15 de novembro de 2021

3 Votos do consagrado: Pobreza - Castidade - Obediência

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Talvez por ser ele mesmo um religioso pertencente à ordem dos Jesuítas, o Papa Francisco proclamou o ano 2015 como sendo o ano da Vida Consagrada. Este foi precisamente o tema de reflexão deste espaço durante todo esse ano. Como não vou reinventar a roda e certas verdades não mudam com o tempo, vou aqui fazer um resumo do que naquele ano disse, agregando alguma ideia que me pareça pertinente aqui e agora.
 
O que é a vida religiosa ou consagrada?
A religião deve ser como o sal na comida: nem muito nem pouco, só o preciso.
D. António Alves Martins, bispo de Viseu de 1862 a 1882

Parafraseando, o sábado foi feito para o homem, o homem não foi feito para o sábado (Marcos 2, 27), a religião foi feita para o homem, o homem não foi feito para a religião. A religião é sal na vida, sal que dá sabor à vida; o sal está ao serviço da comida, a religião está ao serviço da vida; a vida não deve ser a religião ou viver a religião.

O que dissemos é válido para todas as pessoas. Porém, há alguns que são chamados a ser sal da Terra e luz do mundo (Mateus 5, 13-14). Chamados a ser sal para a terra significa certamente dar sabor à vida dos outros; chamados a ser luz do mundo significa certamente iluminar e guiar a vida dos outros. Isto deve ser o religioso consagrado.

Se a religião para o cristão comum existe em função da vida, ou seja, para dar sentido e sabor à sua vida, para ser luz, a religião deve iluminar e guiar a sua vida. Para o religioso, é a vida que está em função da religião, porque está consagrado todo ele, toda a sua vida, a ser sal e luz para os outros. Porque não vive em função de si mesmo, mas dos outros e da sociedade em geral, o consagrado ou religioso tem uma vida à parte.

“Consagrar” um objeto significa retirá-lo do uso ordinário para o colocar de parte ou apartar, e reservar para um uso determinado e exclusivo. Quando um cálice ou outro objeto é consagrado, é reservado ou guardado para um uso sagrado, neste caso, para a celebração da Eucaristia.

É neste sentido que se deve interpretar a “fuga mundi” dos religiosos da Idade Média. Não se tratava de fugir ao mundo, para não ser contaminado por ele, mas sentir-se chamado a uma Missão que comportava apartar-se da vida ordinária e viver de uma forma diferente.

Dentro da floresta não vemos a floresta, vemos apenas árvores; para ver a floresta temos de sair dela. O consagrado afasta-se do mundo para o conhecer melhor; de facto, aparta-se do mundo para se dedicar ao mundo. Retira-se do seu pequeno mundo para se dar a todo o mundo de uma forma peculiar. Coloca de parte a sua vidinha particular, para entrar ao serviço da Vida em sentido Universal.

Como nasceu a vida religiosa
O mais visível, o que chama mais a atenção na pessoa religiosa ou consagrada é o seu celibato, ou seja, é o ser uma pessoa que não constitui família como todas as outras. Historicamente, porém, podemos dizer que mesmo antes de ter surgido a vida religiosa que na Igreja adquire o nome de monaquismo, desde o princípio do cristianismo, no seio das primeiras comunidades cristãs, como ainda acontece hoje, sempre houve homens e mulheres que renunciaram ao casamento por amor ao Reino dos Céus. Na minha terra, posso contar até 6 donzelas que se dedicaram exclusivamente à catequese e à educação de crianças e nunca se casaram.

Os primeiros séculos do cristianismo foram muito marcados pela perseguição à Igreja, de tal forma que ser cristão e ser mártir eram praticamente sinónimos. Os cristãos daqueles tempos aspiravam, como todos os humanos, a morrer de idade avançada. No entanto, ao abraçarem uma religião proscrita pelo império romano, todo o cristão estava disposto a testemunhar a sua fé na vida e com a vida.

Quando a espiritualidade, o martírio, ou seja, a dedicação plena e suprema à causa do Evangelho, perdeu a sua força devido à legitimação do cristianismo, que com o Imperador Constantino se transformou em religião de Estado, surgiu o monaquismo como forma alternativa de martírio ou de dedicação plena e exclusiva aos valores do evangelho.  

Esta forma de vida surgiu como uma grande novidade na Igreja e registou uma enorme expansão, sobretudo no Egito, Palestina e Síria. Passaram para a história da Igreja com o nome dos Padres do Deserto. Enquanto que com a legalização do cristianismo, muitos cristãos se aburguesaram e caíram na apatia espiritual e moral, os monges ascetas conservavam frescos os valores do Evangelho, levando uma vida de intensa oração, jejum, celibato e desprendimento dos bens materiais.

No princípio, estes monges eram eremitas anacoretas, ou seja, viviam sozinhos; com o tempo foram-se reunindo em cenóbios, em pequenas comunidades e assim surgiu a vida religiosa tal como a conhecemos hoje. Também eram chamados de clero regular, como dissemos, porque eram comunidades governadas por regras. A primeira regra, intitulada “Ora ed labora” foi dada por S. Bento, o fundador do monaquismo na Igreja ocidental.
 
A vida religiosa nas outras religiões
Quando pensamos na figura do monge da tradição católica, imediatamente nos vem à mente a imagem do monge budista, vestido com um hábito cor de açafrão. O budismo é uma espiritualidade que se presta ao monaquismo, ou seja, à dedicação exclusiva à meditação, à vida ascética que tem como objetivo a iluminação.

Como no cristianismo, nem todos os budistas podem ser monges. No entanto muitas crianças e adolescentes têm uma iniciação monástica durante alguns anos da sua vida, como se fosse um serviço, semelhante ao serviço militar obrigatório de outros tempos, e depois deixam os mosteiros para seguirem a sua vida normal.

A religião judaica, assim como a muçulmana, são contrárias à vida monástica tal como se entende no budismo e no cristianismo. O mais próximo correspondente na religião muçulmana de um monge cristão é o Sufi, pois tal como no monaquismo cristão, o sufismo é uma interiorização e intensificação da fé e prática muçulmanas.

A vida religiosa ao longo da história e da Igreja
Segundo a distinção canónica, temos hoje dois tipos de clero: o regular, os religiosos e o clero secular. O clero diocesano está mais envolvido com o mundo, são os pastores das ovelhas do Senhor. Neste sentido, o seu papel é muito semelhante ao dos doutores da lei e dos sacerdotes de Jerusalém. O religioso consagrado, por outro lado, está chamado a ser profeta, a ser a pessoa certa no lugar certo, a ser a solução de um problema.

Todas as ordens religiosas nasceram como solução para um problema: os jesuítas como a força da Contrarreforma, os franciscanos para exaltar o valor da pobreza numa Igreja demasiado rica. Quando nasceram as cruzadas, nasceram as ordens religiosas militares como os Templários e os Hospitalários.  Nasceram depois ordens religiosas para cuidar dos doentes físicos, nasceram outras para cuidar dos doentes mentais, outras ainda nasceram para se dedicar ao ensino, sobretudo dos desfavorecidos que não podiam pagar um colégio. No fim do século XIX início do século XX, nasceu a minha e tantas outras ordens religiosas dedicadas exclusivamente à evangelização de África e depois da Ásia.
 
Na tradição do Antigo Testamento, o profeta era o homem certo para o momento certo; era o que sabe interpretar o momento presente da vida do povo à luz da vontade de Deus, era o que se sentia mensageiro e por vezes também intermediário entre Deus e os homens. Era sempre um líder natural e uma pessoa carismática; tanto criticava um comportamento que não era adequado aos olhos de Deus, como confortava e infundia esperança nas horas amargas, como foi o exílio da Babilónia.

A vida religiosa em geral está associada à Missão Profética da Igreja. Na Idade Média, enquanto os estados guerreavam entre si, foi nos mosteiros que se preservou a cultura; foi neles que nasceram as escolas, as universidades e os hospitais. O próprio registo civil nasceu com o assento dos batizados pela Igreja; registo esse que o Estado, com a República em 1910, roubou às paróquias.

Atos simbólicos dos profetas de Israel
O comportamento dos profetas, do Antigo Testamento, era tão bizarro que nos termos dos atuais padrões seculares de sanidade, acabariam institucionalizados ou, pelo menos, em alguma forma de terapia intensiva.

Estes profetas não eram apenas falantes da palavra, encarnavam-na nas suas vidas, no seu talante, no seu comportamento e atos. Tudo neles fazia parte da mensagem: a sua escolha de roupas e até mesmo os seus corpos e linguagem corporal. Testemunhavam assim, na própria carne, o quão transformadora e desconcertante pode ser a Palavra de Deus. Se é certo que “palavras, leva-as o vento”, os atos simbólicos e dramáticos dos profetas falavam bem mais alto e eram mais difíceis de esquecer.

•    Isaías, despiu toda a sua roupa e vagueava nu. (Isaías 20).
•    Jeremias, escondeu a sua roupa interior numa rocha, e depois de muito tempo veio à procura dela (Jeremias 13).
•    Oseias casou deliberadamente com uma prostituta e pôs o nome de Loruhama (não amada) à filha de ambos (Oseias 1).

Com a vinda de Cristo, podemos olhar para trás e ver estes profetas como prenúncio, não só através das profecias que falavam da sua vinda, mas através das suas ações proféticas. Cristo é, afinal, a palavra feita carne da maneira mais rica e mais completa possível. E, tal como o dos profetas, o comportamento de Cristo foi totalmente bizarro, desconcertante e confuso em relação aos padrões sociais e convencionais da época.

Era, afinal de contas, alguém que garantiu que reconstruiria o templo em três dias, que comia com prostitutas e cobradores de impostos, que expulsou demónios para uma vara de porcos, que curou um homem cego esfregando lama nos seus olhos feita com a sua saliva, e que andou sobre as águas. A ação mais chocante e dramática foi sem dúvida lavar os pés dos seus discípulos. Quis executar o ato mais servil para que nunca esquecessem o que já tinha dito de palavra: o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos (Marcos 10, 45).

O religioso como ato simbólico
O consagrado vive aqui e agora a vida que todos estamos chamados a viver no Céu. Ao encarnar os valores do evangelho, é como uma estrela polar que indica o verdadeiro caminho para Deus, um dedo apontado para o Céu; ao relativizar certas realidades deste mundo que o homem tem a tentação de absolutizar, o religioso é também um farol que expõe os perigos à navegação, perigos de perder a vida durante a nossa peregrinação para a pátria celeste.

