15 de março de 2021

3 Formas de vida: Vegetal - Animal - Humana

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Segundo a universidade de Hawai em 2019, há no nosso planeta 8,7 milhões de espécies de seres vivos; destes, cerca de dois milhões são animais, os restantes são plantas, vírus ou bactérias. Dos 8,7 milhões, 6,5 milhões vivem em terra, 2,2 milhões vivem nos oceanos. Estes números são estimativas, pois há muitas espécies de seres vivos ainda desconhecidas.

O que é a vida?
Depois de ler muitas definições de variados autores, biólogos, astro-biólogos e filósofos, chego à conclusão que a vida é um conjunto de processos que ocorrem no interior de uma célula. Até que se prove o contrário, a célula é a unidade mais simples de vida. Em si mesma não é simples, pois é constituída por partes, mas cada uma das partes da célula não é vida; a vida são os processos que resultam da interação dos vários componentes ou partes de uma célula.  

Se considerarmos a célula no contexto do ambiente que a circunda, a vida é o conjunto dos processos que se desenvolvem dentro de uma entidade autónoma autocontida e autossustentada, separada do seu meio ambiente por uma membrana ou parede que lhe permite, ao mesmo tempo, ser livre e independente e também interagir com este meio ambiente, com capacidade para se adaptar a ele e nele proliferar, desde a bactéria, que é uma única célula, até ao corpo humano, formado por triliões de células.

¬A célula é a vida na sua manifestação mais microscópica, já que todos os seres vivos são constituídos por células e os que se reproduzem sexualmente começam por ser uma única célula germinal com poder para se replicar. À medida que se replica, diversifica-se para formar os diferentes órgãos e partes do corpo do animal. Todo este processo obedece a um código genético que se encontra no interior da célula e que se formou quando metade de uma célula masculina - o espermatozoide - se uniu a metade de uma célula feminina - o óvulo.

Quais os processos que acontecem no interior da célula? Crescimento, metabolismo, reprodução -fundamentalmente são os mesmos que ocorrem num corpo formado por triliões de células.

Crescimento – multiplicação celular, partindo de uma única célula mãe ou primigénia, que imediatamente se multiplica, replicando-se e, ao mesmo tempo, diversificando-se para formar os diferentes órgãos de um organismo.

Metabolismo – é uma série de reações químicas que acontecem no interior das células, importantes para a produção de substâncias específicas, como por exemplo, as proteínas.

Reprodução – é o processo pelo qual uma célula origina um descendente. Esta reprodução pode ser sexuada, com a troca de gâmetas, como acontece na maior parte dos animais ou assexuada, por partição, como acontece nas bactérias.

Sendo esta uma regra geral, nem todas as formas de vida obedecem a estes processos. A mula, por exemplo, é um ser vivo que não se reproduz; o vírus também é um ser semivivo porque também não se reproduz, necessita da máquina reprodutora de uma célula para se multiplicar.

Condições macro cósmicas da vida
A Via Láctea, a galáxia à qual pertencemos, formou-se há cerca de 13,6 mil milhões de anos. Dentro dela, o nosso sistema solar formou-se há cerca de 4 mil milhões, a partir de um remoinho de gás e poeira, semelhante ao remoinho dos furacões. O centro desse remoinho foi ficando cada vez mais denso, até se formar o sol. O resto de gás e poeira formou os planetas que compõem o nosso sistema solar.

Terra – Coincidindo com o nosso tema da tridimensionalidade do real, o nosso planeta Terra é, com efeito, o terceiro no sistema solar, ou seja, está no melhor lugar para o aparecimento e sustentação de vida - nem demasiado perto do sol, como Vénus, nem demasiado longe, como Marte, apesar de estes planetas terem quase as mesmas dimensões da Terra.

A Via Láctea pode muito bem conter 100 mil milhões de sistemas solares como o nosso. Segundo as observações feitas pelo telescópio Hubble que se encontra no espaço, pode haver de 100 mil milhões a 200 mil milhões de galáxias no universo.

É providencial sermos um planeta telúrico no contexto do sistema solar, no qual a maior parte dos planetas são gasosos; é providencial o lugar que ocupamos no conjunto dos 4 planetas telúricos, o terceiro lugar entre Vénus e Marte, nem muito longe do sol como Marte, planeta demasiado frio, nem muito perto do sol como Vénus, o planeta mais quente do sistema solar.

É providencial a grandeza do nosso planeta. A Terra (6 371 km de diâmetro) é apenas um pouco maior que Vénus (6 052 km). Vénus tem uma atmosfera de composição gasosa semelhante à da Terra, antes do aparecimento da vida; porém, como se encontra demasiado perto do sol não tem condições para desenvolver vida.

Se a Terra fosse mais pequena, como Mercúrio - (2 440 km) ou a nossa lua, não teria a força de gravidade suficiente para desenvolver uma atmosfera. Se fosse 6 vezes maior, como Neptuno (24 622 km), seria como é este planeta - um planeta gasoso. Por outro lado, bastava que fosse duas vezes maior para que a vida tal como a conhecemos não fosse possível: os corpos animais ou vegetais com a mesma estrutura e massa pesariam o dobro e colapsariam.

Por fim, também é providencial a posição de todo o sistema solar em relação ao centro da nossa galáxia. O sistema solar encontra-se a 27 000 anos-luz do centro da nossa galáxia. A Via Láctea tem mais de 200 000 milhões de estrelas e um diâmetro de 100 000 anos-luz. Na nossa galáxia, há zonas de habitabilidade e zonas de inabitabilidade. A zona de habitabilidade forma um anel ao redor do centro da galáxia, estando o círculo interior a 13 000 anos-luz do centro e o exterior a 32 600 anos-luz do mesmo centro.

Esta é a zona onde podem aparecer sistemas que contenham planetas suscetíveis de albergar algum tipo de vida. Para além dos 32 600 mil anos-luz do centro da galáxia, a metalicidade das estrelas é muito baixa para permitir a formação de planetas telúricos como a Terra. Por outro lado, a menos de 13 000 anos-luz do centro, a exposição a ventos altamente energéticos, como as supernovas, seria muito hostil para a vida. Dentro da nossa galáxia, estamos, portanto, numa posição privilegiada.

Informação – Energia – Tempo/espaço
Toda a forma de vida é constituída por estes três elementos, informação e energia que ocupam um espaço durante um tempo. Todos os sistemas vivos processam informação. Sem este processo de informação, o ser vivo deixa de ser vivo. Esta informação está contida numa molécula chamada ácido desoxirribonucleico, ou "ADN", que é o código genético da vida, ou seja, a informação essencial ou base de dados de uma determinada forma de vida.

O ADN é composto por um longo filamento duplo de pares de bases, com açúcar e moléculas de fosfato. Esta espiral forma uma dupla hélice, como uma escada torcida com os pares de bases formando os degraus, e as moléculas de açúcar e fosfato os dois lados verticais da escada. As informações para a construção de todas as proteínas que formam o nosso corpo estão codificadas em moléculas de ADN. Por outras palavras, é o ADN que ordena às células quais as proteínas a fazer.

Todas as informações sobre a nossa vida corporal, desde a cor da nossa pele à cor dos nossos olhos e cabelo, a nossa estatura e até mesmo doenças que podemos vir a desenvolver no tempo, estão contidas no ADN; precisamente porque contém em si tão preciosa informação, o ADN “está fechado a sete chaves”, dentro do núcleo de cada uma das nossas células.

A formação de proteínas, é um processo muito complexo. Quando uma proteína em particular é necessária, para manter o ADN seguro e inalterado, a instrução sobre a molécula do ADN para fazer essa proteína é copiada de dentro do núcleo para outra molécula chamada ácido ribonucleico, ou ARN, que é semelhante ao ADN, mas ao contrário deste, composto por dois filamentos em forma de hélice, o ARN é composto por um só filamento também em forma de hélice e pode ser encontrado tanto no núcleo como no citoplasma da célula.

Para que tudo isto funcione, é necessária uma fonte de energia; neste caso, essa fonte de energia é o sol, em última análise, pois toda a forma de energia provém dele. Pelo fenómeno da fotossíntese, as células transformam a energia solar na energia química que vai alimentar ou fazer com que todos os processos vitais se realizem.

Podemos agora definir biologicamente a vida como sendo o que distingue os reinos vegetal ou animal dos minerais e metais, o que distingue o mundo orgânico do mundo inorgânico, o mundo inerte do mundo animado. Um ser vivo é um organismo que se autocontém e mantém certa independência do meio em que habita. Mantém um equilíbrio interno ou homeostasia e é composto por uma ou mais células que possuem um metabolismo constituído por reações químicas que mantêm a vida; tem a capacidade de crescer, adaptar-se ao meio, responder a estímulos, reproduzir-se e morrer.

Acredito que a vida tenha surgido espontaneamente na Terra quando foram criadas as condições para que tal acontecesse. Deus deu o pontapé de saída com o Big Bang e o resto foi surgindo espontaneamente, numa continua sucessão de causa – efeito – causa… e assim sucessivamente até chegarmos à vida humana.

Porém, tudo aconteceu segundo os desígnios de Deus que sabia de antemão o resultado final da sequência de causa – efeito; ou seja, sabia que levaria ao surgimento de um ser, o ser humano, semelhante a Ele. De facto, tal como Deus, o ser humano tem também a capacidade de criar; a única diferença é que Deus cria do nada, enquanto que o ser humano mistura elementos já criados para os transformar em substâncias novas.

