15 de março de 2024

Cosmovisão e a sua expressão

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Refletimos que a cosmovisão é como a placa-mãe de um computador à qual se agregam elementos como, mitos, lendas, contos populares, crenças, rituais, religiões, arquétipos, símbolos, normas ou regras e valores. Todos estes conteúdos são de alguma forma abstratos, virtuais e precisam de um suporte físico para se fazer ver.

Podemos estudar a cosmovisão de povos antigos que já não existem, os seus mitos e lendas, os seus símbolos e crenças, pelos documentos que nos deixaram. Sabemos muito da cosmovisão, da maneira de viver e pensar de povos como os Vikings do norte da Europa, dos Maias e dos Aztecas da América Central

Para descobrir a estrutura do pensamento de um povo, a sua cosmovisão e os elementos que a compõem, como os mitos e crenças, a religião, as regras e valores, precisamos de estudar os veículos onde esses elementos se encontram plasmados ou expressados. Essas formas de expressão coincidem com as sete artes clássicas. Preferimos dividi-las de uma forma mais antropomórfica, usando os nossos cinco sentidos: artes literárias, gráficas, visuais, auditivas, audiovisuais.

ARTES VISUAIS:  arquitetura, escultura
As primeiras coisas que o ser humano fabricou - martelos de pedra, machados e facas de pedra lascada – foram utensílios que mais tinham a ver com a ciência que com a arte. Estes utensílios estavam ligados ao conhecimento das coisas e à sobrevivência num mundo hostil. Referimo-nos à Idade da Pedra e dos Metais, há milhares de anos, portanto.

Imediatamente após a saída do homem de África, há cerca de 150 000 anos, as primeiras manifestações artísticas que porventura tinham também o objetivo prático de ensinar técnicas de caça, foram as pinturas rupestres, relacionadas com as artes gráficas, pois são, de alguma forma, antepassadas da escrita.  

As três construções mais antigas da humanidade pertencem à primeira civilização humana que o nosso planeta conheceu, o Crescente Fértil, hoje chamado Médio Oriente. São elas: Tell Qaramel, construída há cerca de 11 000 anos AC na Síria, 25 Km a norte de Aleppo; Göbekli Tepe, construída há 9 600 AC no sudeste da Turquia, a 12 km da cidade de Sanhurfa e a Torre de Jericó construída há 8 000 AC nesta que é a cidade mais antiga do mundo.

Podemos estudar as diferentes cosmovisões, desde as mais antigas à mais moderna, pelo tipo de construções criadas pelo ser humano. Os antigos não faziam palácios sumptuosos com piscina e todos os luxos para habitar.

Mais preocupados com o Além do que com o aqui e agora, verifica-se que desde as pirâmides dos egípcios, dos Maias e dos Aztecas, aos zigurates da Mesopotâmia, passando pelas catedrais góticas e pelos templos hindus e budistas, a transcendência, a religião são o principal motivo para construir, não a política nem o bem viver.

É caso para pensar… que deixa para a posteridade este mundo materialista, consumista, utilitarista, pragmático, ateu, agnóstico? Nada ou reflexos do seu vazio interior, arranha-céus, as pinturas chamadas de modernas e contemporâneas que não são mais que quatro rabiscos que uma criança do ensino básico também podia fazer. O ser humano moderno não cria arte, por isso o turismo de hoje vive da arte criada pelos antigos há muitos, muitos anos.

ARTES GRÁFICAS: pintura, desenho, escrita
As pinturas rupestres mais antigas encontram-se na Península Ibérica e França, sendo a mais antiga de há 62 000 anos. No progresso da pintura para a escrita, o documento mais antigo do mundo vem precisamente da cultura mais antiga também, a suméria do Crescente Fértil - a escrita cuneiforme da antiga Mesopotâmia, anterior aos hieróglifos egípcios.

As pinturas rupestres ilustram a cosmovisão do homem pré-histórico, a sua vida, os seus costumes e até os seus sentimentos. Estas gravuras ou manifestações artísticas do Paleolítico, Mesolítico e do Neolítico representam frequentemente cenas de caça, mas também danças e outras cenas da vida diária, fenómenos cósmicos, mitos religiosos, costumes, campanhas militares.

Desde que o Homem começou a pintar, nunca mais deixou de o fazer. Muito do que sabemos das primeiras civilizações da Mesopotâmia, Egito e Grécia foi-nos transmitido por estas gravuras, imagens, desenhos, grafitis deixados por estas civilizações.

A imagem foi a primeira forma de expressão do ser humano e foi a evolução desta forma de expressão por imagens que nos levou aos pequenos desenhos que traduziam ideias - a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, juntamente como os hieróglifos egípcios, que foram os antecessores do alfabeto grego e romano.

Outras línguas, como o chinês, mantiveram e mantêm até aos nossos dias uma escrita pictórica, ou seja, cada letra é uma pequena gravura ou desenho que representa um conceito, uma ideia; por isso necessitam de milhares de desenhos para se expressarem. Se considerarmos que o ser humano começou a usar imagens há 40 000 anos e que a escrita só foi inventada há 3 500 anos, a imagem pode ser considerada como a pré-história da escrita.

Desde o início, a imagem nasceu da comunicação e para a comunicação; nasceu da necessidade de comunicarmos e também como forma de comunicação. Atingiu o seu apogeu na segunda metade do século XX, quando foi inventada a fotografia, ou seja, a fixação ou gravação da imagem em fotografia. Na nossa sociedade visual, é frequente ouvir que “uma imagem vale mais que mil palavras”.

ARTES LITERÁRIAS: literatura, provérbios, ciências humanas
Se o ser humano fosse um ser solitário como o tigre, nunca teria desenvolvido uma língua. A língua nasceu no seio da sociedade, da comunidade, como forma de os seres humanos comunicarem entre si. Esta necessidade aconteceu quando os humanos se tornaram bípedes e conseguiram olhar-se nos olhos.
Começou provavelmente por expressar necessidades, como acontece quando viajamos para um país estrangeiro cuja língua não falamos e procuramos comunicar as nossas necessidades por sons e gestos. Numa fase posterior, os seres humanos expressaram emoções, sentimentos, e, mais tarde, pensamentos.

O que verdadeiramente cria um povo é uma obra literária. É impensável o povo judeu sem a Torah, sem os livros da lei e os profetas. O que define e caracteriza o povo grego são a Ilíada e a Odisseia de Homero; ex libris do povo italiano é a Divina Comédia de Dante Alighieri; o que define o carácter do povo espanhol é o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes; a alma russa encontra-se em Dostoievski no seu livro Os Irmãos Karamazov. A alma portuguesa ou lusitana está nos Lusíadas de Camões.

Para o rei D. Afonso Henriques, Portugal eram as suas terras, os seus domínios. Foi Camões que criou a nacionalidade; que nos deu uma pré-história, os feitos dos lusitanos, que descreveu o nosso caráter e a nossa história no decorrer da grande epopeia da nossa nação, a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Foi fiel às raízes da nossa língua, escrevendo em verso ao estilo das cantigas de amigo, berço do português.

O provérbio é decerto o género literário que concentra mais a cultura, a idiossincrasia e a cosmovisão em menos palavras. Fácil de recordar porque rima, frequentemente deita mão de uma metáfora ou comparação, ou seja, não usa nunca a linguagem abstrata, mas sim a narrativa e metafórica. O provérbio passa de geração em geração mais facilmente que outra forma de cultura porque é fácil de recordar; as pessoas usam-no na sua vida diária como conselho e como forma de justificar e encorajar comportamentos específicos.

ARTES AUDITIVAS:  música, oratória
A palavra música é de origem grega e significa a “arte das musas”. É constituída por uma associação de sons entremeados por pausas ou curtos períodos de silêncio ao longo de um determinado tempo. A música é, de facto, a arte de combinar sons com silêncio. A história da música acompanha a par e passo o desenvolvimento da inteligência, da linguagem e da cultura humanas. Também há quem pense que a música é anterior à humanidade, se considerarmos o canto melodioso de alguns pássaros.

É provável que na espécie humana a música tenha surgido há 40 000 anos, a julgar pelas cenas de dança que aparecem nalgumas pinturas rupestres e que sugerem um provável acompanhamento musical. Ao longo do tempo, foram aparecendo flautas primitivas e outros instrumentos, como o xilofone. Os instrumentos musicais dividem-se em três tipos: de percussão, de cordas e de sopro. A voz humana é o instrumento musical mais complexo, pois é, ao mesmo tempo, de cordas e de sopro.

A palavra comunica o pensamento, a música comunica o sentimento, a emoção. Neste sentido, é a linguagem de comunicação universal, utilizada como forma de sensibilizar para uma causa, para fins religiosos, para protestar, para acompanhar filmes e intensificar uma mensagem ou emoção. Um filme de terror sem música que lhe é própria, não aterrorizaria ninguém. Tal como a língua, faz parte da idiossincrasia de um povo e fala da sua cultura - por isso existe a chamada música popular. Traduz atitudes, sentimentos e valores culturais de um povo.

Oratória é a arte de falar em púbico comunicando ideias, ideologias e pensamentos com eloquência, articulação e clarividência, no intuito de ensinar ou persuadir os ouvintes e motivá-los a determinada ação. É uma arma muito importante na política e na religião, para o bem e para o mal. Tanto os grandes políticos e filósofos como os profetas foram bons oradores, como Nelson Mandela, Mahatma Ghandi, Martin Luther King. Porém, também os grandes ditadores tinham o mesmo poder de convencer, como Hitler e Estaline.

A oratória tem o dom de unir as diferentes e dispersas vontades numa só, faz de muitas cabeças uma só; transforma os indivíduos numa comunidade ou numa massa, num rebanho, tanto para o bem como para o mal.  

ARTES AUDIOVISUAIS: teatro, cinema, dança
As artes audiovisuais combinam o som e a imagem. Por isso têm mais força que o som e a imagem em separado. O teatro, o cinema e a dança são algumas das mais importantes artes que movem as multidões e também a economia.

Antigamente, os grandes atores de cinema iniciavam a sua carreira no teatro, e o cinema era mais parecido com o teatro. Favoreciam-se aptidões como a expressividade, tanto linguística como corporal, a dicção, o timbre de voz. Hoje, o cinema é mais ação que diálogo, pelo que os dotes do ator de teatro ficam mais reservados ao teatro e menos ao cinema. O teatro está em franca decadência se o compararmos com o cinema.

Inicialmente, o cinema pretendia comunicar valores, dentro do binómio herói/vilão, em que o herói sempre vencia. O cinema moderno, porém, já não é usado com fins pedagógicos, mas sim para mostrar a realidade tal qual ela é; por isso, vemos muitas vezes a injustiça triunfar sobre a justiça, a mentira sobre a verdade e o crime sobre a lei e a ordem. Esta situação é perigosa, pois quem vê estes filmes, sem consciência crítica, sobretudo as gerações mais jovens, pode crescer na convicção de que o ser e o dever ser são uma e a mesma coisa, de que na vida vale tudo…

A dança sempre foi uma manifestação cultural muito importante. Culturalmente, pode dizer muito pouco o ballet ou a dança clássica; mas um tango diz muito da cultura argentina, um passo doble diz muito da cultura espanhola, e o samba representa bem a cultura brasileira. Todos os povos têm uma forma própria de bailar. Se quem canta reza duas vezes, quem dança reza três.

“Ars lunga vita brevis”, a arte é eterna, a vida é breve. Ao cultivar uma arte, o indivíduo entra numa relação simbiótica com ela. Ele dá-lhe a sua temporalidade, elevando essa arte a um novo máximo ou record; ela dá-lhe a sua eternidade, tanto na mente da comunidade humana, humanizando-o, como na mente de Deus, fazendo-o seu filho.