Desta maneira, os três conselhos evangélicos podem ser vistos como gestos ou atos simbólicos que falam por si, à maneira dos atos dramáticos e simbólicos dos profetas do Antigo Testamento, ou uma forma de ser sal e luz em temas como o poder, os bens materiais, o prazer e o amor.

O voto de pobreza – Relativiza o possuir pois, para além de manter as funções vitais, as riquezas materiais são um empecilho para o crescimento espiritual. Como diz o evangelho, onde está o teu tesouro está também o teu coração; quem dá o seu coração às riquezas, vende a alma ao diabo, já não se possui, é possuído pelo que pensa possuir.

O voto de castidade – Relativiza o sexo pois, ao contrário do que a sociedade nos quer impingir, o sexo não é uma necessidade individual, mas sim da espécie; nem sequer é intrínseco ao amor, é tão-somente uma das tantas expressões de amor. Se o amor, na sua expressão natural, cria a família e os laços familiares, o amor, na sua expressão sublimada, cria a fraternidade universal e a solidariedade.

O voto de obediência – Relativiza o poder e a liberdade. Para o evangelho, o poder é serviço, ou seja, obedecer às necessidades dos outros. Sou livre até encontrar a minha opção fundamental; uma vez encontrada, a vida resume-se a ser fiel, ou a obedecer, aos compromissos assumidos. Se guardares a regra, a regra te guardará a ti, e te dará um sentido de identidade, de propósito e de segurança.

POBREZA
Quando um religioso, podendo ser rico, escolhe ser pobre, que quer dizer ao mundo? Que mensagem profética encarna na sua vida de pobre? Que verdades revela? Para que perigos alerta?

Somos administradores não proprietários
Não sendo proprietários de coisa nenhuma nem da nossa própria vida, devemos sinceramente considerar-nos administradores, tanto da nossa vida como dos recursos que possuímos. Um dia, prestaremos contas dessa administração.

Quando na nossa mente conseguimos substituir o conceito de “dono” pelo de “administrador”, uma sensação de desapego e desprendimento dos bens materiais invade a nossa mente. Esta nova mentalidade é imprescindível para o crescimento espiritual, como pessoa livre e independente, mas ao mesmo tempo fazendo parte de uma comunidade e como filhos de Deus.

Sendo Deus o único proprietário de tudo e de todos, nós apenas somos administradores e não proprietários: as coisas foram feitas para ser usadas, não amadas nem possuídas; as pessoas foram feitas para serem amadas, não usadas. Os que têm como objetivo possuir cada vez mais, têm a tendência de usar as pessoas, de as ver como um meio. As pessoas nunca devem ser um meio, mas sim e sempre um fim em si mesmas. As coisas é que são um meio, um meio de vida. As coisas estão ao serviço da vida e não a vida ao serviço das coisas.  

Meio de vida não fim de vida

Na verdade, quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há-de salvá-la. Marcos 8, 35.

Viver e estar vivos são uma e a mesma coisa para os animais, não para os humanos. É certo que para viver é preciso estar vivo, mas o sentido e objetivo da vida humana não é manter-se vivo, não é reter a vida; pelo contrário, é perder, é dar a vida, é desapegar-se da vida, entregar-se a uma causa, usar todo o tempo e energias de que é composta a nossa vida por um ideal, um sonho, uma ambição. A vida não é, portanto, um valor absoluto, mas relativo; valor absoluto é a razão pela qual eu vivo.

Os bens materiais, portanto, nada tem a ver com a vida, mas sim só com o estar vivo, com o manter as funções vitais. Quem dedica a sua vida a acumular riquezas, está a dedicar a sua vida a manter a vida. Pode até chegar a ter o necessário para manter as funções vitais de duas e mais vidas. Mas continuará a ter apenas uma vida que acabará por esperdiçar numa azáfama sem sentido.

O rico é pobre o pobre é rico

O homem pobre que está feliz com o que tem e não procura mais riquezas materiais, é rico. Enquanto o homem rico que nunca está satisfeito com o que possui, que quer e procura ter sempre mais, é pobre.

É como uma adolescente anoréxica que se engana a si mesma com uma falsa perceção da realidade; está tão obstinada em tornar-se mais magra que sempre que se vê ao espelho se vê gorda. Como não foca a sua atenção na magreza, que já tem, mas que ainda quer ter mais, sempre se verá como gorda e obrigada a perder mais peso, arriscando a morte se não for curada da sua falsa perceção da realidade.

O rico é pobre porque a sua atenção não está virada para o que já tem, mas para o que ainda pode vir a ter, investindo nesse objetivo todo o seu tempo e energias. Como sempre haverá alguém mais rico que ele, sempre se verá a si mesmo como vivendo num estado de carência pelo que, para todos os efeitos, é pobre. O pobre é rico porque está satisfeito com o que tem e investe o seu tempo e as suas energias em “ser”; o rico é pobre porque, ao não achar que tem o suficiente, investe toda a sua vida no “ter mais”.

Possuidores ou possuídos?
Se as vossas riquezas crescerem, não lhes entregueis o coração. Salmo 62, 10
Porque, onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. Lucas 12, 34

Infelizmente, o jovem rico, do evangelho de Mateus (19:16-23), decidiu ficar com as riquezas quando Jesus o confrontou e lhe deu a escolher entre riqueza material e riqueza espiritual. Diz o evangelho que ele ficou triste ante a sua própria opção; as riquezas podem dar prazer, mas não dão alegria e o prazer é quase sempre seguido pela tristeza.

O jovem rico recusou seguir o mestre porque, diante da perspetiva de perder as riquezas, a sua falsa segurança paralisou-o. Seguir o Mestre foi o que o moveu ir ter com Jesus, ele queria seguir o Mestre, mas não podia; e não por possuir muitas riquezas, mas por ser possuído por elas. Não era livre, não se possuía a si mesmo nem era senhor do seu destino. O que aconteceu ao jovem rico e acontece a todos os que entregam o seu coração às riquezas, assemelha-se a vender a alma ao diabo.

Onde está o teu tesouro aí está o teu coração, adverte o evangelho. Por isso, quando damos o coração às riquezas, vendemos a alma ao diabo; a partir desse momento, só possuímos do ponto de vista contabilístico porque, do ponto de vista psicológico e espiritual, somos nós os possuídos.

Se o objeto do nosso amor são bens materiais, então uma estranha simbiose acontece entre a pessoa e os bens materiais que ama. Define-se simbiose como uma relação de mútuo benefício e dependência entre dois seres vivos.

Há uma troca ou partilha entre os dois: os bens materiais partilham a sua matéria, pela qual a pessoa que os ama se materializa; a pessoa partilha o seu espírito, pelo qual os bens materiais se espiritualizam. O sujeito que antes dizia que possuía, passa a ser possuído. Não é o jovem rico que possui os bens materiais, são os bens materiais que possuem o jovem rico.

 Porque o dinheiro é um bom escravo, mas um mau mestre. Aquele que é seduzido pela riqueza perde a sua liberdade. Na realidade, é a riqueza que passa a "comandar" a sua vida e não ele mesmo. Quando o único objetivo da vida é possuir, e o possuir só serve para manter as funções vitais, a pessoa vive para estar viva, ou seja, vegeta.

Encontrar uma riqueza maior
A Princesa Diana de Gales, tinha tudo que uma jovem poderia pedir na vida: juventude, beleza, poder, dinheiro, fama, "sangue azul" e dois filhos preciosos e, mesmo assim, não estava feliz porque lhe faltava o principal, o que o dinheiro não pode comprar: amor. À procura deste, abandonou tudo e foi nessa busca que perdeu a vida. Outros há, que tendo o essencial, o amor, fazem o oposto da princesa, buscando afanosamente tudo aquilo que ela desprezou. Gastam nisso as suas vidas, muitas vezes acabando por perder o que de antemão tinham: o amor.

Tal como Diana de Gales, S. Bento de Núrsia, S. Bernardo de Claraval, S. Francisco de Assis, Sto. Inácio de Loyola, S. Francisco Xavier, Sto. António de Lisboa, Sta. Isabel de Portugal, S. Nuno Álvares Pereira, Sta. Beatriz da Silva etc., os santos da Igreja católica, na sua grande maioria, eram de classe média-alta, cultos, jovens, belos, ricos, alguns de sangue azul, e todos abandonaram tudo por Cristo, tal como S. Paulo outrora fizera – por causa d’Ele, tudo perdi e considero esterco, a fim de ganhar a Cristo, Filipenses, 3, 8.

Não eram tolos, estes santos: ninguém troca um bem maior por um bem menor. Se abraçaram a pobreza é porque encontraram nela uma riqueza superior àquela que deixavam e com a qual não podiam contemporizar, pois a Bíblia é clara, não se pode servir a Deus e ao dinheiro, (Mateus 6,24). Não podes, ao mesmo tempo, cultivar valores espirituais e valores materiais.

É certo que o dinheiro é muito importante, é de facto o deus deste mundo, pois nos abre muitas portas e consegue-nos muitos bens de consumo; mas não nos abre a porta do mundo espiritual nem nos consegue valores humanos. Não nos compra o bem mais essencial e sem o qual a vida humana não faz sentido: o amor. O amor é a necessidade mais importante na vida e o dinheiro em nada pode satisfazê-la.

Quem passa a vida a cultivar valores temporais e caducos está, de alguma maneira, a cultivar a morte. Quando eventualmente morrer, não possuindo um corpo espiritual e não tendo acumulado tesouros no céu, estará morto para sempre, sofrendo a morte eterna. Ao passo que aquele que passou a vida a cultivar valores espirituais e humanos que são eternos, acumulou tesouros no Céu e, quando eventualmente morrer, ressuscitará com o corpo espiritual que construiu em vida e entrará com este na vida eterna.

O voto de pobreza
Como os votos religiosos de castidade, pobreza e obediência fazem referência a valores eternos, aqueles que os encarnam transformam-se em sacramentos, embaixadores, símbolos de eternidade para o resto dos cristãos. Ao viverem, aqui e agora, os valores que todos estamos chamados a viver no céu, relativizam realidades como o dinheiro, o poder, o prazer.

Quanto ao voto de castidade, como no céu não há morte, não há nenhuma necessidade de haver casamentos, como sugere Mateus 22,30. Viver em castidade ou amizade universal, é o que a todos nos espera.