Todos sabemos que a matéria viva ou orgânica é composta por elementos inorgânicos, porém a passagem do inorgânico ao orgânico é, ainda hoje, o principal mistério da biologia. Muitos cientistas têm conseguido recriar as condições da Terra quando a vida começou, colocando neste ambiente os elementos fundamentais à vida, mas sem conseguirem criar a vida. A vida é criação de Deus, é propriedade Dele e é como o segredo da Coca-cola que não é revelado. Os seres vivos, e nós somos seres vivos criados por Deus, não criam vida apenas a transmitem.

Átomo – Molécula orgânica – Célula
A nível subatómico e atómico a matéria é sempre inorgânica; a nível molecular pode ser orgânica ou inorgânica; a vida começa quando um conjunto de matérias orgânicas agem entre si e com a ajuda de materiais inorgânicos, como a água e o oxigénio, por exemplo. Como o átomo é o tijolo da matéria, a célula é o tijolo da vida. Como existe vida vegetal e vida animal, as células dividem-se em vegetais e animais.

A combinação de dois ou mais átomos de diferentes elementos químicos forma um composto. A menor unidade que conserva as propriedades de um composto é uma molécula, que pode ser simples, como a molécula de água (H20) e do dióxido de carbono (CO2), ou grande e complexa (macromolécula), como uma molécula de proteína ou de ácido nucleico.

Cadeias de átomos de carbono associadas a hidrogénio, oxigénio, azoto e pequenas quantidades de enxofre (s) e fósforo (P), formam a maioria dos compostos orgânicos encontrados na matéria viva. Grande parte desses compostos são classificados em quatro grupos: proteínas, hidratos de carbono, lípidos e ácidos nucleicos, que constituem a matéria prima para a formação das estruturas supra- moleculares que compõem as células, como as membranas e os organelos.

Esta matéria orgânica precisa ainda de matéria inorgânica para se constituir em vida. Por isso, além das substâncias orgânicas, encontramos no corpo humano substâncias inorgânicas como a água (H20) e os sais minerais. As células dos animais são formadas quimicamente pelos compostos orgânicos e substâncias inorgânicas, em diferentes proporções:
17,8 % de proteínas
6,2% de hidratos de carbono
11,7% de lípidos
60,0% de água
4,3% de sais minerais.

Proteínas
As proteínas são macromoleculares, constituídas por muitas moléculas menores, os aminoácidos, compostos por carbono, hidrogénio, oxigénio e azoto; alguns possuem ainda pequenas quantidades de enxofre. Vinte aminoácidos diferentes participam na estrutura das proteínas, doze são sintetizados pelas células humanas e os nove restantes são obtidos dos alimentos ricos em proteínas, como a soja, os feijões e as carnes.

Hidratos de carbono
Os hidratos de carbono são substâncias constituídas por moléculas de carbono, oxigénio e hidrogénio.
A principal característica dos hidratos de carbono é a ação energética, ou seja, se quiser obter energia corporal é só fazer uso de uma alimentação rica neste composto. Estes alimentos são, na sua maioria, de origem vegetal, como cereais, raízes, tubérculos, leguminosas e frutas.

Lípidos
Os lípidos, também designados como gorduras, são biomoléculas orgânicas compostas, principalmente, por moléculas de hidrogénio, oxigénio e carbono. Fazem parte ainda da composição dos lípidos outros elementos como, por exemplo, o fósforo. Tal como os hidratos de carbono, fornecem energia às células, participam na composição das membranas das células e atuam como isolante térmico em alguns animais. Há dois tipos de lípidos: os saturados, de origem animal, e os insaturados, de origem vegetal.

Ácidos nucleicos
Existem dois tipos de ácidos nucleicos: o ARN (ácido ribonucleico) e o ADN (ácido desoxirribonucleico), ambos formados por unidades menores, os nucleótidos. Quimicamente, são formados por ácido fosfórico que confere a acidez a este elemento, açúcares e bases azotadas. O armazenamento e transmissão da informação genética é responsabilidade dos ácidos nucleicos que são, portanto, as biomoléculas mais importantes do controlo celular, pois contêm a informação genética.

Recapitulando o caminho seguido pela vida desde o átomo, a mais ínfima forma de matéria: partícula subatómica – átomo – molécula – macromolécula – organelo – célula – tecido – órgão – sistema de órgãos – organismo ou corpo.  

Os cinco reinos da vida
É universalmente aceite por todos os biólogos que existem 5 tipos de organismos vivos no nosso planeta. Este número tem a ver com a história da Terra e com a evolução dos ecossistemas. Não é possível pensar a vida sem fazer referência ao ecossistema que a produz e sustenta. A vida desenvolve-se sempre dentro de uma adaptação simbiótica ao meio onde surge e prolifera. Os cinco reinos de vida existem independentemente uns dos outros, mas também estão filogeneticamente ligados entre si. Não seria lógico que assim não fosse.

A vida vegetal difere da vida animal e esta da vida humana, mas as três formas de vida têm antepassados comuns e uma história comum, que começa com a criação de matéria orgânica a partir de matéria inorgânica, da união de moléculas orgânicas até formar uma célula, a unidade mais pequena sem a qual não há vida. Todos os componentes de uma célula em si mesmos são matéria orgânica, mas não vida. Chegados ao nível celular, os tipos de vida divergem porque a célula vegetal é diferente da célula animal.

Quanto à sua natureza – As células são procariontes, células primitivas simples sem núcleo nem organelos, ou células eucariontes, com núcleo onde reside o ADN ou código genético e com organelos ou órgãos em miniatura, pois dentro da célula realizam as mesmas funções que os órgãos no corpo de um animal.

Quanto à sua alimentação – As células autotróficas são autossuficientes e autónomas, pois produzem o seu próprio alimento por via da quimiossíntese, fermentação ou fotossíntese. As células heterotróficas são dependentes, não produzem o seu próprio alimento para sobreviverem e fabricarem a energia que lhes dá vida, pelo que dependem de outros organismos vivos no contexto de uma cadeia alimentar.  

Em geral, as células vegetais são autotróficas, pois contêm um organelo chamado cloroplasto que, por um processo químico chamado fotossíntese, fabrica alimento e oxigénio usando a água, o dióxido de carbono e a energia solar. As células animais, ao contrário, são heterotróficas, pois em vez de cloroplastos, têm um organelo chamado mitocôndria que usa o alimento produzido pelas células vegetais assim como o seu oxigénio para produzir a energia que as mantém vivas.

Monera – Exemplos do reino monera, são as bactérias e cianobactérias, procarióticas, com membrana celular; são seres unicelulares, autotróficos ou heterotróficos, vivem sozinhas ou em colónias.
Protoctista – Exemplos deste reino são os protozoários e as algas; são eucariontes, unicelulares ou multicelulares; podem ser autotróficos ou heterotróficos, pelo que podem ser produtores de energia e alimento, assim como consumidores e decompositores de matéria.
Fungo – Exemplos deste reino são os fungos, levedura, cogumelos, bolores; são células eucariontes, multicelulares, na sua maioria são heterotróficos, por isso são consumidores ou decompositores.
Plantas – Todos os tipos de plantas, são formadas por mais de uma célula eucarionte, e realizam a fotossíntese, ou seja, são autotróficas, portanto produtoras do seu alimento e respiração, assim como do alimento e respiração dos animais. Sem as plantas não haveria animais neste planeta.
Animália – Exemplos deste reino são todos os animais; são organismos multicelulares; estas células são eucariontes porque têm núcleo e organelos, são muito complexas e são heterotróficas pois não fabricam o alimento que ingerem nem o ar que respiram. Os animais vivem dependentes uns dos outros dentro de uma cadeia alimentar que tem como base a vida vegetal.

Os três domínios da vida
Em 1977, o microbiólogo Carl Woese descobriu que dentro do reino dos moneras existiam dois seres vivos completamente diferentes, pelo que entendeu que os organismos vivos deveriam dividir-se não em cinco reinos, mas em três domínios: Arqueia – Bactéria – Eucária.

Arqueia – É um organismo vivo autotrófico, unicelular e procarionte, vive em condições extremas em águas 7 a 10 vezes mais salinas que o oceano, ou de temperatura elevada.

Bactéria – As bactérias e cianobactérias, são organismos unicelulares procariontes autotróficos, pois fazem a fotossíntese, mas também podem ser heterotróficos, ou seja, podem ser produtores e consumidores.

Eucária – Exemplos: protozoários – fungos – plantas – animais. É eucarionte unicelular ou multicelular, autotrófico ou heterotrófico, produtor, consumidor e decompositor.

Origem química da vida
Sabemos que a força da gravidade foi a responsável pela aglutinação da matéria e da poeira espacial e pela formação de planetas e estrelas. Pode ter havido uma força análoga em biologia que levou diferentes moléculas inorgânicas a aglomerar-se para formar moléculas orgânicas que, por sua vez, se juntaram para formar moléculas orgânicas mais complexas, até formarem a primeira: o coacervado e daí a primeira arqueia, célula procarionte.

As condições atuais do nosso planeta são favoráveis à proliferação da vida em todas as suas formas, mas não ao começo desta. Uma das razões é a presença do oxigénio na atmosfera, numa percentagem aproximada de 21%, e do seu derivado nas altas camadas da atmosfera, o ozono, que não permite a entrada dos raios ultravioletas. A presença de oxigénio na atmosfera oxidaria os compostos orgânicos simples e evitaria que estes se combinassem em moléculas mais complexas.

Há 3 mil milhões de anos, a Terra era rica em CO2, metano, amoníaco, mas sem oxigénio. Também não havia ozono, pelo que os raios ultravioletas bombardeavam continuamente a Terra. Isso favoreceu a formação de moléculas mais complexas a partir dos compostos orgânicos simples.

