1 de fevereiro de 2024

Cosmovisão, Cultura e Natureza Humana

1 comentário:

Natureza humana, cultura e cosmovisão são conceitos implicitamente ligados, porque cada um deles tem a ver com os outros dois. Procuremos definir primeiro cada um deles individualmente e em separado, para depois ver o que os faz interdependentes entre si.

NATUREZA HUMANA
Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. Génesis 2, 7

A vida no nosso planeta tem uma única origem. Por muito diferentes que nos pareçam hoje as plantas e os animais, todo o ser vivo do nosso planeta tem antepassados comuns. A vida procede de um tronco comum.

O ser humano é um dos 8,7 milhões de seres vivos que habitam este planeta. Pertence ao reino animal, à classe dos mamíferos, ao subgrupo dos primatas ou hominídeos, sendo primo/irmão dos macacos, gorilas e chimpanzés com os quais partilha 98% do ADN. É filho de um pai ainda desconhecido, tendo nascido há 5 milhões de anos na África Oriental, mais propriamente no vale mais profundo e extenso do nosso planeta, o Vale de Rift.

Ao contrário dos outros seres vivos que pouco ou nada evoluíram ao longo de milhões de anos, e viveram e vivem ainda hoje no mesmo habitat, o ser humano evoluiu a ponto de transcender o seu habitat original. Saiu de África há pouco mais de 200 000 anos e colonizou todo o planeta não só em termos geográficos, como também em termos de domínio de todas as outras espécies de seres vivos.

Por que motivo só a nossa espécie evoluiu? Porque nós e só nós somos, no entender de Karl Marx, o momento em que a Natureza ganhou consciência de si mesma. É um mistério que até agora a ciência não conseguiu desvendar. Sabemos que evolutivamente somos descendentes de um primata que, para satisfazer as suas necessidades e sobreviver, começou instintivamente por se adaptar ao meio em que vivia, procurando depois utilizar da melhor maneira os recursos que o meio lhe oferecia. Ao princípio, vivia como os animais em simbiose com a natureza.

No esforço de conhecer o meio em que vivia para melhor se adaptar a ele, o ser humano desenvolveu as suas capacidades cognitivas, a ponto de se apoderar do seu meio ambiente. Assim nasceu o homo sapiens que, mais do que adaptar-se ao meio, procurou adaptar o meio a si.

O que nos define como seres humanos
Os milhões de anos de evolução fizeram de nós humanos, sem deixarmos de ser animais. O biólogo Konrad Lorenz, encontrou inúmeras semelhanças entre o comportamento humano e o comportamento animal. Muitas das nossas reações e decisões perante situações da vida têm mais de animal que de racional.

Ao fim e ao cabo, não perdemos o cérebro reptiliano comum a todos os seres vertebrados, nem o mamífero comum a todos os mamíferos. Estes cérebros são anteriores ao autenticamente humano, o neocórtex e estão, por assim dizer, mais perto do nosso ser, porque o cérebro reptiliano que comanda todas as funções vitais e de sobrevivência está sempre conectado; o mamífero está quase sempre conectado, mas às vezes desconecta-se; o neocórtex está quase sempre parcialmente desconectado. Por isso, para que um comportamento seja autêntica e genuinamente humano, o neocórtex conectado tem de desconectar os outros dois, sobretudo o reptiliano.

Neste sentido, há caraterísticas que parecendo que são exclusivamente nossas, são na verdade comuns aos outros animais próximos de nós na escala evolutiva; a única diferença é que em nós estão mais desenvolvidas. Por exemplo:

- Adquirir conhecimentos e ter a capacidade de os transmitir socialmente, através de alguma forma de linguagem, também outros animais a têm, como a orca. Adaptar-se ao meio e às condições de vida que vão variando, também muitos animais o fazem, como a barata que se defende de todos os venenos que criamos para a matar;

- A vida em sociedade também as formigas, os leões, os patos, os gansos, as abelhas, os elefantes, os chimpanzés a têm. A única diferença é que a nossa é mais complexa e talvez mais democrática, onde a democracia existe;

- Amar os filhos a ponto de dar a vida por eles, por muito nobre que pareça, é algo que temos em comum com qualquer mamífero, é puro instinto materno. O que verdadeiramente temos de único é tudo o que se situa no neocórtex, o maior dos nossos cérebros. Vejamos então o que é exclusivamente humano e nos identifica como tal.

