15 de maio de 2023

III Mistério - Visita de Maria à sua prima Isabel - 2ª Parte

Sem comentários:

A Anunciação evoca a escuta da Palavra de Deus – A Visitação evoca o encarnar da Palavra
Na Anunciação, Maria está atenta à escuta da palavra de Deus que lhe é transmitida por intermédio do anjo Gabriel. Esta é a atitude do verdadeiro discípulo, como Maria de Betânia aos pés do Senhor, escolhendo, segundo o Mestre, a melhor parte. Na Anunciação, Maria tem a mesma experiência que o profeta Jeremias, para quem a palavra de Deus é doce ao paladar, tão doce como o mel.

A Visitação é o tratar de encarnar a Palavra, de a colocar em prática para assim sermos não só discípulos do Mestre, mas também familiares íntimos d’Ele a de sua mãe, que passou pelo mesmo processo, bem como os seus irmãos e irmãs. Quem ouve a Palavra e não a faz comportamento do dia a dia, não a encarna, não a coloca em prática, é como o que construiu a sua casa na areia. (Mateus 7, 24-27)

A Palavra revela-nos a vontade de Deus a nosso respeito; colocá-la em prática é fazer a vontade de Deus que era já para Jesus o seu próprio alimento, pelo que assim deve ser também para nós. A Palavra, como diz a Bíblia, é viva e eficaz, é na sua prática que ela se transforma em vida e em eficácia.

Nem todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor", entrará no reino dos céus, mas o que faz a vontade do meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: "Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizámos? Não foi em teu nome que expulsámos demónios? Não foi em teu nome que fizemos numerosas ações poderosas?". Confessar-lhes-ei então: "Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade! Mateus 7, 21-23

Senhor, abre-nos", então, respondendo, ele vos dirá: "Não sei de onde vós sois". Começareis, então, a dizer: "Comemos e bebemos na tua presença, e ensinaste nas nossas praças". E ele dir-vos-á: "Não sei de onde vós sois. Afastai-vos de mim, todos os que praticais a injustiça"
. Lucas 13, 25-27

Comentando e parafraseando os textos acima, "Senhor, Senhor" é o equivalente a ouvir a Palavra de Deus. Se o Senhor nos conhece ou não, depende da prática da Palavra de Deus. Deus não nos conhece da nossa prática religiosa na igreja, mas pela forma como nos comportamos na rua. O texto de Mateus acima citado é seguido pela metáfora de construir sobre a arei ou sobre a rocha. Aquele que põe a palavra em prática constrói sobre a rocha, não sobre a areia como aquele que não pratica aquilo em que diz acreditar.

Jesus não nos conhece quando lhe dizemos “Senhor, Senhor,” mas quando o visitamos no próximo, nos necessitados, nos mais pequenos, onde Ele está escondido. Parafraseando S. João, na escuta da Palavra amamos a Deus que não vemos, na visitação do próximo vemos a Deus a quem amamos.

Se a Anunciação evoca a semente e a sementeira da Palavra – A Visitação evoca o terreno onde a Palavra cai e frutifica
Na parábola do semeador, a Palavra de Deus é comparada a uma semente de qualidade que tem em si mesma a potencialidade de dar fruto; uma semente que pode até ser tão pequena como um grão de mostarda, mas que se transforma numa árvore suficientemente grande para as aves do céu fazerem ninho e procriarem, gerando assim mais vida.

A semente é a palavra de Deus e o semeador é Cristo; depende do terreno se esta semente vai dar fruto ou não. Não é culpa da semente nem do semeador, mas sim do terreno em que a semente cai. O trigo que Deus semeou no seio de Maria tornou-se para nós pão de vida eterna.

Se a Anunciação evoca a fé e a esperança – A Visitação evoca a caridade
"De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: “Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos”, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma.

Queres ver, ó homem vão, como a fé sem obras é estéril? Abraão, nosso pai, não foi justificado pelas obras, oferecendo o seu filho Isaac sobre o altar? Vês como a fé cooperava com as suas obras e era completada por elas. Assim se cumpriu a Escritura, que diz: Abraão creu em Deus e isto lhe foi tido em conta de justiça, e foi chamado amigo de Deus (Gn 15,6). 24. Vedes como o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé?"
Tiago 2, 14- 24

Esta é uma questão que divide protestantes e católicos e que eu entendo que é um grande equívoco. S. Paulo, nos seus escritos, não tem em conta muitas partes do evangelho, sobretudo o juízo final de Mateus 25 que é sobre as obras e não sobre a fé. Todas as perguntas que nesse juízo se fazem são referentes ao amor ao próximo não ao amor a Deus.