Stanley Miller, da Universidade de Chicago, realizou em laboratório uma experiência. Colocou num balão de vidro: metano, amoníaco, hidrogénio e vapor de água. Submeteu-os a aquecimento prolongado. Uma centelha elétrica de alta tensão cortava continuamente o ambiente onde estavam contidos os gases.

Ao fim de certo tempo, Miller comprovou o aparecimento de moléculas de aminoácido no interior do balão. Pouco tempo depois, em 1957, Sidney Fox submeteu uma mistura de aminoácidos secos a aquecimento prolongado e demonstrou que eles reagiam entre si, formando cadeias peptídicas, com o aparecimento de moléculas proteicas pequenas.

Destas moléculas a uma célula de planta atual vai um longo caminho; não se pode dizer que o que os cientistas conseguiram em laboratório seja vida. Os cientistas chegaram até onde é possível chegar, porque há fatores importantíssimos que explicam o aparecimento da vida e que não podem ser testados em laboratório nem nunca poderiam ser. Um deles é a casualidade e as várias circunstâncias históricas dos ecossistemas ao longo de milhares e milhões de anos de História do nosso planeta; o outro é o mesmo fator tempo.

Os passos de matéria inorgânica a matéria orgânica, a associação de diferentes elementos orgânicos até formar moléculas mais complexas e por fim a associação destas até formar coacervados e arqueias, é um processo que levou milhares de milhões de anos. Isto não pode ser feito nem nunca poderá ser feito em laboratório, de modo a obter uma prova contundente da origem química da vida. Porém, tudo indica que assim tenha acontecido.

Sequência da vida
Os seres vivos mais primitivos surgiram nas profundezas do oceano nas fontes térmicas e eram arqueias autotróficas quimiosintetizantes, ou seja, bactérias que fabricavam a sua energia vital com sulfeto ferroso e gás sulfídrico. Sulfeto ferroso + gás sulfídrico = sulfeto férrico, hidrogénio e energia.  

Depois, surgiram seres vivos heterotróficos que viviam em lagos e mares, sem oxigénio para fazer a respiração celular. Produziam a fermentação, a mais conhecida das quais é a alcoólica: o açúcar transformava-se em metanol e dióxido de carbono, libertando energia que alimentava o crescimento dos primeiros seres vivos. 


Muitos microrganismos começaram a fazer fermentação, produzindo um aumento considerável de dióxido de carbono na atmosfera. Quando o caldo primordial que permitia esta fermentação começou a escassear, a vida teve de se adaptar à nova circunstância.

Surgiram assim as cianobactérias que tiraram partido da abundância de CO2 na atmosfera e começaram a fazer com este gás a fotossíntese. Assim começou a formar-se o oxigénio na atmosfera. Quando se verificou um aumento considerável de oxigénio na atmosfera, a vida adaptou-se de novo para aproveitar este oxigénio e assim nasceram as células com metabolismo, ou seja, as células heterotróficas e a vida animal. Recapitulando a sequência dos processos químicos que estão na origem da vida: quimiossíntese – fermentação – fotossíntese ¬¬– respiração ou metabolismo.

Evolução das procariontes em eucariontes
Os primeiros seres vivos eram muito simples, constituídos por uma única célula com organização procariótica, ou seja, desprovida de uma carioteca e dos organelos membranosos do citoplasma. Os cientistas imaginam que os seres atuais mais semelhantes aos primeiros seres vivos que habitaram o nosso planeta sejam as bactérias arqueias, capazes de sobreviver em ambientes extremos como fontes de águas quentes, lagos altamente salinos e pântanos. Acredita-se que esses ambientes tenham certas semelhanças com os que existiram na Terra primitiva, onde se desenvolveram as primeiras formas de vida.

As células mais complexas (eucariontes) surgiram há 2 mil milhões de anos, provavelmente como resultado da associação simbiótica entre células procariontes. As evidências de que as mitocôndrias presentes em praticamente todas as células eucariontes e os cloroplastos presentes em células de algas e de plantas descendem de bactérias endossimbióticas são, até ao momento, irrefutáveis.

Como aconteceu? Uma arqueia enredou uma outra bactéria com os seus tentáculos e engoliu-a. A bactéria engolida passou a trabalhar para a arqueia que a engoliu, transformando-se num organelo desta. Assim nasceu uma célula eucarionte de uma procarionte que ingeriu outra procarionte. Se uma arqueia autotrófica ingere outra autotrófica e a ingerida se transforma, no interior da primeira, em cloroplastos, temos uma célula vegetal por ação do organelo que produz a fotossíntese.

Se, por outro lado, uma arqueia heterotrófica ingere outra heterotrófica, a ingerida vai transformar-se no interior da que a ingeriu em mitocôndria que vai realizar a respiração celular, ou seja, o metabolismo e assim temos uma célula animal.

No âmbito dessa estratégia, as células resultantes da multiplicação de uma célula inicial passaram a viver juntas e a dividir as tarefas de sobrevivência. Com o tempo, surgiram organismos com células cada vez mais especializadas no desempenho de funções específicas, o que permitiu o aparecimento dos tecidos e dos órgãos.

Vida vegetal baseada na fotossíntese
As cianobactérias são a primeira forma de vida vegetal que existiu no nosso planeta. A sua vida é constituída por um único processo químico: a fotossíntese. Por este processo, estas bactérias, usam a luz solar para dividir a água nos dois gases que a compõem, usando o hidrogénio para produzir alimento e soltando o oxigénio como efeito secundário. Ao fazer isto, prepararam inicialmente o planeta para a vida animal. A vida vegetal está para a animal como João Batista está para o Messias: João Batista preparou o caminho do Senhor, a vida vegetal preparou o caminho da vida animal.

A alga Archaeanobacteria foi a primeira forma de vida, seguida pelas cianobactérias. As primeiras ainda se encontram hoje em ambientes parecidos com o da Terra há milhares de milhões de anos, nas profundezas hidrotermais do oceano. A cianobactéria é uma célula procarionte sem núcleo. As algas atuais são células eucariontes, ou seja, com núcleo. Estas formaram-se há 1,8 mil milhões de anos, quando o oxigénio da atmosfera já ascendia a 1%. A vida continuou bem simples até há 600 ou 700 milhões de anos.

Não se sabe como as primeiras plantas terrestres surgiram, mas acredita-se que foram obra de um grupo de algas verdes denominadas Chlorophytaque, com um genótipo e fenótipo bem diversos que permitiram a sua sobrevivência em áreas pantanosas sujeitas a períodos alternados de inundação e seca.

Da forma mais simples de planta, a cianobactéria, à forma mais complexa de planta aquática ou terrestre, tudo é uma questão de tempo, evolução e adaptação ao meio. A vida vegetal nasceu no mar e invadiu a terra, a vida animal, como veremos a seguir, também nasceu no mar e depois invadiu a Terra.

Vida animal baseada no metabolismo
Os vegetais são autónomos e não se comem uns aos outros, pois fabricam o próprio alimento e ainda nos dão o oxigénio que respiramos. As plantas são pacíficas, não têm uma cadeia alimentar, não precisam de se deslocar para buscar alimento, mas têm algum movimento: tal como os painéis fotovoltaicos modernos que acompanham o sol colocando-se sempre perpendicularmente a este, assim as plantas todas são como os girassóis, orientando as suas folhas para o sol, de modo a apanhar melhor os seus raios.

Os animais são violentos, sobrevivem primeiro comendo as plantas e depois comendo-se uns aos outros, numa cadeia alimentar que termina onde começa: nasce a erva que é comida pela gazela que é comida pelo leão, morre o leão que é comido pela hiena e pelos abutres, morrem estes e o seu corpo é comido por inúmeros vermes que, ao morrer, fecundam a terra onde volta a nascer a erva.

Ou seja, por um lado com a sua morte os animais fertilizam a terra onde crescem as plantas, retribuindo a estas o que destas receberam e assim recomeça o ciclo.  Seguem a lei de Lavoisier que diz que na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

O mesmo acontece a nível celular: as células vegetais são livres, independentes, autónomas, dependem apenas de si mesmas para viver, pois são uma fábrica de alimento e oxigénio. Por outro lado, as células animais são dependentes, não autónomas, consomem o alimento das células vegetais e também o seu oxigénio.

A vida humana baseada no metabolismo e na sublimação
Embora com antepassados comuns, há saltos qualitativos entre estas três formas de vida. A vida das plantas baseia-se na fotossíntese e a dos animais no metabolismo. Em que se baseia a vida humana?  Fisicamente, em quase nada diferimos dos animais mais próximos de nós na evolução das espécies. Estudos mostram que partilhamos o mesmo ADN que o chimpanzé (entre 96% ou 98%).

Não é possível estabelecer a diferença entre a vida humana e a vida animal a nível físico, pois seria uma diferença quantitativa e reduzida. É a nível qualitativo que temos de estabelecer a diferença.

Há, de facto, um salto qualitativo entre os animais e os humanos, como o há entre as plantas e os animais. Este salto qualitativo é um triplo salto, formado por três caraterísticas que o ser humano possui e o animal não: autoconsciência – independência do meio ambiente – liberdade de escolha.

Utilizaremos a parábola do Filho Pródigo que é, provavelmente, a joia da literatura mundial, a história mais pequena em palavras e maior em conteúdo. Esta parábola fala da dignidade e identidade do Homem no confronto com a identidade e misericórdia de Deus.

A parábola demonstra que tanto a autoconsciência como a independência em relação à natureza e a liberdade de escolha não são dados adquiridos que não é possível perder. O mito de Tarzan prova que uma cria humana educada por animais tem aparência humana, mas fundamentalmente será um animal.