Quanto ao voto de obediência, o que o religioso quer relativizar é o amor pelo poder que tantos têm. A mania de querer chegar ao topo, pensando que uma vez lá não teremos que obedecer a ninguém. Obedecendo, o religioso quer mostrar que fazer a vontade de Deus é o melhor para a autorrealização.

A necessidade de bens materiais está relacionada com o facto de ter, de sustentar a vida nas suas implicações biológicas. No céu, teremos um corpo glorioso (1 Coríntios 15, 44) ou espiritual, feito à imagem e semelhança do nosso corpo físico, sem ser o nosso corpo físico. Como é um corpo imaterial, não há necessidade de possuir e armazenar bens materiais.

Muitas pessoas vivem na ilusão de que, por possuírem mais meios de vida, têm mais vida, ou podem prolongá-la. Em si mesma, a vivência do voto apregoa a verdade de que não se pode amar a Deus e ao dinheiro; o possuir para além do necessário para nos mantermos com vida, impede-nos de “armazenar tesouros no Céu”, (Mateus 6,19-20) ou seja, de aplicarmos a vida a cultivar valores humanos. São estes valores que dão sentido e relevância à nossa vida, tanto do ponto de vista individual como social, e a sustêm na eternidade, fazendo parte do nosso corpo espiritual, com o qual viveremos com Deus.

Vivendo o voto de pobreza, no contexto de uma comunidade religiosa, destacamos o valor da partilha de bens comuns, assim como o valor de os usar e administrar com responsabilidade, sem os possuirmos. Acreditamos, na verdade, que só Deus é o verdadeiro dono de tudo o que as pessoas pensam e possuem. Não somos proprietários de coisa nenhuma, nem de nós mesmos, nem da nossa vida; apenas somos administradores de tempo, de talentos, de recursos e dessa administração prestaremos contas um dia.

CASTIDADE
Se a pobreza tem a ver com a nossa relação com as coisas, e a obediência com a nossa relação connosco mesmos, a castidade tem a ver com a nossa relação com os outros.

Castidade e sublimação
Eros & Tânatos são instinto de vida e instinto de morte, afetividade e agressividade, ying e yang, a força centrípeta e a centrífuga, o amor e o ódio, polos positivo e negativo da eletricidade ou energia com que fazemos tudo o que fazemos. Sem energia nada funciona numa sociedade e o mesmo acontece connosco.

No seu livro, “O mal-estar da Civilização”, Freud defende que tanto a agressividade como a afetividade desbragada, ou seja, abandonadas a si mesmas, têm um potencial destrutivo incomensurável; podem destruir o que ajudaram a construir. O ser humano abandonou a animalidade quando ganhou poder sobre estas duas forças, quando conseguiu domesticá-las, quando lhes colocou rédeas para as aproveitar positivamente.

Vistas as coisas sob este prisma, a civilização humana pode ser considerada como uma história da sublimação do Eros & Tânatos, ou seja, o uso inteligente que a humanidade fez destas forças ou instintos básicos. Da mesma forma, a nossa própria história pessoal consiste também nos esforços para desviar o nosso afeto e agressão naturais do seu alvo natural e primordial, a fim de promover o cultivo dos valores humanos.

Em consonância com essa forma de pensar, o voto religioso de castidade consiste em desviar a afeição natural do homem e da mulher do seu objeto primordial, casar e ter filhos, canalizando-a para uma finalidade mais cultural. Sacerdotes, religiosos e religiosas escolhem não ter esposas e maridos a fim de estabelecer uma fraternidade mais ampla; optam por não se reproduzir biologicamente e ter filhos próprios, a fim de ampliar e estender a sua paternidade e maternidade para além dos laços de sangue.

Exemplos de sublimação: a barragem e a máquina a vapor
Com a construção de uma barragem, o nível de água sobe a ponto de poder irrigar os campos e transformar um deserto num oásis, criando e alimentando uma sociedade agrícola e rural. Por outro lado, pode também ser aproveitada para produzir energia elétrica, criando e alimentando cidades industriais onde floresce a cultura urbana.

É claro que a barragem reprime e comprime a água, impedindo o seu fluxo natural; por isso as suas paredes têm de ser fortes e côncavas. Por outro lado, feita nos limites do possível, a mais-valia e os benefícios que se obtêm da força motriz da água para produzir energia e da sua canalização para a irrigação, justificam plenamente a represa ou repressão.

Tal como as paredes côncavas e fortes da barragem, a sublimação do Eros requer que a pessoa possua um caráter forte e robusto, para conter o impulso natural do Eros que se manifesta no desejo sexual e na paternidade natural, e poder assim canalizar a sua energia para uma paternidade e irmandade mais universal. O bem que se faz aos outros, no contexto desta paternidade e irmandade universal, ecoa em nós em forma de alegria; o ver que os outros estão melhores graças à nossa atuação, compensa largamente o esforço e o sacrifício envolvido no processo de sublimação.

O princípio da sublimação também se verifica na máquina a vapor que foi a primeira máquina que o ser humano construiu. Esta primeira força motriz artificial que o homem inventou, transformava o calor produzido pelo carvão que fazia ferver uma caldeira de água, em vapor de água e a força deste vapor movia os pistões do motor. Fundamentalmente, transformava calor em energia mecânica. A sublimação é possível e sem ela não existiria a sociedade humana tal qual a conhecemos.

Castidade é a relativização do sexo
"All you need is love" costumavam cantar os Beatles nos anos 60. De facto, depois das necessidades básicas que não incluem o sexo, amar e ser amado é a única necessidade e condição sem a qual a vida humana não existe nem subsiste. Nenhuma pessoa jamais atingirá maturidade plena como ser humano, se não for amada incondicionalmente durante a infância e amar incondicionalmente como adulta.

Quem em adulto procura ser amado, mais que amar, comporta-se afetivamente como uma criança. E como a sociedade não tolera que adultos se comportem como crianças, esse adulto procurará ser amado de forma enviesada, com enganos, manipulações e jogos psicológicos; é disso que tratam as telenovelas. Quem é maduro afetivamente pode passar sem ser amado, mas não pode passar sem amar. Jesus, na sua vida terrena, procurando sempre amar e servir os mais pobres e desfavorecidos, não procurava ser amado, mas também não repelia o amor que lhe devotavam.

O amor pode existir e subsistir e faz sentido sem sexo, pois há uma infinidade de situações amorosas onde o sexo não se aplica, não entra, nem deve entrar. Por outro lado, o sexo sem amor não deve existir, não faz sentido, pois transforma a pessoa num objeto de prazer, instrumentalizando-a e degradando-a, mesmo no caso do sexo consentido entre adultos onde ambos são sujeito e objeto.
 
Amar é, como diz S. Tomás de Aquino, querer o bem do outro. Por isso diz o provérbio espanhol “obras son amores y no buenas razones”, o amor manifesta-se nas obras tal como a fé. Contrariamente ao que diz a expressão popular, praticar sexo não é “fazer amor”, pois o amor manifesta-se nas obras, cresce ou decresce com elas e por elas.

Longe de ser a única, o ato sexual é apenas uma das muitas formas de dizer “Eu amo-te”; e não se aplica, nem é lícito, nem moral em muitas formas de amar. Mas, mesmo nas situações amorosas em que é correta e adequada a expressão sexual, esta, por si só, não tira nem acrescenta nada ao amor, apenas expressa ou não expressa o amor que existe ou não existe.

Amor particular versus amor universal
Nos meus tempos de criança e de adolescente, gostava muito de ver filmes de cowboys na televisão. Hoje, pensando em retrospetiva, é claro para mim que esses filmes influenciaram, diria mesmo, forjaram de alguma forma o meu futuro. Fascinava-me que depois de o cowboy ter libertado a cidade dos bandidos que a tinham refém, mesmo que durante o tempo em que ali tinha estado alguma donzela se tivesse enamorado dele pela sua bravura e ele tivesse ou não correspondido a esse enamoramento, no final, o cowboy nunca ficava na cidade nem aceitava o amor da donzela, nem o poder simbolizado pela estrela de xerife que lhe oferecia. Partia antes cavalgando rumo ao pôr-do-sol para, noutro episódio o vermos a libertar outra cidade, lutando sempre pela justiça e liberdade com risco para a sua vida.

Todo o homem e toda a mulher têm uma vocação natural para serem pai e mãe. O consagrado está chamado a realizá-la, não de uma forma biológica ou física, mas de uma forma psicológica e espiritual. Mesmo para os que são pais, em sentido biológico, o mais importante não é o escasso tempo do processo da conceção, mas os longos anos do processo educativo. Madre Teresa de Calcutá nunca foi mãe no sentido biológico e, no entanto, ninguém lhe negaria o nome de madre Teresa.

O consagrado não é pai trazendo mais filhos ao mundo, mas contribuindo para a educação e humanização dos que já cá estão. Do missionário pode dizer-se, como se disse de Jesus: “passou pelo mundo fazendo o bem”.

Castidade e abstinência
Tal como a pobreza não é a negação completa dos bens materiais, pois enquanto possuímos um corpo físico necessitamos de alguns, tal como a obediência também não é a submissão acrítica incondicional e total à vontade de outrem, como as ovelhas ao pastor, assim também a castidade não é a abstinência total do amor personificado e da possibilidade de o expressar sexualmente.

A sublimação total do Eros é impossível
É claro que o processo de substituição ou canalização de energia, não pode ser continuado até ao infinito, como também não pode sê-lo a transformação de calor em energia mecânica nas nossas máquinas. Sigmund Freud

Conforme o exemplo utilizado por Freud, a máquina a vapor, é impossível transformar todo o calor produzido pelo carvão em energia mecânica; muito desse calor perde-se de forma natural. Também dá o exemplo do agricultor que treinou o seu cavalo a viver sem comer; quando pensava que já o tinha habituado, o cavalo morreu.

O mesmo acontece com a minha metáfora da barragem: não é possível transformar toda a sua água em eletricidade e agricultura. Há tempos em que chove muito, o que obriga a abri as comportas e a deixar que a água corra naturalmente; se não o fizermos, podemos perder a barragem.

A sublimação total do Eros não é desejável
Usando ainda a metáfora da barragem, quando chove muito é preciso largar água; a castidade, de facto, resulta mais difícil nos anos jovens, quando chove muito, ou seja, quando a produção hormonal está no seu auge. Era precisamente por isto que S. Francisco de Assis, para resistir à tentação, se rebolava nu na neve. Também aqui existe o perigo de se perder a barragem do nosso psiquismo, ou seja, de ficarmos neuróticos. Sempre achei uma pura hipocrisia serem clérigos velhos e decrépitos (com um nível quase nulo de produção hormonal) a prescrever a moral sexual para jovens.

