15 de setembro de 2020

3 Fatores do sucesso: Intelligência - Força de Vontade - Motivação

Sem comentários:
(…) em mim, isto é, na minha carne, não habita coisa boa; pois o querer está ao meu alcance, mas realizar o bem, isso não. É que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico. Ora, se o que eu não quero é que faço, então já não sou eu que o realizo, mas o pecado que habita em mim. Deparo, pois, com esta lei: em mim, que quero fazer o bem, só o mal está ao meu alcance. Sim, eu sinto gosto pela lei de Deus, enquanto homem interior.

Mas noto que há outra lei nos meus membros a lutar contra a lei da minha razão e a reter-me prisioneiro na lei do pecado que está nos meus membros. Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte? Graças a Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso
! Romanos 7, 18-25

A natureza humana não muda nem no tempo nem no lugar de cultura para cultura. S. Paulo afirma, com uma linguagem teológica própria do seu tempo, a mesma realidade que qualquer pessoa humana experimenta. Ano novo, vida nova ou, como os americanos gostam de dizer, uma nova resolução para o novo ano não passa de boa intenção; e, de boas intenções, como dizemos em Portugal, está o inferno cheio. Do pensar, desejar ao fazer há uma longa distância a percorrer.

Como seria diferente a nossa vida se conseguíssemos fazer tudo o que nos propomos fazer: não teríamos vícios, nem de tabaco, nem de álcool, nem de drogas; evitaríamos muitas doenças pois não teríamos peso a mais, comeríamos não o que nos sabe bem, mas o que nos faz bem, faríamos desporto regularmente, meditaríamos mais, rezaríamos mais, gastaríamos menos, pouparíamos mais para a reforma, venceríamos a preguiça e não adiaríamos para amanhã o que verdadeiramente podemos fazer hoje.

Também nos daríamos melhor com os outros, pois teríamos um comportamento mais proativo e menos reativo. Não diríamos tudo o que pensamos, mas pensaríamos em tudo o que dizemos. Dominaríamos a ira e os outros instintos que estariam ao serviço do bem e não do mal, da comunidade e não contra ela. Seríamos menos egoístas, pois dar-nos-íamos conta de que, tanto a curto como a longo prazo, não convém ser egoísta ou egocêntrico.

Não é preciso ser muito inteligente para ver que tudo isto melhoraria a nossa vida, individual e socialmente e seríamos mais felizes, se conseguíssemos concretizar todas estas ideias que não são uma utopia, mas uma realidade bem ao nosso alcance. Onde está então o problema que nos impede de pôr em prática todos os nossos bons programas, objetivos, sonhos e desejos?

INTELIGÊNCIA
No âmbito deste texto, entendemos inteligência como a capacidade de pensar racionalmente de procurar informação sobre determinado problema e de chegar a uma decisão ou solução para o mesmo.

Neste sentido, também entendemos por inteligência a inteligência emocional, o conhecimento que temos sobre nós mesmos, sobre os nossos talentos, virtudes e defeitos, e o uso que fazemos das nossas emoções ou a gestão equilibrada das mesmas.

Onde a força de vontade pode ser dispensada

Conta-se que Rossini, o famoso compositor de ópera, era tão indolente, tão preguiçoso que, encontrando-se na cama a compor a introdução de uma das suas óperas, o papel caiu ao chão. Rossini, em vez de se levantar e ir buscar o papel para continuar o seu trabalho, cedeu à preguiça e continuou na cama; em vez de continuar o trabalho já feito, fez um totalmente novo e diferente do anterior.

Esta história ilustra que muitas vezes uma boa inspiração consegue o que o trabalho árduo e uma grande força de vontade não conseguem. A criatividade não obedece à força de vontade, por isso, pelo menos no que se refere ao trabalho criativo onde entra a intuição, a força de vontade ou a motivação pouco ajudam. A força de vontade e a motivação são mais capazes de ajudar num trabalho lógico e dedutivo, mas não num trabalho onde se requer intuição. Esta última vem quando vem, não depende da nossa vontade nem da nossa motivação.

Decisões inconscientes
O objetivo do nosso estudo não é esta área, mas aquela descrita acima e que se debruça mais sobre a vida em geral do que sobre uma profissão em particular. Profissionalmente, os três fatores são precisos e interagem entre si. Custa-nos reconhecer que apesar de nos considerarmos pessoas inteligentes, a maioria das nossas escolhas são feitas em piloto automático, sem qualquer consciência real do que as motiva e, certamente, sem prévia reflexão séria sobre as suas consequências. Para cúmulo, na maioria das vezes, nem nos damos conta de que optamos por isto ou por aquilo.

O nosso livre arbítrio é um pouco limitado, muito mais limitado do que pensamos. Na verdade, a maior parte da motivação para as nossas decisões vem de sentimentos dos quais estamos apenas parcialmente conscientes, de emoções reprimidas, de programação de início de vida, da forma como fomos educados, de dogmas e ideias irracionais das quais não temos consciência.

Decisões conscientes
As nossas decisões conscientes são tomadas com a nossa mente desperta e consciente. Portanto, toda a cura e todas as melhorias nas nossas condições de vida começam neste nível. É aqui que temos de dar o primeiro passo com uma decisão consciente de que queremos melhorar a nossa condição, seguindo um programa adequado. Se virmos a progressão das nossas vidas como um processo criativo, então podemos ver a mente como o arquiteto deste mesmo projeto.

