento, beleza física, inteligência, força de vontade, motivação, virtudes, qualidades que o herói possui em abundância.

Nos filmes e nas séries, o herói e o vilão são personagens tão simples e previsíveis que provocam algum desinteresse. A figura do anti-herói dos filmes de agora é bem mais complexa e difícil de prever em termos de reação e ação. Por vezes, a sua inclinação aproxima-se mais do vilão, outras vezes do herói, mas nunca encaixa cem por cento em nenhum dos dois.  

Os valores do anti-herói são uma mistura personalizada dos valores do herói e dos contravalores ou defeitos do vilão. Cada anti-herói tem a sua mistura própria, consoante a sua educação e as vicissitudes da sua vida. É sempre uma figura ambígua, complexa e misteriosa, difícil de definir porque tem traços tanto de herói como de anti-herói.

Para ilustrar este texto, escolhi a personagem de Batman, como herói, do Joker, como vilão, ao contracenar com Batman de uma maneira algo divertida, mas implacável nas suas ações. Finalmente, temos Jack Sparrow como anti-herói, com quem quase todos se identificam por representar ou ser o símbolo da “aurea mediocritas”, ou seja, da moderação em todos os sentidos: não tem uma fasquia muito alta quanto a ideais, nem muito baixa quando a defeitos.

Como já dissemos, a figura do multifacetado anti-herói é a que domina a indústria cinematográfica. Uma vez que reproduz no ecrã a vida simples do cidadão comum, é mais fácil para as pessoas identificarem-se com ele do que com o herói de factos extraordinários e virtudes inalcançáveis.

A fasquia foi rebaixada, os ideais de autossacrifício pelo outro são coisas de outras eras. As pessoas não querem ser úteis, mas sim felizes e ter uma boa vida. Se para isso for preciso prevaricar, prevaricam, se for preciso infringir a lei em todas as suas provisões, infringem e esperam não ser apanhadas. Num mundo onde a verdade e praticamente tudo é relativo, vale tudo; ninguém dá nada por nada, é o “salve-se quem puder” e como puder.

Conclusão: Para trás ficou o tempo dos heróis e dos vilões, quando os filmes tinham fins educativos. No mundo das “50 sombras de Grey” há muito mais que 50 perfis de anti-heróis

Pe. Jorge Amaro, IMC
















 

 

1 de novembro de 2020

3 Requisitos para ser Homem: Filho - Livro - Árvore

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Há três coisas que cada pessoa deveria fazer durante a sua vida: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. José Martí, poeta cubano (1853- 1895)

Certas frases ficam famosas porque foram ditas por gente famosa. Qualquer frase dita por Einstein ou Gandhi, por exemplo, fica “ipso facto” famosa porque foi assinada por um homem famoso. Mas muitas dessas frases dizem pouco. São como os quadros medíocres de um pintor famoso, aos quais é atribuído automaticamente um valor intrínseco, acabando por ser vendidos por milhões.

O autor do dito tridimensional que escolhemos para título deste texto não é universalmente conhecido como os autores que mencionamos. Portanto, não foi a sua fama que deu popularidade ao dito, mas foi pelo contrário o dito que deu popularidade ao seu autor.

A popularidade deste dito deve-se ao facto de direta ou indiretamente, apelar à verdade da nossa existência. Somos seres espácio-temporais, ocupamos um espaço durante um breve período de tempo. Por isso a nossa vida precisa de uma justificação, precisa de fazer sentido para nós, para Deus (no caso de sermos crentes) e para o nosso meio social.

É certo que, tal como está formulada, a frase pertence a José Martí; mas a mesma encerra uma ideia que já tinha sido expressa por Maomé muitos séculos antes e na qual o poeta cubano se terá inspirado:

A recompensa de todo o trabalho que realiza o ser humano, finaliza quando este morre, à exceção de três coisas: uma esmola dada continua, um saber ou conhecimento beneficente e um filho piedoso que peça por ele quando este estiver no sepulcro. Maomé

Apesar de a verdade do dito ou a versão original que inspirou Martí ir mais além do que o próprio autor pensou, por ser um pensamento verdadeiramente original e até de alguma forma insólito, é justo que digamos uma palavra sobre a identidade do autor que o popularizou.

