15 de outubro de 2018

CNV - Justiça retributiva VS justiça reparadora

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Quando alguns homens brigarem e ferirem uma mulher grávida, e ela abortar, (…) se houver acidente fatal, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão. Êxodo 21, 22-25 - Deuteronómio 19, 16-21

Génese da justiça retributiva
Decalcada neste aspeto do código babilónico Hamurabi, a Bíblia reconhece que os atos humanos têm consequências inevitáveis. Há como que uma lei de recompensa embutida no universo que significa que as pessoas colhem o que semearam (Gálatas 6, 7). Os conceitos retributivos básicos da culpa, expiação e proporcionalidade da pena estão amplamente atestados tanto no Antigo como no Novo Testamento.

De facto, a Bíblia até termina com uma afirmação do princípio retributivo da justiça: “Eis que Eu venho em breve e trarei a recompensa para retribuir a cada um conforme as suas obras” (Apocalipse 22, 12). Portanto, a justiça bíblica é retributiva na medida em que gira à volta dos conceitos de culpabilidade moral, recompensa e o respeito pela Lei.

Seria, no entanto, um erro concluir que o conceito de justiça retributiva esgota ou engloba toda a ideia de justiça na Bíblia. Justiça no antigo Israel envolvia tudo o que fosse necessário para criar, manter e restaurar relacionamentos saudáveis no seio da comunidade.

Um ato criminoso era considerado errado, em primeiro lugar, porque violava os compromissos relacionais que mantinham a sociedade; em segundo lugar, porque os atos criminosos em si podiam conduzir a uma reação em cadeia de ruína e desastre se não fossem cerceados. Já no Antigo Testamento, mas sobretudo no Novo, os crentes são exortados a abdicar da retribuição ou retaliação, relegando-a para Deus e, no seu lugar, abraçar os princípios de perdão e reconciliação. (Mateus 5, 38-48, Romanos 12, 17-21, 1 Pedro 2, 21-23)

A justiça retributiva, tal como funciona nos nossos dias, nasceu no século XIII. Com o contrato social, dá-se a confiscação dos conflitos pelo Rei, Estado ou Lei. A partir deste momento as ofensas não são feitas a pessoas concretas de carne e osso, mas sim ao Estado por via da transgressão das suas leis. Portanto, as vítimas reais desaparecem e, no seu lugar, aparece como lesado o Estado. A vítima real poderia até perdoar, o sistema penal não perdoa porque o crime foi cometido contra um coletivo: a sociedade, o Estado.

Nos países onde existe ainda a pena de morte ou mesmo a prisão perpétua, o crime que a justiça comete é bem pior que o crime do criminoso; este, porventura, atuou sob a influência de alguma emoção forte num momento reativo, movido pelo seu cérebro reptílico mais do que pelo seu neocórtex. Pelo contrário, o crime do sistema penal é totalmente premeditado e não só por uma pessoa, mas por um elevado número de pessoas; e o que é ainda mais cruel, nefasto e bárbaro, são os anos que decorrem entre o pronunciamento da sentença de morte e a sua execução.

Com a aplicação de castigos, pretensamente proporcionais às penas, o sistema penal existe para defender a sociedade do crime, mas o que esconde verdadeiramente é que está articulado como instrumento de dominação de umas classes sobre outras; basta olhar para as nossas prisões e ver que estão cheias de pessoas que pertencem às classes mais baixas por crimes de pouca importância, quando comparáveis a gente das classes altas que cometeram crimes bem graves e vivem em liberdade.

Funcionamento da justiça retributiva
O tipo de justiça penal que se pratica em todo o planeta é a justiça retributiva que consiste em retribuir, a um delinquente ou infrator, mediante um castigo ou pena, o mal cometido a outra pessoa (vítima). Esse castigo é imposto por um legislador para compensar o dano infligido à vítima e, na maior parte dos casos, a pena é a privação da liberdade.

Para a justiça retributiva, delito é um ato individual de infração das leis do Estado; a responsabilidade deve ser assumida pelo infrator. O delito é uma questão entre o Estado e o delinquente, não se levando em conta a vítima, que verdadeiramente foi a pessoa lesada, nem as pessoas indiretamente envolvidas, nem mesmo a comunidade que, de algum modo, também foi lesada.

Na justiça retributiva só existem duas instâncias: o Estado que se apresenta e assume como sendo ao mesmo tempo vítima do crime, poder legislativo, executivo e coercivo, e o infrator que sofre as consequências da sua infração à lei.

A função do Estado é capturar o réu, acusá-lo, provar a sua culpa e aplicar-lhe uma pena adequada ao seu delito.

A função do infrator é acatar e sofrer passivamente a pena que lhe foi imposta, sem voz ativa no processo. Sem voz ativa neste processo está também a vítima, aquela que verdadeiramente sofreu o delito, assim como a sua família e também a família do infrator e a comunidade local; nenhuma destas pessoas existe no sistema penal da justiça retributiva.

O objetivo da justiça retributiva é que o infrator sofra na sua pele o dano que causou ao Estado, que seja punido conforme a gravidade do seu ato, que a sociedade seja defendida dele, privando-o da capacidade de cometer novos delitos e, por fim, que todos em geral em virtude desta punição sejam dissuadidos de cometer aquele ou iguais crimes. Esta dissuasão era a função das crucificações romanas à beira dos caminhos.

Justiça reparadora na Bíblia
Porventura me hei de comprazer com a morte do pecador - oráculo do Senhor Deus - e não com o facto de ele se converter e viver? Ezequiel 18, 23

O caráter restaurativo da justiça bíblica é já evidente ao nível macro teológico da Bíblia, desde o princípio até ao fim. Para a Bíblia, o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus; com o delito dos nossos pais Adão e Eva, perdemos a semelhança, embora retendo a imagem. O assunto único da Bíblia é a história da salvação ou redenção ou, melhor dizendo, da restauração da dignidade que o género humano possuía antes, da sua semelhança com Deus.