A lâmpada do corpo são os olhos; se os teus olhos estiverem sãos, todo o teu corpo andará iluminado. Se, porém, os teus olhos estiverem doentes, todo o teu corpo andará em trevas. Portanto, se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão essas trevas!
Mateus, 6, 22-23

É certo que Jesus se refere aos olhos da mente, à nossa capacidade para pensar logicamente, de forma razoável, plausível, à nossa sensatez e abertura mental. Parte dos nossos problemas pode vir da nossa mente e das crenças às quais esta se encontra adicta, dos preconceitos e crenças irracionais. No ser humano, a ação começa na mente. O fanático, o ditador, por exemplo, tem uma forma de pensar e umas crenças que são diferentes do resto das pessoas; e é claro que age para colocar essas crenças em prática.

Metanóia, a palavra grega que o Novo Testamento utiliza para designar conversão, alude a uma mudança de mente para mudar o comportamento; este é, aliás, o postulado da terapia cognitiva. Quando mudamos de ideias, mudamos de atitudes e mudamos de ação. Precisamos, portanto, de identificar as ideias que surgem nos nossos diálogos interiores e confrontá-las com a razão, substituindo eventualmente estas ideias ou crenças falsas por outras verdadeiras.

O poder da mente
A nossa mente é muito mais poderosa do que pensamos. No livro Remarkable Recovery’ de Caryle Hirshberg e outros, conta-se um caso sobre a teoria do efeito placebo. Um senhor idoso tinha um cancro que cresceu desmesuradamente, pelo que o médico lhe deu três meses de vida. Entretanto, apareceu um novo medicamento, mas ele não era um bom candidato a recebê-lo devido ao estado avançado da sua doença. No entanto, o doente insistiu tanto, que o médico acabou por o prescrever fora das experiências que estavam em curso e que envolviam o novo fármaco.

Em pouco tempo, o cancro diminuiu de tamanho e desapareceu por completo.  Mais tarde, este doente veio a saber que a final o fármaco não era adequado e que nenhum dos doentes que o tinham tomado oficialmente se tinha curado. Em pouco tempo o cancro regressou e o seu estado voltou a ser grave como no início.

Completamente maravilhado pela experiência, o médico decidiu continuá-la e disse ao seu doente que o cancro tinha voltado porque lhe tinham dado um medicamento antigo, que agora iria receber um fármaco novo que certamente iria resultar. Na verdade, o médico administrou-lhe desta vez uma injeção de água destilada e os resultados não se fizeram esperar tal como acontecera com a recaída quando soube que o medicamento ere inócuo.

Convocar a intuição para resolver um problema

Dissemos anteriormente que a intuição surge sem aviso. Mas também há formas de a estimularmos ou invocarmos. Suponhamos que queremos encontrar a resposta para um problema. Este pode ser um problema de saúde, a invenção de um aparelho ou uma questão espiritual. Começamos por descobrir quaisquer factos relevantes ou informações acerca do problema, algo como uma chuva de ideias. Em seguida, analisamos e examinamos as diferentes perspetivas e maneiras de ver o mesmo problema com a nossa mente racional.

Desta forma, podemos identificar a questão central, o verdadeiro âmago do problema que requer uma solução. Esta questão chave, uma vez encontrada, deve ser mantida em mente, mas em segundo plano, sem pensarmos nela diretamente. Com esta atitude, devemos entrar em meditação, sem pensar em nada, ou deixar passar uma noite de sono. De um momento para o outro, a intuição pode fazer aflorar à nossa consciência a solução para o problema.

Atirar pedras à lua
Conta-se que numa aldeia havia um rapaz que todas as noites em que via a lua, lhe atirava pedras, enquanto que os seus companheiros tinham alvos bem mais próximos. É certo que nunca atingiu a lua com uma pedrada, mas era o moço que atirava uma pedra mais longe.

Esta história sugere-nos que a mente é elástica, que podemos exercitá-la, que em vez de fixarmos para nós mesmos objetivos fáceis e próximos, podemos fixar objetivos mais a longo prazo e bem mais difíceis. Podemos não chegar lá, tal como o moço que nunca atingiu a lua com uma pedra, mas certamente chegaremos muito mais longe do que se fixarmos objetivos próximos, correndo inclusive o risco de nem estes atingirmos.

FORÇA DE VONTADE
A força não vem da capacidade física. Vem de uma vontade indomável.) - Mahatma Gandhi

A força de vontade é a chave do sucesso. As pessoas bem-sucedidas esforçam-se independentemente do que sentem, aplicando a sua vontade para ultrapassar a apatia, a dúvida ou o medo.) Dan Millman

Força de vontade, autodisciplina, autocontrolo, determinação são, de alguma forma, sinónimos. O que caracteriza a força de vontade é a capacidade de implementar os planos, projetos e decisões que a mente tomou, sem nos deixarmos influenciar ou tentar pelas resistências naturais, pela preguiça, gratificações imediatas, racionalizações, adiamentos e outros aliciantes da mente e da “lei do mínimo esforço”.

A força de vontade é a capacidade de autorregulação de si mesmo por si mesmo; é o exercício da liberdade e da autodeterminação perante pensamentos, sentimentos e impulsos indesejáveis porque nos tirariam do caminho que a mente traçou. A força de vontade é manter-se fiel ao que se decidiu, aconteça o que acontecer.

Alguns psicólogos chegam a afirmar que é precisamente a força de vontade e não a inteligência que faz de nós verdadeiros seres humanos, por comparação com os outros seres vivos. Para além dos humanos, nenhum outro ser vivo tem a capacidade de controlar os próprios impulsos, instintos e desejos.