Quem foi José Martí
Herói nacional de Cuba e símbolo da luta pela independência de Espanha, é reconhecido como o mais universal dos pensadores da Ilha de Cuba. Poeta, jornalista, autor, filósofo, político, guerreiro e apóstolo da independência de Cuba do domínio espanhol; neste sentido, inspirou as outras independências que se seguiram na América Latina. Apesar de ser um grande pensador e escritor, não morreu de velho escrevendo, mas sim jovem em combate, no dia 19 de maio de 1895 na batalha de Dois Rios.  Com a sua efígie se cunharam moedas em Cuba e o seu nome designa hoje o do Aeroporto Internacional de Havana.

A letra da internacionalmente famosa canção popular Guantanamera é da sua autoria. A frase que inspira este texto não é um caso isolado em relação à obra e pensamento de Martí, sendo corroborada no contexto de tantas outras que revelam Martí como um grande humanista. Sendo José Martí cubano, aguerrido lutador pela liberdade e pela independência de Cuba, facilmente podemos apelidá-lo de socialista ou comunista. 

Para quem tenha essa tentação, recordo que Martí é contemporâneo de Marx quando ainda não se tinha dado nenhuma revolução comunista e ainda só era vivo o pai de Fidel Castro. Na verdade, Martí é muito crítico em relação ao pensamento marxista e ao seu sistema de governo. Entendia que o que valia para a Europa não valia para a América Central.

·        Contra a ditadura do proletariado dizia: O direito do trabalhador não deve ser o ódio ao capital, mas sim a harmonia, a conciliação, a aproximação entre os dois.

·        Contra a abolição da propriedade privada dizia: É rica a nação que conta com muitos pequenos proprietários.

·        Contra a privação da liberdade que seria uma das características dos Estados que aplicaram o comunismo e como ainda hoje acontece na China, dizia: A liberdade é a essência da vida, tudo o que é feito sem ela é imperfeito. (…) É uma desgraça para a liberdade que esta se transforme em partido político.

·        Como humanista disse: O ser humano necessita sair de si mesmo para encontrar descanso e se revelar a si mesmo. (…) A animosidade racial não pode existir porque não há raças (…) A humanidade é composta por duas classes de homens, os que amam e criam, e os que odeiam e destroem. (Carta a um agricultor cubano)

Ars lunga vita brevis
A arte é eterna, a nossa vida é breve. Geralmente, entende-se por arte toda a atividade humana ligada a manifestações de ordem estética. O nosso conceito de arte vai mais além da atividade humana materialista. Inspirados em Erich Fromm e na sua obra “A arte de amar”, entendemos que arte é toda a atividade humana que cultiva e visa desenvolver um valor humano.

O amor é uma arte, o diálogo, a harmonia, a não violência, a paz é uma arte. A expressão Belas Artes, referindo-se exclusivamente à pintura, escultura, música, dança, teatro e literatura, deveria desaparecer, pois, todas as artes são belas.

Porque a arte se refere ao cultivo de um valor humano, é eterna. Porém as artes não se cultivam a si mesmas, são cultivadas por seres temporais que somos nós. No meu entender, tanto do ponto de vista humano como do ponto de vista da fé, adquirimos a vida eterna na medida em que cultivamos valores que são eternos.

Mozart e Beethoven, por exemplo, entregaram a sua temporalidade à música, fizeram-na progredir e elevaram-na a novos máximos. O mesmo fez Picasso com a pintura, Gandhi e Mandela com a não violência, etc. Entre estes autores que mencionámos e a arte à qual dedicaram a sua vida deu-se uma relação simbiótica: eles deram a sua temporalidade caduca e mortal à arte, e esta recompensou-os com a sua eternidade.

Quando cultivamos valores eternos escrevemos o nosso nome na História da humanidade, pois adquirimos nome, popularidade, fama que neste sentido são sinónimos de “eternidade” e, ao mesmo tempo, também escrevemos o nosso nome no “Livro da Vida”, expressão tantas vezes citada na Bíblia como sinónimo do Céu e da vida eterna com Deus.

Pelo contrário, quando cultivamos valores temporais e caducos, ou seja, quando dedicamos o nosso tempo e a nossa energia a cultivar realidades como a riqueza, o poder, a beleza física, o luxo, a ostentação, o prazer físico em todas as suas formas e possibilidades, alienamos a nossa vida, porque estamos a usá-la para cultivar a morte.