Como vimos na justiça retributiva, a vítima, a sua família assim como a família do infrator e a comunidade local desaparecem, ao passo que na justiça reparadora ganham protagonismo. Na história da salvação Deus é a vítima que se compromete a fazer tudo o que for necessário para restaurar a dignidade anterior da humanidade, como sugere a parábola do filho pródigo - e reparar o dano feito.

Para além da macro-história da salvação, já no Antigo Testamento encontramos elementos de justiça reparadora: em Números 5,6-7 Levítico 6, 1-7 os que ofendem devem reconhecer o erro, sentir remorso, confessar o pecado, restituir à vítima agregando uma compensação.

Antes, porém, de chegar a fé, estávamos prisioneiros da Lei, estávamos fechados, até à fé que havia de revelar-se. Deste modo, a Lei tornou-se nosso pedagogo até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Uma vez, porém, chegado o tempo da fé, já não estamos sob o domínio do pedagogo.  Gálatas 3, 23-25

Se Caim foi vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete (Genesis 4, 24) – O objetivo da lei é evitar a escalada descontrolada da violência. Mas não era a intenção de Deus que a lei fosse uma solução permanente; por isso mesmo, Jesus em Mateus 5, 38-48 revoga e substitui a lei de olho por olho substituindo-a por um sistema superior de perdão incondicional e amor ao inimigo, substituindo também a declaração de extrema violência de Lamec, pelo perdoar 70 vezes sete. (Mateus 18, 22)

 Estará então a Lei contra as promessas de Deus? De maneira nenhuma! Pois, se tivesse sido dada uma lei que fosse capaz de dar a vida, a justiça viria realmente pela Lei. Gálatas 3, 21

Para Paulo é Jesus que dá a vida; a retribuição e o castigo não são transmissores de vida pois só oferecem consequências negativas aos atos ofensivos, mas não têm nenhum poder para mudar os corações, para curar. A justiça reparadora, sana e cura, pois, a união com Cristo transforma-nos. A justiça retributiva não tem capacidade para nos fazer santos por isso não é, nem pode ser, o último plano de Deus. De facto, depois da vinda de Cristo continuar a guiar-se pela lei é contraproducente e só faz mal.

Eu, sem a lei, estava vivo outrora. Mas, ao chegar o mandamento, ganhou vida o pecado e eu morri. E deparei-me com isto: o mandamento que me devia levar à vida, esse mesmo levou-me à morte. É que o pecado, aproveitando-se da ocasião dada pelo mandamento, seduziu-me e deu-me a morte, por meio dele. Romanos 7, 9-11

Qualquer coisa boa pode tornar-se má; a família é supostamente um lugar onde nos sentimos seguros e amados, mas também pode ser profundamente abusiva e deixar cicatrizes devastadoras. A Religião e a Lei de, por si só, também são boas, mas, tal como a família, também podem tornar-se abusivas. Vemos esse abuso nos fariseus que Jesus confronta continuamente. Paulo era também ele um fariseu até se converter e tomar o caminho de Cristo.

Concluindo: a justiça retributiva sempre existiu; a Lei apareceu para evitar a escalada da violência. No entanto, como Paulo nos diz, a Lei era só um pedagogo; o plano definitivo de Deus é a justiça reparadora em Cristo. Jesus não acusa nem condena, restaura a saúde espiritual, moral e física das pessoas que vai encontrando no caminho; assim faz com Zaqueu, a pecadora apanhada em adultério, o paralítico, os leprosos, etc.

Como funciona a justiça restaurativa
O livro de Howard Zehr, intitulado “A new focus for crime and justice” de 1990, é considerado como sendo o primeiro a articular de uma forma sistemática esta teoria. É certo que o conceito vem de trás e, como Zehr reconhece, devido crédito deve ser dado à prática da justiça nas tribos indígenas do Canadá, Estados Unidos e Nova Zelândia.

O sistema penal não resolve nenhum problema e cria outros, enche as prisões de pessoas, cria marginais e “personas non gratas” na sociedade que tarde ou cedo voltam a transgredir. O sistema penal é um sistema que produz muito mais dor e sofrimento que a violência que pretende combater. A vingança não é justiça e a punição do infrator, por mais dura que seja, não traz nenhuma satisfação à vítima; impor a dor a outra pessoa não faz desaparecer a nossa dor, nem a diminui.

Para a justiça reparadora, delito é toda a ação que causa dano a uma pessoa. É um conflito interpessoal e, mais que uma transgressão às leis, é um malefício causado à vítima e à comunidade em geral. Se o delito tiver sido cometido contra a comunidade e uma pessoa concreta no seio dessa comunidade e não contra uma entidade abstrata como é o Estado, é na comunidade que o problema deve ser resolvido. Como diz o povo, “A roupa suja lava-se em casa, não fora”.

O lugar onde se aplica a justiça retributiva é o tribunal e a prisão; para a justiça reparadora, o lugar é o centro comunitário onde o infrator, a sua família e amigos se encontram com a vítima, com a família e amigos desta e com outras pessoas relevantes da comunidade à qual ambos pertencem. Curiosamente, nos lugares de aplicação da pena de morte estes encontros também se dão, quando os familiares da vítima vão assistir à macabra liturgia da execução do criminoso, mas são bem diferentes e bem tristes…

Os encontros da justiça reparadora são voluntários, devem decorrer no respeito mútuo, em clima de honestidade e humildade. O mediador ou facilitador deve encontrar-se com as partes em separado para preparar o encontro.

A justiça reparadora visa ajudar na recuperação da vítima e reintegrar o infrator na sociedade, tendo em conta a participação e mediação da comunidade. Como ferramenta, usa-se o diálogo e o encontro entre as partes direta ou indiretamente envolvidas. Para a justiça retributiva só havia duas instâncias: o Estado e o infrator. Para a justiça reparadora as instâncias são três: a vítima, o infrator e a comunidade.