Conclusão: "Ars lunga vita brevis" - "As artes são eternas, a vida é curta" Usa a tua vida para cultivar artes e valores humanos e serás eterno, viverás para sempre, em Deus e na memória da humanidade.
Pe. Jorge Amarao, IMC




1 de março de 2024

A Cosmovisão e os seus componentes

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Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer. João 15, 5

É n’Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, Atos dos Apóstolos 17, 28

Para o cristão, Cristo é o Caminho a Verdade e a Vida; é a cepa à qual se conectam todos os ramos para receber a seiva da vida. Desconectados d´Ele definhamos, secamos e morremos. Como ramos enxertados em Cristo (Romanos 11, 11-24), é n´Ele que nos movemos, somos e existimos e sem Ele não poderíamos fazer nada, d´Ele recebemos a vida, a salvação. Cristo é para o cristão a placa-mãe (motherboard), o fundamento, o alicerce onde assenta a sua vida, a pedra angular que o mantém de pé (Efésios 2:20-22).

Cosmovisão, a placa-mãe da nossa mente
A placa-mãe (ou motherboard, em inglês) de um computador é uma placa normalmente em plástico verde rígido, que tem impresso em cobre ou alumínio um circuito elétrico que permite interligar todos os componentes de um computador - o processador, a memória, a CPU, a placa de vídeo, a placa de rede, a placa de áudio, as portas de comunicação do computador com o exterior que permitem a sua ligação a outros dispositivos.

A placa-mãe de um computador serve-nos perfeitamente como alegoria ou metáfora do que é uma cosmovisão e de como esta é composta por elementos que individualmente são diferentes entre si, com uma função diferente, mas que assentam numa mesma placa, com base na qual interagem harmonicamente. Vejamos quais são estes elementos e qual a sua função ou contributo para a cosmovisão.

A cosmovisão, como sistema ou alicerce do nosso pensamento e da nossa vida, é um conjunto ordenado de muitos elementos. Tal como o nosso ADN ou código genético é composto por muitos genes, assim uma cosmovisão é composta por muitos elementos. Alguns desses elementos são:

O mito
Na linguagem dos nossos dias, a maior parte das vezes que ouvimos a palavra “mito” é em referência a algo que não é verdadeiro. Quando dizemos ou ouvimos “isso é um mito”, quer dizer, hoje em dia, “isso é falso”. Na realidade, um mito pode não ser ou, melhor dizendo, nunca é histórico, mas também nunca é falso. Histórico e verdadeiro não são sempre sinónimos. Histórico significa que aconteceu; os mitos são relatos que descrevem realidades e como tal nunca aconteceram, porém, o que dizem dessas realidades é completamente verdadeiro no tempo e nas sociedades onde eles nasceram.

No contexto da antropologia cultural, o mito é uma explicação pré-científica da realidade, um relato fantástico e fantasmagórico de tradição oral, geralmente protagonizado por deuses que encarnam e representam as forças da natureza, assim como aspetos gerais da condição humana.

Dentro da antropologia cultural, os mitos pertencem a uma disciplina chamada cosmogonia, que se compõe de relatos sobre a origem, a natureza e a função de tudo o que existe e que o ser humano não compreende. Como conjunto de mitos, a mitologia é uma forma de dar sentido à existência humana. As suas diversas histórias nasceram para saciar a curiosidade humana acerca de questões fundamentais como "de onde viemos?", "para onde vamos?" ou "por que motivo num dia chove e no outro faz sol?".

Exemplos de mitos
O mito de Cronos – Cronos era o deus do tempo, daí as palavras cronologia, cronómetro, para medir o tempo. Na Grécia antiga, a realidade do tempo era explicada pela existência de um deus que era o senhor do tempo; este senhor paria filhos e depois de os parir comia-os. É claro que não é histórico, mas é verdadeiro.

Ou seja, numa mentalidade primitiva serve perfeitamente para explicar o tempo. Cada dia em que acordo e me levanto pelo fato de estar vivo, tenho um dia a mais na minha existência, um dia para viver; ao fim deste, quando me deito, tenho um dia comido, consumado e consumido, um dia a menos na minha existência.

O mito de Andrógino – Na tradição grega o pai dos deuses, Zeus, criou um ser que possuía os dois géneros; como se fosse um homem e uma mulher colados pelas costas. Posteriormente, Zeus teve medo da sua criatura, como o ser humano tem medo de tantas coisas que cria, como a bomba atómica e utilizou a arma de sempre, a divisão: “divide et impera” e dividiu o ser andrógino em dois, criando assim o varão e a mulher.

Assim se criou a realidade do amor romântico; como inicialmente estavam unidos, a tendência é voltarem a unir-se; daí a atração sexual. Os dois, homem e mulher, passam metade da sua vida à procura da sua cara metade ou da sua metade da laranja, como ainda hoje se diz.

O mito de Adão e Eva – A Bíblia diz, em três relatos mitológicos da criação do ser humano, o que a mitologia grega diz num só.

Em Génesis 1, 27 - Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. É-nos dito que o varão e a mulher, criados os dois à imagem e semelhança de Deus, são iguais em dignidade.

Em Génesis 2, 7 - O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. É-nos dito que o ser humano está ligado a tudo o que existe, quase aludindo ao facto de ser fruto de uma longa evolução.

Em Génesis 2, 22 - Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. É-nos dito que os dois são carne da mesma carne e pertencem um ao outro.

O mito da origem do mal – Tanto a mitologia grega como a hebraica culpam a mulher pela origem do mal. Assim como lhe atribuem a curiosidade “científica” por saber e conhecer e descobrir a razão das coisas. Na mitologia grega, Pandora era a mulher de Zeus que abriu por curiosidade a caixa onde estavam todos os males; ao descobrir, Zeus veio a correr para a fechar, mas já muitos males tinham escapado e logo se reproduziram em muitos outros, numa sequência de causa e efeito. Na mitologia hebraica, Eva comeu e deu a comer a Adão o fruto proibido.

O mito sobre o amor e a morte – Orfeu, músico e cantor a quem o pai Apolo tinha dado uma Lira, enamorou-se perdidamente de Eurídice com a qual ia casar. Porém, antes do casamento, Eurídice foi mordida por uma cobra ao fugir de um admirador e morreu; inconsolável, Orfeu desceu ao mundo dos mortos e pediu a Hades que lhe devolvesse a sua esposa. Este aceitou, na condição de que, ao sair do mundo dos mortos com ela, não olhasse para trás. Desconfiado, Orfeu como sempre acontece com o amor romântico, olhou para trás e voltou a perder Eurídice. Envolvido numa tristeza profunda, não comia nem bebia nem respondia à sedução de outras mulheres, pelo que estas decidiram matá-lo; pela morte, uniu-se finalmente à sua esposa.
    
O mito de Narciso – Narciso, filho do deus do rio, Cefiso, possuía uma beleza estonteante que despertava o amor de muitas ninfas, entre as quais Eco. Porém, Narciso, absorvido por si mesmo, era arrogante e orgulhoso, apaixonado pela própria imagem quando se mirava nas águas plácidas do rio. Nestas se afogou um dia, depois de tanto se admirar.

Em psicologia, o narcisismo é o nome dado a um conceito desenvolvido por Sigmund Freud que determina o amor exacerbado de um indivíduo por si próprio; sinónimo de egoísmo, de uma pessoa centrada em si mesma que nega a dimensão social da pessoa humana.

Lendas e contos populares
Os protagonistas das narrativas mitológicas são sempre deuses; os das lendas são pessoas humanas, heróis da antiguidade em determinado momento histórico que se destacam pelo seu contributo para a humanidade. Por esta mesma razão, o mito é historicamente atemporal, a lenda é histórica, embora exagere os factos, distorcendo-os, dando-lhes um ar fantástico e excessivo para aumentar a fama de alguém importante do passado.  

Há personagens no imaginário humano, meio históricos meio ficcionais, que cativam a mente humana porque cada um deles reflete uma faceta da nossa personalidade. O rei Salomão, Péricles, Aquiles, Heitor, Ulisses, Alexandre Magno, Genghis Khan, Júlio César, Spartacus, Carlos Magno, Godofredo de Bulhões, Joana d´Arc, Marco Polo, Vasco da Gama, Cristóvão Colombo, Robin dos Bosques, etc…

Personagens como Robinson Crusoé, Guliver, Tarzan; o Super-homem, o Homem Aranha, a Branca de Neve, a Cinderela… são personagens ficcionais que pertencem a um outro género literário semelhante ao da lenda: o conto popular. A única diferença é que a lenda parte de um personagem histórico e engrandece-o para além da realidade, o conto popular é todo ele atemporal pois sempre começa com “era uma vez, num país distante”; nunca nos situa no tempo nem no espaço, mas sim dentro da psique humana, revelando aspetos desta.

Crenças
Muito do que dissemos do mito vale para a crença. Pois todo o mito é uma crença, mas nem todas as crenças são mitos. A crença é mais genérica, ou seja, muitas das nossas crenças são também mitos. O mito pertence ao reino da filosofia, antropologia cultural ou cosmogonia, a crença pertence mais ao reino da psicologia, da religião e espiritualidade, pois se trata de uma convicção interior sobre um aspeto da realidade que está para além dos cinco sentidos e de toda a verificação empírica.

A crença é a aceitação mental ou convicção de uma “verdade”, ideia ou teoria com ou sem provas empíricas. É ter como verídico algo que não pode ser provado pela ciência. Neste sentido, entra no campo do conhecimento intuitivo e não no do conhecimento logico-dedutivo da ciência.

A crença pode ser irracional, ou seja, supersticiosa ou razoável. O Concílio Vaticano I define a Fé como uma crença razoável. Bruxarias, magias, conferir a um objeto material como uma chave, uma ferradura, um corno, valor ou poder espiritual é uma crença irracional e, portanto, uma superstição, um regressar ao tempo em que os animais falavam e as coisas tinham alma: ao animismo.

Há crenças na vida moderna comprovadamente falsas e, no entanto, continuam a existir porque cumprem uma função positiva. Até as crianças sabem que o Pai Natal não existe, no entanto, no imaginário coletivo consciente ou inconsciente, este representa, personifica o amor, a bondade e generosidade de um pai, de uma mãe, de Deus como nosso Pai.

Rituais
Porque os mitos são uma narrativa que explica o porquê de muitas realidades humanas e da natureza, o rito ou ritual é o pôr em prática, agir, expressar ou aplicar o mito ou crença na vida real. O objetivo da atuação ou expressão do mito através do rito é o de reforçar a crença no mito.

Uma cerimónia ritual, sagrada ou não sagrada, é um ato que sempre se realiza da mesma maneira e que celebra uma crença ou mito importante no contexto de uma cultura ou religião. A realização ou celebração de rituais tem uma função psicológica e espiritual muito importante; alivia o stress e a ansiedade, aumenta a autoconfiança, reforça a fé ou crença. Os rituais relembram-nos o que é mais importante na vida e mantêm-nos unidos à fonte vital; dão-nos um sentido de estabilidade e continuidade na nossa vida.

Realizamos montes de rituais, mesmo na nossa vida moderna e nem nos apercebemos de que os realizamos. Mas o facto de o fazermos, prova a sua importância e função no nosso equilíbrio emocional e racional. A entrada na vida adulta, as despedidas de solteiros, o cortar da fita numa inauguração, o atirar ao ar o chapéu no dia da licenciatura, a noiva que atira o ramo de flores para trás de si para uma donzela o apanhar, a celebração do dia de anos, o apagar de uma vela por cada ano.

A nossa vida cristã está cheia de ritos. Também todos os sacramentos têm por trás uma crença e um ato cerimonial. A imposição de mãos, a bênção, o batismo, são a porta de entrada para a comunidade – de facto, o padre, vem à porta da igreja receber o neófito. A eucaristia é a reconstituição da vida, doutrina, paixão e morte de Cristo, pois fazemo-la em memória d’Ele e mantém-nos unidos como comunidade. A confissão é uma catarse libertadora do negativo da minha vida; quando ouvimos “eu te absolvo” (“ego te absolvo” em latim) sentimo-nos mais limpos, com vontade de começar de novo. A unção dos doentes é um refrigério na nossa dor.