No meu entender, quando S. Paulo fala das obras que por si sós não nos salvam, refere-se às obras inspiradas ou feitas pela obediência formal à lei de Moisés, essa mesma lei que o concílio de Jerusalém decidiu não impor aos cristãos vindos do paganismo. Os fariseus pensavam que se salvavam pela obediência formal à lei de Moisés; enquanto que para o cristão o que o salva é o ser como Jesus, praticando obras de misericórdia, mesmo que não acredite n’Ele.

Baseados nesse passo da escritura, se tivéssemos que escolher entre o amor ao próximo e o amor a Deus, devíamos escolher o amor ao próximo, pois amando ao próximo estamos a amar a Deus indiretamente; amando só a Deus estamos certamente muito enganados, pois o Deus que pensamos que amamos é Pai do nosso próximo a quem nós ignoramos. O caminho mais seguro para a salvação não é portanto amar a Deus diretamente mas sim indiretamente através do amor pelo nosso próximo.

O amor a Deus sem amor ao próximo é uma religião ópio do povo, é uma fé sem verificação nem confirmação, pois o próximo vê-se e Deus não se vê. Deste modo, é uma imagem falsa de Deus aquela que não te leva a amar o próximo. Se a fé é a conta, a caridade, o amor ao próximo é a prova dos nove dessa conta, a confirmação de que está exata; por isso, só pelas obras se pode verificar se a fé é autêntica.

"A caridade jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência findará. (…) Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade – as três. Porém, a maior delas é a caridade." I Coríntios 13, 8, 13

Se a Anunciação evoca a liberdade – A Visitação evoca a fraternidade e igualdade
Na Anunciação, Maria estava rezando, em contacto com Deus e exercendo o amor a Deus sobre todas as coisas. Estava, portanto, exercendo o valor humano da liberdade onde assenta a vida individual de cada ser humano.

Só somos verdadeiramente livres quando amamos a Deus sobre todas as coisas e sobre todas as pessoas. Quando O adoramos, ou seja, quando nos submetemos só a Ele, quando só Ele é o Senhor a quem prestamos homenagem e vassalagem, quando isto acontece somos verdadeiramente livres de tudo e de todos.

A ideia que aflora à nossa mente quando se fala de liberdade é a de viver de forma independente e autónoma, sem constrangimentos. A liberdade, no sentido de autonomia, é inerente a todo o tipo de vida ou matéria orgânica; é fazer coisas por si mesmo, é ser autónomo e independente como a célula, ou como a árvore que produz o seu próprio alimento pleo processo da fotossíntese.

Muito mais que para os animais, a liberdade é “condictio sine qua non” da vida humana. Os animais ou plantas fazem o que a natureza tem predestinado para eles, não saem fora desses moldes, pelo que não têm poder sobre a própria vida, não têm poder de opção.

O ser humano, pelo contrário, não está predestinado pela Natureza nem esta exerce poder sobre ele. O ser humano não tem propriamente um “habitat”, um ambiente propício à vida humana, ou seja, um único lugar onde a vida humana é possível. Em vez de se adaptar à Natureza, o ser humano tem a capacidade de adaptar a Natureza às suas necessidades.

Hoje a palavra “artificial” tem má fama, soa a plástico, nocivo para a saúde… Porém, a palavra na sua origem é boa pois significa “ars facere” do latim, fazer arte. Para o ser humano, o artificial é natural, o natural é artificial. O que é natural no ser humano é a criatividade de usar a Natureza a seu favor.

Os animais estão vivos; o ser humano não só está vivo, como vive, porque pode fazer da sua vida e com a sua vida o que quiser, orientá-la como quiser e até acabar com ela se assim o decidir. O ser humano tem a sua vida nas próprias mãos, não porque a possui, mas porque tem a capacidade de a administrar como quer, de a dirigir, de a gastar toda num projeto, uma opção fundamental para a qual tem talento e se sente chamado. Assim fez Beethoven ao dedicar a sua vida à música, Picasso à pintura, Ghandi à independência da Índia sem violência.