Existem, por outro lado, estudos que dizem que tanto a prática sexual exacerbada como a total abstinência são daninhas para a saúde física. A falta de produção de testosterona tem efeitos não só na função sexual, como também no funcionamento geral do organismo. Talvez Buda tivesse razão ao advogar o caminho do meio, ou como diziam os antigos “in medio virtus” “in medio veritas”.

Sexo como liturgia do amor

Se o prazer sexual é uma expressão do diálogo oblativo, então fica claro que a instituição do matrimónio não pode ser o "hortus conclusus" da sexualidade e não podemos lidar com ela apenas dentro dos limites de uma doutrina do matrimónio. Pietro Prini L’o scisma sommerso

Pietro Prini, um filósofo católico muito querido nos círculos do Vaticano, opina neste seu livro que, em matéria sexual, o mundo católico não segue a moral católica; há dentro da Igreja um cisma entre a moral sexual que seguem os fiéis e aquela que é proclamada pelo magistério.

O teólogo irlandês Diarmuid O’Murchu no seu livro Poverty, celibacy, and obedience: A radical option for life chega à mesma conclusão que Prini: Que o celibatário deva ou não abster-se totalmente da intimidade sexual genital, num mundo onde essa expressão íntima já não está ligada exclusivamente ao casamento, tem pelo menos de permanecer uma questão em aberto.

Na espécie humana, a expressão sexual não existe primariamente para a procriação, pois nem todos os atos sexuais estão abertos à vida, como é o caso nos animais. Ao contrário destes, os humanos não são filhos do instinto, mas sim do amor entre duas pessoas porque também só se vive humanamente no amor e para amar. Portanto, a expressão sexual é, antes de tudo, liturgia, expressão do amor entre duas pessoas, sempre e quando este amor aconteça e a expressão sexual deste seja apropriada.

OBEDIÊNCIA
Se a pobreza tem a ver com o amar a Deus sobre todas as coisas, a castidade tem a ver com o amor ao próximo como a ti mesmo, a obediência tem a ver com o amor a si mesmo. O primeiro conceito que tem de estar claro na nossa mente é de que a nossa vida não tem apenas a ver connosco.

A vida humana é um valor absoluto em relação à morte, não podemos atentar contra ela. Porém, em relação aos outros valores humanos é um valor relativo, pois a vida humana só tem sentido cultivando valores humanos e cada um desses valores valem a nossa vida. Não empregues a tua vida em causas pelas quais não estás disposto a morrer.

Se em relação ao voto de pobreza dissemos que, em relação à nossa vida, não somos proprietários nem das coisas a que chamamos nossas nem da nossa vida, pois nada fizemos para a ter nem nada podemos fazer para a reter, em relação ao voto de obediência não somos os arquitetos da nossa vida, mas sim apenas os engenheiros, pedreiros, construtores da mesma.

Construtores, não arquitetos – Toda a pessoa que vem a este mundo, vem com um projeto. Vem porque Deus assim o quis. As circunstâncias do seu nascimento não interessam: nem retiram nem acrescentam dignidade. Tão filho de Deus é o nascido por amor como o nascido por acidente, o nascido de prostituta, o nascido de uma noite de prazer e até o nascido de uma violação; toda a vida humana que vem a este mundo, desde a sua conceção até à morte natural, é viável e, portanto, inviolável.
Deus escreve direito por linhas tortas. Para os seus desígnios serve-se tanto do nosso bem como do nosso mal. Para Ele, não há filhos ilegítimos nem de sangue azul; para todos é Pai; todos, iguais em dignidade, são herdeiros da vida eterna.

Assim como não se constrói uma casa nas nossas cidades e aldeias, antes de ser devidamente desenhada e projetada, nenhuma vida vem a este mundo sem que Deus tenha traçado para ela um projeto, sem que Ele tenha desenhado um plano.

Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e a dar fruto, e fruto que permaneça Jo 15, 16 - Não somos, portanto, nós que desenhamos o nosso destino; estamos chamados a ser uma casa construída sobre a rocha, se ouvirmos a palavra, ou seja, se conhecermos o plano que diz respeito à nossa vida e o pusermos em prática, se o executarmos tal e qual ele está desenhado.

Como não somos proprietários da nossa vida, também não somos os seus arquitetos, mas sim os seus pedreiros ou mestres-de-obras. O arquiteto de tudo e de todos, o criador, é Deus; o desenho, o projeto, ou plano da nossa vida está com ele, para o conhecermos temos de o consultar periodicamente, à medida que vamos construindo a nossa vida, a nossa casa.

O construtor que não consulta o arquiteto periodicamente, corre o risco de construir algo que não está de acordo com o projeto. Como é embaraçoso sempre que isto acontece nas nossas cidades, casas às quais não é dada a autorização para serem habitadas, chegando mesmo a ser destruídas porque não foram edificadas em conformidade com o desenho. Pior embaraço é apresentar-se diante de Deus com uma vida vivida contra a sua vontade. A consulta periódica pela qual vamos conhecendo a vontade de Deus a nosso respeito chama-se oração. Por isso, no quadro do religioso consagrado, ela é 50% da sua vida, conforme a regra de Ora ed Labora.

A opção fundamental como compromisso
A opção fundamental é uma decisão que se toma sobre o conjunto da nossa vida, é o objetivo, a meta do nosso viver, que dá sentido, cor e sabor a todos e a cada um dos dias da nossa vida. É a chama que é mantida pelo combustível da nossa vida, energia e tempo. É o ponto de apoio da alavanca que levanta o mundo, no princípio de Arquimedes. É a motivação, a inspiração que reúne todos os nossos recursos e os coloca ao serviço de uma meta, de um alvo por nós escolhido.

A vida é feita de muitas opções e decisões; são elas que dão cor, sabor, aroma e sentido à nossa vida. Estas pequenas opções geralmente referem-se a um ou mais aspetos da nossa vida; podem afetar-nos muito ou pouco, mas não chegam a afetar o conjunto da nossa vida. A opção fundamental é a decisão das decisões, a opção mestra, a mãe de todas as opções porque se refere a toda a vida presente e futura. Na maior parte das vezes, é irreversível, é a razão do nosso viver, é a causa que vamos alimentar com o nosso tempo e energia; é a boca para a qual nós somos o pão.

A causa, ou opção fundamental, que Nelson Mandela alimentou com a sua vida foi o fim do apartheid na África do Sul; para Beethoven foi a música; para Picasso, a pintura; para Gandhi, a independência da Índia de uma forma não violenta; para uns pais são os filhos; para os professores são os alunos; para os médicos são os doentes…. Mais que uma profissão, a vida é uma missão.

Não há vida sem compromisso
Vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido. Dalai Lama

Quando chega o momento para escolher a nossa opção fundamental, estamos na encruzilhada da nossa vida, ou como se diz atualmente na Europa, estamos na rotunda da nossa vida. Não podemos estar aí para sempre, nem por mais tempo do que é adequado. Frequentemente, quando permanecemos demasiado tempo indecisos, a vida ou o Estado acaba por decidir por nós, como acontece em alguns países a respeito das uniões de facto dos jovens: depois de um tempo, o Estado considera-os casados. Em Lisboa existe até uma rotunda chamada “Rotunda do Relógio”. Enquanto permanecemos indecisos, o tempo passa e algumas oportunidades não aparecem segunda vez na vida.

"I want to keep all my options open"– Costumava eu ouvir dizer aos jovens nos Estados Unidos e no Canadá. Durante a infância e a primeira juventude, de facto, tudo está em aberto. Manter todas as opções em aberto seria como ser uma estátua no centro de um cruzamento ou andar à roda numa rotunda, como um burro à nora. Seria estar vivo sem viver e morrer sem nunca ter vivido.

Obediência é fidelidade ao nosso compromisso
Como devemos obediência à nossa natureza fisiológica, devemos obediência também à nossa natureza sobrenatural, que é nossa a vocação ou a nossa opção fundamental, como fez Jesus. Todo o nosso tempo e energias devem ser dedicados à vocação que escolhemos.

Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não é apto para o Reino de Deus (Lucas 9, 62). Obediência é sermos fiéis aos compromissos assumidos, ao que Deus nos chamou a fazer, àquilo a que decidimos dedicar as nossas vidas. O amor leva ao compromisso matrimonial, mas depois, é este compromisso que guarda e nutre o amor.

A alternativa à obediência como fidelidade ao compromisso que escolhemos livremente, e que consta do cultivo de um valor ou causa humana orientada para o bem comum, seria não escolher, mantendo todas as opções abertas, acampar num cruzamento, não investindo nem comprometendo o nosso tempo e energias num projeto, como fez o servo néscio, na parábola dos talentos, que escondeu o talento recebido.

É certo que seríamos livres, mas um dia, perto do fim das nossas vidas ao olhar para trás, ficaríamos com a impressão de nunca ter vivido, pois não teríamos escrito nenhuma história e teríamos gasto o tempo e as energias, em futilidades e em mantermo-nos vivos.

Mais que sobreviver, a vida humana é implicar, comprometer o nosso tempo e energia num projeto de utilidade social. O que é bom para a comunidade é bom para nós. Quando não somos úteis aos outros somos inúteis até para nós mesmos; a nossa vida só será significativa para nós se for significativa para os outros.

Conclusão: Voto de pobreza é o “ter” ao serviço do “ser”; voto de castidade é a necessidade de amar e ser amado ao serviço da fraternidade universal; voto de obediência é a vontade pessoal ao serviço do bem comum.

Pe. Jorge Amaro, IMC







 

1 de novembro de 2021

3 Igrejas uma religião: Católica - Ortodoxa(S) - Protestante(S)

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Muitas são as razões pelas quais a Igreja que Cristo fundou se dividiu em três confissões diferentes. Há razões históricas, políticas, culturais e até geográficas. Na Europa, onde todas elas nasceram, podemos distribuir estas diferentes confissões segundo os quatro pontos cardeais. O Norte da Europa é protestante, o Sul é católico; o Oriente é ortodoxo, o Ocidente é católico. O parâmetro continua a ser verdadeiro no continente americano. O Norte é tradicionalmente protestante, tal como os Estados Unidos e Canadá, à exceção do Quebeque, o Sul é católico, desde o México até à Terra de Fogo.