Se durante a vida e com a nossa vida cultivamos a morte, que podemos esperar quando eventualmente a morte nos encontrar? É evidente que a morte eterna é uma forma de entender o inferno. A nossa vida temporal desemboca em vida eterna se cultivarmos valores eternos, ou em morte eterna, se cultivarmos valores temporais (ou seja, se usarmos temporalidade (a nossa vida) para cultivar mais do mesmo: temporalidade).

Fugit tempus carpe diem
Esta expressão, especialmente a segunda parte, “carpe diem”, tem sido usada como justificação para gozarmos a vida ao máximo. No entanto, no devido contexto do seu significado antigo, significa exatamente o oposto. É uma exortação à atividade: como o tempo é curto, não devemos desperdiçá-lo, mas devemos aproveitá-lo bem, vencer a preguiça ou o “dolce fare niente”; “não deixar para amanhã o que podemos fazer hoje”; “guardar que comer não guardar que fazer”.

O tempo escapa-nos. Aproveitemos o dia para nos tornamos eternos no cultivo da arte que os nossos talentos nos sugerem. Na mente de Deus, ninguém vem ao mundo por acaso, nem por acidente. Todos os que nascem, nascem porque Deus o quis e vêm a este mundo com um projeto que Deus traçou. Neste sentido, Deus dá a cada um os talentos suficientes para que a sua vida seja viável.

A cada pessoa cabe a tarefa de os descobrir, arriscando-se a fazer e tentar coisas para as quais não sabe se tem ou não talento; só o saberá se tentar. “Quem não se arrisca, não petisca”, uma pessoa apenas ficará a saber se tem talento para cantar se abrir a boca e soltar a voz.

Por outro lado, não devemos perder tempo a admirar e até a invejar os talentos dos outros. Enquanto estamos focados nos talentos dos outros, perdemos o tempo de que precisamos para descobrir os nossos. Pior ainda, se tentarmos imitar os talentos dos outros, estaremos a fingir ser quem não somos. Nós somos a melhor versão de nós mesmos. Mas quando tentamos imitar ou copiar outra pessoa, facilmente somos ultrapassados pelo original dessa pessoa. Seguir a rota que conduziu outros ao êxito não garante, por si só, que tenhamos nós também êxito. Cada um deve seguir a sua própria via.

Segundo José Martí, as três coisas que estamos chamados a fazer para justificar termos nascido, ou para tornar a nossa vida produtiva, para deixarmos cá mais do que o que cá encontrámos, são:

Plantar um a árvore – uma clara referência à ecologia, a patrocinarmos um desenvolvimento que não comprometa a saúde do planeta e a vida dos que vierem depois de nós. Incita-nos a ultrapassar o momento presente e o consumismo, aquela mentalidade do burro que dizia “depois de eu morrer pouco me importa que cresça ou não erva, já não vou comê-la”. Faz-nos pensar no longo prazo.

Ter um filho – no Céu, como diz Jesus, as pessoas não são dadas em casamento porque não existe a morte. Porque existe a morte, tem de haver reprodução. Mas Martí não se referia apenas ao ato físico de continuar a espécie humana, mas sim à educação deste novo ser que trazemos ao mundo. Um mundo novo não pode ser formado por homens velhos; um mundo melhor não pode ser formado por homens piores.

Escrever um livro – quem diz um livro, diz uma partitura de música, uma peça de teatro, a criação de uma vacina, uma descoberta científica. Depois de contribuir para a melhoria do nosso habitat que é o nosso planeta, para um mundo melhor, formando pessoas melhores, trata-se agora de contribuir para o avanço da ciência e da técnica, da filosofia e de todas as outras artes e ciências que vão melhorar as condições de vida das gerações futuras.

ÁRVORE
Aquele que antes da sua morte plantou uma árvore, não viveu inutilmenteProvérbio índio

No ano passado escrevemos acerca do desenvolvimento sustentável e dissemos que é uma dessas realidades tridimensionais pois, para ser sustentável, qualquer desenvolvimento económico deve pensar no impacto ambiental que o projeto em causa vai ter, se é económica e financeiramente sustentável, proveitoso e lucrativo. Por fim, devemos considerar a quem serve tal projeto, quais são as pessoas afetadas positiva ou negativamente, quem recebe os lucros, se vai criar desigualdades sociais ou não.