Na Visitação, Maria está em contacto com o próximo, exercendo o seu amor pelo próximo na pessoa da sua prima Isabel. Estava a ser uma boa samaritana pois estava a socorrer a sua prima mesmo sem esta lho pedir, como aliás fez nas bodas de Caná mais tarde. Sem que ninguém lho pedisse, ela solucionou o problema do vinho: provavelmente deu-se conta antes do noivo da existência de tal problema e, num ato de profunda empatia para com o noivo e a sua família, resolveu o problema, envolvendo o seu Filho e o seu poder de fazer novas todas as cosias.

Como primeiro valor da Revolução Francesa, a liberdade dizia respeito à relação entre indivíduo e sociedade; como segundo, dizia respeito à relação entre os indivíduos no interior da sociedade. O ser humano é um ser pessoal, individual, mas não é uma ilha: sempre faz parte de uma família, de um clã, de uma tribo, de uma nação.

Como já refletimos num texto anterior, o ser humano é uno e trino, tal como Deus e a sua criação. São precisos dois seres humanos para dar origem a um, pelo que um não existe, mas coexiste com outros dois. Se o valor base de um ser humano como ser pessoal e individual é a liberdade, o valor onde assenta o ser humano como ser social é a igualdade.

Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor. Levítico 19, 18

Não há em todo o mundo uma definição melhor de igualdade. O outro é um alter ego, ou seja, é um outro eu; não um tu, uma entidade externa, estranha, estrangeira, distante, mas sim o meu próximo, tão próximo que é um outro eu, um alter-ego, de onde provém a palavra altruísmo.

O que me é devido a mim, é-lhe devido a ele, pois é um ser humano como eu e todos viemos do mesmo tronco comum, nascido no Vale do Rift há 5 milhões de anos. A igualdade e a convivência na sociedade assentam no princípio de que os meus direitos são os deveres do meu próximo e os meus deveres são os direitos do meu próximo.

Não julgueis, para não serdes julgados; pois, conforme o juízo com que julgardes, assim sereis julgados; e, com a medida com que medirdes, assim sereis medidos. Mateus 7, 1

– É uma exortação divina à igualdade não nos colocarmos acima dos outros, julgando-os, pois somos todos iguais. Ninguém nos constituiu juízes, e só o seríamos, só poderíamos atirar uma pedra, se não tivéssemos pecado. Mas pecámos e frequentemente julgamos os outros pelos mesmos pecados e defeitos que nós temos, pelo que o nosso julgamento é hipócrita.

Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. Gálatas 3, 28

– Jesus curou estrangeiros e frequentemente exaltou a sua fé. Tratava o homem e a mulher de igual para igual, foi o único Rabino que teve discípulas. Nas parábolas que contava procurava um equilíbrio entre os homens e as mulheres como protagonistas. Combateu o cliché de que a mulher devia dedicar-se exclusivamente ao trabalho doméstico, tendo como única vocação ser mãe. Desta forma, 2000 anos antes, já Jesus era a favor da integração da mulher no mundo do trabalho, ao lado do homem. (Cf.  Lucas 10, 38-42, Lucas 11, 17)

As visitas de Maria
Explicamos e justificamos que Maria é medianeira e nossa intercessora no Céu com o episódio das bodas de Caná (João 2, 1-11), no qual ela apresenta as necessidades dos convivas ao seu Filho, ao mesmo tempo que os exorta a fazer tudo o que Ele disser. Por que não explicar e justificar as visitas de Maria com o episódio da visita à sua prima Isabel? (Lucas 1, 39-45)

Nas suas visitas, Maria não traz um evangelho novo, uma mensagem nova, mas tal como o Espírito Santo de quem ela é Esposa, recorda partes esquecidas da mensagem (Cf. João 14, 26) do seu Filho e reinterpreta-as no “aqui e agora” da história dos homens. De facto, um dos fatores importantes da genuinidade destas mensagens é a sua concordância com o evangelho.

Maria continua a visitar aqueles de quem ela é mãe em momentos fulcrais da História dos seus filhos, para ajudar a encarnar nesses momentos e lugares a Palavra eterna do seu filho.

Guadalupe – Apoio à evangelização
Como iam os indígenas, em 1531, aceitar de bom grado a religião dos conquistadores, exploradores e assassinos espanhóis, se Maria não tivesse aparecido a um indígena. De facto, os indígenas até àquele tempo reticentes ao cristianismo, converteram-se em massa depois das aparições.

Lourdes – O Céu confirmou
Parte importante da mensagem de Lourdes é a confirmação do Céu, no ano de 1858, do dogma da Imaculada Conceição instituído pelo papa Pio IX quatro anos antes em 1854.