Desde sempre que a sobrevivência tem sido um esforço social, um trabalho de equipa entre os seres humanos. A vida em grupo, em comunidade, exige que cada indivíduo seja capaz de controlar os seus impulsos para colaborar com os outros. Ser expulso do grupo significa morte; por isso, ao longo dos séculos, por intermédio da cultura, a sociedade exerceu uma pressão sobre o cérebro individual com o propósito de desenvolver uma capacidade autorreflexiva, autocrítica e de autocontrolo.

Uma vez que a sociedade e a cultura atuais exercem menos poder sobre a pessoa, esta é mais individualista e paradoxalmente menos livre. Teoricamente, deveria ser mais livre para poder fazer o que quisesse, mas a falta de autodisciplina tirou-lhe a liberdade de agir e, sem esta, não há liberdade para agir efetivamente. Nunca como hoje houve tantos adictos a substâncias e tanta falta de controlo sobre a ira com os consequentes crimes de violência doméstica, promiscuidade no sexo, fazendo aumentar exponencialmente o divórcio que em Portugal se situa em 70%.

“Morra Marta, morra farta” - Nunca a sociedade teve tanta gente parasita, preguiçosa, sem valores nem princípios, para quem viver é sinónimo de estar vivo. Vivem superficialmente, ou seja, sobrevivem, estão vivos sem projeto nem plano, vão de prazer em prazer até o corpo aguentar.

Na sociedade tradicional, a pressão social treinava a força de vontade, era como um ginásio desta e as pessoas aprendiam autocontrolo e autodisciplina. A falta desta pressão deixa as crianças e os jovens órfãos de uma boa pedagogia. Um falso conceito de liberdade deixa os jovens entregues a si mesmos, perante decisões para as quais não estão ainda preparados e perante uma liberdade para a qual não têm formação suficiente que lhes permita tirar bom partido dela, tantos em benefício próprio como da sociedade.

Kelly McGonigal, leciona na Universidade de Stanford uma cadeira chamada “A ciência da força de vontade”. Segundo ela, há três tipos de força de vontade e cada um destes tipos está localizado num lugar diferente do lobo pré-frontal do nosso cérebro:

•    Poder “I won’t” (não vou) – a capacidade para resistir às tentações; – situa-se na região direita do lobo pré-frontal do córtex.
•    Poder “I will” (vou) – a capacidade para fazer o que a inteligência decidiu fazer; - situa-se na região esquerda do lobo pré-frontal do córtex.
•    Poder “I want” (quero) – reconhecimento da existência de um projeto de longo alcance; – situa-se na parte baixa, a meio do lobo pré-frontal do córtex.
Como prova da veracidade de que a força de vontade tem no nosso cérebro um lugar preciso, todos os autores citam o caso de Phineas Cage (1848) um calmo e respeitável cavalheiro, disciplinado, autocontido, grande trabalhador que, devido a um acidente em que lesionou o lobo pré-frontal do cérebro, se transformou numa pessoa indisciplinada, impulsiva, impaciente, o exato oposto do que era antes.

Crescer em força de vontade
Não é claro que seja possível crescer em inteligência, mas há a certeza de que é possível crescer em força de vontade. Crescer em força de vontade traz benefícios a todas as áreas e aspetos da nossa vida. Controlar-se a si mesmo é o maior dos impérios, diz uma expressão popular. A pessoa que possui autocontrolo é mais saudável, mais feliz, as relações que estabelece com os outros são mais seguras e verdadeiras, é bem-sucedida na vida profissional e na vida emocional e familiar e mais fiel aos compromissos e palavra dada.

A força de vontade pode ser treinada, podemos crescer em força de vontade. Tal como se aprende a tocar piano tocando piano, a prática frequente de pequenos atos que requerem força de vontade aumenta-a. A força de vontade é como um músculo que pode ser exercitado e, quanto mais se exercita, mais forte se torna. Vejamos algumas dessas práticas de reforço:

Adiar gratificações

“Guarda que comer não guardes que fazer” provérbio português

A capacidade psíquica para adiar a gratificação ou prazer que se sente pela satisfação das nossas necessidades é um exercício que pode aumentar a força de vontade, como o prova o famoso “Teste da Guloseima”.

A várias crianças entre os 4 e os 5 anos foi dada individualmente a possibilidade de comerem uma guloseima no momento ou duas se aguardassem 15 minutos pela segunda sem comer a primeira. Com o decorrer dos anos, seguido o percurso destas crianças, ficou provado que aquelas que conseguiram adiar a gratificação, não comendo a guloseima durante os 15 minutos estabelecidos, foram mais bem-sucedidas que aquelas que não conseguiram adiar a gratificação.


Já não somos crianças, mas podemos praticar exercícios semelhantes no nosso dia a dia, e usar até a gratificação como prémio por ter conseguido fazer o que nos propusemos fazer. Por exemplo, tenho vontade de comer um chocolate, mas não vou fazer isso enquanto não terminar este texto. Muitos exercícios deste estilo acabam certamente por fortalecer a nossa força de vontade: esta aumenta o nosso autocontrolo e autodisciplina e, por fim, a nossa autoestima.