Autoconsciência
E, caindo em si, disse: ‘Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e vou dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.’ E, levantando-se, foi ter com o pai. Lucas 15, 17-20

Debaixo do domínio das paixões o ser humano perde a noção de si mesmo, como se estivesse alcoolizado, não sabe o que faz nem o que diz. O filho pródigo estava de facto sob o domínio da riqueza e dos prazeres que esta lhe proporcionava. Só quando caiu em si, se deu conta do erro que tinha cometido.

Deus interior intimo meo – Deus está mais perto de mim do que eu de mim mesmo. Por isso, quando estou divorciado de Deus, também o estou de mim mesmo, pois Deus está mais perto de mim que eu estou de mim mesmo. Um divórcio de Deus é um divórcio de mim mesmo. Karl Marx disse que o Homem é o momento em que a Natureza ganha consciência de si mesma. É certo que ele o dizia no contexto do seu materialismo dialético e histórico, para reduzir tudo a matéria.

Mas, como depois de Einstein a energia é uma forma de matéria e a matéria uma forma de energia, o mesmo poderíamos dizer entre o físico e o espiritual. O Espírito tem manifestações materiais assim como a matéria tem manifestações espirituais. Uma das caraterísticas físicas entre o Homem e o animal é o movimento do polegar oponível em relação aos demais dedos. A autoconsciência é a oposição ou o confronto que o Homem faz perante si mesmo.

Independência face à Natureza
Então, foi colocar-se ao serviço de um dos habitantes daquela terra, o qual o mandou para os seus campos guardar porcos. Bem desejava ele encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. Lucas 15, 15-16

Os animais não têm nenhum poder sobre si mesmos, seguem os ditames da Natureza e a esta obedecem acriticamente. Não têm liberdade de escolha pois não estão livres da natureza, com a qual vivem em simbiose. No tempo em que os seres humanos eram animistas, entendiam que a Natureza era tão pessoal como eles próprios; as coisas tinham a sua própria alma. Esta etapa do desenvolvimento humano tem um paralelo no desenvolvimento da criança. As crianças dialogam com as coisas e se se magoam com uma delas chamam-na má.

Conhecer significa dominar; à medida que o ser humano foi conhecendo a Natureza e as suas leis, foi-se emancipando dela e também roubando a alma às coisas que conseguia conhecer e dominar. Acabou com um punhado de realidades que não conseguia dominar de todo e chamou-lhes deuses. Assim, havia um deus para cada realidade, o tutor dessas mesmas realidades. Vénus, a deusa do amor, Marte, o deus da guerra, Cronos, o deus do tempo, e assim por diante….

O domínio completo da Natureza deu-se quando o ser humano entendeu que havia um só Deus criador do Céu e da Terra, que cedeu a administração da Natureza a si mesmo, também sua criatura, mas criada à sua imagem e semelhança. Assim como Deus Criador mantém uma distância em relação às criaturas, assim o Homem se distancia delas também, como seu tutor e administrador.

O filho pródigo perdeu a independência da Natureza com o seu pecado, pois passou a entrar ao serviço de um dos habitantes daquela terra. Para um judeu, o serviço em causa não poderia ser mais humilhante: guardador de porcos, um animal impuro.

Em vez de amar a Deus sobre todas as coisas e assim se emancipar delas, manter-se livre e independente delas, o ser humano ama muitas vezes mais as criaturas que o Criador e faz-se dependente de substâncias e de realidades como o poder, a fama, as riquezas. Desta forma, perde a independência e a liberdade, como o filho pródigo e o jovem rico que não era livre para seguir o mestre que o chamava porque, as riquezas o tinham agrilhoado.

Liberdade de escolha
Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte dos bens que me corresponde.’ E o pai repartiu os bens entre os doisLucas 15, 11-12

Do ponto de vista físico, temos tudo em comum com os animais que estão mais próximos de nós na evolução das espécies. O que temos que eles não têm é a capacidade de dar sentido às nossas vidas, de ter as nossas vidas nas nossas mãos e de podermos fazer o que quisermos com ela... Então, se fisicamente estamos sujeitos ao metabolismo, espiritualmente temos o poder de direcionar a energia que obtemos dele por via da sublimação, para um objetivo, que pode não ser o natural. Por exemplo, podemos transformar a energia Eros em amor universal, enquanto os animais só podem vivê-la instintivamente de forma sexual e reprodutiva.

A liberdade do Homem é a impotência da omnipotência divina. É talvez a única coisa que Deus não pode fazer. Teoricamente pode desrespeitar a liberdade do Homem, mas não o faz e nunca o fará. De alguma forma ou na prática não pode fazê-lo. O pai do filho pródigo sabia muito bem que o filho ia errar e sofrer as consequências, mas deixou-o ir. O filho teria que aprender com os próprios erros, é assim que aprendem os seres humanos.

Repara que coloco hoje diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal. Assim, ordeno-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus mandamentos, preceitos e sentenças. Assim viverás, multiplicar-te-ás e o Senhor, teu Deus, te abençoará na terra em que vais entrar para dela tomar posse. Mas se o teu coração se desviar e não escutares, se te deixares arrastar e adorares deuses estranhos e os servires, declaro-vos hoje que, sem dúvida, morrereis; os vossos dias não se prolongarão na terra na qual ides entrar, passando o Jordão, para dela tomar posse. Deuteronómio 30, 15-18

Somos verdadeiramente livres? Talvez não, porque não há uma alternativa igualmente válida; como diz a leitura, a alternativa à vida é a morte. No mesmo tom, Jesus não disse que era um dos caminhos, verdades e vidas, mas sim que era o único caminho, verdade e vida. (João, 14, 6). E acrescentou: quem não recolhe comigo não é que recolha com outro, não porque não há outro, quem não recolhe comigo, dispersa. (Mateus 12, 30)

Anjos - Animais – Homem – Segundo a teologia rabínica judaica, Deus criou três tipos de criaturas, os anjos, os animais e os seres humanos. Os anjos, que ele fez a partir da sua palavra pura, não têm vontade de fazer o mal, não podem desviar-se por um momento do seu propósito. As bestas só têm os seus instintos para guiá-las. Elas também seguem as ordens do seu criador.

Então Deus tomou uma pequena quantidade de terra e fez homem e mulher. Este é um ser com o poder de desobedecer, só ele entre todas as criaturas, tem liberdade de escolha. Estamos suspensos entre a clareza dos anjos e os desejos das bestas. Deus deu-nos uma escolha que é, simultaneamente, um privilégio e um pesado fardo.

Alguns dizem que os anjos tiveram um período de prova; os que não a superaram são os demónios, os que superaram são os anjos atuais. Dizem que têm liberdade de escolha, mas não pecam porque vivem no Céu; se vivessem na Terra, poderiam pecar, dizem outros. Nada disto faz sentido: se têm liberdade de escolha, em teoria, podem pecar e, se podem pecar, não há nenhuma garantia de que não o farão, mesmo no Céu, pois no Céu estavam os que pecaram e que agora são os demónios.

Segundo a lei de Murphy, se algo é possível fazer-se, haverá alguém no decorrer da História que o fará. Se não podem pecar, então não têm liberdade de escolha e, se não a têm, nunca a tiveram. Desta forma se conclui que o demónio, ou diabo ou Satanás ou o que quer que seja, não existe, é um mito ao qual os autores bíblicos aludem. A descrição ou relato da queda ou desobediência dos anjos não se encontra na Bíblia.

Conclusão – A fotossíntese das plantas transforma a energia do sol em alimento; o metabolismo dos animais transforma esse alimento em energia vital; a sublimação do Homem canaliza essa energia para fins espirituais.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de março de 2021

3 Tentações de Cristo: Riqueza - Fama - Poder

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Muitos dos que usam a expressão “Errare humanum est” confundem erro humano com erro moral. Errar é de facto humano, ou seja, se eu pensava que hoje não chovia e choveu errei no meu prognóstico e, neste sentido, Jesus de Nazaré também errou. Tanto Ele como a primeira Igreja pensavam que o fim do mundo estava próximo e enganaram-se.

Mas uma coisa é errar, outra coisa é pecar. Ninguém erra querendo errar, ninguém peca sem querer pecar. O pecar pressupõe um exercício de liberdade: escolhemos o mal sabendo que é mau. Pecado é matéria moral, erro é matéria da ciência. É certo que o pecado é sempre um erro, mas um erro pode não ser um pecado; o conceito de erro é mais abrangente que o de pecado que se restringe só à matéria moral.

Frequentemente, justificamos as fraquezas, defeitos e pecados próprios e alheios dizendo que somos humanos; como se ser humano significasse estar cheio de vícios, maus hábitos e defeitos. Outras vezes, quando queremos dizer bem de alguém, dizemos que é muito humano. Como pode a mesma palavra ter significados diametralmente opostos?

A medida do humano é Cristo; ele não pecou, portanto, o pecado não pertence à natureza humana. É possível, ainda que difícil, viver sem pecar. O Homem é criatura de Deus e Deus não faz coisas defeituosas - o pecado é criação do Homem, não de Deus. Houve um tempo em que Adão e Eva viveram em harmonia com a Natureza, consigo mesmos, com Deus e um com o outro, sem pecar. O pecado arruinou a natureza humana, mas não a mudou.

Devemos, portanto, usar o adjetivo humano no bom sentido, sabendo que Cristo foi 100% humano, em tudo igual a nós, exceto no pecado (Hebreus 4). A antessala do pecado é a tentação; a tentação pertence à natureza humana, por isso Jesus foi tentado. Sem tentação não haveria liberdade. Se bem que não igualmente válida, existe uma alternativa a Cristo, caminho, verdade e vida, modelo do ser humano - a tentação recorda-nos a existência desta alternativa para cada uma das nossas escolhas ou decisões existenciais.