Como já tratámos do tema extensivamente num artigo escrito no ano passado, reproduzimos aqui excertos de dois discursos bem articulados sobre o tema, pronunciados em dois fóruns ecológicos historicamente importantes: o do Rio de Janeiro em 1992, no qual discursou Fidel Castro, e o da ativista Greta Thunberg, sueca de 15 anos de idade, na ONU no dia 23 de setembro de 2019.

Excelências:
Uma importante espécie biológica está em risco de desaparecer em virtude da rápida e progressiva liquidação das suas condições naturais de vida: o Homem. Tomamos agora consciência deste problema quando já parece tarde para o impedir.

Note-se que as sociedades de consumo são fundamentalmente responsáveis pela terrível destruição do ambiente. Nasceram das antigas metrópoles coloniais e políticas imperiais que, por sua vez, geraram o atraso e a pobreza que hoje assolam a grande maioria da humanidade.

Com apenas 20% da população mundial, consomem dois terços dos metais do mundo e três quartos da energia mundial. Envenenaram os mares e os rios, poluíram o ar, enfraqueceram e perfuraram a camada de ozono, saturaram a atmosfera com gases que alteram as condições climáticas com os efeitos catastróficos que já estamos a começar a sofrer. (...)

Para que a humanidade seja salva da autodestruição, as riquezas e tecnologias disponíveis no planeta devem ser melhor distribuídas. Menos luxo e menos desperdício em alguns países, para que haja menos pobreza e menos fome em grande parte da Terra (...). Torne-se a vida humana mais racional. Aplique-se uma ordem económica internacional justa. Use-se toda a ciência necessária para o desenvolvimento sustentado sem contaminação (...).

Quando as supostas ameaças do comunismo desapareceram e não há pretextos para guerras frias, corridas armamentistas e gastos militares, que nos impede que esses recursos se usem para o desenvolvimento do Terceiro Mundo e para combater a ameaça de destruição ecológica do planeta? Cessem os egoísmos, cessem as hegemonias, cesse a insensibilidade, a irresponsabilidade e o engano. Amanhã será tarde demais para fazer o que deveríamos ter feito há muito tempo. Obrigado.

Fidel Castro, Rio de Janeiro, 1992

Estamos de olho em vós, líderes internacionais. Isto está completamente errado. Eu não deveria estar aqui. Eu deveria estar na minha escola, do outro lado do oceano. (…) Roubastes-me os sonhos da minha infância com as vossas palavras vazias. Em tudo isto, tenho que dizer que sou uma das pessoas com mais sorte. Há pessoas a sofrer e a morrer porque os nossos ecossistemas estão a morrer. Há mais de 30 anos que a ciência tem sido clara; como vos atreveis a ignorá-la?

Estamos a assistir ao começo de uma extinção em massa. E tudo o que fazeis é falar de dinheiro e de contos de fadas sobre um crescimento económico eterno. (…) os jovens já começaram a entender a vossa traição. (…) O mundo está a despertar e a mudança está a chegar, quer vós queirais ou não. Obrigada. Greta Thunberg, 15 anos, discurso perante a Assembleia Geral da ONU, 23 de setembro de 2019

A economia deve ser repensada, abandonando-se a ideia de que tem de crescer permanentemente. Num sentido puramente físico, uma economia em contínuo crescimento só seria possível num planeta que também crescesse, ou seja, num planeta onde os recursos crescessem. Vai contra as leis da física que uma economia fortemente baseada e dependente de recursos que são finitos possa crescer indefinidamente.

Os interesses mesquinhos do presente de alguns impedem que vejamos o problema na sua totalidade. A 2 de novembro de 2019, o líder indígena Paulo Paulino Guajajara, um dos denominados Guardiões da Floresta, um grupo de indígenas dedicado a proteger a floresta amazónica da destruição ambiental, foi morto por um grupo de invasores das terras indígenas.