Meditação
Para crescer em força de vontade, temos que fortalecer o nosso mundo interior, fortalecer o nosso Eu. A meditação ou a oração escava um vazio dentro de nós, como dizia o Papa Bento XVI. Este vazio é ocupado por Deus, evidentemente, mas também por nós mesmos, pois Deus é no entender de Santo Agostinho, Intimior intimo meo, ou seja, está para além de mim mesmo. A meditação leva-me a conhecer-me melhor, a conhecer os meus talentos e as minhas fraquezas.

A neurociência comprova que a meditação fortalece a zona dorso-lateral do córtex pré-frontal, região do cérebro onde se encontra localizada a força de vontade. Por intermédio da meditação, damo-nos mais conta dos nossos diálogos interiores e podemos assim diferenciar a voz da preguiça e do mínimo esforço da gratificação imediata, divorciarmo-nos dela para passar a identificarmo-nos com vozes positivas e ideais.

Por que razão a meditação nos faz crescer em força de vontade? Porque a prática desta aumenta o fluxo sanguíneo no lobo pré-frontal do cérebro. Ou seja, o cérebro adapta-se à meditação da mesma forma que o músculo se adapta ao exercício físico. Se este nos faz ganhar mais músculo nas pernas, nos braços e no peito, a meditação faz com que o cérebro ganhe mais conexões neuronais.  

Cada vez que vencemos a tentação e triunfamos sobre as vozes da fraca força de vontade, estamos a fortalecê-la. O contrário também é verdade: cada vez que sucumbimos a uma daquelas vozes, ficamos mais fracos. O córtex pré-frontal é a zona do nosso cérebro que mais tem crescido em tamanho e volume com a evolução. Robert Sapolsky, neurobiólogo da universidade de Stanford acredita que a função desta zona do cérebro é encorajar-nos a fazer o que mais custa e o que mais benefícios nos traz a longo prazo.

A forma de meditar é simples: sentar-se confortavelmente numa cadeira com a coluna direita, fechar os olhos ou deixá-los semicerrados para evitar o sono. Concentrar-se na respiração, sentir o ar entrando e saindo pelas fossas nasais, brônquios e pulmões. Varrer a mente de todos os pensamentos, sempre que um pensamento aflora à nossa mente, convidá-lo a sair, parar o pensamento no momento em que nos damos conta de que a nossa atenção se desviou da respiração, estando presa a um pensamento. Parece difícil, mas com o tempo chega-se lá; basta começar com 5 minutos por dia, incrementando o tempo na medida em que começam a notar-se os resultados.

Jejuar
Os cristãos jejuavam duas vezes por semana, hoje jejua-se duas vezes por ano. Esta era uma prática muito importante de autocontrolo. Na Etiópia ainda se observa e, de facto, as pessoas têm muito mais autocontrolo sobre si mesmas. Sabemos pela Bíblia que Esaú vendeu ao seu irmão Jacob o direito de sucessão por um prato de lentilhas, pois não resistiu à fome. Quando consegues dizer que não à comida necessária para sobreviver, consegues dizer que não a qualquer substância que possa tirar-te a liberdade.

Nos meus anos de Etiópia, de facto, maravilhava-me a capacidade de autocontrolo daquelas gentes, autocontrolo sobre todos os impulsos, principalmente sobre a ira. Eles pressupunham que também nós, por sermos sacerdotes, exercíamos sobre nós mesmos o mesmo autocontrolo e não entendiam como um sacerdote não conseguia jejuar e ainda entendiam menos que um sacerdote fosse adicto a uma substância como o álcool e o tabaco.

Exercício
Sobretudo correr aumenta a força de vontade, reduz o stress, aumenta o autocontrolo e faz com que a mente fique mais desperta. Tenho notado, ao longo dos anos, que a maior parte das minhas ideias surge no decurso de uma corrida. Quando estou num impasse e não sei como continuar um texto, vou correr e, no decurso da corrida, as ideias afluem à minha mente como um manancial de água. O problema reside em recordá-las depois, ao regressar da corrida.

A própria corrida é um exercício de força de vontade porque, quando se começa a correr, enquanto o corpo e o sistema cardiovascular e respiratório ainda não se habituaram ao novo ritmo, experimentamos o que eu chamo de falso cansaço com a correspondente tentação de desistir.

Se a pessoa para, já não consegue voltar a correr depois; mas se resistir à tentação de parar, acaba por chegar a um patamar em que o corpo se habitua e corre sem se cansar; nesse ponto, a pessoa sente que poderia correr até ao fim do mundo. É claro que depois de uns quilómetros, aparece o verdadeiro cansaço que não se nota na respiração, mas na falta de energia em geral. A sensação de bem-estar depois da corrida vale bem o esforço despendido nela.

MOTIVAÇÃO
“Dai-me um ponto de apoio e levantarei o mundo.” Arquimedes

Arquimedes usou de uma força de expressão para enaltecer o princípio da alavanca e não para se vangloriar da sua força física. Todos temos essa experiência e certamente já vimos por exemplo um pedreiro levantar uma pedra com a ajuda de uma alavanca. Quanto maior for a alavanca, ou seja, quanto mais longe da pedra aplicarmos a nossa força, mais fácil será levantar essa pedra.

A motivação funciona de facto no nosso psiquismo como uma alavanca, pois transforma o difícil em fácil, o impossível em possível. Inspira a nossa inteligência, reúne as nossas forças, motiva a nossa ação, tira força da fraqueza. A motivação dá constância à força de vontade quando esta está prestes a sucumbir perante as adversidades.

Dos três fatores – inteligência, – força de vontade e motivação - este último é o mais difícil de definir. Tem a ver com a inteligência, pois se refere a um objetivo que a inteligência definiu, programou e decidiu, embora não tenha a mesma natureza que a inteligência.