Religião
Como atrás dissemos, é ela própria uma cosmovisão, pois responde à pergunta “de onde viemos” e “para onde vamos”, assim como dá sentido, razão e finalidade a tudo quanto existe, estruturando não só a natureza, como também a vida dos homens em relação a si mesmos, a Deus e à Natureza. Entre muitas coisas, a religião engloba crenças, mitos e rituais.

Arquétipo
É um elemento da filosofia grega, sobretudo da neoplatónica, que designa ideias, modelos, primigénios ou protótipos, paradigmas do comportamento humano que residem no inconsciente coletivo da humanidade, como demonstrou Carl Jung, discípulo de Freud. Para Platão, os arquétipos são formas mentais, ideias primordiais impressas na alma antes de esta assumir um corpo.

Jung descobriu no nosso inconsciente coletivo 12 paradigmas, modelos ou padrões de comportamento que podem coincidir ou não com funções de indivíduos na sociedade ou profissões, mas também configuram uma maneira de ser, estar e comportar-se perante si mesmo e os outros. Sãos estes o Sábio, o Inocente, o Explorador, o Governante, o Criador, o Cuidador, o Mago, o Herói, o Vilão, o Amante, o Tolo, o Órfão. A lista podia continuar, mesmo em relação a personagens significativos que configuram modelos padronizados de comportamento.

Para além destes que se restringem a formas de comportamento, há outros paradigmas impressos no nosso inconsciente coletivo, que se referem mais à sociedade e à maneira como esta opera. Por exemplo, eu tenho como paradigma ou arquétipo o processo Egito – Deserto – Terra Prometida. Karl Marx, apesar de ser declaradamente ateu, seguia consciente ou inconscientemente este arquétipo no seu materialismo histórico. Para ele, o Egito era o capitalismo, o deserto era a ditadura do proletariado e a Terra Prometida o comunismo ou a sociedade sem classes.

A recuperação de um vício segue também este arquétipo. O Egito é o vício que te retirou a liberdade e o controlo da tua vida; o deserto é o preço apagar, a purificação do corpo e da mente das toxinas que o escravizam; nele se sente a vontade de voltar atrás, como o povo judeu, ou a síndrome de abstinência para o que luta contra um vício, e por fim, a Terra Prometida quando estás completamente livre deste vício.

Símbolos
Emblemas, formas ou sinais que contêm um significado poderoso dentro da cultura, representando o seu modelo de vida ou a sua tradição ancestral, ou algum elemento considerado icónico ou totémico e identificando-o, como a cruz com o cristianismo, por exemplo.

Normas, regras e leis
Toda a cosmovisão contém também um código de leis, normas ou regras de conduta para harmonizar a convivência entre os indivíduos, para determinar os direitos e os deveres na relação dos indivíduos entre si e com a comunidade em geral. Um regulamento pelo qual as empresas optam por governar-se, quer explicitamente (formato legal), através de um protocolo ou subjetivamente.

Nem todas as leis são ditas, nem escritas em pedra. Há leis ou normas não escritas e, no entanto, todos as observam. A forma como vestimos obedece muitas vezes a uma norma não escrita, tal como o abrir a porta a alguém e deixá-lo passar primeiro, o não meter o dedo no nariz em público e tantas outras pequenas coisas às quais obedecemos e que não estão escritas em nenhum lado nem obedecem a nenhum código de conduta.

Valores
São mais inerentes à natureza humana em geral que a uma cosmovisão em particular. Valores como a liberdade, a igualdade, a justiça, a verdade, a honestidade, o amor, a fidelidade, são invariáveis no tempo e no espaço. O dever, o compromisso, configuram a vida humana e são invariáveis de cultura para cultura ou de época para época. Uma determinada cosmovisão pode ter uma interpretação dos mesmos um pouco distinta, sem variar o fundamental. 

Conclusão – Como na placa-mãe ou motherboard de um computador se inserem todos os componentes que o fazem funcionar como um todo harmonioso, assim a cosmovisão é composta por mitos, ritos, crenças, normas, símbolos, arquétipos e valores que dão sentido e forma à nossa vida.
Pe. Jorge Amaro, IMC




1 de fevereiro de 2024

Cosmovisão, Cultura e Natureza Humana

1 comentário:

Natureza humana, cultura e cosmovisão são conceitos implicitamente ligados, porque cada um deles tem a ver com os outros dois. Procuremos definir primeiro cada um deles individualmente e em separado, para depois ver o que os faz interdependentes entre si.

NATUREZA HUMANA
Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. Génesis 2, 7

A vida no nosso planeta tem uma única origem. Por muito diferentes que nos pareçam hoje as plantas e os animais, todo o ser vivo do nosso planeta tem antepassados comuns. A vida procede de um tronco comum.

O ser humano é um dos 8,7 milhões de seres vivos que habitam este planeta. Pertence ao reino animal, à classe dos mamíferos, ao subgrupo dos primatas ou hominídeos, sendo primo/irmão dos macacos, gorilas e chimpanzés com os quais partilha 98% do ADN. É filho de um pai ainda desconhecido, tendo nascido há 5 milhões de anos na África Oriental, mais propriamente no vale mais profundo e extenso do nosso planeta, o Vale de Rift.

Ao contrário dos outros seres vivos que pouco ou nada evoluíram ao longo de milhões de anos, e viveram e vivem ainda hoje no mesmo habitat, o ser humano evoluiu a ponto de transcender o seu habitat original. Saiu de África há pouco mais de 200 000 anos e colonizou todo o planeta não só em termos geográficos, como também em termos de domínio de todas as outras espécies de seres vivos.

Por que motivo só a nossa espécie evoluiu? Porque nós e só nós somos, no entender de Karl Marx, o momento em que a Natureza ganhou consciência de si mesma. É um mistério que até agora a ciência não conseguiu desvendar. Sabemos que evolutivamente somos descendentes de um primata que, para satisfazer as suas necessidades e sobreviver, começou instintivamente por se adaptar ao meio em que vivia, procurando depois utilizar da melhor maneira os recursos que o meio lhe oferecia. Ao princípio, vivia como os animais em simbiose com a natureza.

No esforço de conhecer o meio em que vivia para melhor se adaptar a ele, o ser humano desenvolveu as suas capacidades cognitivas, a ponto de se apoderar do seu meio ambiente. Assim nasceu o homo sapiens que, mais do que adaptar-se ao meio, procurou adaptar o meio a si.

O que nos define como seres humanos
Os milhões de anos de evolução fizeram de nós humanos, sem deixarmos de ser animais. O biólogo Konrad Lorenz, encontrou inúmeras semelhanças entre o comportamento humano e o comportamento animal. Muitas das nossas reações e decisões perante situações da vida têm mais de animal que de racional.

Ao fim e ao cabo, não perdemos o cérebro reptiliano comum a todos os seres vertebrados, nem o mamífero comum a todos os mamíferos. Estes cérebros são anteriores ao autenticamente humano, o neocórtex e estão, por assim dizer, mais perto do nosso ser, porque o cérebro reptiliano que comanda todas as funções vitais e de sobrevivência está sempre conectado; o mamífero está quase sempre conectado, mas às vezes desconecta-se; o neocórtex está quase sempre parcialmente desconectado. Por isso, para que um comportamento seja autêntica e genuinamente humano, o neocórtex conectado tem de desconectar os outros dois, sobretudo o reptiliano.

Neste sentido, há caraterísticas que parecendo que são exclusivamente nossas, são na verdade comuns aos outros animais próximos de nós na escala evolutiva; a única diferença é que em nós estão mais desenvolvidas. Por exemplo:

- Adquirir conhecimentos e ter a capacidade de os transmitir socialmente, através de alguma forma de linguagem, também outros animais a têm, como a orca. Adaptar-se ao meio e às condições de vida que vão variando, também muitos animais o fazem, como a barata que se defende de todos os venenos que criamos para a matar;

- A vida em sociedade também as formigas, os leões, os patos, os gansos, as abelhas, os elefantes, os chimpanzés a têm. A única diferença é que a nossa é mais complexa e talvez mais democrática, onde a democracia existe;

- Amar os filhos a ponto de dar a vida por eles, por muito nobre que pareça, é algo que temos em comum com qualquer mamífero, é puro instinto materno. O que verdadeiramente temos de único é tudo o que se situa no neocórtex, o maior dos nossos cérebros. Vejamos então o que é exclusivamente humano e nos identifica como tal.

Autoconsciência – cogito ergo sum
Só o ser humano é autoconsciente a partir dos 6 ou 7 anos de idade. A autoconsciência é a divisão do nosso psiquismo em dois, o que nos permite ser observadores e observados, conhecedores e ao mesmo tempo matéria do nosso conhecimento. “Conhece-te a ti mesmo”, gritava Sócrates nos primórdios da filosofia ocidental.

Esta nossa autoconsciência não diz respeito só ao presente. Como a vida humana decorre em três tempos que são sempre interativos, esta autoconsciência estende-se ao passado como memória histórica que nos dá o feedback de quem somos: o conhecimento dos nossos talentos, valores, defeitos e limitações como por exemplo a morte. Só os seres humanos estão cientes da própria finitude, de que um dia morrem e deixam de existir, ao menos no espaço e no tempo.

O conhecimento do passado, de quem realmente somos, é depois utilizado pela nossa razão para se estender ao futuro e programá-lo, usando a capacidade imaginativa e a mente abstrata que só o ser humano tem para se projetar para além do imediato. Certas filosofias do Extremo Oriente exortam-nos a colocar tanto o passado como o futuro de parte. Esquecem-se de que os que vivem num eterno presente, sem passado nem futuro são os animais.

Cogito ergo sum – Penso logo existo. No puro presente em relação com os outros, a sociedade, o meio ambiente físico e geográfico, a autoconsciência, ou seja, a razão funciona como um computador, que analisa, recolhe dados sobre um determinado problema e projeta e arrisca soluções.

Para além da autoconsciência e da razão, a vida humana assenta sobre dois valores: liberdade e igualdade.

Liberdade
Enquanto que todos os animais vivem em simbiose com a Natureza que os regula, governa e guia por intermédio dos instintos, o ser humano é o único animal que se emancipou da Natureza. Liberdade, autonomia, independência são os valores em que assenta a vida humana do indivíduo, da pessoa.  Como dissemos, há outros animais que vivem em sociedade, mas nestas sociedades o indivíduo não existe para si mesmo, é antes escravo da sociedade a que pertence.

O homem é livre em relação aos outros, não é escravo de ninguém nem vive em função de ninguém, mas dele mesmo; é livre em relação ao seu substrato animal, pois tem poder para controlar os seus instintos básicos e adiar a satisfação imediata.

O ser humano é o único que tem a vida nas suas mãos, que tem poder sobre ela para lhe dar um sentido e uma direção. Possui livre arbítrio, vontade própria, que lhe permitem decidir sobre a totalidade da sua vida, assim como sobre cada uma das partes. Pode equivocar-se nas decisões que toma e pode ter de pagar pelas consequências nefastas das suas opções.

Parte da liberdade em relação ao meio, aos outros e a si mesmo, reside na capacidade para se auto transcender; em relação à matéria, por meio do progresso científico e tecnológico; em relação às coisas materiais, desenvolvendo o eu espiritual, tanto na sua relação com Deus como com as coisas e os outros, expressando-se simbolicamente por meio da cultura, arte, música, religião, hábitos, costumes, vestuário, etc.