Autoconsciência – cogito ergo sum
Só o ser humano é autoconsciente a partir dos 6 ou 7 anos de idade. A autoconsciência é a divisão do nosso psiquismo em dois, o que nos permite ser observadores e observados, conhecedores e ao mesmo tempo matéria do nosso conhecimento. “Conhece-te a ti mesmo”, gritava Sócrates nos primórdios da filosofia ocidental.

Esta nossa autoconsciência não diz respeito só ao presente. Como a vida humana decorre em três tempos que são sempre interativos, esta autoconsciência estende-se ao passado como memória histórica que nos dá o feedback de quem somos: o conhecimento dos nossos talentos, valores, defeitos e limitações como por exemplo a morte. Só os seres humanos estão cientes da própria finitude, de que um dia morrem e deixam de existir, ao menos no espaço e no tempo.

O conhecimento do passado, de quem realmente somos, é depois utilizado pela nossa razão para se estender ao futuro e programá-lo, usando a capacidade imaginativa e a mente abstrata que só o ser humano tem para se projetar para além do imediato. Certas filosofias do Extremo Oriente exortam-nos a colocar tanto o passado como o futuro de parte. Esquecem-se de que os que vivem num eterno presente, sem passado nem futuro são os animais.

Cogito ergo sum – Penso logo existo. No puro presente em relação com os outros, a sociedade, o meio ambiente físico e geográfico, a autoconsciência, ou seja, a razão funciona como um computador, que analisa, recolhe dados sobre um determinado problema e projeta e arrisca soluções.

Para além da autoconsciência e da razão, a vida humana assenta sobre dois valores: liberdade e igualdade.

Liberdade
Enquanto que todos os animais vivem em simbiose com a Natureza que os regula, governa e guia por intermédio dos instintos, o ser humano é o único animal que se emancipou da Natureza. Liberdade, autonomia, independência são os valores em que assenta a vida humana do indivíduo, da pessoa.  Como dissemos, há outros animais que vivem em sociedade, mas nestas sociedades o indivíduo não existe para si mesmo, é antes escravo da sociedade a que pertence.

O homem é livre em relação aos outros, não é escravo de ninguém nem vive em função de ninguém, mas dele mesmo; é livre em relação ao seu substrato animal, pois tem poder para controlar os seus instintos básicos e adiar a satisfação imediata.

O ser humano é o único que tem a vida nas suas mãos, que tem poder sobre ela para lhe dar um sentido e uma direção. Possui livre arbítrio, vontade própria, que lhe permitem decidir sobre a totalidade da sua vida, assim como sobre cada uma das partes. Pode equivocar-se nas decisões que toma e pode ter de pagar pelas consequências nefastas das suas opções.

Parte da liberdade em relação ao meio, aos outros e a si mesmo, reside na capacidade para se auto transcender; em relação à matéria, por meio do progresso científico e tecnológico; em relação às coisas materiais, desenvolvendo o eu espiritual, tanto na sua relação com Deus como com as coisas e os outros, expressando-se simbolicamente por meio da cultura, arte, música, religião, hábitos, costumes, vestuário, etc.

Igualdade
O ser humano é um ser intrinsecamente social, nasce de uma relação amorosa, cresce e transforma-se num ser humano autêntico apenas se for amado incondicionalmente, e sempre vive como membro de uma família, como parte de uma comunidade, organização ou instituição. Individualmente ou é pai ou mãe, filho ou filha, avô, avó, tia, tio, sobrinho, sobrinha. Não há existência humana para além destas categorias e o facto de pertencer a qualquer uma delas coloca-o numa relação com os outros.

O outro é um outro eu; não um tu, uma entidade externa, estranha, estrangeira, distante, mas sim o meu próximo, tão próximo que é um outro eu, um alter-ego, de onde provém a palavra altruísmo. O amor é o valor mais alto na vida social, viver é amar. A empatia, a misericórdia e a compaixão são o que mantém os indivíduos unidos em grupos.

O que me é devido a mim, é-lhe devido a ele, pois é um ser humano como eu e todos viemos do mesmo tronco comum nascido no Vale do Rift há 5 milhões de anos. A igualdade e a convivência na sociedade assentam no princípio de que os meus direitos são os deveres do meu próximo e os meus deveres são os direitos do meu próximo.