Por outro lado, também tem a ver com a força de vontade, já que é a motivação que agarra a força de vontade e lhe dá um sentido, uma direção, que a comanda de alguma forma. No entanto, em si mesma, a motivação não é a força de vontade, nem a força de vontade é a motivação.

Estudámos que a combustão tem três componentes: o combustível, o comburente e a ignição. Podemos utilizar estes três componentes como comparação ou metáfora do que são os componentes do sucesso. Utilizando os componentes da combustão como metáfora que explica a mecânica da nossa ação, o combustível representa a inteligência, o comburente a força de vontade, a ignição a motivação.

A inteligência - é o combustível, pois é ela que nos fornece a matéria prima, a razão da nossa luta, o móbil da nossa batalha, é ela que decide onde aplicar a força de vontade, o projeto a seguir, é ela que traça o plano de ação, é a arquiteta.

A força de vontade - é o comburente, o oxigénio de que toda a combustão necessita para acontecer: se faltar o comburente, mesmo que ainda exista combustível, o fogo apaga-se. A força de vontade é o engenheiro que, em constante contacto com a arquiteta, aciona os planos desta última.

A motivação
- é a ignição, é o que coloca tudo em movimento, é a chispa, o fogo e, tal como este, aparece e desaparece misteriosamente. É convocada e desconvocada; de alguma forma, a motivação comanda tanto a inteligência como a força de vontade e é provavelmente o fator mais determinante do processo, pois é ela que combina inteligência e força de vontade, coloca-se no meio das duas e orienta e manobra as duas.

Tomemos como exemplo o pai que não gosta do turno da noite, mas que vai trabalhar pois ganha mais dinheiro e assim os seus filhos podem tirar um curso superior e terem uma vida diferente. A inteligência decidiu, com base no salário que vai ganhar e no que pode fazer com mais dinheiro; a força de vontade é o que faz com que se levante todos os dias, o que o move e faz aguentar todo o tipo de sacrifício; mas o motivo principal é o amor pelos filhos, essa é a motivação que espevita a inteligência, encontra soluções e agarra na força de vontade para executar uma tarefa.

Temos também os filmes de Hollywood que começam com um crime horrendo a ser cometido contra alguém - um polícia que fica sem mulher e sem filhos, mortos por um gang. O resto do filme mostra a vingança deste senhor que mata cada um dos que participaram naquele crime.

São muitas as privações, os sacrifícios que requerem uma grande força de vontade; também é necessário muito trabalho mental para planear até ao menor detalhe a caça a cada um dos criminosos, as ratoeiras a colocar; mas tudo isto não é nada sem a motivação, a sede de vingança pela morte da mulher e dos filhos: esta sede de vingança é a chispa que o mantém focado no plano, custe o que custar.

Detesto os inconstantes, mas amo a tua lei Salmo 119, 113 – Na vida, quem triunfa mais não é o que tem mais força de vontade, nem o que tem mais inteligência, mas o que tem uma maior motivação. Esta última funciona na nossa vida como a alavanca de Arquimedes, faz do círculo um quadrado, do quadrado um círculo, do impossível possível, transforma as dificuldades em facilidades, torna os ideais exequíveis, os sonhos realidade, as utopias plausíveis.  

Quem deita a mão ao arado e olha para traz não é digno de mim Lucas 9, 62. - A pessoa motivada permanece focada no seu objetivo, como o burro na cenoura que está à sua frente e, quase como um robô obsessivo não olha para a direita nem para a esquerda, está agarrado ao objetivo que não larga por nada; o fracasso para estas pessoas não é uma opção, não é possível.

Podem cair mil à tua esquerda e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido
. Salmo 91, 7 – A pessoa motivada possui grande coragem, não teme o risco, não pensa duas vezes, não se deixa influenciar nem tentar pelo meio ambiente, por mais adverso que este seja. A sua motivação vem de dentro, só ele a possui, só ele a conhece, é essa que o faz andar, que o faz caminhar sem sentir as agruras do caminho.

Querer é poder, quien algo quiere algo le cuesta – Querer é a motivação, o poder é a inteligência que divisa o plano, a força de vontade é o preço, é o que vai custar esse plano, são os custos da operação. Usando o paradigma humano noutro texto descrito, a inteligência faz-nos conscientes de que vivemos no Egito e divisa um plano de saída; o deserto é a força de vontade, a terra prometida é a motivação.  

Triunfa mais na vida quem está mais motivado que quem tem mais força de vontade ou inteligência. Quanto mais forte é a motivação, maior é a probabilidade de sucesso. O mesmo não pode ser dito da inteligência e da força de vontade. A pessoa desmotivada é como um corpo morto, sem o espírito que dá a vida.

Como a própria palavra indica, a motivação é o que faz mover, é o móbil, é a razão, o fator que aglutina os outros dois. Por isso, alguns autores entendem que o motor da ação não é a inteligência nem a força de vontade, mas a motivação que dá o pontapé de saída para todo o tipo de ação.
Pe. Jorge Amaro, IMC





1 de setembro de 2020

3 Pilares da vida humana: Tempo - Energia - Vocação

Sem comentários:
Quando falámos do universo, dissemos que se reduzia a tempo, espaço e matéria ou energia. Os mesmos elementos constituem ou são os pilares do nosso pequeno universo: a vida humana. Tendo em mente que, como disse Einstein, a energia é uma forma de matéria assim como a matéria é uma forma de energia, podemos definir a vida como sendo um contínuo de transmutação entre matéria e energia, ou seja, energia que se transforma em matéria e matéria que se transforma em energia durante um tempo e espaço determinados.