Igualdade
O ser humano é um ser intrinsecamente social, nasce de uma relação amorosa, cresce e transforma-se num ser humano autêntico apenas se for amado incondicionalmente, e sempre vive como membro de uma família, como parte de uma comunidade, organização ou instituição. Individualmente ou é pai ou mãe, filho ou filha, avô, avó, tia, tio, sobrinho, sobrinha. Não há existência humana para além destas categorias e o facto de pertencer a qualquer uma delas coloca-o numa relação com os outros.

O outro é um outro eu; não um tu, uma entidade externa, estranha, estrangeira, distante, mas sim o meu próximo, tão próximo que é um outro eu, um alter-ego, de onde provém a palavra altruísmo. O amor é o valor mais alto na vida social, viver é amar. A empatia, a misericórdia e a compaixão são o que mantém os indivíduos unidos em grupos.

O que me é devido a mim, é-lhe devido a ele, pois é um ser humano como eu e todos viemos do mesmo tronco comum nascido no Vale do Rift há 5 milhões de anos. A igualdade e a convivência na sociedade assentam no princípio de que os meus direitos são os deveres do meu próximo e os meus deveres são os direitos do meu próximo.

A vida em sociedade faz dos indivíduos cidadãos com direitos e deveres. Nasce o Direto para governar a sociedade, e a ética que discerne o dever ser e define as pautas do comportamento social. A vida em sociedade criou a linguagem escrita e falada para a comunicação entre indivíduos, com o objetivo de trabalhar em equipa e fomentar a união, a paz e a harmonia.

Pode a natureza humana mudar?
Depois, Deus disse: «Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.» Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Génesis 1, 26-27

Fomos criados à imagem e semelhança de Deus e se Deus não muda, a natureza humana também não muda. Se a natureza humana mudasse, Deus teria que encarnar uma e outra vez ao longo da História, em cada uma dessas naturezas humanas em mutação para ser também para essas gerações Caminho, Verdade e Vida. Como a natureza humana não muda, é Deus e a sua Palavra recolhida na Bíblia que inspiram e levam a Deus, tanto os homens que viveram há 2 000 anos como os que viverão daqui 10 000 anos, se ainda existirmos como espécie.

Os valores humanos são prova de que a natureza humana não muda, nem no tempo de geração em geração, nem no espaço entre uma cultura e outra. Os conceitos de justiça, de verdade, de honestidade, fidelidade, amor, compaixão, etc. são invariáveis no tempo em todas as culturas. O sentimento de amor que experimentaram Cleópatra e Marco António é o mesmo que anos mais tarde experimentaram Romeu e Julieta, e experimentam e experimentarão os enamorados em todo o tempo e lugar.

Separados pelo tempo, pelo lugar e pela cultura, o profeta Amós e o Bispo Óscar Romero usaram exatamente a mesma bitola para discernir o que é justo e o que não é. Mahatma Ghandi usou o mesmo conceito de não violência que Jesus usou séculos antes. Os povos do Crescente Fértil construíram pirâmides e ofereceram sacrifícios humanos aos seus deuses. Mas, assim como os sumérios e os egípcios, no crescente fértil, os maias e os astecas na América Central também construíram pirâmides e, no entanto, esses povos nunca souberam da existência um do outro.

A natureza humana, o que o ser humano é essencialmente, não muda. Em filosofia, a essência, o ser não muda; o que muda são os acidentes, as variáveis, as circunstâncias. Pode variar e mudar a nossa compreensão da natureza humana, tal como podemos descobrir em nós talentos que pensávamos que não tínhamos; no entanto, já lá estavam, se bem que nos fossem desconhecidos. Podemos adquirir novas formas ao nos adaptarmos ao meio, por exemplo, perder o rabo porque já não andamos nas árvores, mas o que é essencialmente humano permanece imutável no tempo e no espaço.

CULTURA
Como é que a natureza humana não muda se temos diversidade de culturas e línguas e a língua é considerada como a alma de uma cultura? Dois são os fatores que causaram a diversidade de culturas e línguas ao longo da história da humanidade.

O primeiro foi a ausência de comunicação entre os povos. Pelo mesmo motivo, num futuro cada vez mais globalizado, a diversidade de línguas e culturas deixará de existir ou será muito atenuada. O segundo foi o fator geográfico: diferentes povos habitavam em diferentes latitudes e longitudes, com diferenças climáticas.

A diversidade de culturas e línguas seria então a adaptação dos seres humanos a diferentes topografias geográficas. Por exemplo, não é o mesmo viver na montanha e à beira mar; quanto aos diferentes climas, não é o mesmo viver nos trópicos, com duas estações, e viver numa zona temperada com quatro estações, ou no Ártico.

Os povos indígenas que vivem no Ártico têm inúmeras palavras para dizer “neve”, enquanto que na Etiópia, em África, a mesma palavra designa neve e geada que são duas coisas diferentes. Por outro lado, notamos que as línguas dos povos nórdicos pelo fator frio são mais consonânticas, e a boca mal se abre, e as línguas dos povos tropicais mais vocálicas, fazendo com que a boca se abra completamente.

Também a cor da pele, dos olhos e do cabelo, o formato dos olhos, do nariz, da boca e dos lábios, como já explicámos noutros textos, são uma adaptação do ser humano ao meio em que habita pelo menos durante 25 000 anos. Uma tribo de pigmeus do Congo que fosse habitar para a Noruega, daqui a 25 000 anos não se distinguiria dos noruegueses.

Salvo algumas pequenas diferenças, a adaptação do ser humano ao meio é comum a outros animais. A adaptação do meio a si mesmo, criando cultura, é própria apenas do ser humano. Só ele cria uma cultura como um habitat artificial, no sentido correto da palavra “ars facere”, fazendo arte. Neste sentido, o homem é um ser cultural, pois não se contenta com o que a natureza lhe dá, mas cria uma segunda natureza na qual habita, que é a cultura.

O ser humano feito à imagem de Deus é criador como Ele. A única diferença é que, enquanto Deus cria do nada, o ser humano cria combinando e misturando os elementos da criação. A cultura é como a casa que o ser humano constrói com elementos que a natureza lhe proporciona. 

A Natureza não dá casas, é o Homem que as constrói; a diversidade de casas representa a diversidade de culturas, pois diz respeito ao lugar onde são construídas - telhado subido onde neva, telhado mais baixo onde não neva. O mesmo se dirá do vestuário e de tudo o que o ser humano faz, inventa ou fabrica com a sua mente criadora, para tornar a vida mais confortável.

A árvore é natureza, a madeira, a cadeira e a mesa são cultura; o cabelo é natureza, o penteado é cultura; o som é natureza, a palavra e a música são cultura; o fogo é natureza, a bigorna, a churrasqueira são cultura.

O mito de Tarzan ensina-nos que no ser humano, o fator cultural é mais importante que a Natureza. Se um bebé humano for criado por chimpanzés ele será um chimpanzé. Ao contrário, se um bebé chimpanzé for criado por humanos, com a mesma educação que um bebé teria, ele nunca será humano. 

Se no ninho de um pardal colocarmos um ovo de tecelão mascarado, quando este tecelão mascarado for adulto não fará o seu ninho como o faz o pardal em cima de um ramo, mas sim como o faz o tecelão mascarado suspenso de um ramo. O ser humano nasce animal e transforma-se em humano pela cultura. O animal nasce já praticamente em estado adulto, não precisa de tempo de socialização.

A cultura é, ao mesmo tempo, a adaptação do ser humano ao meio e a adaptação do meio às necessidades do ser humano. A cultura é esta interação entre o meio e o ser humano, o ser humano e o meio.

COSMOVISÃO
Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia. Génesis 1, 31

Podemos usar o texto bíblico da criação do mundo como metáfora da relação entre cosmovisão e cultura. A cultura é a criação de Deus, o olhar para ela vendo-a como boa é a cosmovisão que Deus tem sobre o que criou. Deus que é amor tem uma visão amorosa de tudo o que criou, por amor.

Deus criou o mundo, o homem a partir do mundo criado por Deus criou a cultura. A cosmovisão é a visão que o Homem tem do que criou. Ao contrário de Deus, nem tudo o que cria é por amor e, como cria muitas coisas por ódio, como os instrumentos da guerra, ao fim não pode dizer que o que criou é bom.

Parafraseando a expressão que diz “Deus fez o mundo, o holandês fez a Holanda”, Deus fez o mundo, o homem fez a cultura, o homem adaptou ou personalizou este mundo, como quem personaliza um computador para responder às suas necessidades.

A cosmovisão é uma abstração da cultura, pois faz desta um objeto de estudo. A cosmovisão é o conhecimento que tenho da minha cultura, a imagem ou representação mental, consciente ou inconsciente que tenho da minha cultura.

Todo o ser humano possui uma cosmovisão, pois é por ela que se guia na vida. Ao mesmo tempo, a cosmovisão possui-nos a nós, porque o que quer que façamos ou pensemos, fazemo-lo dentro e no contexto de uma cosmovisão. Neste sentido, a cosmovisão parece englobar a cultura por ser um conjunto de ideias que um indivíduo tem a respeito do mundo, sendo estas ideias produto da cultura em que está inserido. Conforme for a nossa cultura, assim será a nossa cosmovisão ou visão do mundo.

A cosmovisão é a base de toda a manifestação cultural que é constituída por motivações, pressupostos, crenças, compromissos, certezas e ideias, através das quais se experiencia e se interpreta a realidade, desde o nível subjetivo-privado ao nível objetivo-institucional compartilhado pela sociedade

Conclusão: A natureza humana é o que somos, a nossa essência, a cultura o como estamos e existimos no tempo e espaço. A cosmovisão é a forma como entendemos o nosso ser e estar no mundo.
Pe. Jorge Amaro, IMC


15 de janeiro de 2024

Cosmovisão e Religião

Sem comentários:

O mundo é o meu país, toda a humanidade é minha irmã e fazer o bem é a minha religião, Thomas Payne

A primeira impressão, o que primeiro nos vem à mente é, em psicologia, o mais importante. No caso da diferença entre o conceito de cosmovisão e o conceito de religião, o que primeiro nos vêm à mente é que a cosmovisão parece englobar a religião e não vice-versa. Ou seja, toda a cosmovisão inclui uma religião.

Porém, quando estudamos a religião em si, damo-nos conta de que toda a religião tem uma cosmovisão, ou seja, uma forma de conceber e interpretar a realidade como um todo, e não apenas a parte que mais se refere ao sentimento religioso ou à natureza religiosa do ser humano. Por isto teremos de concluir que não há fronteiras definidas entre os dois conceitos porque um engloba o outro; ou seja, se toda a cosmovisão tem uma religião, toda a religião tem uma cosmovisão.

As religiões como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo podem ser consideradas cosmovisões, assim como as ideologias ou anti-religiões que negam e reprimem a natureza religiosa do ser humano, como o marxismo ou o materialismo histórico e dialético, o ateísmo e o agnosticismo em geral. Estas também podem ser consideradas cosmovisões. Tanto a fé como a falta dela dão uma forma determinada à vida humana.

Uma cosmovisão procura responder a perguntas fundamentais como: Deus existe, como Criador de tudo e de todos, ou o Universo sempre existiu? Que há para além do Universo? De onde venho eu, para onde vou, quem sou e que sentido tem a vida? Onde estou? Como devo ou não devo viver a minha vida? Quais os valores a cultivar e os anti-valores a combater?

Tanto a religião como a cosmovisão dão resposta a estas perguntas. Se respondem às mesmas perguntas, têm o mesmo campo de estudo, pelo que poderiam ser consideradas sinónimos ou, melhor ainda, são uma e a mesma coisa.

As palavras ética e moral são uma e a mesma coisa, ou seja, ambas se referem ao comportamento humano; a primeira de origem grega e a segunda de origem latina. A palavra ética usa-se mais no mundo civil, a palavra moral mais no mundo religioso. Assim, entendemos cosmovisão como sendo o correspondente a ética, pois se usa mais no mundo civil, e religião como moral, pois, como é obvio, se usa mais no mundo religioso.