A vítima – O Estado deixa de usurpar o papel da vítima; esta volta a ter protagonismo, expressa as dores que lhe ocasionaram o delito, procura que o dano seja reparado e que não volte a acontecer. Tem a palavra a vítima, a pessoa que verdadeiramente sofreu, foi lesada e está ainda em sofrimento. O Estado não foi ofendido e não sofreu realmente, pois a dor não se pode delegar. A vítima explica, face a face, como o crime afetou a sua vida e mostra o dano que causou.

A finalidade é reparar o mal feito, dando voz à vítima que expressa os seus sentimentos e as suas necessidades, levando o infrator a reconhecer o mal e a fazer algo pela vítima, de forma a não voltar a ofender. O objetivo é conseguir a reconciliação e especificar o que o transgressor deve fazer para recompensar a vítima.

Vejamos como funciona o papel da vítima no contexto da justiça reparadora no exemplo que se segue.
Uma criança cheira mal na escola e por isso é vítima de “bullying” por parte dos seus colegas. No âmbito da justiça retributiva, estes colegas vão ser punidos, o que provavelmente nada vai resolver e, passado algum tempo, estes voltam a reincidir ou outros fazem-no no seu lugar.

Ao contrário, no âmbito da justiça reparadora, o “bully” e a sua vítima, além de outras pessoas das respetivas famílias e da escola, assim como líderes da comunidade, vão ser convocados para uma reunião. O transgressor fica a saber a razão pela qual a sua vítima cheira mal; é um menino pobre, de um bairro de lata, não tem eletricidade nem água corrente em casa.

O infrator e a sua família vão ter uma compreensão mais profunda do problema que está por trás daquela situação de conflito, e desta reunião pode sair a possibilidade de mobilizar as forças sociais para procurar uma solução, na raiz do problema. No âmbito da justiça retributiva não chegaríamos tão longe: ela não resolve nada e pode criar mais problemas, como fazer aumentar a violência se tiver havido exagero, na aplicação da punição.

O infrator - Entende a vítima, reconcilia-se com esta e repara o dano. O réu fica a saber o impacto real da sua ação, coisa que não acontece na justiça retributiva. Assim, mais facilmente é responsabilizado, coisa que raramente acontece no sistema retributivo, onde procura provar a sua inocência ou fugir à justiça.

A justiça reparadora deposita grande esperança no encontro entre a vítima e o infrator. Um crime é sempre um encontro desumano e desumanizante entre duas pessoas, uma vez que estas se encontram superficialmente descontextualizadas. O encontro procura colocar as pessoas no seu ambiente vital com as suas relações. Vejamos no seguinte exemplo como o infrator pode mudar ante um conhecimento mais profundo da sua vítima e de como o seu crime tocou negativamente a vida de muitas pessoas.

Um jovem que mata um taxista e é julgado no contexto da justiça retributiva, nunca chega a conhecer a vítima e o seu ambiente, apenas vai ser punido e mais nada. Pelo contrário, na justiça reparadora ele conhece melhor a dimensão do seu crime: na verdade, ele matou um taxista que era casado e que deixa uma viúva sozinha a criar 8 filhos. A perceção clara do sofrimento que o criminoso causou tem um efeito interno de transformação, já que apela obrigatoriamente à sua compaixão, à humanidade que decerto deve possuir.

Ao contrário da justiça retributiva, pela qual ele nem sabia a magnitude do sofrimento causado nem lhe era pedido que reparasse os danos, na justiça reparadora, pode participar ativamente ajudando a resolver o problema que o seu ato criou e até mesmo mudar a sua vida neste processo. No âmbito da justiça retributiva, ficaria na prisão matutando no que correu mal, no âmbito da execução do crime que ele tinha idealizado como perfeito, como se deixou apanhar ou o que podia ter feito para fugir à justiça.

A comunidade – Acompanha, facilita o processo e vela pelo cumprimento das condições pactuadas entre o réu e a vítima. Na justiça retributiva, o Estado usurpa o papel da vítima e da comunidade, só ele atua, só ele tem papel ativo na solução do problema. Na justiça reparadora, o problema é resolvido onde surgiu e pelos que o criaram e junto dos que o sofreram. No diálogo entre as partes, a comunidade é mediadora na reconciliação e facilita o processo.

Em conclusão, na justiça retributiva o Estado assume o papel de vítima abstrata e pune o infrator. Na justiça reparadora interagem a vítima, que expõe a sua dor e os danos causados, o infrator, que se apercebe da magnitude do seu ato e se compromete a repará-lo, e a comunidade, que arbitra, medeia e facilita esta relação que é reparadora tanto para a vítima como para o infrator.

Um filme chamado Conversas
O facilitador mediante duas reuniões prévias, com cada uma das partes, consegue acordar que a família da vítima e a família do criminoso se encontrem numa reunião. Baseado numa história real, o filme relata que um individuo viola e mata uma rapariga enquanto se encontrava em liberdade condicional. O criminoso está na prisão a cumprir pena, mas envia à reunião um vídeo no qual pede perdão pelo crime e diz que não tinha intenção de matar a vítima, garantindo que a tinha deixado viva; só que se excedeu na violência sexual e ela acabou por morrer.

- Nos diálogos, o mais importante é como a culpa se vai diluindo e repartindo tanto pela família do criminoso como pela da vítima. A mãe do criminoso sente-se culpada por ter sido muito condescendente na educação do filho que era o preferido dela; o irmão confessa que podia tê-lo ajudado e que tentou falar com a vítima para a avisar; mas esta, pensando que ele queria conquistá-la, lançou-lhe um olhar de desdém; o irmão, sentindo-se ferido pelo olhar, desistiu de a avisar do perigo.