Segundo a NASA, em 16 de agosto de 2019, uma análise dos dados de satélite indicava que o total de incêndios na Amazónia nesse ano de 2019 estava próximo da média, em comparação com os últimos 15 anos. A importância desta floresta está menos ligada à produção de oxigénio, pois a maior parte deste vem das algas marinhas, e mais à absorção do dióxido de carbono - a floresta é o filtro de ar do mundo.

Por mais inteligente que a raça humana seja e por mais científicas que sejam as investigações sobre as mudanças climáticas e a subida do nível do mar, as catástrofes de inundações e secas, a contaminação dos oceanos e dos ecossistemas, as doenças que constituem uma ameaça comum, o ser humano permanece egoisticamente numa atitude de negação, escondendo a cabeça debaixo da areia. Todos pensam que o pior não acontecerá no seu tempo, como pensava o burro acima citado e, quando esse tempo chegar já não haverá nada a fazer.

“Quem planta tâmaras não colhe tâmaras”
As melhores palmeiras de tâmaras do mundo estão plantadas na cidade mais baixa e mais antiga do mundo: Jericó. Por coincidência, esta palmeira tarda em dar frutos. Daí nasceu o provérbio que nos diz que quem planta tâmaras não chega a recolher o fruto do seu trabalho, outro o fará.

É esta forma de pensar, diametralmente oposta à atitude do burro que só se preocupava com o seu próprio sustento, que temos de adotar para repensar o nosso mundo. Quem hoje come tâmaras está a comer o suor daquele que as plantou e não as comeu. Assim devemos nós pensar em relação às gerações futuras: plantar hoje as tâmaras que eles vão comer. Devemos preparar hoje o ambiente onde eles vão viver ou, pelo menos, não o estragar.

FILHO
Faça homens quem quer fazer povos. José Martí

O capítulo anterior era sobre o mundo que deixamos aos nossos filhos. Este capítulo, não menos importante e preocupante, é acerca do tipo de filhos que deixamos ao nosso mundo. Hoje muitos pais alcatifam a vida dos seus filhos, tirando-lhes todos os problemas do caminho, resolvendo-lhes os mais pequenos problemas, dizendo a nós mesmos como pais “eu não quero que o meu filho passe por aquilo que eu passei”. Ao fazer isto, esquecemo-nos de que hoje somos o que somos porque passámos por onde passámos.

Uma das regras de uma boa educação é responsabilizar a criança a partir do momento em que pode ser responsabilizada. Se uma criança já pode fazer algo, deve fazê-lo; se já pode lavar pratos, deve lavá-los, se já pode fazer a cama, deve fazê-la. Se já puder resolver os pequenos problemas que vão aparecendo, deve resolvê-los, pois eles farão com que a criança cresça mais forte e mais preparada para problemas mais graves e mais difíceis no futuro.

Demos-lhes todas as liberdades demasiado cedo e nunca lhes impusemos limites, nunca lhes dissemos que não; agora, não sabem o que querem, não têm capacidade de decisão. Dizem “eu quero manter todas as minhas opções em aberto” e, de facto, muitos mantêm essas opções em aberto grande parte das suas vidas, sem se comprometerem com nada nem com ninguém. A geração atual já não quer abandonar a casa dos pais porque não está preparada para a vida. Estes jovens perdem tempo nessa rotunda ou cruzamento e, com 30 ou mais anos de idade, ainda não sabem o que fazer na vida.

Por não se decidirem nem se comprometerem, o Estado foi obrigado a criar leis que os consideram casados quando vivem juntos por um determinado tempo, ativando o divórcio se decidirem separar-se. Não podemos viver a vida sem nos comprometermos com ela. Escolher significa dizer que sim a um caminho e não a todos os outros. Eventualmente, muitos destes indivíduos chegam a ser pais quando já têm idade para ser avós.

Pais ausentes
O fracasso dos filhos é quase sempre responsabilidade dos pais. A escola é igual para todos, a rua também, o que faz um rapaz ou rapariga fracassar na escola e não obter a educação que deveria ou fracassar na rua, sendo vitimizado pelos outros ou deixando-se levar pelos caminhos da droga, da delinquência juvenil ou do sexo demasiado precoce, é a educação que recebe em casa. Esta fortalece-o ou enfraquece-o para enfrentar a escola e a rua, ambientes sempre hostis em comparação com o lar onde recebe amor incondicional.