O fenómeno religioso: “Mysterium tremendum et fascinans”
Não há povo, por mais primitivo que seja, em que não se veja a religião. Bronislaw Malinowski (1884 – 1942)

Houve e há sociedades no passado e no presente sem ciência, arte sem filosofia, mas nunca existiu uma sociedade sem religião. Henri Bergson (1857-1941)

Religare – É um conceito cristão, ou seja, é a forma cristã de conceber o fenómeno religioso. Supõe o conceito de separação. O pecado separa-nos de Deus, a religião volta a ligar-nos a Deus pois, por esta, Deus nos perdoa.

Vale ainda hoje a definição latina de religião de Rudolf Otto: Mysterium tremendum et fascinans…. Tremendo porque invoca em nós sentimentos de medo, respeito e reverência. Fascinante porque provoca em nós sentimentos quase contrários aos primeiros, de atração, alegria e confiança. Na Bíblia, ou seja, na tradição religiosa bíblica do judaísmo e cristianismo, estes sentimentos traduzem-se no binómio tantas vezes repetido ao longo da Bíblia de temor de Deus e amor a Deus.

Quando a sociedade agrícola, sobretudo com o cultivo de cereais, permitiu uma certa estratificação social, a figura do sacerdote foi das primeiras a surgir, pois a religião nas sociedades primitivas englobava a cultura em geral, todas as outras atividades, ou seja, tudo o que não era agricultura.

O sacerdote era a pessoa que executava os rituais religiosos à divindade, lia e interpretava os textos sagrados e mantinha o local de culto. Era um intermediário entre a divindade e o povo. Em todas as religiões judaicas, da Suméria, Egito, Roma, no budismo, no hinduísmo, nas religiões tradicionais africanas ou latino-americanas esta é sempre a função do sacerdote.

Xamãs e médiuns seriam outras versões mais sofisticadas no buscar uma relação e comunicação entre este mundo e o mundo espiritual e divino dos espíritos e de pessoas que já faleceram. Há um ressurgir destas práticas com a religião Nova Era (New Age) que é um sincretismo de muitas religiões, incluindo as tradicionais americanas, asiáticas e africanas.

Nas sociedades primitivas, as lideranças civis e religiosas uniam-se numa mesma pessoa e num mesmo cargo. Vemos na Bíblia que Samuel não desempenhava somente as funções de profeta, mas também as de rei líder do povo e as de sacerdote, intercedendo pelo povo junto de Deus; o mesmo aconteceu com Moisés. Já no tempo de Jesus, o sacerdote tinha também a função de médico, ao poder declarar se alguém estava curado ou não de lepra, para ser reintegrado na sociedade. (Mateus 8,4)

A religião é o que faz com que os pobres não matem os ricos. Napoleão Bonaparte
“Se Deus não existisse tudo seria permitido.” Dostoievski

Os ateus não reconheceriam a veracidade desta afirmação vinda de alguém muito pouco religioso, que ironicamente confere à religião o estatuto de polícia. Um polícia mais eficaz que os polícias reais, porque as pessoas têm mais medo do inferno ou da morte eterna que dos sofrimentos e morte temporal.

Os ateus defenderão que existe uma ética que não precisa de se fundamentar na religião, mas a realidade, porém, parece apontar para o facto de que se os seres humanos tivessem um dia a certeza científica de que não há Deus nem vida para além da morte, as fronteiras entre o bem e o mal esfumar-se-iam. Está no inconsciente coletivo da humanidade que o bem leva ao Céu e o mal ao Inferno.

Se isto desaparecesse, se no inconsciente ou consciente coletivo isto não estivesse presente, decerto 1% da humanidade não poderia ter mais riqueza que os restantes 99%, como acontece hoje. Sorte têm os ricos, que mais de 80% da humanidade acredita na existência de Deus e na vida para além da morte. É a maior garantia para eles de que o “status quo” se mantém. Se assim não fosse, não haveria lei, nem polícia nem exército que conseguisse conter a fúria dos pobres. Por isso Napoleão até tinha razão no que disse…

Em todas as épocas, em todos os lugares onde o ser humano já viveu, o fenómeno religioso nasceu por geração espontânea: havendo seres humanos, há cultura, como forma de entender e viver a vida, e há religião como forma de responder às perguntas que não encontram resposta na ciência. Neste sentido, a ciência tem roubado campo à religião; mas conseguirá anulá-la por completo?

A laicidade ou a morte de Deus fez de nós bons consumidores, mas maus cidadãos, individualistas, pouco solidários e empáticos com a dor humana, pois era a religião que nos congregava em comunidade como filhos do mesmo Pai Deus. Faltando Deus, nada nos une como seres humanos e tudo passa a ser permitido, como diz Dostoievski. Não há ética social que se fundamente em si mesma sem o fundamento em Deus.

Os agnósticos desinteressam-se da religião porque não é possível conhecer Deus; Deus não pode conhecer-se pelo método científico porque é uma pessoa, e as pessoas também não são objeto da ciência. As pessoas não se dão a conhecer a quem não as ama. Conhecer uma pessoa sem amá-la, sem se envolver com ela, sem se dar a conhecer também, seria manipulá-la, tal como o método científico faz com as coisas.

Por outro lado, quanto ao mistério, este tanto envolve a religião como a ciência. Em toda e qualquer ciência há matéria conhecida e matéria desconhecida; por isso se continua a investigar e pesquisar para desvendar. Não se sabe tudo sobre biologia, física, química. Quanto mais se sabe, mais há para saber.
Por isso o mistério tanto envolve a religião como a ciência.

Mas a religião, consoante as respostas que nos dá sobre as questões fundamentais, também dá forma à nossa vida, diz como devemos ou não devemos viver. A ciência também sobre isto não tem opinião, nem nos diz qual é o sentido da vida nem como devemos vivê-la.

Religião, cultura e desenvolvimento
Cada cultura tem a sua forma de conceptualizar a Deus; daí o facto de haver diversas religiões. Para além do fator cultural, a diversidade das religiões tem que ver também com o nível de desenvolvimento ou progresso.

Com a globalização galopante que pretende colocar todos os homens em contacto uns com os outros, o que mais conta já não é a diversidade das culturas, mas o nível de desenvolvimento. Mais do que cultura ocidental ou oriental, fala-se de Norte e Sul. Só existe um modelo de desenvolvimento, como só existe uma natureza humana. Mais que diversidade de cultura, existem povos desenvolvidos, povos menos desenvolvidos e povos primitivos.

Tem-se conotado desenvolvimento com o mundo ocidental, mas eu conotá-lo-ia com a natureza humana. Não há nenhum modelo de desenvolvimento alternativo ao dito ocidental. O oriente (China e Japão) não apresenta um modelo de desenvolvimento alternativo ao ocidental porque não existe alternativa.

Não existe um modelo de desenvolvimento que não passe pela máquina a vapor, eletricidade, motores de explosão, comboios, aviões, carros, televisão, rádio, telefone, computador, Internet, papel, jornais, livros, escolas, universidades… A presença ou ausência destes e de tantos outros elementos define o nível de desenvolvimento de um povo e este nível de desenvolvimento influencia mais a vida das pessoas que as nuances culturais.

Por exemplo, a escrita chinesa e de outros povos asiáticos não é diferente da escrita dos povos ocidentais por um fator cultural, mas sim por um fator de desenvolvimento. Toda a escrita começou por ser pictórica, ou seja, por representar as coisas fazendo um desenho delas. Os hieróglifos egípcios e a escrita cuneiforme da Suméria e Mesopotâmia são antepassados pictóricos dos alfabetos grego e romano que vigoram hoje no mundo ocidental. No que respeita à escrita, o alfabeto é mais desenvolvido que a escrita pictórica, por ser mais simples na era do computador e por fazer o discurso mais fluido entre uma maior diversidade de conceitos e palavras.

Tal como há um desenvolvimento ou progresso científico, técnico e humano, também há um progresso ou desenvolvimento no campo da religião, ou seja, da conceptualização de Deus e da vivência do sentimento religioso inato no ser humano.

Animismo
É a primeira conceptualização do divino. Os nossos antepassados viviam na crença de que tudo era animado; tanto os objetos materiais, animais, plantas, rios, rochas, etc., como os fenómenos naturais, o trovão o raio, o vento, a chuva, etc. e até mesmo o próprio universo, possuíam uma alma, ou seja, qualidades, significados ou poderes espirituais ou sobrenaturais.

Em Portugal há uma frase muito repetida que dá conta deste tempo, “No tempo em que os animais falavam”. Não é que tal tempo alguma vez tivesse existido, mas a crença de que os animais falavam, tinham uma alma e uma personalidade sim existiu.

As religiões antigas pertencem a esta categoria; o animismo ainda existe hoje, mas só em povos que de alguma forma vivem apartados da civilização global como os aborígenes da Austrália, os indígenas da América do Norte, assim como os isolados na Amazónia e certas tribos da Africa.

A bruxaria, New Age, magia e tantas outras superstições são resquícios de animismo ou novas expressões deste na sociedade ocidental. O conferir poder espiritual a certos objetos como a chave, a ferradura, o cornito etc, são resquícios modernos de animismo que hoje não passam de superstições.

Politeísmo
Como dissemos, à medida que o ser humano foi conhecendo e dominando o ambiente que o rodeava, este foi-se materializando. Todas as realidades que o ser humano conhece, controla e domina perdem a sua alma, o seu poder, de alguma forma; este passa para ou é absorvido pelo espírito inventivo do ser humano. Desta forma, foi aumentando a esfera do material e diminuindo a esfera do espiritual. O que o ser humano domina deixa de ter poder sobre ele, sobretudo, deixa de ter poder espiritual, para ser um bem material controlável.

O ser humano com o progresso conseguiu dominar muitas realidades, mas não todas; aquelas que ainda resistiram a ser dominadas adquiriram a natureza de divindades. Ao animismo sucede o politeísmo, a crença de que as principais realidades, poderes e forças da natureza são dominadas por um deus. Com efeito existe um deus para cada realidade, sendo o senhor dessa mesma realidade. Vénus, a deusa do amor, Marte, o deus da guerra, Neptuno, o deus do mar, Cronos, o deus do tempo… O politeísmo existe ainda hoje em certas religiões como o hinduísmo.

Monoteísmo absoluto
A pré-história do monoteísmo acontece quando o ser humano agrupa todos estes deuses e lhes dá um líder – Zeus, na mitologia grega e Júpiter na mitologia romana. Daqui ao monoteísmo é um passo. O primeiro ser humano a proclamar que só havia um deus foi um faraó do Egito chamado Akhenaten, também conhecido por Amenhotep IV, que reinou no Egito no século XIV antes de Cristo, muito antes da cultura grega e romana.

Os povos sedentários têm tendência a ser politeístas; os povos nómadas, pelo contrário, são monoteístas. Os Turkana, um povo nómada do norte do Quénia, têm a mesma palavra para designar Céu e Deus. Os mongóis, os turcos e os tártaros, adoravam um deus comum chamado Tengri, o deus do céu azul.

Daqui a intuir que Deus é um ser espiritual, foi um passo muito curto dado pelos judeus, também eles nómadas. Para estes, Deus era espiritual e estava em toda a parte, dentro da nossa mente e sobretudo no nosso coração, em todo o tempo e em todo o lugar. Era um ser pessoal pois era um Deus de pessoas, de Abraão, Isac e Jacob. Intuíram também que era um Deus criador de tudo e de todos. Hoje, monoteístas absolutos são, portanto, os judeus e os muçulmanos.