Cristo foi tentado toda a sua vida
Terminadas todas as tentações, o diabo afastou-se dele até à próxima oportunidade. Lucas, 4, 13

Os três evangelhos sinópticos mencionam as tentações de Jesus no começo da sua vida pública; isto pode induzir o leitor no erro de pensar que Jesus foi tentado no princípio da sua vida pública e depois nunca mais foi tentado. A verdade é que, como todo o ser humano, Jesus foi tentado a toda a hora e momento. Há um filme sobre Jesus que se intitula “A última tentação de Cristo”; segundo este filme, esta última tentação ocorreu quando já estava pregado na cruz. Vejamos alguns exemplos:

Multiplicação dos pães – Depois da multiplicação dos pães, Jesus obriga os discípulos a entrar no barco e a atravessar o lago (Marcos, 6, 45). Pelos evangelhos sinópticos não sabemos por que Jesus obrigou os discípulos a subir para o barco e a atravessar o lago. A resposta a esta obrigação insólita está em João 6, 15. Depois da multiplicação dos pães o povo queria fazer de Jesus rei.

Fazer face a esta tentação sozinho era uma coisa, ter os discípulos com ele, era outra. Os discípulos não queriam outra coisa, seriam os primeiros a aclamá-lo rei; por isso, para evitar que caíssem na tentação, despachou-os para longe, de modo a lidar sozinho com a multidão. Depois despediu-se dela e subiu ao monte para estar a sós com o seu Pai em oração.

Agonia no Jardim das Oliveiras – Na agonia do Jardim das Oliveiras (Lucas 22, 42) sente que, apesar do espírito ser forte, a carne humana na qual encarnou é fraca. Sente o medo, não tanto da morte, pois todos temos de morrer, mas do sofrimento. De facto, temos menos medo da morte que do sofrimento e, para quem sofre muito, a morte é uma libertação; os torturados chegam a pedi-la.

Só há tentação quando existe uma alternativa, e Jesus tinha uma alternativa perfeitamente viável: apesar de estar em Jerusalém, não estava cercado, estava no monte oposto à colina do templo, ou seja, no Monte das Oliveiras - bastava subir de Getsémani até ao alto do monte e depois descer para o deserto da Judeia. Em poucos quilómetros, estaria num lugar onde nunca o encontrariam e depois poderia descer até ao Jordão, Mar Morto e passar para o que é hoje a Jordânia, desaparecendo para sempre. Mas não o fez.

Se eu quisesse, livrava-me da morte – Quando já tinha sido preso e Pedro tentou resistir, cortando a orelha ao servo do sumo sacerdote, Jesus recorda a Pedro e aos presentes que se ele tivesse querido escapar da morte podia ter pedido ao Pai que lhe enviasse de imediato 12 legiões de anjos para o resgatarem (Mateus 26, 52-54)

O conceito de tentação
Quando ouvimos ou proferimos a palavra tentação, do nosso coletivo imaginário vem-nos a imagem da serpente a tentar Adão e Eva. Tentar significa instigar, seduzir, induzir, levar-nos a uma determinada ação. A publicidade moderna é a serpente dos nossos dias que trata de nos ludibriar a comprar este ou aquele produto que vai trazer-nos a felicidade.

ÀS vezes, para os mais jovens, aquele que tenta pode também ser um amigo ou pode ser a pressão social exercida por um grupo de amigos sobre um jovem incauto que necessita ser muito forte para resistir, porque a contrapartida é ser rejeitado pelo grupo. A tentação tem um sentido negativo, sobretudo porque a vemos como a antessala do pecado, ou seja, irresistível e determinista, no sentido de que é inevitável pecar quando somos tentados.

Na Bíblia, porém, tanto em grego como em hebreu, o conceito de tentação usado tem pouco a ver com os sinónimos acima descritos. Tentação é teste, exame, prova. Vim a saber isto não pelo meu conhecimento do hebreu, mas sim pelo meu conhecimento de outra língua semítica, o amárico . Quando estava na Etiópia, verifiquei que a palavra “tentação” na oração do Pai Nosso (Não nos deixeis cair em tentação (Fataná) era a mesma que usavam as crianças quando diziam que tinham exame (Fataná) na escola.

Neste sentido, a tentação não seria negativa, mas sim positiva: trata-se de examinar para determinar o valor de algo (Job 7, 18, Salmo 139, 23). O mesmo termo é usado para testar a pureza de um metal, (Job, 23, 10 Zacarias 13, 9, 1 Pedro 1, 7). Também se usa no contexto de testar o caráter de alguém (Romanos 5, 4; Tiago 1, 2-3). 

A conexão entre a nossa natural inclinação para o mal, associada ao conceito de tentação, não é proeminente no Novo Testamento, mas também não está completamente ausente (1 Coríntios 5:5; 1 Timóteo 1:20; Tiago 1:14-15).

Em meu entender, a tentação no sentido de exame não é positiva nem negativa, é neutra, no sentido de que pode ser uma ocasião para crescermos e nos tornarmos mais fortes se a vencermos, ou uma ocasião para nos tornarmos mais fracos e ir de mal a pior se formos derrotados. Tanto para o bem como para o mal, cada tentação é uma batalha. Ter ganho uma batalha não significa ter ganho a guerra e ter perdido uma batalha também não significa ter perdido a guerra.

“Ninguém pode entrar no Reino dos Céus sem ser tentado, sem tentações ninguém se salva”, dizia Sto. António, Abade dos padres do deserto. Sem tentação no sentido de teste, seria impossível distinguir os bons alunos dos maus alunos, os verdadeiros amigos dos falsos amigos, as pessoas de caráter das pessoas sem caráter, os honrados dos que não têm honra.

“A ocasião faz o ladrão”, diz o provérbio. Ninguém nasce ladrão, é o sucumbir ante a possibilidade de roubar que faz o ladrão. A primeira vez é mais difícil, depois já nem constitui tentação. Dizem que custa matar a primeira vez, mas que depois se torna cada vez mais fácil, transforma-se num vício cada vez mais forte, a ponto de ser quase impossível a recuperação da liberdade que a virtude nos concede.

Origem da tentação
Feliz aquele que suporta a provação, porque, uma vez provado, receberá a coroa da vida, que o Deus prometeu aos que o amam. Ninguém, ao ser tentado, deve dizer: “É Deus que me tenta”, pois Deus não pode ser tentado pelo mal e tampouco tenta a alguém. Antes, cada qual é tentado por sua própria concupiscência, que o arrasta e seduz. Tiago 1, 12-14

Nada que, de fora, entra na pessoa pode torná-la impura. O que sai da pessoa é que a torna impura. Marcos 7, 15

Destes dois textos, um de Tiago, outro de Marcos citando o próprio Jesus, deduzimos que a tentação vem de dentro. O mal está dentro de nós e sai para fora em atos. As situações da vida só espoletam, ou provocam, mas não causam o mal, tentam-nos, testam-nos, mas depende de nós cair ou não cair. O mal não está fora de nós, personificado no diabo que nos tenta.

Na mesma linha deste texto de Tiago, Jesus também nos diz que o que faz o homem impuro não é o que vem de fora, mas sim o que está dentro dele. Dizer ou pensar que é o diabo que nos induz e seduz, é não assumir a nossa própria responsabilidade como fizeram Adão e Eva. É uma desculpa esfarrapada, que nos iliba e nos leva a não assumir a responsabilidade pelos nossos atos.

Quando vemos uma maçã com um buraquinho, somos levados a pensar que o buraco foi feito por um bicho que entrou na maçã e a infetou, mas essa não é a verdade: o buraquinho foi feito pelo bicho ao sair da maçã, não ao entrar; foi feito de dentro para fora, não de fora para dentro.

Quando a maçã era apenas uma flor, foi visitada por um inseto que nela depositou um ovo. Quando a maçã se formou, esse ovo deu à luz uma larva, essa larva saiu para fora da maçã para se transformar no inseto à imagem do seu progenitor. Somos uma maçã com bicho, fomos concebidos no pecado original, por isso não precisamos de aprender nada do que se refere ao mal. Quantos pais educam os seus filhos esmeradamente e, de um momento para o outro, apanham o filho a roubar, a mentir, a desobedecer; onde aprendeu ele estas atitudes?

Versões do Pai Nosso -
et ne nos inducas in tentationem - Latim
e non ci indurre in tentazione - Italiano
Et ne nous soumets pas à la tentation - Francês
And lead us not into temptation - Inglês
no nos dejes caer en la tentación - Espanhol
não nos deixes cair em tentação -  Português

A versão portuguesa e espanhola do Pai Nosso difere do texto original que vemos refletido nas restantes línguas. Há séculos que na Península Ibérica (Portugal e Espanha) começou a rezar-se o Pai Nosso com esta diferença que, teologicamente, parece mais correta que o original do qual todas as outras línguas são tradução literal.

Segundo o original e todas as línguas, pedimos a Deus para não nos submeter ao teste, à tentação. De acordo com os textos acima citados de Tiago e de Marcos, Deus não nos tenta no sentido de nos induzir ao erro ou convidar a enganar ou seduzir para o erro. No sentido de teste, prova ou de exame, é verdade que Deus nos testa ou permite que sejamos testados, nunca para além da nossa capacidade de resistir. Neste sentido, não vale a pena pedir que não nos teste porque testar-nos faz parte do crescimento espiritual rumo à santidade.