O pai da vítima confessou que a filha tinha herdado o snobismo dele e que; não lhe tinha dado a tempo um dispositivo de segurança que há muito havia prometido à filha que já tinha passado por outros episódios de perigo de violação. O tio materno do criminoso despedira-o do emprego e tinha dado a entender que a violência às vezes faz parte do sexo; a psicoterapeuta do criminoso, acreditou ingenuamente nele e admitiu até alguma atração por ele. As duas famílias acabaram reconciliadas, pois ambas sofreram com o crime e todos aceitaram uma parte da culpa.

Na sua vida de psicoterapeuta, Rosenberg dá conta do sucesso da utilização da filosofia da CNV no âmbito da justiça reparadora, num caso semelhante ao do filme Conversas, que colocou frente a frente um pai e a sua filha por ele violada.

1ª etapa - Rosenberg inicia a sua mediação pedindo à filha para dizer ao pai como a sua vida foi afetada pelo facto. Esta, sem formação em CNV, acusa o pai pelo que ele fez:
- Como foste capaz de o fazer, tu, o meu próprio pai, destruíste-me a minha vida! Devias apodrecer na cadeia.

Neste momento o processo requer que o pai sinta empatia pela filha. O normal é que ele peça desculpa, mas em CNV não há pedidos de desculpa e sim, um processo de luto. Quando, com a ajuda do facilitador ou mediador, o pai consegue sentir empatia pela filha e pela sua dor, sente uma grande tristeza.

2ª etapa – O pai entra agora num processo de luto que é muito mais importante que o pedido formal de desculpas.

3ª etapa – É a vez do pai expor à filha o que se passava com ele a nível de necessidades e sentimentos, e como aquele ato foi uma forma inadequada e cruel de procurar a satisfação das suas necessidades - uma satisfação egoísta que só teve em conta as suas necessidades e não as do outro.

O objetivo desta etapa é levar a vítima a chegar a sentir empatia com o autor do crime. Não é fácil, neste caso, a filha sentir empatia pelo pai, mas quando acontece dá-se a cura sem necessidade de pedir perdão nem conceder perdão. A empatia, por si mesma, tem o poder de sarar tanto o autor do crime com a sua vítima.

Sempre que o agressor consegue sentir empatia pela vítima e a vítima consegue sentir empatia pelo agressor, o perdão é automático. Pelo contrário, se não há nenhuma empatia entre as partes, o infrator pode até mesmo pedir perdão e a vítima concedê-lo, mas será uma mera formalidade, não um perdão real pois não surge do coração. Não haverá cura sem perdão real e vice-versa; os dois só podem acontecer por meio da empatia.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de outubro de 2018

CNV - Uma nova relação com Deus

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Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor. 1 João 4, 8

Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos que hoje te imponho estarão no teu coração.

Repeti-los-ás aos teus filhos e refletirás sobre eles, tanto sentado em tua casa, como ao caminhar, ao deitar ou ao levantar. Atá-los-ás, como símbolo, no teu braço e usá-los-ás como filactérias entre os teus olhos. Escrevê-los-ás sobre as ombreiras da tua casa e nas tuas portas.» Deuteronómio 6, 4-8

A matriz da não violência
Quando abrimos um computador, vemos que todos os seus componentes assentam numa placa que é chamada placa-mãe (mother board). A memória física ou disco duro, a memória operativa ou RAM, o processador, as placas de som e de vídeo desempenham a sua função e a função no conjunto dos outros componentes na medida em que estão ligados à placa-mãe. Uma mudança da placa-mãe inutiliza todos os outros componentes, por não se adaptarem à nova placa. A placa-mãe de um PC é diferente da placa-mãe de um Macintosh.

Acreditamos que a Comunicação não violenta é uma nova placa-mãe para o mundo e sociedade em geral, uma nova ordem social. Sobre esta nova matriz assenta um novo direito, uma nova ética, uma nova forma de educar, uma nova forma de relacionamento connosco mesmos, com os outros e com o nosso planeta. Estamos em crer que nesta mesma matriz também assenta uma nova religião ou seja uma nova forma de relacionamento com Deus.

À semelhança da teoria dos cristãos anónimos, de Karl Rhaner, temos vindo a descobrir que muitos saberes, mesmo sem conhecer esta nova matriz, se deram conta por si mesmos que operavam inadequadamente sob o princípio da violência. Dentro do Direito há quem questione a justiça retributiva e queira substituí-la pela justiça restaurativa; em filosofia, já Sócrates via a doutrinação como uma forma violenta de educar pelo que a substituiu pela maiêutica - arte de ajudar a dar à luz. Tanto no serviço social como em psicoterapia, o assistente social ou o psicoterapeuta não trata de ensinar, mas sim de ajudar o outro a descobrir em si mesmo e / ou por si mesmo a sabedoria necessária para a resolução dos seus problemas. O que descobrimos por nós próprios é mais eficaz para a nossa vida que o que os outros descobrem por nós.

De uma forma semelhante, Carl Rogers, antepõe a sua psicoterapia não diretiva à diretiva e portanto violenta, entendendo que a solução dos problemas de cada um está em cada um; a ética questiona o princípio da guerra justa e acredita que pode haver um mundo para além do bem e do mal; por outro lado, já não se fala de uma moral heterónoma, baseada em princípios e regras morais estabelecidos por alguém para todos, mas sim de uma moral autónoma, baseada no primado da consciência moral, bem formada e informada, por cima de qualquer outra instância. Paulo Freire acredita num método semelhante à maiêutica para alfabetizar os camponeses, enquanto que Teilhard de Chardin e Walter Wink acreditam numa nova forma de relacionamento com Deus, numa nova religião.