Muitos pais não estão preparados para o serem e repetem os erros que os seus pais cometeram com eles. Este mundo dá muita importância à preparação técnica e profissional dos trabalhadores, mas nenhuma à educação. Não há cursos para aprender a ser pai ou mãe. A criança está abandonada, vive abandonada. Passa a maior parte do tempo na escola que não educa, apenas forma profissionalmente. Chega a casa tarde e cansada, tal como os outros membros da família. Só há tempo para o jantar e para dormir, pois há que levantar cedo.

Apesar dos milhões de anos de evolução que nos separam dos primatas e demais mamíferos, a família humana é ainda bastante monoparental, como acontece com os mamíferos. O pai permanece ausente, em muitos casos, e entrega a educação das crianças à mãe que, consoante tenha ou não trabalho fora do lar, é mais ou menos omnipresente. O pai não acompanha a vida da criança e é relegado a um papel de tribunal supremo onde chegam as questões que a mãe não consegue resolver; antigamente, o pai era o poder punitivo que fazia cumprir as leis.

Numa família onde o pai está ausente, os rapazes crescem sem modelo de identificação, pois pouco se relacionam com a figura paterna. As raparigas crescem sem a primeira experiência do masculino. Freud tinha razão: a relação que estabelecemos com o progenitor do sexo oposto vai ser mais tarde largamente repetida. As raparigas que carecem de pai namoram mais cedo e têm tendência a enamorar-se por rapazes mais velhos que elas, ou seja, inconscientemente não buscam um noivo ou um amigo, mas sim um pai.

Se pensarmos nos famosos, naqueles que alcançaram fama no mundo da política, das artes, da literatura, da medicina ou da música etc. veremos que na sua maioria se dedicaram inteiramente à sua arte, negligenciando os filhos acabando por ser maus pais. Estes são pais que não se conhecem pelos seus filhos e os filhos costumam ser pessoas anónimas, não herdando absolutamente nada dos pais.

Ter filhos ou animais de estimação
«Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos.» Marcos 7, 27

Há casais que equacionam ter animais de estimação em vez de terem filhos. Se se casaram pela igreja, o matrimónio é inválido, pois prometeram ter filhos e educá-los segundo a fé católica. Para quem não acredita na ressurreição e na vida eterna, os filhos são a única forma de a pessoa humana se imortalizar. Os seus genes não morrem, vivem nos filhos e nos filhos dos seus filhos, de geração em geração.

A quantidade de dinheiro que uma família gasta na manutenção de um animal de estimação daria para uma família num país pobre viver durante meses. Segundo o livro do Génesis, aprendemos que o animal está ao serviço do homem; um animal de estimação numa casa não presta qualquer serviço ao homem. Os cães podem guiar cegos, podem ajudar a polícia, podem ajudar o pastor, podem guardar uma quinta; os gatos caçam ratos. Hoje em dia que serviço prestam ao homem os animais de estimação? Nenhum. É o homem que está ao seu serviço.

Acabado de regressar da Etiópia e estando eu num parque de Barcelona à espera da hora da missa de uma paróquia, vi uma senhora passeando o seu cachorro. A dada altura, o animal fez as suas necessidades e a senhora tirou do seu bolso um saco com o qual apanhou os excrementos do animal e os depositou no lixo. Seguidamente, tirou também do seu bolso um lenço de papel e limpou o cão. Fiquei escandalizado, este mundo humaniza os animais e desumaniza os humanos.

Soube de um gato que estava ligado a uma máquina que mantinha artificialmente as suas funções vitais; o médico chamou os donos do animal de estimação, informou-os de que não havia nada a fazer: além dos rins, vários outros órgãos vitais já não funcionavam, pelo que ele sugeria desligar a máquina e solicitava autorização para isso. Os donos do gato, que aliás até se apresentaram como família do gato, além de não autorizarem que se desligasse a máquina, chamaram cruel ao médico veterinário.

Num programa radiofónico acerca de animais de estimação de uma estação de rádio londrina, uma senhora inquiria o locutor sobre a razão pela qual o seu gato, a quem tratava de filho, dormia uma vez com ela, outra vez com o seu marido.  Não recordo bem o que respondeu o referido locutor, mas recordo muito bem que ficou nitidamente agastado com a pergunta.