Abraão não se tornou o nosso Pai na Fé sem ter passado o exame que Deus lhe apresentou. Quando Abraão já se tinha deixado seduzir pelo seu filho, princípio da sua descendência que iria ser mais numerosa que a areia do mar e as estrelas do céu, Deus pediu-lho, e Abraão dispunha-se a sacrificar o seu filho para provar a Deus que o amava sobre todas as coisas e que o seu filho não se tinha transformado num objeto de idolatria.

Jesus testou fortemente a mulher sírio-fenícia, a sua fé e paciência, a sua resistência e amor próprio, antes de lhe curar a filha. Se ela tivesse reagido às investidas veladamente racistas de Jesus, teria provado que o seu amor próprio era superior ao amor pela sua filha. Mas pelo contrário, estava tão desesperada e queria tanto a saúde da filha, que não se importou de ser insultada. Por outro lado, também não foi passiva nem passiva agressiva, foi assertiva, não se deixou humilhar quando disse que até os cachorrinhos têm direito às migalhas que caem da mesa dos filhos de Israel. (Mateus 15, 21-28).

O pecado ofende: a Deus – ao próximo – a mim mesmo
Pecado é uma palavra exclusivamente religiosa, é uma dessas palavras que a sociedade civil nunca usa porque, para esta, a única coisa que conta é a lei - quem não observa a lei não peca, transgride. O hebreu tem várias palavras para designar “pecado”:

Pecado em Hebreu
Chata – errar o alvo, não alcançar a meta ou objetivo. Não fazer o que se espera, como obedecer e fazer a vontade de Deus (Génesis 4, 6; Ezequiel 18, 4).

Shagag – vaguear, desviar-se do caminho. É como perder-se numa floresta, sair fora do caminho traçado (Levítico 4, 13; Números 15, 28), não seguir as regras, as instruções.

Avon – iniquidade, ato de rebeldia, desafiar a autoridade de Deus ou da Lei (Êxodo 34, 7; 1 Samuel 15, 23).

Ra – mal, Avon já é mau, mas Ra é bem pior, é ser depravado (Genesis 6, 5; 8, 21; 13,13; 19,7).

Pesha – transgressão, rebelar-se, cortar relações, um deliberado ato de rebeldia contra Deus ou a sua Lei. Já não se trata de errar o alvo, não é um erro inocente, mais que Avon e Ra, é uma guerra declarada (Êxodo 34, 7; Isaías 43,7; Jeremias 2,8; Salmo 51, 2).

Somos livres para fazer o bem; a partir do momento em que fazemos o mal, quanto mais nos entranhamos nele, menos livres somos, mais dependentes nos tornamos desse mal, a ponto de ser difícil voltar ao estado de liberdade. O pecado é sempre cair na tentação de que existe uma alternativa igualmente válida à natureza humana, tal como a viveu Cristo.

Fundamentalmente, os termos acima descritos como pecado afirmam a ideia de sair fora do caminho, da regra, da natureza humana. Tomemos como exemplo o nosso fígado e a sua capacidade de sintetizar em segurança uma determinada quantidade de álcool.

O vinho consumido com moderação, um copo por dia, não arruína o fígado e tem efeitos positivos na nossa saúde. Porém, se abusarmos do álcool, sobretudo das bebidas brancas de alto teor alcoólico, ultrapassamos a capacidade do fígado de o sintetizar em segurança e causamos a sua deterioração. Somos livres de beber tanto quanto queremos, mas depois sofremos as consequências de uma cirrose hepática. Pecar, neste sentido, é consumir mais álcool do que a nossa natureza permite.

A tridimensionalidade do pecado

Pecar é não respeitar a nossa natureza, a Natureza que nos rodeia, a vontade de Deus e as suas leis. Nunca pecamos no nosso próprio interesse ou no interesse de outrem: o pecado é sempre um ato contra tudo e contra todos, contra Deus, os outros e nós mesmos.

O pecado é, acima de tudo, contra Deus, nosso criador, porque nos rebelamos contra a sua vontade, pensando que sabemos mais que Ele, que podemos viver sem Ele, ser felizes sem Ele e até contra Ele. O pecado, na sua dimensão contra Deus, é sempre um ato de orgulho, de pensar que somos alguém que pode contrapor-se a Deus, e sentir-se realizado e feliz à sua maneira. É contradizer o dito de Jesus, “Sem mim, nada podeis fazer”.

Não há coisa mais errada que ser orgulhosos e autossuficientes perante Deus todo poderoso. Por isso, o orgulho é a raiz e o pai de todos os males, tal como a humildade é a raiz e mãe de todas as virtudes. Quando pecamos contra Deus, pecamos ipso facto contra nós mesmos. Por incrível que pareça, Deus ama-nos muito mais do que nós nos amamos a nós mesmos. Ele sempre nos perdoa, embora muitas vezes não nos perdoemos a nós próprios. Deus sabe, muito melhor do que nós, o que nos convém. Os seus planos para nós são os que nos convêm, conforme a natureza que Ele nos deu e conforme os talentos que nos concedeu. Por isso, dizer como Frank Sinatra “I’ ll do it my way” (farei as coisas à minha maneira) é pecar contra Deus e contra nós mesmos. O meu verdadeiro caminho não é o que eu traço para mim sem Deus, mas sim o que Ele traça para mim.

O mal fica com quem o pratica, diz o provérbio português, o pecado tem sempre um efeito bumerangue, como dizem em inglês “what goes around comes around” (o que vai, volta). Para além disto, todo o pecado, por mais íntimo, pessoal ou escondido que seja, tem sempre um efeito colateral sobre os outros. Para além do efeito bumerangue sobre a própria pessoa, o pecado tem um efeito dominó sobre os outros, semelhante ao efeito de um grão de areia numa montanha coberta de neve que desencadeia uma avalanche.

Como exemplo recente disto, temos  a pandemia do COVID-19. Começou, muito provavelmente, num ato de uma só pessoa, ao colocar gaiolas de distintos animais umas sobre as outras, de modo a que o sangue, a urina, as fezes e outras secreções se misturassem, dando a possibilidade a um vírus de saltar de uma espécie para outra, de se fortalecer nesse processo, até chegar ao ser humano e  infetar gente em todos os países.

As tentações de Cristo
Jesus, em tudo igual a nós exceto no pecado, foi modelo de humanidade na forma como venceu as tentações ao longo da sua vida, demonstrando que é possível vencer todo o tipo de tentações e viver sem pecar. Como já dissemos, cada tentação é um teste à nossa fortaleza, a cada tentação exercitamos a nossa liberdade ao escolher entre o bem e o mal, entre o conveniente e o inconveniente, entre o caminho que leva à vida e o caminho que leva à morte.

Jesus foi testado em três matérias: a de transformar pedras em pão, a de se exibir perante os homens, e a de possuir muitos reinos. Se por pão entendemos os bens materiais, a riqueza, se por exibição entendemos a vontade de ter fama, o prazer da popularidade, a vanglória, se pela possessão de reinos entendemos o amor pelo poder, podemos resumir as tentações de Cristo, assim como as de todo o ser humano, à tentação de ter muita riqueza, ser famoso e todo poderoso.  

RIQUEZA
O tentador aproximou-se e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!” Ele respondeu: “Está escrito: ‘Não se vive somente de pão, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus’”. Mateus 4, 3-4

Há muita hipocrisia no falar contra a riqueza; sou mais recetivo às opiniões dos ricos contra a riqueza que às opiniões dos pobres. Primeiro, porque falam do que não conhecem. Segundo, porque o que os faz falar é, muitas vezes, motivado por uma inveja dos ricos que esconde o desejo de possuir como eles.

A fábula da raposa e das uvas ilustra muito bem este comportamento. A raposa declara que as uvas estão verdes e não prestam porque, depois de saltar várias vezes, não consegue alcançá-las; menospreza, portanto, o que não pode ter e porque o não pode ter, vingando-se do facto de não poder comer as apetitosas uvas, dessensibilizando-se da dor provocada pelo facto através de um conhecido mecanismo psicológico de defesa chamado racionalização. E para provar que toda esta sua reação era falsa, ao ouvir atrás de si o ruído de algo a cair, volta-se imediatamente, pensando que era um cacho de uvas para descobrir, exasperada, que era apenas uma parra que tinha caído.

“Quem desdenha quer comprar”, diz muito sabiamente o provérbio português. Nas feiras, quem desvaloriza um produto ou um instrumento, fá-lo no intuito de baixar o preço porque quer comprá-lo. Se não estivesse interessado na compra, não perderia tempo a falar sobre ele.  Muitos dos que desdenham as riquezas só o fazem porque não as têm. Por isso, a tentação da riqueza não a sente quem é pobre, mas quem é rico e escolhe ser pobre.

Admiro os Santos Medievais da Igreja Católica, que eram todos ou quase todos filhos e filhas de famílias ricas e abastadas, com terrenos, castelos, grandes negócios ou empreendimentos, nobres de sangue azul com influência na corte real. Estes mancebos e donzelas eram jovens e belos, tinham fama e prestígio, riqueza e sangue azul, cultura, tudo o que de bom se podia desejar naquele tempo e, no entanto, tudo puseram de parte porque encontraram em Cristo uma riqueza maior. S. Francisco Xavier, Sto. António de Lisboa, Sta. Isabel de Portugal, S. Nuno Álvares Pereira, Stª. Beatriz da Silva, para nomear os portugueses.

Abandonaram tudo por Cristo; tiveram a mesma experiência que S. Paulo outrora tivera: “por causa dele, tudo perdi e considero esterco, a fim de ganhar a Cristo” (Filipenses, 3, 8). Tudo o que estes disserem sobre a riqueza podemos escutar com segurança, pois passaram pela experiência de ter tudo o que este mundo pode dar e rejeitaram-no porque encontraram em Cristo aquele que os preencheu completamente.  