O sentido da nossa vida, ou seja, deste contínuo de transmutação entre a matéria e a energia durante um tempo, é-nos dado pelo terceiro fator: a vocação. Alguém dizia que o mais importante da vida não é reproduzir-se, mas sim produzir, pois reproduzir-se também os animais o fazem. A vocação tem a ver com essa produção; dá sentido e justifica o nosso viver e abrindo-nosa porta da eternidade, ou seja, liga a temporalidade com a eternidade; porém não devemos entender a vida eterna como um prolongamento do tempo e do espaço, mas sim a ausência do tempo e do espaço.

Quando falamos do começo do universo, falamos do Big Bang que ocorreu num dia sem ontem. Com o Big Bang foram criados o tempo e o espaço, o que significa que existe uma realidade anterior ao tempo e ao espaço – Deus. O terceiro fator, a vocação, encerra em si o sentido da nossa via, o caminho para o Céu na terra chamado felicidade e o caminho para o Céu além do espaço e do tempo, que é a eternidade com Deus.

Há inúmeros livros de espiritualidade que nos falam da vida como um dom de Deus. Não nego que o seja; porém, eu prefiro olhar para a vida, em especial para a etapa espácio temporal desta, como um empréstimo que adquirimos de Deus. Este empréstimo consta de tempo, recursos, matérias ou bens adquiridos ou por adquirir e recursos espirituais, ou seja, talentos com os quais nascemos. 

Não somos os donos da nossa vida, pois nada fizemos para a ter, nem nada podemos fazer para a reter. Somos apenas os administradores dela e, desta administração do tempo que nos é dado viver, do lugar que ocupamos, dos recursos materiais e espirituais que nos foram confiados, daremos um dia conta a Deus que é o único proprietário da nossa vida.

É neste sentido que o terceiro fator, a vocação, aparece como a forma como a nossa vida vai ser produtiva, vai realizar um projeto que lhe dará sentido aqui e agora e para além do aqui e agora, levando.nos à eternidade. Uma vida temporal dedicada ao cultivo de valores humanos leva à eternidade, porque os valores humanos são eternos, ou atemporais, eles são inalteraveis pelo tempo, de uma geração para outra ou pelo espaço, de uma cultura para outra.

Se a vida fosse um dom, giraria à nossa volta; mas a nossa vida não gira à nossa volta, mas sim à volta do que fizermos com ela, da nossa vocação, do nosso projeto, da porta de entrada para a autorrealização na Terra e para a conquista do Céu.

TEMPO
O homem de hoje é fortemente influenciado pela espiritualidade do “presentismo”, vinda do Extremo Oriente, e pela filosofia de vida do consumismo, que apela mais aos nossos instintos básicos e menos à nossa razão, procurando desligar os nossos atos no presente das suas causas no passado e das suas consequências no futuro. O objetivo é levar o homem a viver no pseudo eterno presente de um nirvana consumista.

Esta filosofia pode ser boa para a economia, uma vez que leva as pessoas a consumir para além das suas posses, já que podem sempre pedir dinheiro emprestado com os seus cartões de crédito. As consequências desta filosofia são nefastas para a saúde, porém como só se sofrem no futuro, quem vive só no presnte não se preocupa. É um pouco como a atitude de Karl Marx perante a morte: “esta não me deve preocupar” dizia ele, “pois enquanto eu for, ela não será, e quando ela for, eu não serei”.

É verdade que a vida só pode viver-se no presente, pois este é o único tempo em que somos livres de atuar e decidir; o passado já não pode ser modificado e o futuro ainda não existe. Porém, o presente não consta só do presente, nem o passado se refere só ao passado e o futuro não existe só no futuro. Os três tempos são interativos. Esta interação acontece só no presente, por isso o presente não é só acerca do que está acontecendo, mas também o ponto de encontro dos outros dois, do passado e do futuro.

Quem vive no presente, desintegrado e sem referência ao passado é um morto-vivo: não possuindo memória histórica, é uma cana agitada pelo vento e, como não sabe de onde vem, não sabe quem é, não tem identidade. Quem vive no presente, desintegrado e sem referência ao futuro, vive sem um sonho, sem um projeto, não sabe para onde vai e, “para quem não sabe para onde vai, não há ventos favoráveis”.

Quem vive só no futuro, perde muitas oportunidades no presente e esquece-se de que esse futuro, para ser possível, tem de ter um pé no presente, ou seja, há coisas no presente que devem ser feitas para preparar o projeto a ser completado no futuro: se o futuro é o telhado da casa, o presente são os alicerces e as paredes. Um futuro sem presente é uma utopia, uma fantasia; é viver no limbo, numa eterna “pausa”.

Passado
Quanto mais longe conseguires olhar para trás, mais longe verás para a frente. Winston Churchill

O património da humanidade não é constituído só pelos monumentos históricos, mas por tudo o que a raça humana é e fez ao longo dos 5 milhões de anos de existência neste planeta. Tudo isto está geneticamente incorporado no ADN de cada criança que vem a este mundo, é algo semelhante ao inconsciente coletivo de Jung, faz parte de nós e define-nos. Tudo isso é passado.