Religião ou revelação
Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna. João 3, 16

É nisto que está o amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. 1 João 4, 10

O cristianismo não é uma religião porque religião, da palavra “religare”, refere-se ao esforço, às obras e liturgias que o ser humano realiza para se relacionar com esse ser superior e omnipotente para obter a seu favor e para que Ele tome o seu partido contra os seus inimigos. O cristianismo é uma revelação na medida em que o pontapé de saída é dado pelo mesmo Deus que, por ser amor, nos amou primeiro; a iniciativa foi, portanto, de Deus que nos amou ao ponto de nos enviar o Seu Filho. Seguindo a mesma filosofia, Jesus escolhe os seus discípulos, não é escolhido por eles (João 15, 16).

Ao contrário do judaísmo que é negativo, com mandamentos que só nos dizem o que não devemos fazer, o cristianismo é positivo pois baseia-se no mandamento do amor. O judaísmo é evitar o mal, o cristianismo é fazer o bem. Ninguém é bom só porque evita o mal, de facto a iniciativa humana no judaísmo, e em todas as religiões, baseia-se na famosa regra de ouro da qual todas as crenças neste planeta têm uma versão: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”.

A regra de ouro cristã, porém, é positiva: «Portanto, o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque, isto é, a Lei e os Profetas.» Mateus 7, 12. O cristianismo é a “religião” da iniciativa; não esperamos que o outro venha até nós, vamos nós ao outro, movidos pela única intenção de o amar.

“Amor com amor se paga” – Ou dito no contexto da filosofia da CNV a compaixão que usamos connosco mesmos e com os outros produz no outro a compaixão que ele, por sua vez, usará consigo mesmo e connosco; desta forma se constitui um círculo progressivamente mais abrangente, como os círculos concêntricos formados pela água quando uma pedra cai no meio de um lago. Se, como dizem, o riso é contagiante, o amor é ainda muito mais contagiante.

Cristianismo – Não - Violento
As iniciais CNV tanto podem significar Comunicação Não Violenta como Cristianismo Não Violento. O cristianismo é, de facto, não violento, na sua essência e na sua origem histórica. Ninguém pode negar que o conceito de não-violência ativa tem a sua origem na doutrina e na praxis de Jesus de Nazaré. É certo que nem sempre o cristianismo foi não violento ao longo dos seus dois milénios de história; não podemos esconder realidades como as Cruzadas e o seu conceito de guerra justa, nem como a Inquisição ou a forma violenta de impor e proteger a verdadeira doutrina.

Historicamente, o cristianismo não seguiu as passadas do seu Mestre e Fundador, Jesus de Nazaré, nem na sua vertente humana nem no seu evangelho; sobretudo depois do imperador Constantino, a Igreja, aliada ao poder, seguiu o mito do poder, o mito babilónico. Em muitas ocasiões era este o seu evangelho e se de alguma forma seguia o outro, o de Cristo, lia-o à luz do mito babilónico.

Mas não foi assim no princípio, com Jesus de Nazaré, e até ao século V. Jesus, de facto, foi o primeiro ser humano a enfrentar o mito babilónico da violência redentora e provou com a sua própria morte que a violência não é querida por Deus; a violência não só não redime, mas transforma-se em círculo vicioso, que se move como um furacão, criando mais violência, crescendo em espiral e exponencialmente com cada ato de violência praticado.

Com a sua morte, Jesus provou que só a não violência é redentora. Por isso, Jesus, fundador do cristianismo, é também fundador da não violência. Já tivemos ocasião de expor as ideias da não violência ativa de Jesus, um termo que muitos pensariam criado por Gandhi, aquele que conseguiu a independência da Índia por meios não violentos; segundo Martin Luther King, Gandhi, não criou o conceito da não violência, mas foi a primeira pessoa na História a elevar e levar o amor ético de Jesus para além da interação entre indivíduos, constituindo-o como uma poderosa e efetiva força social em larga escala.

Gandhi até dizia, “Toda a gente sabe que Jesus era não violento, só os cristãos é que não”. Não se trata de uma crítica sarcástica aos cristãos, é bem verdade; os cristãos, de facto, nunca deram importância à não violência de Jesus e eles mesmos se riram do dar a outra face, interpretando esse dito como idealismo utópico inocente e ingénuo. - O próprio Gandhi decerto se referia a Jesus, quando falando da causa da independência da Índia dizia: “Nesta causa, também estou preparado para morrer, mas não há nenhum motivo pelo qual esteja preparado para matar”.

Jesus e o templo de Jerusalém
(…) fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as mesas; e aos que vendiam pombas, disse-lhes: «Tirai isso daqui. Não façais da Casa de meu Pai um covil de ladrões.» João 2 15-16

Jesus entrou em Jerusalém “ridiculamente”, poderíamos dizer, montado num burro (Lucas 19, 28-40) animal da paz e dos pobres, pois serve para a carga de coisas para ir ao mercado. Ainda hoje, na Etiópia, o cavalo é o animal da guerra e dos ricos, pois só serve para ostentação e guerra. - Se calhar as pessoas riram-se porque alguém que pretendia ser rei montava num jumento e não num cavalo… mas com isto Jesus riu-se da violência e dos sistemas de governo, não teve medo nem vergonha de ser aclamado rei montado num burro.

Muito se tem escrito sobre a expulsão dos vendilhões do Templo, pela qual, alguns se atrevem a dizer que afinal Jesus também era violento. Primeiro, é preciso notar que o evangelho menos histórico de todos é precisamente o de S. João; neste caso, os evangelistas sinóticos Marcos, Mateus e Lucas não mencionam nenhum chicote.

Quanto ao evangelho de João acima citado, o problema começou pela tradução errada que S. Jerónimo fez do original grego. “Todos” refere-se segundo o original grego aos bois e ovelhas que Jesus expulsou com o chicote e não aos vendedores. Assim sendo, o texto deveria dizer “Fez um chicote de cordas e expulsou todos os bois e ovelhas do templo”; de facto, quando chegou junto dos vendedores de pombas, não as expulsou da mesma forma usando o chicote, mas dizendo aos seus donos “tirem isto daqui”. De nada teria valido a lição dada ao entrar em Jerusalém montado num jumento em vez de um cavalo, se Jesus tivesse usado o chicote nas pessoas em vez de o ter usado nos animais.