A vida em sociedade faz dos indivíduos cidadãos com direitos e deveres. Nasce o Direto para governar a sociedade, e a ética que discerne o dever ser e define as pautas do comportamento social. A vida em sociedade criou a linguagem escrita e falada para a comunicação entre indivíduos, com o objetivo de trabalhar em equipa e fomentar a união, a paz e a harmonia.

Pode a natureza humana mudar?
Depois, Deus disse: «Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.» Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Génesis 1, 26-27

Fomos criados à imagem e semelhança de Deus e se Deus não muda, a natureza humana também não muda. Se a natureza humana mudasse, Deus teria que encarnar uma e outra vez ao longo da História, em cada uma dessas naturezas humanas em mutação para ser também para essas gerações Caminho, Verdade e Vida. Como a natureza humana não muda, é Deus e a sua Palavra recolhida na Bíblia que inspiram e levam a Deus, tanto os homens que viveram há 2 000 anos como os que viverão daqui 10 000 anos, se ainda existirmos como espécie.

Os valores humanos são prova de que a natureza humana não muda, nem no tempo de geração em geração, nem no espaço entre uma cultura e outra. Os conceitos de justiça, de verdade, de honestidade, fidelidade, amor, compaixão, etc. são invariáveis no tempo em todas as culturas. O sentimento de amor que experimentaram Cleópatra e Marco António é o mesmo que anos mais tarde experimentaram Romeu e Julieta, e experimentam e experimentarão os enamorados em todo o tempo e lugar.

Separados pelo tempo, pelo lugar e pela cultura, o profeta Amós e o Bispo Óscar Romero usaram exatamente a mesma bitola para discernir o que é justo e o que não é. Mahatma Ghandi usou o mesmo conceito de não violência que Jesus usou séculos antes. Os povos do Crescente Fértil construíram pirâmides e ofereceram sacrifícios humanos aos seus deuses. Mas, assim como os sumérios e os egípcios, no crescente fértil, os maias e os astecas na América Central também construíram pirâmides e, no entanto, esses povos nunca souberam da existência um do outro.

A natureza humana, o que o ser humano é essencialmente, não muda. Em filosofia, a essência, o ser não muda; o que muda são os acidentes, as variáveis, as circunstâncias. Pode variar e mudar a nossa compreensão da natureza humana, tal como podemos descobrir em nós talentos que pensávamos que não tínhamos; no entanto, já lá estavam, se bem que nos fossem desconhecidos. Podemos adquirir novas formas ao nos adaptarmos ao meio, por exemplo, perder o rabo porque já não andamos nas árvores, mas o que é essencialmente humano permanece imutável no tempo e no espaço.

CULTURA
Como é que a natureza humana não muda se temos diversidade de culturas e línguas e a língua é considerada como a alma de uma cultura? Dois são os fatores que causaram a diversidade de culturas e línguas ao longo da história da humanidade.

O primeiro foi a ausência de comunicação entre os povos. Pelo mesmo motivo, num futuro cada vez mais globalizado, a diversidade de línguas e culturas deixará de existir ou será muito atenuada. O segundo foi o fator geográfico: diferentes povos habitavam em diferentes latitudes e longitudes, com diferenças climáticas.

A diversidade de culturas e línguas seria então a adaptação dos seres humanos a diferentes topografias geográficas. Por exemplo, não é o mesmo viver na montanha e à beira mar; quanto aos diferentes climas, não é o mesmo viver nos trópicos, com duas estações, e viver numa zona temperada com quatro estações, ou no Ártico.

Os povos indígenas que vivem no Ártico têm inúmeras palavras para dizer “neve”, enquanto que na Etiópia, em África, a mesma palavra designa neve e geada que são duas coisas diferentes. Por outro lado, notamos que as línguas dos povos nórdicos pelo fator frio são mais consonânticas, e a boca mal se abre, e as línguas dos povos tropicais mais vocálicas, fazendo com que a boca se abra completamente.

Também a cor da pele, dos olhos e do cabelo, o formato dos olhos, do nariz, da boca e dos lábios, como já explicámos noutros textos, são uma adaptação do ser humano ao meio em que habita pelo menos durante 25 000 anos. Uma tribo de pigmeus do Congo que fosse habitar para a Noruega, daqui a 25 000 anos não se distinguiria dos noruegueses.