“Libris ex libris fiunt”, quando quero criar algo novo, em qualquer campo do saber, tenho que pesquisar sobre o que já foi feito naquela matéria, para assim agregar a minha própria pesquisa. Só Deus tem a capacidade de criar do nada.

A fé num Deus pessoal, criador de tudo e de todos, que se revelou pelos profetas e depois no Seu Filho, que nos enviou o Espírito Santo, já tem uma história. A minha adesão a esta fé leva-me a fazer parte desta história, dá-me identidade e sentido de pertença a um povo e a uma comunidade.

O mesmo sucede a nível individual: sei o que sou e do que sou capaz ao olhar para trás e ver o desempenho dos meus talentos e dos meus defeitos nas diversas circunstâncias que a vida me apresentou ao longo da minha história pessoal. É a aprovação desse passado que me dá o sentido de autoestima de que preciso para me relacionar adequadamente comigo mesmo, com Deus, com os outros e com o ambiente que me rodeia.

Até Deus, que vive na eternidade, fora do espaço e devir do tempo, para se apresentar aos homens, fez-se valer da sua convivência com eles no passado, apresentando-se a Moisés como sendo o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob.

Presente 
Ao contrário do passado e do futuro, o presente está nas nossas mãos, nele e só nele somos livres para atuar. O presente é o aqui e agora da nossa vida que deve ser repleto de ação, de atos, de caridade e amor. Para o cristão, viver é amar e amar é servir, colocar-se ao serviço dos que mais necessitam.

Pondo em perspetiva o que a Madre Teresa de Calcutá fazia e o muito que havia para fazer perante tanta pobreza e miséria, um jornalista disse um dia, “O que a Madre faz é como uma gota de água no oceano”, ao que ela respondeu com muita humildade, “sim, mas se o não fizesse, o oceano teria uma gota de água menos”. 

Deus não nos pede que revolucionemos o mundo ou que façamos o melhor, só nos pede o nosso melhor. Na parábola dos talentos, o que conseguiu mais não é mais louvado que o que conseguiu menos; na parábola dos trabalhadores da vinha, os que trabalharam o dia inteiro não receberam mais que os que trabalharam só uma hora; na parábola do semeador, os que produzem 100% não são mais exaltados que os que produzem 60% ou os que só produzem 30%.

Muito ou pouco, tudo o que o Senhor nos pede é que demos fruto. Que a nossa vida seja produtiva, que deixemos cá mais do que o que cá encontramos. Que sejamos parte da solução e não parte do problema, ou seja, que o nosso viver e atuar seja um contributo para a solução dos problemas deste mundo e não um contributo para os agravar.

Futuro
Perante o burro obstinado que não queria andar, um moço atou uma cenoura na ponta de um cordel, que pendurou num pau; depois, montou no burro e colocou a cenoura dois palmos à frente do focinho do burro. Na esperança de trincar a cenoura o burro lá ia andando, não se dando conta de que a cenoura também se deslocava.

A esperança é a fé com rodas, a fé dinâmica que nos projeta no futuro. Todos precisamos de uma “cenoura” para caminhar. O sonho é o motor da vida; não está no presente o que inspira o nosso presente.

Martin Luther King foi um daqueles que, projetado no futuro, hipotecou a sua vida na luta pela igualdade entre brancos e pretos, um sonho que ele sabia que não se realizaria na sua vida. No dia anterior ao seu assassinato, inspirando-se em Moisés que depois de 40 anos a caminhar pelo deserto viu a Terra Prometida na qual não entrou, desde o alto do Monte Nebo disse: “Estou grato a Deus porque me concedeu ver a Terra Prometida, posso não entrar nela convosco, mas estou certo de que nós, como povo, um dia entraremos nela.”

Só se vive com sentido no presente se este estiver impregnado de futuro. Viver um presente sem a presença do futuro é andar à deriva. E quando o presente é doloroso, é a esperança num futuro melhor que nos ajuda a suportá-lo.

Conclusão - A vida humana resulta de uma vivência equilibrada e harmónica dos três tempos, entre os quais decorre. Vivemos no presente e só no presente; mas ao olhar para o passado descobrimos quem somos e o sentido da nossa vida; e ao projetar-nos no futuro encontramos a motivação do nosso viver. O presente é só uma peça de um puzzle que na sua totalidade inclui o passado e o futuro.

No presente das nossas vidas, perante uma decisão a tomar, o passado fala da tradição, da nossa identidade, do que fomos como história, do que somos como identidade, como pessoa. Este passado tem, portanto, uma palavra a dizer. Por exemplo, se cheguei ao fim da escola secundária e necessito escolher uma profissão, o passado diz-me que não sou bom a matemática pelo que a minha profissão não pode ser uma onde tenha de estudar muita matemática.

Perante esta decisão a tomar, o futuro tem uma palavra a dizer também. Se o passado me diz onde estou, o futuro diz-me onde quero chegar e o caminho a tomar para lá chegar. “Para quem não tem rumo, não sabe para onde há de ir, não há ventos favoráveis”. No presente, posso arruinar o futuro, por isso o futuro tem uma palavra a dizer no momento presente, uma vez que, contradizendo o provérbio, nem todos os caminhos vão dar a Roma. Se o futuro é um diploma em medicina, o presente é trabalho, estudo intenso para lá chegar.

O homem bíblico - Na língua hebraica, a palavra “Nikud” significa, ao mesmo tempo, futuro e costas; por outro lado, a palavra “quedem” tanto quer dizer passado como oriente. Assim sendo, podemos concluir que o homem bíblico tem o passado à sua frente e o futuro nas suas costas, ou seja, caminha com o peito e a cara voltada para o passado, de costas para o futuro.