No título deste texto coloco a Igreja católica no singular, a ortodoxa e protestante no plural, para sublinhar o facto de que não existe uma só Igreja ortodoxa ou protestante, mas muitas. No caso das ortodoxas, onde existem, é uma por cada país com muito pouca comunhão entre elas, se acaso existir alguma.

A palavra ortodoxa não deixa de ser um anacronismo que, quando surgiu, queria significar que era verdadeira; se tivesse permanecido unida, ou seja, se só tivéssemos uma Igreja ortodoxa, poderia ainda usar o nome, mas como existem várias, nenhuma delas pode dizer que é a verdadeira, pois uma das caraterísticas da verdade é ser singular.

No caso das protestantes, faz sentido que sejam muitas pois muitos podem ser os protestos; algumas das de tradição anglicana seguem a linha nacionalista; quanto às restantes, são muitas em cada país, bem como as seitas derivadas destas. Não existe qualquer tipo de comunhão entre as Igrejas e seitas protestantes; a única coisa que têm em comum é o velado “ódio” pela Igreja católica.

Em contraposição com a pluralidade das Igrejas ortodoxas e protestantes, a Igreja católica é singular: tem-se mantido como uma só ao longo do tempo e do espaço cultural e geográfico. Existe apenas um catolicismo que se mantém idêntico e inalterável, fiel a si mesmo, em todos os tempos, em todos os lugares e espaços geográficos e culturais, em todas as línguas, povos e nações.

Embora designe hoje uma Igreja que existe em contraposição com as ortodoxas e as protestantes, o termo “católica” não nasceu do confronto com as outras confissões cristãs. Antes da divisão, a Igreja já se chamava católica.

Onde o bispo está presente, aí está também a Igreja católica (Carta aos cristãos de Esmirna 8, 2, AD 150)

Portanto, a Igreja não se fez chamar católica para se diferenciar das Igrejas protestantes e ortodoxas. A designação “católica” foi atribuída à Igreja no ano 150 pelo Bispo Santo Inácio de Antioquia, devido à sua vocação de universalidade. Assim, ainda mal tinha começado o século II, numa época em que ainda não existiam divisões, já o nome da Igreja católica estava em uso, para designar o nome da única Igreja que existia naquele tempo, a que Cristo tinha fundado.

O nome vulgarizou-se depressa por corresponder à verdade. O termo católico significa universal, e quando era empregado naqueles primeiros tempos por Santo Inácio de Antioquia e S. Policarpo de Esmirna, referia-se à Igreja que já estava presente em toda a parte.

O termo “católica”, além de significar que era universal e internacional, significava, já naquele tempo, que era para todos e não para uma etnia, uma casta ou elite de pessoas especialmente iniciadas, como acontecia por exemplo com o judaísmo.

Católica porque possui a plenitude dos meios de salvação, destinada a ser universal no tempo e no espaço, tal como o seu fundador, Cristo, nos prometeu: “(…) sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos…” (Mateus 28, 20).

Antes de descrevermos a história da cisão e identidade de cada uma das confissões, convém dizer uma palavra sobre a génese e identidade do Cristianismo como religião entre outras religiões, em especial relativamente à que historicamente se lhe contrapôs, a religião muçulmana e, ainda antes disto, uma palavra sobre a noção de religião e para que serve.

Para que serve a religião?
Há cada vez menos pessoas religiosas. Será que a religião não serve para nada? Aparentemente, não tem uma utilidade prática no dia a dia do homem moderno atual. Porém, as estatísticas revelam que as pessoas crentes e com alguma prática religiosa, são em geral mais felizes e estão animicamente melhor preparadas para o infortúnio.

A religião é uma chamada à autotranscendência
Os antigos à noite olhavam para as estrelas e isso elevava o seu pensamento para além dos afazeres e preocupações do dia-a-dia; um olhar mais além de si mesmos e do mundo, para a transcendência, levava naturalmente a uma maior autotranscendência, o que fazia com que os homens fossem mais espirituais e menos materialistas.

Esta autotranscendência incluía uma metanoia, uma mudança, uma conversão, o ver a vida como progresso espiritual e não só material. Para muitos que vivem na pura mundanidade, o progresso é ser cada vez mais ricos. Para o homem religioso, o progresso é ser cada vez melhor, mais humano mais generoso, conquistar terreno aos defeitos, transformando-os em virtudes à luz do evangelho.

Desafortunadamente, nestes tempos modernos, os homens olham à noite para a televisão em vez de olharem para as estrelas. Esta, nas horas de maior audiência, o chamado horário nobre, apresenta os programas menos nobres. Olhar para a TV nestes tempos tem o efeito contrário do de olhar para as estrelas, porque nos imiscui mais e mais no materialismo consumista.

Ciência versus religião
Os que vivem instalados na pura mundanidade, argumentam que a religião, como teoria geral da vida e do universo, explica cada vez menos, ao passo que a ciência explica cada vez mais. Muitos até fizeram da ciência a nova religião, na fé de que ela explicará um dia tudo e erradicará a religião por completo.

Tal dia nunca acontecerá. O mistério não só envolve a identidade de Deus, mas também a do Homem, do Universo e de tudo o que nele está contido. No campo de cada ciência, o que sabemos continua a ser bem pouco do que falta saber. Não sabemos tudo acerca da biologia, da astronomia, da física, da mineralogia, ou de qualquer outra ciência positiva ou humana. Acredito que, por mais que saibamos, nunca saberemos tudo. Só Deus sabe tudo acerca de tudo. 


A ciência de facto explica muitas coisas, mas não explica o mais importante: diz-nos que, o mundo começou com um “Big Bang” mas não nos diz quem provocou essa grande explosão, ou o que havia antes dela; diz-nos que, desde essa grande explosão, o mundo continua em expansão e vai expandir-se até gastar toda a sua energia e acabar, mas não nos diz o que há para além do fim do mundo. Por fim, acima de tudo, não nos diz que sentido tem a vida, para que existimos, ou por que existimos entre o “Big Bang” e o fim do mundo.

Técnica versus espiritualidade e ética
A ciência é a teoria geral de como as coisas funcionam, a tecnologia é a sua aplicação prática em máquinas, eletrodomésticos e outras aplicações que fazem com que a vida humana no plano material seja mais fácil, confortável e aprazível.

Tal como a ciência, a religião é também a teoria geral que explica o porquê das coisas, a espiritualidade é a sua aplicação prática em técnicas de meditação e oração, exercícios psicológicos de autoconsciência, rituais, liturgias, sacramentos que contribuem para o bem espiritual da pessoa como indivíduo. A ética visa o bem-estar da mesma pessoa como ser social e parte integrante de uma comunidade.

A ciência diz-nos o como, a técnica o para quê; só a religião nos diz o porquê e só a espiritualidade nos faz mais humanos e nos descobre a felicidade, pois esta é feita mais de alegrias que de prazeres físicos.

O Cristianismo como plenitude da verdade
Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo. Hebreus 1, 1-2

Está hoje muito disseminada a ideia de que todas as religiões são iguais e valem o mesmo; para os não crentes todas são más; para os crentes todas são boas e levam à salvação; a palavra de ordem é que cada um escolha a que mais lhe convém.

É certo que todas as religiões adoram o mesmo Deus e visam humanizar o Homem. Por isso, a Igreja que já não se apresenta ao mundo como única tábua de salvação e reconhece em todas as religiões “semina verbum” pedaços fragmentados de verdade. Há, portanto, salvação sem Igreja, mas não pode haver salvação sem Cristo porque Ele, sendo Deus feito homem, é a verdade plena e, portanto, válida para todo o tempo e lugar.

À semelhança dos profetas do Antigo Testamento, os fundadores de todas as religiões, foram descortinadores da vontade de Deus e dos anseios do povo num determinado momento da sua história, liderando-o pelo caminho certo.

Cristo, mais que um profeta, ou seja, o Homem certo para um momento concreto, é o Homem certo para todo o tempo e lugar. Porque Ele, fundamentalmente, não veio fundar uma nova religião, mas sim ensinar o homem a ser homem.

Se, como observadores imparciais, compararmos as narrativas das distintas religiões, não podemos deixar de concordar que o Novo Testamento da Bíblia é a narrativa mais bonita, mais profunda e mais plena de humanidade de todos os tempos. Quer o mundo agnóstico reconheça ou não, o Evangelho é a singular narrativa do dever ser do ser humano. É o imperativo moral que melhor se adapta à natureza humana. Não existe em nenhuma outra narrativa religiosa mais humanidade que aquela que existe no Evangelho. O Evangelho contém o paradigma, o padrão da humanidade.

Como Cristo não é um profeta mais, em relação às outras religiões, o cristianismo representa um salto qualitativo e, desta forma, todas as religiões são para o cristianismo o que o Antigo Testamento da Bíblia é para o Novo Testamento.

Como Cristo, Deus feito homem, encarnou em vida o modelo mais perfeito de humanidade, Ele é a referência do ser humano; todo o que busca e se esforça por ser um homem autêntico, seja qual for o seu credo ou a sua religião, sem ter que professar a fé cristã, é com Cristo que tem de se comparar e com mais ninguém; é com Cristo que se tem de medir pois ele é o metro padrão, o paradigma o modelo, pois em ninguém mais se encontra tanta humanidade; o único caminho, verdade e vida.

Cristianismo e Islão
Tomemos como exemplo o Islão que é a religião com mais seguidores depois da cristã e com a qual chegou a vias de facto quando se viu atacado na Europa e nos lugares santos cristãos. Do ponto de vista do cristianismo, o Islão enquanto religião abraâmica, é uma versão do judaísmo ao trocar o messianismo hebraico por um último profeta, Maomé, que já veio. Há inconsistências na religião muçulmana que a faz adversa à razão; quero assinalar apenas três:

O último profeta - Se a humanidade viver mais 10 000 ou 20 000 anos, que sentido faz que o último tenha vindo no ano 524? Mais mudanças sofreu o mundo e a humanidade desde o ano 524 que em todos os milhões de anos anteriores; por que motivo então anteriormente os profetas se sucediam uns aos outros com frequência e depois do ano 524 já não são precisos mais?

No caso do Cristianismo, mesmo que a humanidade viva até ao ano 20 000, faz sentido que a revelação tenha acontecido no ano zero. Como explica o autor da carta aos Hebreus, no texto acima citado, o enviado não é, quantitativamente mais um profeta, mas sim qualitativamente o próprio Deus que vem viver entre nós.