Fátima – “Penitência e Oração” são a solução
Entre duas guerras mundiais, Maria propôs em Fátima, entre outras coisas, a “Penitência e a Oração” como meios para fazer frente ao ateísmo militante, naquele tempo e ainda hoje.

Conclusão: depois da doação total de si mesma a Deus na Anunciação, Maria doa-se em igual medida ao próximo, ao visitar a sua prima Isabel.

Pe. Jorge Amaro, IMC









1 de maio de 2023

III Mistério - Visita de Maria à sua prima Isabel - 1ª Parte

Sem comentários:

"Naqueles dias, Maria levantou-se e foi às pressas às montanhas, a uma cidade de Judá. Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu seio; e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. E exclamou em alta voz:

“Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor? Pois assim que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu seio. Bem-aventurada és tu que creste, pois se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas!
”. Lucas, 1:39-45

A notícia de que a prima Isabel ia já no sexto mês de gravidez foi dada pelo anjo como prova de que a Deus nada é impossível. Maria, porém, sem comentar a notícia com o anjo, guardou-a e quando terminou o encontro com o mensageiro de Deus imediatamente partiu para Ein Karen, a 145 km de Nazaré. A viagem foi feita em caravana, na companhia de outros viandantes e deve ter demorado entre 7 e 10 dias.

Com o encontro e as palavras de Isabel a Maria completa-se a primeira metade de uma oração muito querida e repetida pelos católicos – Ave Maria – que na sua primeira parte é composta pelas palavras do anjo, seguidas das palavras de Isabel e terminando em Jesus que é o centro da oração, como sempre foi o centro da vida de Maria.

A segunda parte desta oração reflete o que Maria é para nós e o seu papel na História da Salvação do género humano e de cada um de nós individualmente. Por isso lhe pedimos que peça, que ore a Deus por nós “agora” em todos os “agora(s)” da nossa vida e, sobretudo, naquele “agora” derradeiro da nossa passagem deste mundo para o Pai. Como ela esteve aos pés da cruz do seu filho na sua agonia, assim nos acompanhe a nós na nossa.

Anunciação/Visitação
Há uma dialética entre a anunciação do anjo à Nossa Senhora e a visitação da Nossa Senhora à sua prima Santa Isabel, que faz com que estes dois mistérios tanto gozosos como marianos sejam inseparáveis um do outro, ou seja não possam nem devam ser entendidos individualmente, mas sempre em relação um com o outro.

Nestes dois mistérios e no que eles podem significar e evocar, vai toda a vida do cristão, ou seja, sintetizam em si a vida do cristão. Por isso, Maria é para nós modelo de vida cristã; ela de facto não foi só Mãe do Senhor, foi também sua discípula. Mãe porque discípula, discípula porque mãe. (Lucas 8, 21). Assim, pois, se:

Se a Anunciação evoca o “Ora”, a oração, a Visitação evoca o “Labora”, a prática de boas obras
Um dia, um grande rei visitou o seu mestre espiritual e perguntou-lhe, “Como posso alcançar a União com Deus? Quero que me respondas com uma só frase, pois sou um homem muito ocupado”. “O mestre disse-lhe: Até lho posso dizer numa só palavra”. “Qual é a palavra?” perguntou o rei”. “É o silêncio”, respondeu o mestre espiritual. “E como posso alcançar o silêncio”? “Através da oração”. “E o que é a oração?” “É silêncio”, respondeu o mestre.

No silêncio encontro-me a mim próprio e encontro a Deus no fundo do meu ser. No ruído perco-me a mim próprio e perco a Deus. O filho pródigo fez o que fez porque andava divorciado de si mesmo; quando caiu em si, voltou a Deus; então estar com Deus e connosco próprios implicam-se mutuamente. Quem está fora de si mesmo, está fora de Deus. Porque, como dizia Sto. Agostinho, “Deus intimior intimo meo”. Deus está mais fundo que o meu íntimo, está para além do meu íntimo, ou seja, não posso chegar a Deus sem passar por mim mesmo.

O “conhece-te a ti mesmo” do filósofo Sócrates, não é possível sem a oração. Sem um tempo dedicado à oração, como fazia Maria e o seu filho, não chegamos a conhecer os nossos talentos, as nossas virtudes e os nossos defeitos e limitações. Uma vida não autorreflexiva, dizia também Sócrates não vale e pena ser vivida. Pois é na autoconsciência que podemos exercer controlo sobre os nossos impulsos e maus instintos. Sem autoconsciência, não há autocontrolo.