O pobre rico e o rico pobre
“Felizes os pobres no espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Mateus 5,3

Conta-se que um jovem sonhou que à entrada da cidade havia um venerável senhor que tinha na sua algibeira um diamante de grandes dimensões e que o daria a quem lho pedisse. Assim fez o jovem: ao acordar acreditou no próprio sonho e dirigiu-se para a entrada da cidade, onde efetivamente encontrou o venerável senhor que, sem hesitar, lhe deu o diamante. Regressou a casa muito feliz, mas durante a noite não conseguiu dormir. No dia seguinte, voltou ao venerável senhor e devolveu-lhe o diamante, dizendo “dá-me antes o que te faz desprenderes-te assim tão facilmente de algo tão valioso”. “Já o tens” respondeu o venerável senhor, “ao devolver-me o diamante, provas que também tu tens o dom do desprendimento”.

Para a Bíblia, ser rico ou pobre não depende da quantidade de dinheiro que se tem, mas da forma como nos relacionamos com a riqueza. Os ricos que vivem desapegados da sua riqueza, para a Bíblia, são pobres; os pobres que vivem apegados ao pouco que têm, para a Bíblia, são ricos.

Os pobres de espírito de S. Mateus são os que, sendo ricos, se desprenderam ou vivem desprendidos da sua riqueza, são pobres por opção. Os pobres de S. Lucas, são os pobres que sempre foram pobres porque nunca tiveram outra opção, muitos deles podem até viver obcecados pela riqueza que não têm, pelo que, para a Bíblia, já caíram na tentação, pois, ainda não tendo riqueza, estão já possuídos de alma e coração pela riqueza que desejariam ter e agarrados como carraças à pouca que têm.

Superemos, portanto, o maniqueísmo de pensar que as riquezas, os bens materiais são intrinsecamente maus. Tudo é criação de Deus, Deus não criou nada mau, por isso tudo é intrinsecamente bom. O dinheiro não dá felicidade, mas ajuda: não há felicidade sem dinheiro. O rico não é inerentemente feliz por ser rico, nem o pobre inerentemente infeliz por ser pobre.

Se as vossas riquezas crescerem, não lhes entregueis o coração. Salmo 62, 11 - As coisas foram feitas para ser usadas, as pessoas foram feitas para serem amadas. Quem ama as riquezas tende a usar as pessoas para obter mais riqueza, em vez de as amar. Quem entrega o seu coração às riquezas, vende a alma ao diabo, já não se possui, é possuído, da mesma forma que os possessos dos quais o evangelho nos fala. Um exemplo claro é o jovem rico, do evangelho de Mateus (19:16-23), que decidiu ficar com as riquezas quando Jesus o confrontou e lhe deu a escolher entre a riqueza material e a riqueza espiritual. Diz o evangelho que ele ficou triste perante a sua própria opção; as riquezas podem dar prazer mas não alegria e o prazer é quase sempre seguido pela tristeza.

Porque, onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. Lucas 12, 34. Quem ama as riquezas, entregou-lhes o coração, são elas que o possuem; foram elas que impediram o jovem rico de seguir o Mestre. Não é que ele não quisesse seguir o Mestre. Ele queria, mas as riquezas não o deixaram ir. Porque ele não as possuía, eram elas que o possuíam. Quando amamos as riquezas, só as possuímos do ponto de vista contabilístico, pois, do ponto de vista espiritual e psicológico, somos possuídos por elas, são elas que nos possuem a nós.  

“Fizeste-nos Senhor para vós, e o nosso coração anda inquieto enquanto não repousa em vós”, dizia Sto. Agostinho – Só o amor de Deus nos enche por completo o coração, a ponto de já não andar mais inquieto. Só Deus basta, dizia Stª. Teresa de Ávila. O amor humano enche um pouco o nosso coração, mas nunca totalmente. Só Deus, o nosso Criador e Pai por graça de Cristo, nos enche plenamente.

O coração daquele que, em vez de amar a Deus e ao próximo, ama as riquezas, transforma-se num poço sem fundo: quanto mais tem mais quer ter. É como aquela adolescente que padece de anorexia nervosa e que já é mais que esquelética mas continua a ver-se gorda quando se olha ao espelho. Não tem a mente fixa na magreza que já possui, mas naquela que ainda pode possuir. Assim, o rico não tem a mente fixa na riqueza que já tem, mas naquela que ainda pode ter: por isso nunca diz basta.

Amar o próximo como a ti mesmo
“A terra de um homem rico deu uma grande colheita. Ele pensava consigo mesmo: ‘Que vou fazer? Não tenho onde guardar a minha colheita’. Então resolveu: ‘Já sei o que fazer! Vou derrubar os meus celeiros e construir outros maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, goza a vida!’ Mas Deus disse-lhe: ‘Tolo! Ainda nesta noite, a tua vida te será tirada. E para quem ficará o que acumulaste?Lucas 12, 16-20 

A história de Elvis Presley ilustra de forma clara esta verdade. Elvis tornou-se muito rico. Possuía oito carros, seis motos, dois aviões, dezasseis televisões, uma mansão imensa e várias contas bancárias bem recheadas. Além disso, era idolatrado por legiões de fãs. Mas não era feliz. No meio de toda a sua riqueza e sucesso, sentia um mal-estar espiritual e queixava-se de solidão e tédio. “O dinheiro traz muitas dores de cabeça”, confidenciou ele a um entrevistador.

The story of Elvis Presley powerfully illustrates the truth of this. Elvis became very rich. He owned eight cars, six motorbikes, two planes, sixteen television sets, a vast mansion, and several bulging bank accounts. On top of all of that, he was idolized by legions of fans. Yet he wasn’t happy. In the midst of all his wealth and success he experienced a spiritual malaise, and complained of loneliness and boredom. ‘Money brings a lot of headaches,’ he confided to an interviewer.

A sua mãe preocupava-se com ele. Nunca tinha querido tudo aquilo para ele. Simplesmente queria que ele voltasse a casa, comprasse uma loja de mobiliário, casasse e tivesse filhos. Ele tornou-se paranóico e deprimido. Com vinte e dois anos, descobriu que não tinha mais nada a conquistar. Este mal-estar poderia ter sido uma oportunidade. Foi uma demonstração sombria de que “nem só de pão vive o homem”, ou seja, de que nem só de bens materiais vive o homem.

His mother was worried about him. She never wanted all this for him. She simply wanted him to come home, buy a furniture store, get married and have children. He grew fearful and depressed. At the age of twenty-two he found that there were no more worlds to conquer. This malaise could have been an opportunity. It was a stark reminder that ‘man doesn’t live on bread alone’, that is, on material things alone.

Todos sabemos como terminou Elvis – viciado em drogas. Afinal, não viveu assim tanto tempo como os bens materiais poderiam ter-lhe permitido viver. Os bens materiais podem facilitar-nos a vida em muitos aspetos, mas não são a vida em si mesma. Podem comprar-nos os prazeres mais refinados, mas não nos compram alegria. Quem entende a vida como pão e circo não tarda a perder a liberdade, ficando preso a algum vício.

Nem só de pão vive o homem: as riquezas só servem para nos manter vivos. Viver não tem nada a ver com as riquezas. É o amar ao próximo como a ti mesmo, ou seja, é o amor pelas pessoas que te livra do amor pela riqueza. Quando amas a alguém, é natural dar-lhe coisas e começar a dar, até te dares a ti mesmo.

Quando se ama, partilha-se o que se tem com quem o não tem. O amor obedece ao princípio dos vasos comunicantes; quando dois vasos, um deles cheio de água, comunicam entre si, muita da água do primeiro passa para o segundo, ficando os dois com o mesmo nível de água. Não há melhor comunicação entre pessoas que o amor. O amor leva à igualdade entre pessoas desiguais.

Há mais alegria em dar do que em receber”. Atos 20, 35 – é certo que as crianças encontram mais alegria em receber que em dar, pois ainda são crianças, ainda não aprenderam a amar. Ainda vivem o Natal à espera do Pai Natal. Os adultos, quando o são do ponto de vista psicológico, encontram mais alegria em dar do que em receber, vivem o Natal não já como crianças expectantes, mas como o Pai Natal que dá. O adulto que ainda encontra mais alegria em receber do que em dar, não é ainda maduro psicologicamente.

Certamente conheceis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo: de rico que era, tornou-se pobre por causa de vós, para que vos torneis ricos, por sua pobreza. 2 Coríntios 8, 9

FAMA
Então, o diabo o levou-o à Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, deita-te daqui abaixo! Pois está escrito: ‘Ele dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te carregarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. Jesus respondeu-lhe: “Também está escrito: ‘Não porás à prova o Senhor teu Deus’!” Mateus 4, 5-7

Jesus nunca fez um milagre em proveito próprio, como seria o caso da tentação de transformar as pedras em pão por ter fome. Também nunca fez nenhum milagre para se exibir; pelo contrário, sempre pedia encarecidamente aos destinatários dos seus milagres que não dissessem nada a ninguém. Criticou os fariseus por serem atores, que em grego significa hipócritas - faziam as coisas não por convicção, mas para serem vistos pelos homens.

Jejuavam, davam esmola e rezavam em público, para serem bajulados pelas pessoas. Como diz o evangelho, “já receberam a sua recompensa” que é precisamente essa, a de adquirir prestígio diante das pessoas (Mateus 6, 1-18). Um prestígio muito relativo, pois depressa as pessoas se dão conta que não é genuíno. Por isso, quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado (Mateus 23, 12).