Há aqui um salto qualitativo. Os profetas trazem mensagens para um tempo, a palavra de Deus é eterna para todos os tempos e lugares, porque Deus não precisa de falar duas vezes. Por outro lado, Cristo não é só uma palavra proferida, é uma palavra vivida e só se vive uma vez. Deus só pode encarnar uma vez, profetas houve muitos antes de Cristo e muitos tem havido e haverá depois d’Ele.

Maria, mãe e virgem - Muitos muçulmanos podem convenientemente querer esquecer que quando Maomé voltou para Meca, deu ordens para que todas as estátuas de ídolos fossem destruídas, mas ele mesmo correu para abraçar e proteger com o próprio corpo a estátua da Virgem Maria com o seu filho Jesus ao colo. O Islão atual, para marcar as diferenças com o cristianismo, ignora estes factos, mas o certo é que, até para a fé muçulmana, é o profeta Isa, Jesus, o filho da Virgem Maria, que vai voltar no último dia para julgar os vivos e os mortos.

Se para a fé muçulmana, como para nós, Maria, a mãe de Jesus é virgem, quem é o pai de Jesus? É óbvio que não pode ser José, o carpinteiro, pois se é ele, Maria não seria virgem. Por outro lado, se não é ele o pai, a Conceção de Jesus não pode ter sido natural e o pai não pode ter sido humano; se não é humano, então tem de ser obra de Deus e se é obra de Deus então Deus tem um Filho e não é como o judaísmo o concebe, um Deus solitário, mas sim como o concebe o cristianismo e como nos revelou Jesus Cristo, um Deus de amor, família, comunidade.

O monoteísmo absoluto – O Islão herdou o monoteísmo simples dos hebreus. Por isso, tanto judeus como muçulmanos, não têm forma de fundamentar teologicamente que o homem é feito à imagem e semelhança de Deus. Se Deus é amor e o amor que não sai fora de si mesmo é egocentrismo, Deus é mais que um, Deus é uma família – Pai, Filho e Espírito Santo, que em si mesmo aponta para a natureza da família humana: pai, mãe e filho(a).

Deus é uno e trino, tal como uma família humana está chamada a ser uma unidade de três pessoas, onde a existência de uma só não é possível sem a existência das outras duas; um homem não é pai sem ter uma mulher e um filho(a); uma mulher não é mãe sem ter um filho(a) e um marido; e um filho(a) não existe por si mesmo sem ter um pai e uma mãe.

Como Cristo é o modelo para a vida humana individual, a Santíssima Trindade é o modelo para a vida humana social: um modelo de paz, harmonia e amor. O judaísmo e Islão carecem de modelos ou pontos de referência teológicos para a vida em família e em sociedade, concebendo a Deus como um grande solitário.

Génese e essência do cristianismo
O cristianismo como religião tem a sua origem no ministério de Jesus de Nazaré, no primeiro século, nas províncias romanas da Galileia e da Judeia. Jesus foi visto pelos seus contemporâneos como um profeta poderoso em palavras e em obras (Lucas 24, 19); profeta porque era considerado com vindo de parte de Deus, em palavras porque era um grande orador, um rabino que por todos era tratado por mestre, em obras porque era um famoso taumaturgo que restaurou a saúde a muita gente que sofria de toda a classe de enfermidades físicas, psicológicas e morais.

No plano religioso – Jesus com a frase tantas vezes repetida, “Ouvistes o que foi dito aos antigos na lei de Moisés… mas eu digo-vos…” (Mateus 5, 21-48) Jesus contrapôs-se a Moisés, apresentando-se como o novo legislador com uma lei moralmente superior à anterior.

Substituiu os sacrifícios no templo como meio de obter de Deus o perdão dos pecados, por uma simples declaração, “os teus pecados são-te perdoados”, (Lucas 7 48). E provou em frente de todos que tinha o poder de perdoar os pecados (Mateus 9, 5).

Também afirmou que Ele e Deus Pai são um, (João 10, 30) que Ele é o representante de Deus na terra, quem o vê a Ele vê o Pai (João 14, 9). Ele é o único intercessor entre Deus e os homens e que ninguém vai ao Pai senão por Ele (João 14, 6). Assim se conclui que não há salvação fora de Cristo.

No plano escatológico – Jesus apresenta-se como filho de David, o messias que estava para vir e que os judeus esperavam. Porém, Ele é muito mais um Messias universalista à maneira de Isaías e não nacionalista como Elias, que não só reúne todas as tribos de Israel num Reino Davídico, como reúne todos os povos num só banquete, como sonhava Isaías 25, 6.

No plano individual - Jesus apresentou-se aos seus contemporâneos como paradigma de humanidade, como o único Caminho, Verdade e Vida (João 14, 6). Jesus é uma referência de humanidade, Ele é o melhor conhecedor da natureza humana e o seu caminho, a sua verdade, a sua maneira de viver a vida são os únicos que levam à felicidade e à autorrealização de todas as potencialidades que existem em nós. Não existe, no entender de Jesus, uma alternativa igualmente válida a si mesmo. Como Ele mesmo diz, “Quem não recolhe comigo dispersa” (Mateus 12, 30).

No plano social – Jesus apresenta uma alternativa a esta sociedade: o Reino de Deus. E disse que este já está no meio de nós com a sua vinda; prova disso são as obras que realiza (Mateus 12, 28). Definido na oração que Jesus ensinou como o lugar onde a vontade de Deus se faz na terra como se faz no céu, o Reino de Deus é uma sociedade onde reina a justiça, pois não há pobres nem ricos, e a paz, pois ao serem amados os inimigos tanto como os amigos, não há razão para violência nem agressividade.

Excetuando os seus discípulos, Jesus encontrou uma forte oposição, sobretudo por parte dos líderes religiosos de Israel. Estes encarregaram-se de aliciar o povo e enganar as autoridades romanas para que Jesus fosse condenado como um agitador político, o que aconteceu por volta do ano 30-33 AD.

Se depois da sua morte nada tivesse acontecido, o seu nome ficaria inscrito tanto na lista de profetas, como na dos falsos messias e agitadores políticos contrários à colonização de Roma. Tal não aconteceu: os seus discípulos testemunharam que O viram vivo depois da sua morte. O seu testemunho era tão veemente que estavam dispostos a selá-lo com a própria morte como o mestre.

Como base na Ressurreição de Jesus, os apóstolos começaram um longo trabalho de reinterpretação das escrituras, do Antigo Testamento, assim como de toda a vida, palavras e obras do mestre, tal como Ele próprio tinha feito com os discípulos de Emaús. Parte desta reinterpretação já se encontra nos evangelhos sobretudo nos mais tardios. A outra é reflexão da Igreja sobre a identidade de Jesus de Nazaré, o que levou 5 séculos e vários concílios a ser definida.

A Igreja, ou o cristianismo nos primeiros séculos da sua existência
Antes do Concílio de Niceia, à era apostólica seguiu-se a era dos padres da Igreja: Inácio de Antioquia, Policarpo, Justino, Ireneu, Tertuliano, Clemente de Alexandria e Orígenes, helenistas cultos que trataram de divisar a verdadeira natureza de Jesus, assim como do mistério da Santíssima Trindade.

Como é natural, “cada cabeça, sua sentença”, surgiram várias teorias sobre estes dois temas, a mais importante das quais foi o Arianismo que negava a divindade de Jesus. Esta heresia foi condenada pelo primeiro Concílio de Niceia (325) e pelo primeiro de Constantinopla (381) e assim se produziu o credo de Niceia. No ano 380, com o Édito de Tessalónica, o cristianismo trinitário transformou-se na religião oficial do império romano.

Quando a identidade de Jesus já estava mais ou menos clara, ao buscar-se a clarificação da identidade de Maria, sua mãe, reabriu-se o tema da identidade de Jesus outra vez. Antes do Concílio de Éfeso, alguns já afirmavam que Maria era mãe de Deus; porém, Nestório, o patriarca de Constantinopla achava que Maria só podia ser mãe da parte humana de Jesus.

Convocou-se o Concílio de Éfeso que define Maria como mãe do todo e indivisível Jesus nas suas duas naturezas; Nestório foi apelidado de herege e deixou a Igreja. Porém, pelo lugar que ocupava, muitas igrejas do Oriente separaram-se de Roma.

Depois da morte de Cirilo de Alexandria, o forte oponente de Nestório que entendia que as duas naturezas de Cristo não estavam unidas na mesma pessoa, surgiu um monge chamado Eutíquio que ao combater o nestorianismo nas suas fileiras, acabou por afirmar uma doutrina contrária ao arianismo, o docetismo. Segunda esta corrente, se pelo arianismo Cristo não possuía natureza divina, no docetismo não possuía natureza humana: era humano só na aparência.

Foi convocado o Concílio de Calcedónia, no ano 451 para dirimir a questão e este definiu mais uma vez as duas naturezas humana e divina unidas na mesma pessoa de Jesus, pelo que a Igreja de Alexandria, que se transformou na Igreja Copta do Egito, Etiópia e Eritreia se separou do resto da Igreja.

Por fim, em julho de 1054 dá-se o grande cisma da Igreja coincidente com a divisão do império romano entre o oriente, com sede em Constantinopla, e o ocidente, com sede em Roma. A última gota nesta polémica deu-se quando, em 1053, as Igrejas gregas do sul da Itália foram obrigadas a latinizar-se. Em retaliação, as Igrejas latinas de Constantinopla foram fechadas. Outras disputas surgiram, como a celebração da eucaristia com pão levedado ou não levedado, e o primado do Papa sobre todas as Igrejas.

IGREJAS ORTODOXAS
A Igreja Ortodoxa é considerada a herdeira de todas as comunidades cristãs na metade oriental do Mediterrâneo. Posteriormente, foi-se espalhando por toda a Europa oriental graças ao prestígio do império bizantino e ao trabalho dos missionários.

Hoje há cerca de 300 milhões de cristãos ortodoxos membros de 14 Igrejas nacionais autocéfalas. A Igreja ortodoxa inclui Igrejas ortodoxas da Rússia, Roménia, Grécia, Sérvia, Bulgária, Bielorrússia, Moldávia, Geórgia, Macedónia e Chipre, entre outras. Vale a pena referir que, para a maioria dos cristãos, os ortodoxos residem na Europa oriental, na Rússia, no Médio Oriente e nos Balcãs.

As primeiras dioceses ou patriarcados da Igreja
O cristianismo difundiu-se rapidamente por todo o império romano, graças à facilidade de viajar nas estradas romanas e à Pax Romana que o império estabeleceu e garantiu. Como os primeiros cristãos eram judeus, fora de Israel, as primeiras comunidades cristãs também se formaram onde havia muitos judeus.