É certo que Jesus estava zangado, mas não atuou violentamente. A sua ira, nesta ocasião como em outras, era justa e justificada; neste caso, para defender a verdadeira religião, noutros casos, para defender os pobres, as viúvas, os doentes e os indigentes em geral, contra os que se aproveitavam deles. Ao contrário da nossa ira, que exibimos quando os nossos interesses estão em causa, Jesus nunca se zangou, nem fez nada em proveito próprio.

O seu gesto foi profético, ao estilo dos profetas do antigo testamento que nunca se cansaram de repetir que o que Deus quer é amor, misericórdia e compaixão e não sacrifícios (Oseias 6, 6). Como muitos profetas antes dele, Jesus questionou e opôs-se a todo o sistema sacrificial violento. A religião, ou relação, que Jesus vem estabelecer é aquela relação de amor que havia entre o povo e Deus durante a travessia do deserto.

Jesus diz à Samaritana (João 4, 1-42) que a Deus não se adora, nem em Jerusalém, nem no monte Gerazim, mas em toda a parte pois Deus é espírito e a única condição é estar na verdade. Jesus no templo realizou um ato simbólico para convidar os crentes a cessar de cooperar com o sistema sacrificial, pois este absolvia ou isentava os fiéis de se converterem nas suas mentes e corações.

Por outro lado, de facto os sacrifícios tinham sido transformados num negócio vergonhoso e corrupto nos templos dos sumos sacerdotes Anás e Caifás; estes, como possuíam extensos rebanhos, instruíam os guardas do templo a inspecionar e rejeitar os animais para o sacrifício que não fossem comprados no próprio tempo. Deste modo, o povo não podia oferecer os seus animais pois os inspetores sempre encontravam neles defeitos e os declaravam impróprios para um sacrifício a Deus.

O nomadismo antigo, do povo de Israel, era propício a uma espiritualidade nómada, ou seja, em não arranjar falsas seguranças e em depender sempre de Deus. Foi este tipo de espiritualidade que inspirou o povo durante os anos da travessia do deserto rumo à Terra Prometida. Jesus no seu “modus vivendi” voltou a esses tempos: - de facto foi um nómada, nunca se estabeleceu, não tinha onde reclinar a cabeça (Lucas 9, 58).

O sedentarismo leva a criar estruturas de poder e a usar a religião como justificadora ou mentora espiritual dessas mesmas estruturas. Deus, que antes era espírito, foi encerrado num Templo e a Ele só acediam os sacerdotes, só eles tinham a chave, estabeleciam-se como intermediários entre Deus e os homens, vendendo bem cara a salvação ao povo.

Desta patranha já se tinham dado conta os Essénios que romperam com o judaísmo porque o consideravam corrupto e constituíram uma comunidade nas margens do Mar Morto; nesta comunidade, a salvação obtinha-se através da conversão de vida pela purificação física e ritual, por meio de água, símbolo de uma purificação espiritual.

O movimento Essénio era elitista, a salvação era para uns poucos; o que João Batista fez foi democratizar a salvação, trazendo-a para fora da comunidade de Qumram e colocando-a ao alcance de todos, por intermédio de um batismo nas águas do rio Jordão, para simbolizar uma purificação e conversão da mente e do coração. Sendo ele filho de um sacerdote e, portanto, também sacerdote, rebelou-se contra o Templo ao oferecer num batismo de água gratuito o mesmo perdão dos pecados que em Jerusalém ficava bem caro, com a compra de animais para os sacrifícios.

Por fim Jesus, que num princípio segue as passadas de João Batista - de facto até o vemos a jusante do rio a batizar ao mesmo tempo que João, (João 3, 22-26) - ao contrário deste e sobretudo depois da morte deste, Jesus leva a salvação pelas vilas e aldeias, pela imposição das mãos. A religião de Jesus é uma religião de rua e não de templos, nem de sinagogas, nem de igrejas, nem de lugares específicos como João no rio Jordão, pois estes rapidamente se estabelecem como estruturas de poder. A salvação é oferecida onde quer que os homens vivem e dela precisam.

No momento em que Jesus estava a morrer no alto da cruz, mais de três mil cordeiros e cabritos estavam a ser imolados no templo; depois do sacrifício de Jesus acabaram os sacrifícios do templo, pois o véu deste foi rasgado à mesma hora da morte do Senhor e o templo, que no tempo de Jesus tinha apenas sido reconstruído por Herodes e estava no seu apogeu de beleza e esplendor, (Marcos 15, 38) foi arrasado pelos romanos e até hoje nunca foi reconstruído.

A palavra “Guadalupe” significa “aquela que esmaga a serpente”, uma referência ao deus Quetzalcoatl ou serpente de pedra, ao qual as astecas costumavam oferecer sacrifícios humanos. Em 1487, devido à dedicação de um novo templo em Tenochtilan, cerca de 80.000 cativos foram imolados em sacrifícios numa só cerimónia que durou quatro dias. Curiosamente, com a chegada do cristianismo também ali se acabaram os sacrifícios humanos.

Uma religião sem sacrifícios
A CNV opõe-se à teologia, filosofia e psicologia do sacrificar-se e sacrificar as próprias necessidades pelos outros. Entende que faz parte da ideologia dos poderes instituídos da redenção pela violência; neste caso, a violência contra si mesmo. O supremo sacrifício de um homem pelo seu país, pela sua pátria, pela sua bandeira, ou pelo seu rei, o autossacrifício de uma mulher como esposa para satisfazer as necessidades do marido, ou como mãe para satisfazer as dos filhos, perpetua o mito da violência redentora que diz que a violência é necessitaria para atingir o bem.