Salvo algumas pequenas diferenças, a adaptação do ser humano ao meio é comum a outros animais. A adaptação do meio a si mesmo, criando cultura, é própria apenas do ser humano. Só ele cria uma cultura como um habitat artificial, no sentido correto da palavra “ars facere”, fazendo arte. Neste sentido, o homem é um ser cultural, pois não se contenta com o que a natureza lhe dá, mas cria uma segunda natureza na qual habita, que é a cultura.

O ser humano feito à imagem de Deus é criador como Ele. A única diferença é que, enquanto Deus cria do nada, o ser humano cria combinando e misturando os elementos da criação. A cultura é como a casa que o ser humano constrói com elementos que a natureza lhe proporciona. 

A Natureza não dá casas, é o Homem que as constrói; a diversidade de casas representa a diversidade de culturas, pois diz respeito ao lugar onde são construídas - telhado subido onde neva, telhado mais baixo onde não neva. O mesmo se dirá do vestuário e de tudo o que o ser humano faz, inventa ou fabrica com a sua mente criadora, para tornar a vida mais confortável.

A árvore é natureza, a madeira, a cadeira e a mesa são cultura; o cabelo é natureza, o penteado é cultura; o som é natureza, a palavra e a música são cultura; o fogo é natureza, a bigorna, a churrasqueira são cultura.

O mito de Tarzan ensina-nos que no ser humano, o fator cultural é mais importante que a Natureza. Se um bebé humano for criado por chimpanzés ele será um chimpanzé. Ao contrário, se um bebé chimpanzé for criado por humanos, com a mesma educação que um bebé teria, ele nunca será humano. 

Se no ninho de um pardal colocarmos um ovo de tecelão mascarado, quando este tecelão mascarado for adulto não fará o seu ninho como o faz o pardal em cima de um ramo, mas sim como o faz o tecelão mascarado suspenso de um ramo. O ser humano nasce animal e transforma-se em humano pela cultura. O animal nasce já praticamente em estado adulto, não precisa de tempo de socialização.

A cultura é, ao mesmo tempo, a adaptação do ser humano ao meio e a adaptação do meio às necessidades do ser humano. A cultura é esta interação entre o meio e o ser humano, o ser humano e o meio.

COSMOVISÃO
Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia. Génesis 1, 31

Podemos usar o texto bíblico da criação do mundo como metáfora da relação entre cosmovisão e cultura. A cultura é a criação de Deus, o olhar para ela vendo-a como boa é a cosmovisão que Deus tem sobre o que criou. Deus que é amor tem uma visão amorosa de tudo o que criou, por amor.

Deus criou o mundo, o homem a partir do mundo criado por Deus criou a cultura. A cosmovisão é a visão que o Homem tem do que criou. Ao contrário de Deus, nem tudo o que cria é por amor e, como cria muitas coisas por ódio, como os instrumentos da guerra, ao fim não pode dizer que o que criou é bom.

Parafraseando a expressão que diz “Deus fez o mundo, o holandês fez a Holanda”, Deus fez o mundo, o homem fez a cultura, o homem adaptou ou personalizou este mundo, como quem personaliza um computador para responder às suas necessidades.

A cosmovisão é uma abstração da cultura, pois faz desta um objeto de estudo. A cosmovisão é o conhecimento que tenho da minha cultura, a imagem ou representação mental, consciente ou inconsciente que tenho da minha cultura.

Todo o ser humano possui uma cosmovisão, pois é por ela que se guia na vida. Ao mesmo tempo, a cosmovisão possui-nos a nós, porque o que quer que façamos ou pensemos, fazemo-lo dentro e no contexto de uma cosmovisão. Neste sentido, a cosmovisão parece englobar a cultura por ser um conjunto de ideias que um indivíduo tem a respeito do mundo, sendo estas ideias produto da cultura em que está inserido. Conforme for a nossa cultura, assim será a nossa cosmovisão ou visão do mundo.

A cosmovisão é a base de toda a manifestação cultural que é constituída por motivações, pressupostos, crenças, compromissos, certezas e ideias, através das quais se experiencia e se interpreta a realidade, desde o nível subjetivo-privado ao nível objetivo-institucional compartilhado pela sociedade

Conclusão: A natureza humana é o que somos, a nossa essência, a cultura o como estamos e existimos no tempo e espaço. A cosmovisão é a forma como entendemos o nosso ser e estar no mundo.
Pe. Jorge Amaro, IMC