Até o próprio Paulo nas suas viagens vai onde há judeus e prega nas suas sinagogas. Estes primeiros núcleos de cristãos foram mais tarde chamados de dioceses e, ainda mais posteriormente, patriarcados. Por serem cinco, estes patriarcados ou dioceses foram também apelidados de pentarquia. Por ordem de importância e estrato no mundo antigo são estas: Roma, Alexandria, Antioquia, Constantinopla, Jerusalém.

Roma – A importância desta cidade no mundo antigo advém primeiro do facto de ser a capital do império romano. No seio da Igreja, era a sede de Pedro e Paulo, pois foi ali que foram martirizados e sepultados. Por estas razões, no universo cristão antigo, antes de qualquer cisma, Roma era considerada pelas outras dioceses ou patriarcados como “primus inter pares”. Convém dizer que nos primeiros séculos da Igreja não existia a ideia do primado de Pedro, no sentido de ter um poder jurídico e executivo sobre as demais Igrejas.

O poder supremo da Igreja não era o sucessor de Pedro, mas sim os concílios ecuménicos que se iam realizando. Do concílio de Constantinopla, no ano 381, surge a ideia de Pentarquia, as cinco sedes mais importantes do cristianismo; nesta lista, Roma aparece em primeiro lugar, sendo-lhe reconhecida a tarefa de ser o centro de comunhão entre as igrejas.  

Alexandria – Juntamente com Roma e Antioquia é uma das sedes mais importantes do cristianismo antigo. Corresponde hoje à Igreja Copta que nasceu do cisma depois do concílio de Calcedónia. Segundo a tradição, foi fundada no ano 42 pelo evangelista S. Marcos. Até ao cisma posterior ao concílio de Calcedónia, era a diocese mais importante a seguir a Roma.

Antioquia – Era a quarta cidade do império romano, a capital do oriente. Foi também provavelmente a primeira comunidade cristã fora de Israel. Aqui nasceu o nome de Igreja católica e aqui os seguidores de Cristo foram pela primeira vez chamados de cristãos. A autoridade eclesiástica desta diocese estendia-se à Cilícia, Mesopotâmia, Síria, Palestina e Chipre, Palestina e Arábia. Pensa-se que foi em Antioquia que nasceu o evangelho de S. Mateus.

Constantinopla – É o quarto patriarcado por ordem de importância no mundo antigo; o patriarca era eleito pelo patriarca de Antioquia. O poder de Constantinopla cresceu depois de Constantino designar aquela cidade como a capital do império do Oriente. Assim, enquanto os outros patriarcados do Oriente foram definhando pelo assolamento dos muçulmanos, Constantinopla cresceu enquanto durou o império de Bizâncio.

Jerusalém – Nascida diretamente da sala de cima onde tinha sido celebrada a primeira Eucaristia, Jerusalém é certamente a primeira comunidade cristã. Teve como líder Tiago, o Menor, irmão do Senhor. Dali partiram os apóstolos para levar a boa nova a outras partes. E ali voltaram para celebrar o primeiro Concílio da Igreja quando ainda eram vivos os apóstolos. Depois aconteceu a revolta dos judeus e a destruição de Jerusalém pelas legiões de Tito. Jerusalém como patriarcado nasceu apenas depois do Concílio de Calcedónia, no ano 451. Jerusalém é a primeira comunidade cristã, mas não o primeiro patriarcado.

Separação lenta e progressiva
A separação da Igreja oriental e ocidental em 1054 foi o sancionamento de uma separação que já existia e que ia crescendo com a passagem dos séculos. Vejamos alguns dos fatores, culturais, políticos e teológicos que foram as causas remotas da separação da igreja oriental da ocidental.

Fatores culturais – A língua é a alma de uma cultura; no oriente mais culto, falava-se o grego; todo o Novo Testamento foi originalmente escrito em grego. No ocidente mais ignorante, falava-se o latim, a língua-mãe dos romanos.

Fatores políticos – A transferência da capital do império da cidade de Roma para Constantinopla, no século IV.

Fatores teológicos – O ocidente modificou o credo de Niceia, dizendo que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, não só do Pai como dizia originalmente o credo de Niceia. Roma acusa os ortodoxos de serem monofisistas, tanto arianos como docetistas.

Os Patriarcados ortodoxos
A Igreja ortodoxa, está dividida em patriarcados entre os quais há igualdade. O patriarcado de Constantinopla, que Bartolomeu ocupa atualmente, é considerado "primus inter pares", o primeiro entre iguais. Por razões históricas, Bartolomeu tem uma certa preeminência sobre todas as igrejas ortodoxas, mas não tem jurisdição sobre elas. Além disso, o seu patriarcado, sediado em Istambul e com cerca de 10 000 fiéis, não tem o peso do de Moscovo que, com Kiril ao leme, conta com cerca de 120 dos 300 milhões de crentes ortodoxos.

Depois destes que são os mais importantes, estão os históricos de Antioquia e Alexandria e tantos outros, como dissemos são 14 as igrejas ortodoxas e cada uma delas tem um patriarca à cabeça. O termo patriarca é usado nas igrejas orientais, mas nem todos os patriarcas são ortodoxos. Há alguns patriarcas latinos no oriente e até no ocidente, como o de Lisboa e o de Veneza.

Os últimos esforços de ecumenismo
Ao sair à varanda da Praça de São Pedro, o Papa recém-eleito em 13 de março de 2013, Francisco, simplesmente se apresentou como "Bispo de Roma". Isto agradou aos ortodoxos que entendem a Igreja como um conjunto de dioceses autónomas, não centralizadas em Roma. Por isso, pela primeira vez na História, o Patriarca de Constantinopla participou na investidura de Francisco como Papa.

O facto não passou desapercebido em Moscovo pelo que, em novembro de 2014, o Papa estendeu a mão a Kiril: "Irei onde quiser, ligue-me e eu vou”. A 12 de fevereiro de 2016, o Papa e o patriarca da Igreja ortodoxa russa encontram-se pela primeira vez em quase mil anos.

No mundo globalizado e em forte intercomunicação, as diferenças culturais e linguísticas já não são importantes; as teológicas ainda podem ser um pouco, mas, com as Igrejas ortodoxas, é muito mais o que nos une que o que nos divide; os diferentes ritos e formas de celebrar a eucaristia também não são um problema pois há católicos de rito bizantino.

O grande problema é o primado de Pedro que, de alguma forma, a Igreja ortodoxa aceita e não pode negar, como querido por Jesus. Na aplicação prática deste primado que não foi especificada por Jesus, reside o problema.

O problema de autoridade existe já no seio das Igrejas ortodoxas, pois não têm uma pessoa que fale pela ortodoxia. A divisão entre as diferentes Igrejas ortodoxas talvez seja o maior problema da união com Roma. Levaram 55 anos a convocar um sínodo (a que na Igreja católica se chama concílio) que finalmente se celebrou na ilha de Creta em junho de 2016. Esta deveria ter sido a maior reunião de líderes ortodoxos desde o ano 787 AD e, no entanto, quatro denominações ortodoxas, entre elas o Patriarcado de Moscovo que tem o maior número em fiéis, não participaram. 


IGREJA CATÓLICA
Depois da partição em duas da Igreja de Cristo, a Igreja católica dedicou-se a evangelizar o ocidente, a Ortodoxa o Oriente, a parte oriental da Europa e a Rússia. Esta última nunca se aventurou no resto da Ásia, Mongólia, China e sul da Ásia, Índia. Todos estes territórios foram mais tarde evangelizados pela Igreja Católica ocidental por via marítima, assim como todo o continente americano e africano. Mais evangelizadora ou mais proselitista, a Igreja católica cresceu até aos atuais 1 200 milhares de milhões, o que, de alguma forma, dificulta o ecumenismo com os ortodoxos.

Temos vindo a falar na Igreja católica no confronto com as ortodoxas e continuaremos a falar dela no confronto com as Igrejas protestantes. Por isso, não me vou demorar muito na descrição desta Igreja que, mesmo na mais radical ortodoxia, goza de um certo primado honorífico, embora não legislativo nem executivo.

Do ponto de vista dos católicos, os ortodoxos abandonaram a Igreja; do ponto de vista dos ortodoxos, foram os católicos que a abandonaram. Esta ideia pode ser válida no caso da cisão protestante, mas não no caso da cisão com a ortodoxia. Como historicamente o Papa Leão IX excomungou o patriarca ortodoxo Miguel Cerulário e este excomungou o Papa, o que se deu foi uma partição em duas da Igreja que Cristo fundou, e não uma que saiu da outra.

A única questão relevante para este artigo é a que divide não só a Igreja católica da ortodoxa, mas também da protestante: o primado de Pedro, o seu significado histórico, a interpretação e aplicação presente e futura do cristianismo como religião universal.

O primado de Pedro nos evangelhos e nos Atos dos Apóstolos
Pretender negar a primazia de Pedro sobre os demais apóstolos é colocar de lado um elevado número de passagens dos evangelhos, dos Atos dos Apóstolos e até das cartas paulinas. As negações dos teólogos, tanto ortodoxos como protestantes, em relação ao primado de Pedro tal como nos é apresentado na Palavra de Deus, não pode não ser ideológica, ou seja, não pode pretender justificar a autocefalia ortodoxa e a acefalia protestante.