É melhor fazer as coisas porque gostamos de as fazer, e por Deus; rezar no nosso íntimo, na privacidade do nosso quarto ou sozinhos, num lugar solitário, como Jesus fazia; dar de modo a que não saiba a mão esquerda o que fez a direita. Quem dá aos pobres, empresta a Deus, diz o provérbio português, ou seja, nada fica sem recompensa e, definitivamente, estamos a acumular tesouros no céu (Mateus 6, 19-34).

Natureza efémera da fama
A numerosa multidão estendeu os seus mantos no caminho, enquanto outros cortavam ramos de árvores e os espalhavam no caminho. As multidões na frente e atrás dele clamavam: “Hossana ao Filho de David! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hossana no mais alto dos céus!Mateus 21, 8-9

Era o dia da preparação da Páscoa, por volta do meio-dia. Pilatos disse aos judeus: “Eis o vosso rei”. Eles, porém, gritavam: “Fora! Fora! Crucifica-o!” Pilatos disse: “Vou crucificar o vosso rei?” Os sumos sacerdotes responderam: “Não temos rei senão César”. João 19, 14-15

Domingo de Ramos não está longe de Sexta-feira Santa. A mesma multidão que gritava Hossana ao filho de David, que aclamava a Jesus como rei, por ser descendente de David, poucos dias mais tarde gritava para que esse mesmo rei dos Judeus fosse crucificado. É certo que Jesus nunca procurou ser rei, embora o fosse. Por isso, não se deleitou no Domingo de Ramos nem se deprimiu na Sexta-feira Santa.

“Os cães ladram e a caravana passa” – Os cães ladram sempre, é o seu papel. A pessoa genuína e autêntica não se regula pelo que os outros dizem de bem ou de mal, nem adapta o seu comportamento ao que o faz mais popular ou menos popular. Jesus era autêntico, a sua autoridade, como muito bem o notavam as pessoas do seu tempo, vinha de dentro, não dependia da opinião pública.

Jesus não fazia nem dizia nada nem tinha comportamentos extravagantes para atrair as pessoas a si. Nunca chamou ninguém a não ser os seus discípulos; é certo que as pessoas se sentiam atraídas por ele, mas ele não buscava as atenções para si mesmo mas para o seu Pai, e não pregava para se promover a si mesmo mas para promover o Reino de Deus.

Manter a fama, faz de ti um ator
Quem depois de fazer alguma coisa bem feita desinteressadamente, se deleita na bajulação das pessoas, fica exposto à tentação de se viciar nessa bajulação e, em vez de autêntico, começa a fazer as coisas não por gosto mas porque lhe dão fama e prestígio. Deixa de ser ele mesmo para ser um ator num palco.

Deixa de fazer o que ele gosta para fazer só o que as pessoas gostam, deixa de ser ele mesmo para ser quem ele não é. Coloca-se numa dialética de ansiedade progressiva, pois para manter a reputação tem de fazer obras cada vez maiores, já que a fama dura muito pouco.

É certo que todos gostamos de ter uma boa reputação e escutar louvores, porém não devemos ficar apegados a eles e fazer deles o objetivo da nossa vida, de tudo o que fazemos, para não deixarmos de ser autênticos. Deixamos de ser nós mesmos para sermos quem não somos e deixamos de viver a nossa vida para viver uma vida que não é nossa.

Muitos famosos, como o narciso do mito, enamoram-se da imagem que projetam para fora de si mesmos em público. Esta imagem funciona como a máscara que os antigos atores gregos colocavam para representar um personagem. Na verdade, máscara em grego significa personagem.

Manter a fama faz de ti um palhaço
Quem na vida busca os louvores das pessoas tem medo das críticas. Por isso, as críticas modelam o seu comportamento, no sentido de fazerem o que o povo quer e manda e evitarem o que o povo não quer. É bem conhecida a história do velho, do rapaz e do burro que iam para a feira.

O povo zombava deles porque nem o velho nem o rapaz montavam o burro. Para contentar o povo, montou o velho e foi criticado por deixar o rapaz a pé; montou o rapaz e foi criticado por não ter dó do pai; montaram os dois e foram criticados por não terem dó do burro. Acabaram por entrar na feira carregando o burro às costas e o povo zombou deles.

Quem é sensível às críticas e louvores recebe a sua motivação de fora e não de dentro - como tal, não é livre, mas dependente dos outros e das vicissitudes da opinião pública. Não tem caráter nem personalidade, não tem uma coluna vertebral e, como um camaleão, vai-se adaptando a tudo e a todos. Faz isto no intuito de ter a todos por amigos, acabando por não ter nenhum.

PODER
O diabo levou-o ainda para uma montanha muito alta. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua riqueza, e disse-lhe: “Dar-te-ei tudo isto, se caíres de joelhos para me adorar”. Jesus disse-lhe: “Vai embora, Satanás, pois está escrito: “Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto”. Mateus 4, 8-10

Repetimos aqui algo que já dissemos sobre a riqueza: é “a situação que faz o ladrão”, ou seja, só sabemos se uma pessoa é honesta ou não quando ela é confrontada com uma situação na qual pode roubar. Os que nunca roubaram, porque nunca tiveram a oportunidade de o fazer, não sabemos se são ou não honestos, a sua honestidade tem de ser posta à prova.

Os que nunca tiveram riqueza, nunca experimentaram o perigo de se apaixonarem por ela; para quem não tem nada, é fácil amar a Deus sobre todas as coisas. Mas, como dissemos, não são estes os verdadeiros pobres; os verdadeiros pobres são os ricos que se despojam da sua riqueza, não os pobres pelas vicissitudes da vida que muitas vezes não têm outro desejo que não o de ser ricos.

“Se queres conhecer o vilão mete-lhe a vara na mão” – A mesma ideia pode ser aplicada a algumas pessoas que parecem humildes porque não têm nenhum poder. Porém, quando lhes dás poder, revelam a sua verdadeira natureza. Para isso adverte outro provérbio: “não sirvas a quem serviu, nem peças a quem pediu”.

Como sabemos frequentemente, o que foi abusado quando era criança vulnerável e indefesa, depois de adulto, pode transformar-se em abusador, passando o resto dos seus dias vingando-se dos abusos que recebeu na infância.

Jesus de Nazaré, o anarquista
«Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão.» Mateus 20, 25-28

Jesus é anarquista, não no sentido de defender que a sociedade não deve estar organizada e disciplinada, mas no sentido de afirmar que ninguém tem o direito de exercer poder sobre ninguém. O poder, ou é serviço ou é malévolo. Por isso diz aos seus discípulos para não usarem com ninguém os títulos de Mestre, Pai, Doutor, (Mateus, 23, 8-12), dizendo que esses títulos devem apenas ser atribuídos ao único que é todo poderoso - Deus. Na filosofia de Jesus, não devemos considerar ninguém superior a nós, nem ninguém inferior a nós, e como só há uma pessoa acima de nós que é Deus Pai, todos somos iguais, todos somos irmãos.

Para Jesus, todo o governo autocrático é naturalmente violento e opressivo. Jesus entende o poder como serviço e não como domínio sobre as pessoas. Jesus substitui o amor pelo poder, pelo poder do amor e do serviço aos outros. É este o caminho da grandeza e da popularidade que tanto buscam os poderosos.

Os que exercem o poder autocraticamente são temidos, e não amados; os líderes amados pelo povo são os que exercem o poder servindo; estes são os grandes na História da humanidade. Os grandes na nossa história pessoal são também aqueles que nos serviram e não aqueles que nos dominaram. Os nossos pais, professores, catequistas, etc…

Os reis antes e depois do tempo de Jesus, após uma grande batalha, entravam na cidade montados no seu imponente cavalo, animal usado na guerra, seguidos do seu exército, para serem aclamados pelo povo. Jesus, como rei dos judeus, também entrou em Jerusalém e foi aclamado pelo povo, mas ia montado num burro, animal de paz, não num cavalo (Lucas 19, 28-40). Um ato que raia o ridículo para ridiculizar o poder e dizer ao povo o que mais tarde disse a Pilatos: sou Rei, mas o meu reino não é como os deste mundo”.

Três tipos de autoridade: moral – eleita - nomeada

Todos ficaram admirados com o seu ensinamento, pois ensinava-os como quem tem autoridade, não como os escribas. (…) Todos ficaram admirados e perguntavam uns aos outros: “Que é isto? Um ensinamento novo, e com autoridade: ele dá ordens até aos espíritos impuros, e eles obedecem-lhe!” Marcos 1, 22, 27

A autoridade no nosso mundo chega a um indivíduo por eleição democrática, ou por nomeação, uma vez que, numa democracia, o poder pertence ao povo que o delega temporal e periodicamente naqueles que considera dignos de exercer cargos públicos.
Nos nossos tempos, a autoridade, tanto eleita como nomeada, não obtém automaticamente o nosso respeito e admiração: estes devem ser ganhos. Como os contemporâneos de Jesus que lhe reconheciam autoridade apesar de não ser Ele um eleito ou nomeado, escriba ou sacerdote, a verdadeira autoridade vem de dentro, é carismática, é a autoridade do profeta que surge de entre o povo sem ter sido eleito ou nomeado.

Este tipo de autoridade obtém o nosso respeito automaticamente porque se vê uma completa coerência e correspondência entre o que a pessoa diz, o que faz e como se comporta, tanto em público como em privado. Esta autoridade moral é a que verdadeiramente dá autoridade aos eleitos e nomeados. Eleitos e nomeados sem autoridade moral não são aceites, seguidos ou obedecidos.

Conclusão
Como Jesus, vencedores das três tentações são os ricos não enamorados da sua riqueza, os famosos, não enamorados da sua imagem e os poderosos não enamorados do poder.

Fr. Jorge Amaro, IMC