Os Evangelhos apresentam frequentemente, sobretudo nas escolhas decisivas, Jesus que se retira sozinho para um lugar longe das multidões e dos próprios discípulos, para rezar no silêncio e viver o seu relacionamento filial com Deus. O silêncio é capaz de escavar um espaço interior em nós mesmos, dizia o Papa Bento XVI, para fazer habitar Deus esse espaço, para que a sua Palavra permaneça em nós, para que o amor por Ele se enraíze na nossa mente e no nosso coração, e anime a nossa vida.

Portanto, a primeira direção: reaprender o silêncio, a abertura para a escuta, que nos abre para o alto, para a Palavra de Deus. Como dizia Karl Rhaner, o grande teólogo jesuíta do século XX, os cristãos do futuro ou são místicos ou não são cristãos.

Alguém dizia que a vida do cristão decorre entre a Igreja como templo e a praça ou o mercado. No templo, o cristão está em oração e contemplação de Deus e de si mesmo; no mercado, o cristão está vivendo a sua fé na caridade e no amor ao próximo. Mesmo os monges contemplativos que dedicam muito tempo à oração “Orat”, também têm atividade, “laborat”.

"Intimamo-vos, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, a que eviteis a convivência de todo o irmão que leve vida ociosa e contrária à tradição que de nós tendes recebido. Sabeis perfeitamente o que deveis fazer para nos imitar. Não temos vivido entre vós desregradamente, nem temos comido de graça o pão de ninguém. Mas, com trabalho e fadiga, labutamos noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós.

Não porque não tivéssemos direito a isso, mas foi para vos oferecer em nós mesmos um exemplo a imitar. Aliás, quando estávamos convosco, nós vos dizíamos formalmente: quem não quiser trabalhar não tem o direito de comer. Entretanto, soubemos que entre vós há alguns desordeiros, vadios, que só se preocupam em intrometer-se em assuntos alheios. A esses indivíduos ordenamos e exortamos a que se dediquem tranquilamente ao trabalho para merecerem ganhar o que comer. Vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem.
" II Tessalonicenses, 3, 6-13

Para S. Paulo, não há profissionais nem da oração nem do anúncio do Evangelho. Isto deve ser tarefa de todos. Ele mesmo, como refere o texto, trabalhava, fazia tendas para ganhar o próprio sustento, não vivia nem à custa da oração nem da evangelização. Era, pois, contrário àquela divisão tradicional das classes sociais na Idade Média, em que o clero, rezava, os nobres protegiam o povo e o povo trabalhava para o sustento do clero e da nobreza. Mesmo já nesta Idade Média, os que muito se dedicavam à oração, os monges Beneditinos e Cistercienses, trabalhavam não só para o próprio sustento, mas também para o sustento das povoações vizinhas, às quais ensinavam práticas agrícolas.

Se a Anunciação evoca o “amar a Deus sobre todas as coisas” – A Visitação evoca o “amar ao próximo como a ti mesmo”.
Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos que hoje te imponho estarão no teu coração. Repeti-los-ás aos teus filhos e refletirás sobre eles, tanto sentado em tua casa, como ao caminhar, ao deitar ou ao levantar. Atá-los-ás, como símbolo, no teu braço e usá-los-ás como filactérias entre os teus olhos. Escrevê-los-ás sobre as ombreiras da tua casa e nas tuas portas.» Deuteronómio 6, 4-8

Jesus disse à samaritana que não era nem no monte Gerasim, onde Jacob tinha construído um santuário Bétel, nem em Jerusalém, onde Salomão tinha construído o templo. Adora-se a Deus em espírito e em verdade. E noutro sítio da escritura, Jesus até diz que quem quiser rezar, entre no seu quarto. Na oração exercemos o nosso amor a Deus. É certo que em todo momento o amamos, porém, a oração é a manifestação desse amor que em todo o tempo sentimos.

Para todos os efeitos, o Criador sabe sempre mais da criatura que a criatura sabe de si mesma. O Criador ama mais a criatura que a criatura se ama a si mesma. O Criador sabe tudo da criatura, passado, presente e futuro, por isso, mais que a criatura, está capacitado para defender os seus interesses.

Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. Mateus 10, 37

Tudo o que a criatura pode e deve fazer é entregar-se nas mãos do Criador, tal como um bebé sem hesitação se lança nos braços do pai. Assim, podemos entender o texto clássico do amor a Deus que é o credo, que todo o judeu recita quando se levanta de manhã. O amor a Deus é sobre todas as coisas, sobre todas as pessoas, completa e absolutamente exclusivo, acima do amor que temos por nós mesmos.

Deus só ama os que o amam
Ao entrardes numa casa, saudai-a. Se a casa for digna, venha sobre ela a vossa paz, mas se não for digna, volte para vós a vossa paz. Mateus 10, 12-13

Frequentemente em sermões, para obter a atenção dos que estão meio adormecidos, lanço uma granada no meio da audiência dizendo “Deus só ama a quem O ama”. Em seguida, os que se consideram teólogos objetam e dizem que não, que Deus ama a todos por igual, e até me citam a Bíblia, que faz chover sobre o justo e sobre o injusto.

E é verdade, em teoria Deus amou tanto a Hitler como a Francisco de Assis. No entanto, a vida dos dois não foi a mesma; se os dois tiveram a mesma quantidade e qualidade de amor de Deus, por que foram tão distintos? Francisco aceitou o amor de Deus, fez-se eco dele amando a Deus; Hitler não. O sol, antes de chegar ao nosso planeta e de o aquecer e iluminar, passa pelo espaço onde a temperatura é de 300 graus negativos. Porquê? Porque está vazio, nada há nele que faça eco e acolha essa luz e esse calor. A única forma de fazer-se eco do amor de Deus é amá-l’O também.

“Amor com amor se paga” – Como diz a escritura, Deus amou-nos primeiro e sempre nos ama, mas se eu não faço eco do Seu amor em mim, é como se Ele não me amasse. Só com o amor podemos fazer eco do amor de Deus em nós. Ao amor, ou se responde com amor ou somos ingratos. Por isso, se bem que em teoria Deus ama a todos por igual, só o que aceita esse amor, só o que está aberto ao amor de Deus, sente os efeitos desse amor. O ato de aceitar o amor de Deus, o estar aberto ao amor de Deus, é amar a Deus.

Como o texto bíblico acima citado (Mateus 10: 12-13) sugere, a bênção volta para quem bendiz quando não é bem recebida. Assim, é com o amor de Deus que não encontra um coração aberto para receber o amor que Deus tem para dar.

Amar e ser amado
Amar e ser amado é a primeira necessidade humana, depois das necessidades físicas. Não há vida humana sem amor; viver é amar. Durante toda a nossa vida teremos esta necessidade. Por isso, por ser uma necessidade humana e por não haver vida humana autêntica sem amor, amar é, ao mesmo tempo, um dever e um direito.

Como necessidade inerente à natureza humana e à dignidade da pessoa humana, todos os seres humanos têm o direito de ser amados e o dever de amar. Como crianças, a prioridade é sermos amados, pois é sendo amados incondicionalmente que aprendemos a amar incondicionalmente. Como adultos, a prioridade é amar; se um adulto tem como prioridade ser amado mais que amar, não é um adulto maduro. É um desses tipos de adultos que vemos nas telenovelas, que usam mil e um estratagemas para obter a estima de alguém e pouco ou nada fazem para amar alguém.

A nível educacional, o amor é um dever dos adultos para com as crianças, um direito inerente e inato das crianças em relação aos adultos. Fora do âmbito educacional, a necessidade de amar e ser amado permanece para o resto da vida, pelo que é sempre, simultaneamente, um direito, ainda que não o reivindiquemos, e um dever, ainda que não o exercitemos.

Porém, Deus continuamente nos perguntará “onde está o teu irmão?” (Génesis 4, 9). Responder que não somos o guardião do nosso irmão não é uma resposta que satisfaça a Deus nem à nossa consciência. Convém também lembrar que a matéria do Juízo Final é a mesma matéria da vida: o amor. Se amaste, viveste; se não amaste, não viveste, eras um morto vivo, ou seja, o corpo estava vivo, mas a alma já estava morta. Com a morte do corpo, regressas ao nada a partir do qual Deus te tinha criado para fazer de ti alguma coisa; mas tu não colaboraste com a Sua graça.

Conclusão: Se na Anunciação Maria manifesta o seu amor a Deus, na Visitação à sua prima manifesta o seu amor ao próximo. Nestes dois mistérios gozosos e marianos se resume a vida do cristão.

Pe. Jorge Amaro, IMC