Toda a ação realizada por motivos de dever, obrigação, vergonha, culpa, para comprar amor ou popularidade, por nos sentirmos responsáveis pela felicidade do outro, vai contra a filosofia da CNV. Tudo o que façamos por alguma destas razões tem um preço muito alto a pagar, tanto pelo autor da ação como pelo recetor da mesma.

Por favor, faz o que te peço somente se o podes fazer com a mesma alegria com que uma criança deita migalhas de pão aos patos esfomeados do lago. Marshall Rosenberg

Nunca dês nada a ninguém a não ser do fundo do coração. Marshall Rosenberg

Em CNV, o que quer que façamos, fazemo-lo gratuitamente, não fazemos devedores quando damos nem ficamos em dívida quando recebemos; o que quer que façamos, fazemo-lo por amor e pela alegria que sentimos ao contribuir para a nossa e para a felicidade dos outros; o que fazemos fazemo-lo para tornar a nossa e a vida dos outros mais maravilhosa; o que fazemos fazemo-lo por puro gosto, porque satisfaz as nossas necessidade s e as necessidades dos outros que também são nossas. Em CNV, não há nenhum motivo extrínseco em tudo o que fazemos.

Ninguém me tira a vida, sou eu que a dou de livre vontade. João 10, 18
Ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida pelos seus amigos João 15, 13

Como para Jesus, o que é verdadeiramente redentor é a não violência, e como era contra o Templo e os seus sacrifícios, acreditamos que fosse também contrário à ideia do autossacrifício. A ideia de sacrificar-se por algo, vai ao encontro da “Violência Redentora”, ideologia dos poderes instituídos, e faz do cristianismo uma religião tão violenta como o Judaísmo que o precedeu. Esta pode ser a forma como os poderes instituídos conceptualizam o cristianismo e muitos cristãos entendem a sua fé e interpretam a morte de Jesus, mas não é certamente a religião que Jesus criou nem a forma como ele mesmo interpretou a sua morte.

Primeiro, como diz o evangelho acima citado, Jesus morreu de livre vontade, não porque estivesse destinado por Deus Pai nem porque as circunstâncias da vida que viveu o levaram à morte. Segundo, em plena concordância com os princípios da CNV, ele morreu por nós não porque fosse o seu destino e necessário que o fizesse, mas porque nos amava. Terceiro, para a CNV, necessidades, valores e ideais, são uma e a mesma coisa; por isso, morrendo por nós, Jesus estava a satisfazer a sua necessidade de amor por cada um de nós e pela humanidade como um todo.

Ama o próximo como a ti mesmo. Levítico 19,18
Aparentemente, este mandamento é só acerca do amor pelo nosso próximo. Porém, quando nos detemos a analisá-lo e nos damos conta de que a medida com que devo amar o meu próximo, é a minha autoestima, ou seja o amor que tenho a mim mesmo, tenho de concluir que este mandamento não só implica que devo amar-me a mim mesmo, mas também que primeiro devo amar-me a mim mesmo e só depois o próximo, da mesma forma como me amo a mim.

Para a CNV, o nosso mundo é abundante, e há nele suficientes recursos para que todos possam satisfazer as suas necessidades, pelo que nunca temos que abdicar das nossas necessidades para que outros possam satisfazer as suas. No caso de alguma vez as minhas necessidades estarem em conflito com as necessidades de outrém, a natureza inspirará estratégias para que as necessidades de ambos sejam satisfeitas.

Religião baseada no amor, não em prémios nem em castigos
No me mueve, mi Dios, para quererte
el cielo que me tienes prometido,
ni me mueve el infierno tan temido
para dejar por eso de ofenderte.

Tú me mueves, Señor, muéveme el verte
clavado en una cruz y escarnecido,
muéveme el ver tu cuerpo tan herido,
muéveme tus afrentas y tu muerte.

Muéveme, en fin, tu amor, y en tal manera
que, aunque no hubiera cielo yo te amara
y aunque no hubiera infierno, te temiera.

No me tienes que dar porque te quiera,
pues, aunque lo que espero no esperara,
lo mismo que te quiero te quisiera.

Não me move meu Deus para querer-te
O Céu que me tens prometido,
Nem me move o inferno tão temido
Para deixar por isso de ofender-te.

Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te
Cravado numa cruz escarnecido,
Move-me o ver o teu corpo tão ferido
Movem-me as tuas afrontas e a tua morte

Move-me, enfim, o teu amor, de tal maneira
Que, ainda que não houvesse Céu eu te amaria
E ainda que não houvesse Inferno eu te temeria

Nada me tens que dar para que te queira
pois, ainda que o que espero não esperasse
o mesmo que te quero te quereria
Soneto ao Cristo crucificado por um poeta anónimo espanhol do século XVI

Como aprendemos em CNV, tudo o que fazemos motivado pelo medo de um castigo ou na esperança de um prémio é violento.

Este soneto, de um autor anónimo espanhol do século XVI, revela que já nesse século havia gente que pensava que a verdadeira religião, ou seja, a relação com Deus, não devia ser motivada pela ânsia de ganhar o Céu, nem pelo medo de ir para o Inferno.

A salvação acontece pela fé e não pelas obras. Uma vez que somos salvos pela fé, o Céu já está “ipso facto” garantido, não temos que o ganhar; por isso o que quer que façamos de boas obras é responder com amor e por amor a quem nos amou primeiro. S. Paulo já tinha intuído que o cristianismo é graça pura e incondicional, mas, nos séculos que se seguiram, a Igreja Católica enterrou esta teologia e instaurou a teologia violenta da salvação pelas obras e pela compra de indulgências plenárias.

Tal como para a não violência, foi preciso vir um Gandhi, para nos fazer olhar para as nossas raízes não violentas; também neste caso foi preciso um Martinho Lutero e um cisma na Igreja para nos reconciliar com a teologia paulina da salvação gratuita pela fé e não pelas obras.