Monoteísmo trinitário
É a versão cristã do monoteísmo ou, na era da teoria da relatividade, é a relativização do monoteísmo absoluto dos judeus e dos muçulmanos. Se o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e Deus é amor, o amor implica uma relação de pelo menos duas pessoas; o objetivo de uma relação ou um matrimonio, não é o olhar um para o outro, mas os dois na mesma direção, o que frequentemente toma a forma de um filho. Então, nem Deus nem o Amor são “mono” nem “estéreo”, mas sim tridimensionais.

Este Deus que é uma comunidade de amor criou o homem à sua imagem e semelhança, pelo que também o ser humano é uno e trino, estando chamado a ser uma comunidade de amor; à Trindade de Deus corresponde uma trindade humana.

A pessoa humana é livre, autónoma, indivisível e independente e, no entanto, não se explica por si mesma, precisa de outras duas pessoas: o seu pai e a sua mãe, com as quais forma um triângulo. Pai, mãe, filho(a) são as únicas categorias de vida humana; todo o ser humano pertence sempre a duas delas.

Um homem não é pai sem ter uma esposa e um(a) filho(a); uma mulher não é mãe sem ter um marido e um(a) filho(a), todo o ser humano é filho(a) de um pai e de uma mãe; não existem mães solteiras. A Trindade consiste em que um indivíduo não existe sozinho, mas coexiste com outros dois; a existência de um implica sempre a existência de outros dois, com os quais tem laços afetivos, formando um triângulo de amor.

Ateísmo
Para o ateísmo, não existe nenhum Deus além do universo ou no universo. Afirma que o universo físico é tudo o que existe. Tudo é matéria autossuficiente. Pensamento de Feuerbach por parte da filosofia de Karl Marx – por parte da filosofia quanto ao seu materialismo dialético e por parte da economia quanto ao seu materialismo histórico. Outro expoente ateu por parte da psicologia foi Sigmund Freud.

Os crentes não podem provar cientificamente a existência de Deus, os não crentes também não podem provar cientificamente a sua inexistência. Pelo que o ateísmo é a crença na não existência de Deus. Uma crença que vai contra o sentimento religioso inato no ser humano.

A este sentimento religioso se refere de alguma forma a anedota que diz: o homem é comunista até ficar rico, feminista até se casar e ateu até o avião começar a cair. Ou ainda o que se concebe como ateu por estar na moda e porque ainda não adaptou o vocabulário à sua nova crença, chega a dizer, “Eu cá sou ateu, graças a Deus”.

Niilismo
De onde vimos, para onde vamos, que sentido tem a vida, são as três perguntas que todo o ser humano se faz quando, pelos 6 ou 7 anos, atinge a autoconsciência, ou seja, se conhece como pessoa. Se vimos do nada e vamos para o nada, como afirmam os ateus, que sentido tem a vida? Acaso algo que começa em nada e termina em nada pode ter algum sentido? Neste sentido, o niilismo é um fruto ou produto natural do ateísmo.

Sem futuro, o presente é nauseabundo por mais prazenteiro que seja. Assim o experimentou Sartre, Nietzsche antes dele e Camus depois dele: “se vens do nada, não há Fé, se vais para o nada, não há Esperança, o mais certo é que não haja Caridade pelo que a vida carece de sentido, é nauseabunda. Ante isto, ou cometes suicídio como Nietzsche, ou disfrutas dos prazeres do mundo material e morres de uma qualquer sobredose, ou tornas-te num filantropo e disfrutas da alegria que te proporciona o bem que fazes aos outros, porque há mais alegria em dar que em receber.

Agnosticismo
Como não se pode conhecer a Deus, ou conhecê-l´O totalmente, o agnóstico, como já dissemos, desinteressa-se do tema, coloca-o de parte. Porém, como dissemos também, não é só Deus que está meio envolto em mistério, toda a ciência também o está. Por isso, esta atitude de a-gnosis, ou seja, de negar o conhecimento aplicada às ciências paralisaria o progresso científico pois paralisaria a investigação. Como não posso conhecer tudo sobre a biologia, física e química, não me interesso, não quero conhecer.

Suspeito, por outro lado, que esta atitude do ponto de vista mais humano, é a de evitar responder às três perguntas fundamentais do ser humano: de onde venho, para onde vou e que sentido tem a vida, para evitar cair no niilismo. Ou seja, é a atitude da avestruz que, ao ver o perigo, esconde a cabeça debaixo da areia.  

Prova contundente da existência de Deus
Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé e permaneceis ainda nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que morreram em Cristo, perderam-se. E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram. Porque, assim como por um homem veio a morte, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. E, como todos morrem em Adão, assim em Cristo todos voltarão a receber a vida. 1 Coríntios 15, 17-21

Parafraseando S. Paulo, se Cristo não ressuscitou, se não existe Deus nem vida para além da morte, somos os mais desgraçados de todos os seres vivos que habitam este planeta. A evolução da não consciência para consciência, ou como Karl Marx diz, somos o momento em que a natureza ganha consciência de si mesma, não teria sentido. Para que ganhámos nós consciência?

Para termos consciência da nossa miséria? Para, ao contrário dos outros seres vivos, sabermos que um dia vamos morrer? Para sentirmos tristeza sempre que fazemos anos e vemos como as forças vão definhando, a beleza vai desaparecendo e a doença vai ganhando terreno? Ao menos os seres vivos estão poupados a este sofrimento, pois não sabem nem que vão morrer nem sequer que existem, pois não são auto-conscientes.

Para que serve a possibilidade de optar? Para poder cair em mil e uma armadilhas e poder fazer da nossa vida um inferno? Ao menos os outros seres vivos vivem sempre felizes, não têm a capacidade de arruinar a própria vida e ser infelizes.

E para quê todo o trabalho e esforço, se terminamos todos de igual maneira? E se o fim do ser humano é o mesmo que o da pulga e da barata, em que pode este ser humano dizer que é superior a estes seres vivos? Só se for superior em sofrimento, em tristeza e em desespero se, de facto, o fim de todos é o nada.

Se há sede tem de haver água; se não, não haveria sede. Todas as experiências dos que estiveram entre a vida e a morte, entre o aqui e o além, falam de uma luz, de uma felicidade. Ninguém, até ao momento, falou do nada, do vazio, do deixar de existir.

Segundo o famoso argumento ou aposta de Pascal, suponhamos que dois amigos - um ateu e outro religioso – apostam uma quantia de dinheiro na hipótese da existência ou não existência de Deus e da vida para além da morte. O ateu aposta que Deus não existe, o religioso que sim, existe. À morte dos dois, se o ateu ganhar a aposta, ou seja, se não houver nada para além da morte, não vai poder receber o prémio, não vai sequer saber que ganhou e que o religioso perdeu.

Pelo contrário, se houver vida para além da morte e Deus que a sustém, o religioso ganhou essa vida eterna e o ateu perdeu-a. Concluímos que quem acredita tem tudo a ganhar e nada a perder; quem não acredita, tem tudo a perder e nada a ganhar.

Conclusão – Os conceitos de religião e cosmovisão englobam-se mutuamente. Todas as cosmovisões têm uma religião ou uma anti religião, e todas as religiões têm uma cosmovisão.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de janeiro de 2024

Cosmovisão, a matriz do nosso pensamento

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No princípio era o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus.

Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência. Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens. João 1, 1-4

Quase toda a humanidade subscreve e está de acordo com estas primeiras palavras do prólogo do evangelho de S. João, que afirmam a crença num Deus criador de tudo o que existe e de todos quantos existem.

Procurando situar Jesus no contexto do tempo e do espaço, notamos como o horizonte e o significado da sua entrada na história da humanidade se vai amplificando com cada evangelho escrito. Marcos, o primeiro a ser escrito, em Roma e para romanos, o mais pequeno e o mais incisivo e direto, começa com o Batismo de Jesus e procura provar que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus.

Mateus, o segundo a ser escrito, para judeus, estabelece uma genealogia de Jesus na qual se diz que Jesus é filho de David, filho de Abraão. Lucas, o terceiro a ser escrito, por um grego para gregos, também estabelece uma genealogia, mas que vai mais além dos antepassados de Israel até ao primeiro homem e primeira mulher, Adão e Eva. Por fim, João, como diz o texto acima citado, começa a história de Jesus de Nazaré muito antes de Adão e Eva, fora do nosso planeta, no cosmos, no universo e no começo da criação.

Uma cosmovisão procura integrar todos os elementos de uma cultura ou religião de uma forma harmoniosa, que faça sentido. Cada um dos evangelhos situou Jesus no contexto cada vez maior e, por fim, João concluiu que Jesus não só tem que ver com o movimento do Batista, mas também que é descendente de David, Abraão, Adão e Eva e que ao estar lá no início da criação, é a segunda pessoa da Santíssima Trindade.

Olhar o mundo como Deus o vê
A melhor forma de olhar o mundo é certamente fazendo-o com os olhos do seu Criador. Quem está dentro de uma floresta, não consegue vê-la, apenas vê árvores. Para ter uma visão de conjunto da floresta é preciso sair dela, situar-se como observador fora dela, mas ao mesmo tempo dentro dela. Ninguém melhor que Deus conhece e tem uma visão de conjunto do mundo, da sua natureza e do seu sentido.

Não só porque foi Ele quem o criou, mas também porque só Ele pode transcender o mundo completamente por ser, ao mesmo tempo, imanente e transcendente. Ou seja, só Ele pode verdadeiramente sair da floresta para olhá-la a partir de fora; nós os humanos nunca conseguiremos ter totalmente essa perspetiva. Por isso, olhar o mundo a partir da perspetiva do seu Criador, como os olhos de Deus, é sempre a melhor maneira. Sem Deus, o mundo carece de sentido porque nada do que existe se explica por si mesmo.

Abstração e transcendência
O ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus, é também em menor grau imanente e transcendente em relação ao mundo; imanente porque vive nele, está sujeito às suas leis e sem o mundo não pode viver; transcendente porque tem uma certa capacidade de se abstrair dele, uma capacidade que lhe vem do facto de ser diferente das demais criaturas ao possuir autoconsciência.

A autoconsciência é uma divisão do nosso psiquismo que nos dá a capacidade de sermos imanentes e transcendentes em relação a nós mesmos, ao mundo e a tudo o que nos rodeia. Por sermos autoconscientes podemos estar dentro da floresta e fora dela, pois podemos ser observadores e observados em relação a nós próprios e ao mundo que nos rodeia. Ao ser capazes de nos observarmos a nós proprios, somos ao mesmo tempo o sujeito e o objeto da nossa observação.

A autoconsciência dá-nos a possibilidade de olhar o nosso mundo interior e exterior, tudo o que está à nossa volta, com alguma objetividade. A autoconsciência é uma determinada objetividade dentro da subjetividade, porque nos permite observar, julgar, sermos objetivos e justos. Embora se diga que ninguém é justo juiz em causa própria, também é verdade que se tivermos uma boa autocrítica e reconhecermos os nossos erros, fomos honestos, sinceros e genuínos, poderemos ser justos juízes mesmo em causa própria.

A autoconsciência dá-nos a possibilidade de observar o mundo e de o interpretar, ou seja, de o metermos dentro de nós mesmos, de o assimilarmos e fazermos dele um mapa que conservamos no nosso interior e que nos ajuda na nossa relação como o mundo que nos rodeia, com os outros e até connosco próprios. Este mapa interior, esta interpretação, a nossa forma de conceptualizar o mundo é a nossa cosmovisão.

“Contra factos não há argumentos”
É bem conhecido este provérbio que fundamentalmente quer dizer que não vale a pena discutir o que é óbvio, o que é objetivo, o que está diante dos nossos olhos. É perda de tempo argumentar contra o que ocorre debaixo do nosso nariz, não adianta querer explicar, pois o facto fala por si e já diz tudo. Também se diz malvadamente que só “fala quem não tem falo”.  