Nos Evangelhos, Jesus destaca a Pedro e confere-lhe autoridade
•    É um dos primeiros a ser chamado por Jesus: Marcos 1, 16; João 1, 40-42
•    É sempre o primeiro da lista dos 12: Mateus 10, 2
•    Faz parte do círculo íntimo de Jesus: Marcos 5, 37; 9, 12; 13, 3; 14, 33
•    Hospeda-se na casa de Pedro: Marcos, 1,29
•    A sogra de Pedro é o único familiar de apóstolo que ele cura: Lucas 4, 38-40
•    Sobe à barca de Pedro e a partir dela prega à multidão no lago: Lucas 5, 1-11
•    Caminha sobre a água, embora a falta de fé quase o tenha afundado: Mateus 14,28
•    Foi ele o primeiro a ver em Jesus o Messias: Mateus 16, 16; Lucas 9, 20
•    Sobre a rocha de Pedro é edificada a Igreja: Mateus 16,18
•    A Pedro foram dadas as chaves do reino: Mateus 16, 19
•    Porta-voz do grupo em muitas ocasiões: Mateus 16,22; 17,24; 18, 21; João
•    Negou a Jesus porque foi o único que o seguiu à distância: Marcos14, 54
•    Jesus diz a Pedro que ampare a fé dos seus irmãos: Lucas 22, 31-62
•    Jesus diz às mulheres que deem a notícia da sua Ressurreição a Pedro: Marcos 16,7
•    É um dos que corre ao sepulcro: Lucas 24, 12
•    Jesus aparece a Pedro depois da Ressurreição: Lucas 24, 34
•    Protagonista da pesca milagrosa: João 21, 11
•    Jesus pergunta-lhe se O ama e ordena-lhe que apascente as suas ovelhas: João 21, 15-19

Nos Atos dos Apóstolos, Pedro atua segundo a autoridade que lhe foi conferida por Jesus
•    Pedro fala aos 11 instando-os a elegerem o substituto de Judas: Atos 1,15
•    Prega ao povo como Jesus no dia de Pentecostes e outras ocasiões: Atos 2, 1-36; 3, 12-25; 4,8
•    Cura como Jesus: 3, 1-10
•    Porta-voz dos apóstolos diante do Sinédrio: Atos 4, 19
•    Repreende Ananias, Safira e Simão, o mago: Atos 5, 3-9; 8, 20
•    Recebe do Espírito Santo a inspiração para evangelizar os gentios: Atos 10
•    Preside ao Concílio de Jerusalém onde faz valer a sua inspiração sem a impor: Atos 15, 7

S. Paulo, o maior dos apóstolos, reconhece a autoridade de Pedro
•    Paulo vai a Jerusalém para conhecer a Cefas e fica com ele 15 dias: Gálatas 1, 18-19
•    Paulo confronta Pedro precisamente porque reconhece a sua autoridade: Gálatas 2, 11-13
•    Paulo diz que Jesus primeiro apareceu a Pedro depois aos 12: 1 Coríntios 15, 5
•    Paulo diz que Pedro é evangelizador dos circuncisos e dos incircuncisos: Gálatas 2, 7-8

Até onde pode ser aceite pela Igreja Ortodoxa
Porque Pedro viveu e foi mártir em Roma onde repousam os seus restos mortais, a Igreja ortodoxa aceita que o sucessor de Pedro tenha um primado de honra sobre todas as outras igrejas, mas sem poder jurídico ou executivo. A sua incumbência é ser a cabeça visível da Igreja para manter a sua unidade.

Este seria o valor, tanto para católicos como ortodoxos e protestantes, do sucessor de Pedro como centro visível de unidade, representante de Cristo, cabeça do corpo místico de Cristo que é a Igreja. De alguma forma para o mundo civil, o Papa, mais que outro patriarca ou bispo protestante, é quem verdadeiramente representa a religião cristã, é o seu ex libris.

Como poderia ser vivido?
Se quisermos ser fiéis à tradição da Igreja, teremos de concordar com os ortodoxos que defendem que a autoridade máxima da Igreja desde o princípio é o concílio. Os primeiros dogmas da Igreja nasceram nos Concílios e só um concílio, não um Papa, tem o direito de definir um dogma como verdade intemporal da fé. Se assim é, temo que a infalibilidade hoje conferida ao sucessor de Pedro deveria ser transferida para os concílios ecuménicos.

O poder de monarca absoluto da Igreja vai contra a tradição da Igreja e não é conveniente para ortodoxos, protestantes ou católicos. À luz da divisão dos poderes nas democracias ocidentais em Legislativo – Jurídico – Executivo, entendemos que o poder legislativo deveria pertencer exclusivamente aos Concílios Ecuménicos. O Papa ficaria com os outros dois, num âmbito de uma maior colegialidade e autonomia das dioceses.

IGREJAS PROTESTANTES
Uma união de pessoas, um grupo, uma empresa, uma instituição serão sempre uma unidade na diversidade. A diversidade psicológica dos indivíduos ou a diversidade cultural das sociedades é inegável. Apesar do império romano se ter partido em dois, a Igreja permaneceu unida durante séculos; apesar de o Oriente mais culto falar grego e o Ocidente menos culto falar latim, a Igreja permaneceu unida.

Os fatores políticos e culturais nunca são decisivos nas separações e nos cismas. Como não é possível explicar a II Guerra Mundial sem a pessoa de Hitler, nem a revolução bolchevique sem a pessoa de Lenine, não se pode explicar a partição da Igreja entre o Oriente e o Ocidente sem as personalidades de Leão IX que procurou um poder que não lhe pertencia, segundo a tradição da Igreja, e a retaliação do Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário.

Da mesma forma, o cisma no Ocidente entre o Norte, que se transformou em protestante, e o Sul que permaneceu católico, não se deu nem se daria sem Martinho Lutero. Este era um monge católico que aceitava fundamentalmente toda a doutrina católica, até mesmo os dogmas marianos. As diferenças teológicas não são o móbil do cisma, estas aparecem mais tarde para justificar a existência das novas Igrejas criadas; é o tal narcisismo das pequenas diferenças que muito bem explica Freud psicanaliticamente.

Solus Christus sola fede sola scritura – Não foi seguida nem pelo próprio autor, Lutero. Se considerarmos que a tradição é a vida e reflexão da Igreja ao longo dos tempos, desde a morte e Ressurreição do Senhor, então a tradição não são só os concílios da Igreja, a definição das duas naturezas de Cristo e da natureza trinitária de Deus, que os protestantes aceitam. A mesmíssima Bíblia é filha da tradição, pois não caiu dos céus como acreditam os muçulmanos que o Alcorão caiu, mas surgiu e reflete a vida das comunidades ondes os textos nasceram.

O Antigo Testamento nasce da vida, história e tradição do povo hebreu; o Novo Testamento nasce da vida das primeiras comunidades cristãs. Sem estas, não haveria evangelhos. S. Paulo e os outros apóstolos escrevem a comunidades concretas e, nas suas cartas, respondem aos problemas destas mesmas comunidades.

Como é mais o que nos une, e como o que nos divide é, de alguma forma, circunstancial, e ainda como as razões teológicas que moveram Lutero a dividir a Igreja foram já assimiladas por esta mesma como a justificação pela fé e não pelas obras, não vou fazer nenhum panegírico do que nos divide, pois é mais o que nos une. Quero apenas centrar-me na personalidade de Lutero e compará-la com outro reformista como Francisco de Assis.

Francisco de Assis e Lutero
A reforma de Francisco de Assis tinha como objetivo a santidade, a reforma de Lutero tinha como objetivo a crítica. Henri De Lubac

Francisco e Lutero foram os dois reformadores da Igreja. A reforma de Francisco, devido à sua humildade e paciência para com o Papa e as estruturas corruptas da Igreja, foi aceite; a de Lutero, devido ao seu orgulho e impaciência para com o Papa e as estruturas corruptas da Igreja, foi inicialmente rejeitada, mas o que nela havia de bom foi aceite mais tarde, já no concílio de Trento.
Tanto o Papa Inocêncio III, na época de Francisco, como o Papa Leão X na época de Lutero viviam sumptuosamente rodeados de luxo e corrupção. A humildade de Francisco levou-o a ser paciente e esperar. O Papa rejeitou Francisco e, com desdém, disse-lhe que se fosse deitar com os porcos. Podendo refutar o Papa apelando ao evangelho, e até mesmo puxar dos galões da sua pobreza evangélica em radical contraste com a extravagância da corte papal, Francisco tomou à letra o desdém papal e foi mesmo deitar-se com os porcos.

Francisco não negou a autoridade do Papa como sucessor de Pedro. Pacientemente, seguiu o caminho de Cristo, deixou-se ser incompreendido e caluniado, sabendo que Deus tarde ou cedo o reivindicaria… coisa que Deus sempre faz. Chamado pelo mesmo Papa depois do famoso sonho em que este viu como Francisco sustinha a Igreja que caía em ruínas, apresentou-se sujo e a cheirar mal. Entendeu o Papa que estava perante um Santo que tinha sido obediente até à humilhação e aprovou a sua obra.

Ao contrário de Francisco, Lutero não visitou Roma para a confirmação da sua causa, nem reconheceu a autoridade do Papa como sucessor de Pedro, ou respeitou as estruturas da igreja. De facto, a sua impaciência levou-o a não confiar na providência divina para orientar a Igreja e efetuar as reformas que ele queria, no tempo de Deus e não de acordo com a sua agenda.

Infelizmente, Lutero mostrou-se inflexível. Rejeitou o diálogo e, como o Papa não concordou com ele, rejeitou o papado. No seu orgulho, Lutero não tolerava nenhuma autoridade que não o apoiasse imediatamente e sem questionar. Consequentemente, quando chegou a bula, Lutero queimou-a publicamente e começou a insultar o Papa como sendo o anticristo.

A História mostra que Deus não usa iracundos para conduzir a sua Igreja pelo caminho da paz e retidão. Deus escolhe aqueles que são pequenos, mansos e humildes – pois desses é o Reino dos Céus. Ironia do destino, a Igreja fundada pelo Cordeiro de Deus, manso e humilde de coração, foi por parte do papado, dilacerada por dois leões: Leão IX em 1054, no cisma entre o Oriente e o Ocidente, e Leão X em 1517, entre os protestantes do Norte e os católicos do Sul.

Conclusão: Todo o cristão de boa vontade deseja que a Igreja que Cristo fundou continue unida como nos tempos apostólicos. Decerto que é o que Cristo quer ainda hoje para a sua Igreja. Com a autocefalia ou acefalia das Igrejas ortodoxas, assim como a anarquia das muitas pequenas e divididas Igrejas protestantes, não damos um bom testemunho perante a sociedade civil, nem prestamos um bom serviço ao evangelho.

Não é possível nenhum tipo de unidade sem uma cabeça visível como ponto de referência de todo o cristão. Essa cabeça visível era Pedro nos tempos apostólicos, deve ser o sucessor de Pedro nos nossos tempos. Uma cabeça visível esvaziada de todo o tipo de autoridade, por pequena que seja, é tão insignificante como a rainha de Inglaterra que reina, mas não governa. Nos textos acima citados, vemos que Pedro exercita uma certa autoridade e chega até a repreender Ananias e Safira.

Como houve na História da Igreja pessoas que buscaram a discórdia e a divisão, haja agora pessoas que, reunidas em comissões ecuménicas, possam encontrar a fórmula do primado de Pedro, onde todos os cristãos se revejam, de acordo com a tradição da Igreja.

Pe. Jorge Amaro, IMC