Ser pai e ser mãe é a vocação de todo o homem e de toda a mulher
Como há muitos progenitores que nunca chegam a ser verdadeiros pais ou mães, assim há pais que não são progenitores. Tanto para a criança como para os adultos que exercem a função de pais adotivos, o mais importante não é ser progenitor, tarefa que demora poucos minutos para um homem e 9 meses para uma mulher. O mais importante é educar.

Um colega meu, missionário da Consolata como eu, chamava mãe à tia e tia à mãe. Eram duas irmãs, uma teve um filho por acidente e, mais tarde, encontrou um noivo que queria casar com ela, mas não queria o filho dela. Este foi dado à irmã, que o perfilhou com muito amor e o educou com todo primor. Não pensava casar-se e de facto nunca casou, viveu para aquele menino que se transformou num grande missionário.

Ninguém negaria o título de Madre a Madre Teresa de Calcutá e, no entanto, ela nunca deu à luz qualquer filho; mas comportou-se como mãe para centenas de crianças órfãs e, com as suas irmãs, educou-as. Os sacerdotes católicos que não casam nem têm filhos são chamados de Pai, padre, enquanto que os sacerdotes protestantes e ortodoxos que casam e têm filhos não são apelidados de padres. A razão do sacerdote não se casar é precisamente a de ser pai espiritual dos seus fiéis, educando-os na fé e tantas vezes humanamente.

Um tiro no pé
A sociedade ocidental não tem crianças. As famílias ocidentais não conseguem ter mais de um ou dois filhos porque fica caro mantê-los. Vivemos num mundo rico onde a vida é dura e custa muito. Num matrimónio jovem, em que ambos acabaram de conseguir o primeiro emprego, não é fácil suportarem o pagamento da casa e das despesas de uma criança até à idade escolar, que custam mais que as despesas de um universitário.

Esse é o tiro no próprio pé que a sociedade ocidental está a dar. Nenhum casal jovem consegue pagar o correspondente a um salário mínimo para manter o seu filho ou filha num jardim de infância antes da escola primária. Depois do jardim de infância, é relativamente barato manter uma criança, mas não na idade pré-escolar. Esta é, no meu entender, uma das razões para a baixa natalidade: não se trata de má vontade das famílias, trata-se mais da dificuldade económica que transforma um filho num luxo.

LIVRO
(…) Todo o povo se reuniu, como um só homem, na praça (…) Esdras leu o livro, desde a manhã até à tarde, (…) e todo o povo escutava com atenção a leitura do livro (e) chorava ao ouvir as palavras da Lei Neemias 8, 1, 3, 9

No mundo antigo e medieval, a identidade de um povo, a sua forma de ser e existir, o seu carácter, a sua língua, a sua cosmovisão e idiossincrasia eram defendidas e preservadas por muralhas e construídas por livros, epopeias, obras literárias. Atualmente, há ainda muitas cidades fortificadas, como Óbidos e Marvão, castelos e muralhas como a que divide a Inglaterra da Escócia, construída pelos Romanos; e a famosa muralha da China, com milhares de quilómetros, que divide a China em duas.

O que verdadeiramente cria um povo é uma obra literária. É impensável o povo judeu sem a Torah, sem os livros da lei e os profetas. O que define e caracteriza o povo grego são a Ilíada e a Odisseia de Homero; o ex libris do povo italiano é a Divina Comédia de Dante Alighieri; o que define o caráter do povo espanhol é o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes; a alma russa encontra-se em Dostoievski, no seu livro Os Irmãos Karamazov. A alma portuguesa ou lusitana está nos Lusíadas de Camões.

Ler e viajar
“Quem quer saber, é viajar ou ler”, diz o provérbio. No mundo antigo, as rotas comerciais, como a rota da seda, a rota do incenso, a rota dos metais, não só serviam para o intercâmbio de produtos, como também para o intercâmbio de ideias e descobertas científicas. A pólvora foi descoberta na China, mas chegou ao ocidente pela rota da seda; o trabuco ou os primeiros lançadores de projéteis foram engendrados no ocidente, mas chegaram à China por meio de Marco Polo.