Os factos pertencem ao campo do objetivo, do que é comum a todos, pelo que sem um mínimo de objetividade, vista como senso comum, opinião pública, denominador comum, a vida em sociedade não seria possível. Porém à objetividade contrapõe-se a subjetividade; um mesmo facto pode ter tantas interpretações como o número de pessoas que o interpreta. Cada cabeça sua sentença, diz também o povo.

Não basta ver o que vemos, é preciso entender o que vemos. Os discípulos de Emaús (Lucas 24, 13-35) fugiam de Jerusalém, deixavam para trás o serem discípulos de Jesus de Nazaré, porque os factos da sua morte os tinham desconcertado, desmoralizado, escandalizado, confundido, desesperado. Uma coisa é ver, outra é saber interpretar o que vemos, encontrar o sentido do que vemos. As aparências iludem e as coisas nem sempre são o que parecem.

Jesus ajudou os discípulos a interpretar o facto aparentemente escandaloso da sua morte à luz da História de Salvação descrita na Bíblia. Muitas vezes, para sabermos o sentido de um facto pontual temos de o demarcar no contexto de um desígnio maior. Sempre é verdade que quem está na floresta não vê a floresta, só vê árvores; para ver a floresta tem de sair dela.

Definição e sinónimos
“Toda a forma de conceber o mundo e o lugar da humanidade no mesmo, a perspetiva mais ampla possível que a mente consegue ter das coisas. James Orr

“Um sistema de vida, enraizado num princípio fundamental, a partir do qual foi derivado todo um complexo de ideias e conceções de regras acerca da realidade. Abraham Kuyper

 “A Uma perspetiva da vida, um sistema inteiro de pensamento que responde às perguntas apresentadas pela realidade da existência.) Francis Schaeffer

“Um conjunto de pressupostos ou suposições presentes de forma consciente ou inconsciente, consciente ou inconsciente, em relação à constituição básica da realidade. James Sire

“Uma estrutura abrangente das crenças básicas de cada um em relação às coisas.) — Albert Wolters

“É… uma estrutura interpretativa… através da qual damos sentido… à vida e ao mundo. Norman Geisler

Cosmovisão, visão do cosmos, do universo, do mundo, do nosso pequeno mundo, mundividência, visão geral, visão de conjunto, perceção geral do mundo, perspetiva, ótica – todos estes termos são sinónimos que traduzem o conceito alemão de “Weltanschauung” que significa “modo de olhar o mundo” (“welt” – mundo, “schauen” – olhar), ponto de vista, perspetiva ou conceção de mundo.

Parece haver um consenso de que o termo cosmovisão deriva do uso que Emanuel Kant faz do termo “Weltanschauung” no seu livro “Crítica da razão pura”. O conceito que Kant procurou definir sempre existiu; os seres humanos, desde os mais primitivos, consciente ou inconscientemente, sempre tiveram uma visão do mundo que dava sentido à sua vida, pela qual orientavam os seus passos e tomavam as suas decisões.

Uma cosmovisão é um conjunto ordenado e estruturado de crenças, ideias, valores, conceitos e opiniões que configuram a imagem que uma pessoa, uma coletividade, uma cultura, uma época, tem do mundo e a partir da qual a pessoa interpreta a sua natureza, o sentido da sua vida e tudo o que existe.

A cosmovisão é uma representação mental que uma pessoa ou cultura faz do mundo ou realidade; uma forma de interpretar e conceptualizar tudo o que existe e de lhe dar um sentido. Esta conceptualização ou representação mental transforma-se num marco de referência do nosso ser e estar no mundo, ou seja, constituiu-se como uma abstração ou mapa interno ao qual nos referimos consciente e inconscientemente para nos situarmos e guiarmos na realidade externa.

É a bússola que nos indica o Norte para não andarmos desnorteados, o oriente para andarmos orientados, é o nosso Sistema de Posicionamento Global (ou GPS) que nos diz em cada momento onde estamos, o lugar que ocupamos no mundo, o lugar onde queremos chegar, isto é, os nossos propósitos, os nossos objetivos, os nossos sonhos e a estrada para lá chegarmos.

A cosmovisão é o conceito que faço do mundo e da vida que nele existe, é o alicerce, a pedra angular da minha vida. Tem a ver com a minha filosofia de vida, com a minha ótica ou com as lentes pelas quais vejo e interpreto a realidade. A cosmovisão é a matriz de uma cultura, semelhante à placa-mãe de um computador, que é aquela grande placa verde que encontramos ao abrir um computador, que tem impressos todos os circuitos e à qual se fixam todos os chips, a memória, o disco e os demais componentes de um computador.  

A cosmovisão é o sistema operativo de um computador. É o Windows, o sistema Macintosh ou Linux que fazem o computador funcionar. Um computador sem sistema operativo não faz nada, entra em funcionamento e apresenta um ecrã sem nada. Os computadores de hoje em dia fazem tudo, são usados em todas as instituições e células da vida individual e social. Há programas para tratar texto, imagem, música, cálculos matemáticos, etc. Cada programa, porém, está alicerçado no sistema operativo.

Usando esta metáfora, a cosmovisão é o sistema operativo de uma determinada cultura. Essa cultura pode ser constituída por muitas e variadas coisas, como os programas de um computador, mas todas estão assentes num único alicerce comum: o sistema operativo do computador, a cosmovisão da cultura. Parafraseando o livro dos Atos dos Apóstolos (17, 28), é nela realmente que vivemos, nos movemos e existimos…

Conclusão – Representação mental ou mapa do mundo, a cosmovisão é a nossa forma pessoal e coletiva de conceptualizar e interpretar o mundo, assim como a identidade e o sentido da nossa existência nele. 

Pe. Jorge Amaro, IMC



15 de dezembro de 2023

XII Mistério - Coroação de Maria como rainha do céu e da terra

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Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Apocalipse, 12, 1

Paulo VI na sua Exortação Apostólica encíclica “Marialis Cultus” diz que a Solenidade da Assunção se prolonga jubilosamente na celebração da realeza de Maria. A mãe de um rei é rainha, rainha mãe. Não foi uma realeza herdada como filho de rei é rei, também foi uma realeza conquistada a pulso, uma realeza que doeu.

Foi uma coroa de glória precedida de uma coroa de espinhos, ou a espada profética de muito sofrimento referida pelo velho Simeão que Maria teve que passar por causa do seu filho. A realeza de Maria é, portanto, uma realeza por mérito, algo semelhante a um prémio Nobel pelos seus bons serviços prestados à humanidade.

S. Paulo, numa das suas cartas, fala dos atletas que se sacrificam com dietas e exercícios para depois ganharem uma coroa que murcha. Se isso acontece com eles, quanto mais acontecerá connosco caso queiramos ganhar, como Maria, uma coroa eterna de glória. Temos de aceitar os sofrimentos que vêm ao nosso encontro.

Maria e a imperatriz St. Helena
Ao pensar no que é dito neste texto, pois não existe uma base histórica para as coisas que entendemos que acontecem no Céu, pensei numa outra mulher que chegou bem alto começando, como Maria, muito por baixo, e que, tal como Maria, viveu para estar 100% ao serviço do seu filho. Trata-se, da imperatriz Sta. Helena que viveu ao serviço do seu filho.

Sta. Helena não nasceu de nenhuma família nobre em Roma, nasceu na Ásia Menor e, como o próprio nome indica, não era romana, mas sim grega. Casou com o imperador romano Constâncio Cloro que andava pela Ásia Menor em campanha militar. O seu filho é Constantino I que se tornou imperador romano em York, na Inglaterra em 306. Este conferiu a sua mãe o título de Imperatriz. Mais tarde, esta converteu-se ao cristianismo, o mesmo sucedendo com o seu filho, devido à grande influência que esta tinha junto dele.

Nos seus últimos anos de vida, fez uma peregrinação à Terra Santa. Naquele tempo Jerusalém ainda se chamava Aelia Capitolina, depois das tropas do imperador Tito a terem destruído. No lugar do Santo Sepulcro e Gólgota tinham construído um templo à deusa Vénus.

Helena mandou destruir o templo e construir sobre ele a grande Igreja do Santo Sepulcro, no sítio onde ela encontrou a verdadeira Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Helena construiu muitas outras igrejas, mais tarde destruídas pela ocupação muçulmana. As únicas duas que permanecem de pé e que são as principais, são a do Santo Sepulcro em Jerusalém e a da Natividade em Belém.

Muitas imagens de Sta. Helena a representam abraçando a cruz, a mesma cruz aos pés da qual Maria chorou a morte do seu Filho. Como Maria se alegrou com a Ressurreição do seu Filho e o fim do seu sofrimento, Helena representa o fim do sofrimento dos discípulos do seu filho que, até ela e ao seu filho Constantino, tinham sofrido a perseguição romana e o martírio de serem comidos pelas bestas nas arenas romanas. Helena é a primeira imperatriz ou rainha cristã; Maria, a rainha das rainhas, a rainha do Céu e da Terra.

Rainha mãe
Salve rainha, Salve rainha, Senhora minha mãe de Jesus (cântico mariano português)

Salve Regina, Mater misericordiae, ita dulcedo et spes nostra salve. Ad te clamamus exsules filii Hevae. Ad te suspiramus gementes et flentes, in hac lacrimarum valle. Eja ergo advocata nostra, illos tuos misericordes oculos ad nos converte. Et Jesum benedictum fructum ventris tui nobis post hoc exsilium ostende. O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria.

Nos meus tempos de estudante em Inglaterra, era ainda viva a rainha mãe da atual rainha Isabel II. Esta rainha mãe era uma figura muito querida pelo povo. Também ela era rainha, não por ter reinado mas porque o seu marido tinha sido rei. Tinha o título de rainha consorte e, naquele tempo, de rainha mãe de Isabel.

Maria é rainha mãe porque é mãe de Cristo que é Rei do Universo. A Mãe de Cristo, cabeça da Igreja que é o seu corpo místico, está sentada à direita do seu Filho como a rainha, ornada com ouro de Ofir do salmo 45 (44), 10.

Salve Regina, Mater misericordiae, – rainha porque mãe de Jesus, nossa rainha porque nossa mãe, uma mãe misericordiosa como Deus Pai. Uma mãe que por ser carne da nossa carne, totalmente humana, é ponte para o seu Filho. Um “Pontifex maximus” para aceder ao seu Filho porque ela, como a imperatriz Helena, sabe aceder ao coração do seu Filho e obter d’Ele para nós todas as graças de que necessitamos, tal como já o fez em Caná aparentemente com a oposição inicial d’Ele.

Rainha dos anjos, dos patriarcas, dos profetas, dos apóstolos dos mártires, dos confessores, de todos os santos, rainha da paz, como diz a ladainha em seu louvor. Maria é sobretudo rainha dos nossos corações onde reina com o seu amado Filho.

A Rainha Mãe em Israel
À tua direita está a rainha ornada com ouro de Ofir. Salmos 45 (44), 10

No episódio bíblico sobre a subida ao trono do rei Salomão, damo-nos conta da reverência do rei pela sua mãe Betsabé, quando esta vem visitá-lo: o 1º livro de Reis, capítulo 2, versículo 19, diz:

“Betsabé foi, pois, ter com o rei para falar-lhe em favor de Adonias. O rei levantou-se para lhe ir ao encontro, fez-lhe uma profunda reverência e sentou-se no trono. Mandou colocar um trono para a sua mãe, e ela sentou-se à sua direita” 1º Reis 2, 19

Essa atitude de Salomão remete imediatamente para o Salmo 44 acima citado. Os hebreus mantiveram essa tradição até o exílio da Babilónia, quando deixaram de ter reis. A partir dessa época, começa-se a esperar a vinda do novo filho de David, o Messias. Segundo a tradição, Maria é também da tribo de Judá, como José, ou seja, pertence também ela por nascimento à família real.