Para este poeta cristão do século XVI, o que o comove, o móbil do seu amor por Jesus não é um amor interesseiro, do tipo “dou-te um chouriço para tu me dares um porco”, é um amor livre, é a resposta ao que me amou primeiro e se entregou por mim; não é o medo do inferno, nem a ânsia do Céu, porque ainda que estes não existissem o seu amor subsistiria, porque é um amor movido pela compaixão e pela empatia, conceitos tão caros à CNV.

O soneto, mais famoso de toda a literatura espanhola, tido também como o “ex libris” da Contra- Reforma, ironicamente aceitando o postulado da salvação pela fé, é tido e é de facto um encontro do amor de Deus manifestado na paixão, pois ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida pelos seus amigos (João 15, 13). É um amor incondicional, pois Jesus deu a vida por todos nós enquanto ainda éramos pecadores (Romanos 5, 8). É a resposta do amor humano, também incondicional, sem a “contaminação” do Céu ou do Inferno.

Sem dúvida todo o amor pressupõe uma esperança, ou melhor, um propósito. O amor, mesmo entendido como sentimento, como acontece no banquete de Platão, é também ali um meio (na voz de Sócrates) para alcançar o bem absoluto e superar o estado de orfandade, pelo facto de o ser humano ser, em si mesmo, incompleto.

O amor de Deus, no entanto, não tem começo nem tem fim, é completamente gratuito. O soneto anónimo faz tábua rasa de toda a expectativa. Diz a Cristo que o seu amor não é guiado por qualquer interesse de recompensa ou medo de punição do inferno. O amor humano é inspirado pelo sofrimento de Cristo. Portanto, o amor absoluto de Deus tem a capacidade de gerar um amor semelhante em nós.

É certo que o poeta acredita e não nega a sua fé na vida depois da morte, mas insiste mais de uma vez no poema, em manifestar o seu amor livre de qualquer expectativa ou retribuição, eximindo Deus de toda a obrigação e até de bênçãos ou prosperidade que lhe possa conceder na sua vida terrena. O poeta vive de amor e por amor, nada tem a pedir nem para esta vida nem para a outra.

A salvação pela fé não pelas obras
Amor com amor se paga
Deus é amor por isso tudo o que Ele faz é amar; criou-nos por amor e quando andávamos perdidos por amor nos salvou, enviando-nos o seu filho único (João 13, 16). O amor que Deus nos tem não pode ser retribuído por boas obras ou bom comportamento. - Deus criou-nos e salvou-nos gratuita e incondicionalmente, sem querer nada em troca. Por isso, nada temos de fazer para ser salvos, porque nada que pudéssemos fazer nos conseguiria a salvação; pelos nossos próprios esforços a salvação não seria possível e, por ser impossível, Deus veio até nós para nos dar uma mão. Só podemos ir a Deus pelo filho (João 14, 6) e sem Ele nada podemos fazer. (João 15, 5)

Ama e faz o que queres – disse Stº Agostinho; só poderemos pagar o amor de Deus com amor, não com boas obras ou bom comportamento. Boas obras e bom comportamento são certamente o resultado natural do nosso amor por Deus. Mas não são impostas, motivadas por uma vontade de ferro repressiva das nossas necessidades, para obedecer aos mandamentos de Deus e entrar no Céu ou evitar o Inferno.

Frequentemente em sermões gosto de provocar as pessoas para as fazer pensar, dizendo que Deus só ama os que o amam. Imediatamente ouço uma reação de protestos que dizem que Deus ama a todos incondicionalmente, tanto o santo como o pecador. Faz o sol nascer sobre o bom e sobre o mau e envia a chuva para o justo e para o injusto (Mateus 5, 45)

Após a esperada reação eu digo que em teoria é assim, Deus ama a todos incondicionalmente, mas na prática, na realidade, só ama os que O amam. Só quando nos fazemos eco do amor de Deus é que sentimos os efeitos do Seu amor. Fazer-se eco do amor de Deus é amá-lo. Pelo contrário, se voltamos as costas a Deus, ou seja, se não O amarmos, Deus não pode impor-nos o seu amor; por isso, não amar a Deus significa não acolher nem aceitar o seu amor, pelo que não sentimos o seu efeito nas nossas vidas. Amar a Deus é aceitar o Seu amor; não amar a Deus é rejeitar o Seu amor.

A luz e o calor do Sol antes de chegarem até nós, cruzam o espaço sem o iluminar nem aquecer; de facto o espaço é negro e a temperatura são 300 graus negativos. Isto acontece porque o espaço é vazio, nada há nele nada que absorva ou reflita a luz e o calor do Sol. O nosso satélite, a lua, é um astro, um corpo celeste que no vazio do espaço absorve e reflete a luz e o calor do Sol, por isso tem uma temperatura de 300 graus positivos. A da Terra não é tão alta porque está protegida pela atmosfera. O mesmo acontece com o amor de Deus só quem o recebe e reflete o pode absorver. Amor com amor se paga.

 Isto mesmo é gratuitidade, o coração da filosofia da CNV. Recordemos a respeito as máximas de Rosenberg: “Não faças nem dês nada a ninguém a não ser que o dês e faças do fundo do coração”, “faz o que te peço somente se o consegues fazer como a mesma alegria com que uma criança deita migalhas de pão aos patos”.  - Não faças nada movido por motivações extrínsecas, como o dever, a obrigação, o medo, a culpa, a vergonha, a raiva; para comprar o amor dos outros ou o Céu; por medo do Inferno ou de ser castigado; ou porque te sentes responsável pela felicidade do outro.

Recebeste de graça, dai de graça, Mateus 10, 8 - Deus não nos deu, para nos fazer devedores; recebemos Dele gratuitamente e gratuitamente Lhe damos o nosso amor.
Pe. Jorge Amaro, IMC