Os povos que mais se desenvolveram foram os que estabeleceram melhores vias de comunicação. Não é por acaso que os povos mais desenvolvidos nasceram à volta do Mediterrâneo e dos grandes rios que eram, em si mesmos, rotas comerciais. Os povos isolados, como os aborígenes na Austrália, os índios da Amazónia, permaneceram primitivos até aos dias de hoje.

O livro é um veículo de comunicação, de transferência e intercâmbio de conhecimento e é mais eficaz que a rota comercial porque não só une povos entre si no momento presente, como também os une de geração em geração. O livro veio substituir a cultura e tradição oral de passar os conhecimentos de pais para filhos. Pela tradição oral, perdiam-se conhecimentos, pela cultura livresca, nada se perde a não ser que se queimem os livros, como aconteceu com a biblioteca de Alexandria, a melhor e mais apetrechada do mundo antigo.

Existem hoje outros meios de comunicação, como a rádio, a televisão e a Internet, bem mais simples de utilizar do que o livro. Por isso, os livros, os jornais, as revistas estão a desaparecer como veículos de cultura; mas talvez não desapareçam por completo. Alguns estudos recentes indicam que retemos mais o que lemos num livro que o que aprendemos através da TV ou rádio. “Palavras leva-as o vento” Eu diria que as palavras que nos chegam por via oral, pelo som, o vento leva-as porque é o vento que as traz; porém, as que nos chegam por via da leitura ficam.

Estudos semelhantes têm sido levados a cabo comparando a digitação num computador com a escrita à mão que também parece estar a desaparecer. Estes estudos provam que retemos muito mais o que escrevemos à mão que o que digitamos no computador. Esta conclusão é importante para estudantes que preparam exames: em vez de se limitarem a ler a matéria, é bom escrevê-la, fazer resumos à mão, copiá-la dos livros.

Durante toda a Idade Média, antes da invenção da imprensa por Gutenberg, em 1439, a difusão dos livros era feita pelos copistas; milhares de monges no ocidente se dedicaram a copiar livros para que estes não desaparecessem. O Renascentismo foi possível porque durante a Idade Média houve monges que copiaram os clássicos e os guardaram em lugares secretos.

No tempo dos copistas, a Bíblia foi certamente o livro mais copiado e, com a invenção da imprensa, foi o primeiro a ser impresso e é, ainda hoje, o livro mais vendido em todo o mundo. Os livros publicam-se se houver quem os leia: entra também aqui a lei da oferta e da procura. A Bíblia continua a ser publicada porque é o ex libris dos cristãos e judeus, porque é Palavra Revelada que não diz respeito a um tempo, mas a todos os tempos, não pertence a uma cultura, mas a todas as culturas, não pertence a um povo, mas a todos os povos. É o encontro entre Deus e o Homem e a história que têm construído juntos.

Libris ex libris fiunt
Os livros nascem dos livros, diz o provérbio latino. O progresso a todos os níveis, científico, espiritual, filosófico, é como uma corrida de estafetas. Cada um de nós recebe o estado a que chegou a cultura, a ciência, a filosofia ou a teologia da geração dos seus pais, como um testemunho, e durante a sua vida ativa desenvolve essa cultura, ciência, literatura, filosofia ou teologia, dando-lhe o seu contributo, antes de passar esse mesmo contributo para a geração seguinte dos seus filhos.

Feitos à imagem e semelhança de Deus, somos também criativos e criadores como Deus. A única diferença é que Deus cria do nada enquanto que o Homem cria dos elementos já existentes, por dedução ou intuição, misturando diferentes elementos.

Neste sentido, tem razão ainda o provérbio latino que diz que os livros nascem dos livros. Ninguém escreve sem ter lido, investigado e absorvido todos os avanços existentes na arte ou ramo da ciência que cultiva. Se escreve sem investigar arrisca-se a reinventar a roda ou a pólvora e a ser ridicularizado pelos seus semelhantes.

Conclusão – Se fomos criados à imagem e semelhança de Deus e somos chamados a ser perfeitos como Ele, recordemos que Ele plantou a árvore da vida e do conhecimento no Jardim do Éden, teve um Filho - Jesus de Nazaré - e inspirou ou escreveu um livro - a Bíblia.

Pe. Jorge Amaro, IMC