De facto, o anjo Gabriel já saudou Maria com o título de Ave, título usado para os imperadores de Roma. Ela estava destinada a ser rainha do Céu e da Terra, por isso já era rainha do Céu e da Terra quando aceitou ser mãe do Filho unigénito de Deus, o rei do universo.

Nesse mesmíssimo momento, ao conceber o rei, tornou-se rainha. Por outro lado, ao ser concebida sem pecado original, Maria já nasceu predestinada para ser rainha. A conceição imaculada de Maria faz correr nas suas veias o sangue azul da humanidade, por Deus criada sem o pecado original. Ao ser concebida sem pecado original foi já concebida como rainha.

“Tu és a glória de Jerusalém... tu és a honra de nosso povo... o Senhor te fortaleceu e por isso serás eternamente bendita. Judite 15, 10 b; 11 b

Conclusão – Maria é rainha do Céu e da Terra por ser mãe de Cristo, Rei do Universo. A sua coroação é algo semelhante a um prémio Nobel pelos serviços prestados em prol da salvação da humanidade.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de dezembro de 2023

XI Mistério: Dormição e Assunção de Maria

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«A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exultou em Deus, meu Salvador, porque pôs o olhar na humildade da sua serva. Eis que, a partir de agora, me chamarão feliz todas as gerações, porque o Poderoso fez em mim grandes coisas. Santo é o seu NomeLucas 1, 47-55

Tal como Maria iniciou a Jesus neste mundo e o levou a todos lados de pequeno e o lançou na vida pública antes do tempo nas bodas de Caná, assim agora é Jesus que a leva para o Céu em corpo glorioso semelhante ao Seu e a introduz no Seu mundo onde Ele é Senhor do Universo.

A exaltação da humilde serva de Sião
Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado. Mateus 23, 12 - A Assunção de Maria é a exaltação dos humildes da qual nos fala o evangelho, neste caso da humilde serva de Sião na qual o Senhor pôs os olhos já antes do seu nascimento, fazendo com que a sua conceição fosse imaculada.

Com humildade suportou o vexame de se achar grávida sem poder explicar a origem da gravidez; com humildade suportou os sofrimentos do seu filho quando este começou a encontrar a oposição nos líderes de Israel; com humildade e abatimento suportou a sua morte; agora, com mérito é exaltada e ascende ao Céu para estar sempre com Aquele que ela gerou, o Filho primogénito de Deus.

Assunção ou Dormição são a mesma coisa. O oriente celebra mais como Dormição, o ocidente mais como Assunção. Na minha terra é mais celebrada como Dormição. Desde criança que na minha terra se coloca o esquife ou caixão onde jaz uma imagem deitada da Nossa Senhora. No dia 15 de agosto, este esquife é colocado no lugar onde habitualmente se coloca o caixão dos mortos para a missa de corpo presente. Assim, a missa da Assunção de Maria ao Céu é como se fosse uma missa de corpo presente.

História do dogma da Assunção
Pela autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e em nossa própria autoridade, pronunciamos, declaramos e definimos como sendo um dogma revelado por Deus: que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, tendo completado o curso de sua vida terrena, foi assumida, corpo e alma, na glória celeste. Munificentissimus Deus, Pio XII 1 de novembro de 1950

A declaração do dogma da Assunção de Maria Santíssima ao Céu em corpo e alma, é bastante recente. No entanto, tanto este como todos os outros têm uma longa história de quase 2 000 anos de reflexão teológica, de piedade popular e espiritualidade e, em alguns casos, até de confirmação celeste, como acontece com o dogma da Imaculada Conceição nas aparições de Lourdes.

A primeira alusão à passagem de Maria deste mundo para o Céu acontece no século IV; Epifânio de Salamina, em 377, afirmou que ninguém sabia se Maria havia morrido ou não. A mais antiga narrativa é o chamado "O Livro do Repouso de Maria", do qual existe apenas uma tradução copta etíope, entendida como sendo do século IV, embora possa muito bem ser do século III.

A Assunção ao Céu da Nossa Senhora também aparece no livro “De Transitu Virginis”, uma obra do final do século V, atribuída a S. Melito. Este livro conta que os Apóstolos vieram transportados por nuvens brancas, cada um da cidade onde se encontrava no momento, para assistir à Dormição de Maria. Esta história tem uma continuação séculos mais tarde, com um apêndice segundo o qual Tomé, como sempre, não compareceu a este funeral de Nossa Senhora e, quando chegou mais tarde, fizeram abrir o túmulo que encontraram vazio.

Onde ocorreu esta Assunção ou Dormição não se sabe, uns dizem em Jerusalém, outros em Éfeso onde, segundo a tradição, viveu Maria os últimos anos da sua vida com S. João, na conhecida “Casa de Maria” que ali se encontra até aos dias de hoje e que pode ser visitada.

Com a sua Assunção ao Céu, Maria cumpre o que S. Ireneu disse: que Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus. Assim se cumpre o sonho de Eva que queria ser como Deus. Maria chegou a ser como Deus ao ser mãe. Pela obediência, o ser família íntima de Deus está aberto a todos nós: é “a minha mãe e os meus irmãos são os que ouvem a minha Palavra e a põem em prática.”

Assunção como união com Deus
"Fizeste-nos Senhor para ti e o nosso coração anda inquieto enquanto não repousa em Ti" Sto. Agostinho

Estamos no mundo, mas não somos do mundo. Ser e estar não são o mesmo verbo como em outras línguas. Estamos no mundo, mas somos do Céu, somos de Deus, de onde viemos e para onde voltaremos. A melhor forma de estar no mundo então é viver desprendidos e nós só conseguimos essa forma de estar no mundo se tivermos as nossas prioridades bem definidas, se Deus for a quem nós mais amamos, em teoria e na prática.

Sempre recordarei a experiência de atravessar os rios caudalosos na Etiópia: não se deve olhar para a água que corre com muita velocidade, mas sim para a margem do rio que não se move. A primeira vez que tive que atravessar um destes grandes rios, comecei a olhar para a água e comecei a ficar enjoado, atordoado e em perigo de ser levado pela corrente. Ao verificarem isto, os moços que me acompanhavam gritaram, “Abba, não olhe para a água, mas sim para a margem do rio”.

Isto pode ser uma metáfora da nossa vida. Tenhamos os olhos fixos não no que se move que é temporal e passageiro, mas no que não se move, em Deus que não muda e é eterno, para não sermos levados pela corrente do presente, para não nos deixarmos embriagar pelo prazer presente ou desesperar pela dor presente. Só atravessaremos bem o rio da vida se tivermos os olhos postos na outra margem, em Deus no Céu. Se não for assim, seremos levados pela corrente, qualquer que seja a tendência, moda, poder, riqueza, coisas do mundo.

Em busca da sua própria identidade, um boneco de sal viajou milhares de quilómetros por um deserto, até que, finalmente, alcançou o mar. Fascinado pela massa estranha e móvel, completamente diferente de tudo quanto tinha visto até então, perguntou:
- Quem és tu?
 Com um sorriso, o mar respondeu:
- Sou o mar.
- Mas o que é o mar? inquiriu o boneco.
- Vem, toca-me e saberás.
O boneco de sal colocou o pé na água e imediatamente ficou sem ele.
- Que fizeste? perguntou assustado.
- Para me conheceres tens de te dar, respondeu o mar.
Então o boneco de sal foi adentrando o mar e, antes de uma onda o cobrir por completo, disse num suspiro:
-  Finalmente descobri quem sou
. Tony De Mello

Se queremos conhecer a Deus já aqui nesta vida, temos que nos envolver. Não podemos conhecer a Deus sem nos comprometermos. Não pode ser um conhecimento frio no qual não nos implicamos, como se fizéssemos aquela experiência do oxigénio com algas e sol. Neste caso, não estamos diretamente envolvidos, mas com Deus, se o conhecermos temos de O amar. O mesmo acontece quando começamos a conhecer uma pessoa que nos é estranha: pouco a pouco começamos a gostar dela até porque o conhecimento entre as pessoas e das pessoas é afetivo; assim é com Deus. Só o afetivo é efetivo, ou seja, é real e surte efeito.

Assunção como Levitação
Uma experiência interessante a realizar em Nova Iorque, se visitarmos o museu da NASA, é a experiência da falta de gravidade: é como voar, as batatas fritas voam, a água em gotas voa também. Voar sempre foi o sonho de todo o ser humano e, de facto, parece ser um sonho muito recorrente em cada um de nós. Eu, pessoalmente sonho muitas vezes que voo.

A Assunção é uma experiência espiritual que fazem aqueles que se desprendem das coisas e afetos deste mundo. Os santos levitavam porque as suas ataduras a esta Terra eram poucas. Sta. Teresa de Ávila dizia, “Vivo sem viver em mim e tão alta vida espero que morro porque não morro...” A Assunção é como levitar, quando nos desprendemos do que nos liga à Terra, dos afetos pelos bens temporais e até por pessoas.

O mistério da Encarnação e a emancipação da mulher
Nos primórdios da humanidade, quando os homens ainda não sabiam de onde vinham os bebés, (o efeito estava muito longe da causa: o ato sexual 9 meses antes do nascimento; o mesmo acontece com o melhor raticida cuja eficácia está precisamente em separar no tempo o efeito e a causa) quem reinava na sociedade era a mulher. Ela e só ela era o futuro e a esperança da espécie, ela e só ela trazia novos seres ao mundo.

Consequentemente, o primeiro deus a ser adorado era uma deusa: a deusa da fecundidade da terra e da mulher. Terra ainda hoje é um termo feminino em quase todas as línguas. Foi também a mulher que inventou a agricultura. Porque a mulher era vista como a origem da vida, deus era concebido com forma feminina.

Quando a conexão entre o coito e o nascimento de um bebé foi estabelecida, a mulher perdeu pouco a pouco todo o prestígio social. Ao princípio da deusa feminina foi acrescentado o homem consorte. Com o tempo, o consorte expulsou do céu a deusa e ficou sozinho. A mulher é só como a terra que o homem trabalha e domina, Deus manda a chuva como o homem semeia o sémen, todo o novo ser está contido no sémen do homem, a mulher é só o recetáculo.

Neste novo conceito de Deus, Yahveh é rei e senhor e os reis naquele tempo não tinham uma rainha, mas um harém de mulheres. A mulher foi então tratada como a terra na agricultura “Crescei e multiplicai-vos, dominai a terra... e a mulher desapareceu da cena social e do céu habitado por um rei, todo poderoso e sozinho. A mulher foi a última a ser criada e a primeira a pecar.

O cristianismo é um fator emancipador da mulher. Vejamos, nas sociedades não cristãs a mulher é maltratada. Ainda hoje, em África, a mulher é quem trabalha, o homem não faz nada; a mulher é vendida, obrigada a casar-se aos 15 anos com homens de 50 ou mais. No Japão, serve de prato nos restaurantes, ainda hoje. Na Ásia, e nas Filipinas que a mulher está mais emancipada. Os muçulmanos circuncidam a mulher de forma a que ela nunca tenha prazer sexual.

A anunciação foi o começo desta emancipação da mulher. Deus, para vir ao mundo, precisou de uma mulher e não de um homem. E não foi só o ventre que usou, foi também o óvulo. Com a vida de Maria, a mulher voltou ao Céu na Assunção, como mãe do Filho unigénito de Deus.

Nenhum homem nasceu sem o pecado original, só ela; Deus não precisou do espermatozoide do homem, mas do óvulo da mulher. Maria aponta para o rosto feminino de Deus, como Jesus de Nazaré, o seu Filho, para o rosto masculino de Deus.

Conclusão – A Assunção de Nossa Senhora ao Céu, é o desfecho lógico da sua vida na Terra. Concebida sem pecado original, deu à luz o autor da vida, tornando-se Mãe de Deus. Maria introduz Jesus no mundo, Jesus introduz a sua mãe no Céu.

Pe. Jorge Amaro, IMC