De olhos no passado porque é lá que estão as nossas raízes, o nosso ser, a nossa identidade. Vivemos caminhando para o futuro, mas entendemos a nossa vida olhando para o passado e pelo passado nos orientamos para o futuro. Do futuro, pouco ou nada sabemos. Por isso caminhamos de costas, ou seja, às cegas; a única certeza que temos no nosso futuro é a morte, mas mesmo assim, não sabemos como, nem quando, nem onde ocorrerá. Para o peregrino, recordar não é viver; por isso olha para o passado, não para o reviver, mas para se orientar no presente, rumo ao futuro.

Não há mal que sempre dure nem bem que sempre ature – Sabemos que a vida é feita de altos e baixos, como a linha de um eletroencefalograma ou cardiograma, sabemos que no caminho para Deus podemos encontrar céu e inferno, mas também sabemos que tudo é passageiro. Por isso, quando estamos nos píncaros do entusiasmo, não devemos perder a cabeça e, quando estamos deprimidos, não perdemos a esperança. Em cada momento, em cada lugar, vivemos sob a proteção do Senhor, por isso somos constantes, pacientes e fiéis.
  • O passado é a razão, o presente a nossa ação, o futuro a nossa motivação.
  • O passado é a tradição, o presente a ação, o futuro a inovação.
  • O passado é o que fomos, o presente o que somos, o futuro o que seremos.
  • O passado é o ser, o presente o existir, o futuro o transcender.
  • O passado é Deus Pai que nos criou por amor, o presente Deus Filho que nos salvou e salva, dando-nos saúde aqui e agora; e o futuro é Deus Espírito Santo que nos anima, inspira e dá força no nosso caminhar.
  • O passado é a fé, o futuro a esperança e o presente a caridade. 
3 atitudes perante o tempo: fugitivo – vagabundo - peregrino
Fugitivo
O Senhor replicou: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim. De futuro, serás amaldiçoado pela terra, que, por causa de ti, abriu a boca para beber o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, não voltará a dar-te os seus frutos. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra.» Genesis 4, 10-12

What goes around comes around… (Cá se fazem, cá se pagam) Caim é fugitivo porque foge de um passado que o persegue no presente. O seu caminhar é determinado pelos seus perseguidores, não por ele mesmo; por isso não tem presente nem tem futuro. Ficou entalado por algo que fez no passado, que se faz omnipresente em forma de remorsos, de tal forma que lhe nega a vida.

Hunted by his past…(Assombrado pelo seu passado…) É uma expressão inglesa que denota bem as circunstâncias em que vive o fugitivo. Como presa de caça, vive a vida temendo ser caçado. Os assuntos que não ficaram resolvidos no passado perseguem-no no presente.

Águas passadas não movem moinhos, mas contradizendo esta lei da natureza, muitas pessoas têm os seus moinhos, as suas cabeças a moer com águas passadas, porque não pediram desculpa nem perdoaram ou porque foram traumatizados ou abusados e reprimem essas memórias ou fingem que nada aconteceu. Vivem no passado porque a sua vida ou o seu presente e o seu futuro é determinada por algo que aconteceu no passado.

A si mesmas se iludem, pensando que o passado não os afeta porque ficou lá atrás. A verdade é que o que conhecemos do nosso passado, podemos controlar; o que desconhecemos, controla-nos a nós de uma forma inconsciente. Assim, ao projetar os fantasmas do passado no presente, podemos pensar que estamos a lutar contra os nossos inimigos, quando objetivamente estamos a lutar contra moinhos de vento.

Vagabundo
Vivem como se nunca tivessem que morrer e morrem como se nunca tivessem vivido Dalai Lama

Carpe diem (Aprveite o dia) - passou a ser o lema de muita gente depois do filme “O Clube dos Poetas Mortos”. O vagabundo vive instalado no presente, mas não no presente consciente e omnisciente das filosofias orientais e, sim num presente consumista, hedonista e inconsciente: morra Marta, morra farta. Sem lhe importar o passado que já foi e o futuro que ainda não é e pode não chegar a ser, o vagabundo caminha no círculo vicioso de um eterno retorno. “Para quem não sabe para onde há de ir, não há ventos favoráveis.”

“Não prometo para não falhar” ouvimos tantas vezes; o vagabundo não promete nada a ninguém nem se compromete com nada nem com ninguém, porque isso significaria contar com o futuro. Vive no momento e para o momento. Em relação ao passado e ao futuro tem a atitude da avestruz: coloca a cabeça debaixo da areia, reprime, nega a sua existência, prefere não pensar e, para tal, abstrai-se, usando a diversão ou o trabalho como droga para não pensar nem se confrontar consigo mesmo. Instalado na pura mundanidade não precisa de guia, não aceita conselhos de ninguém.

Peregrino
Felizes os que em Vós encontram a sua força, os que trazem no coração os caminhos do santuário. Ao atravessar o vale seco, transformam-no em oásis, que logo as primeiras chuvas cobrirão de bênçãos. Vão caminhando com entusiasmo crescente, até verem Deus em Sião. Salmo 84, 6-8

Na pré-história da nossa fé há inúmeras peregrinações: Abraão, arameu errante que só possuiu uma sepultura que comprou para a sua mulher e viajou da sua cidade na Mesopotâmia até (Canã) Canaan, o povo hebreu que saiu do Egito, terra da escravidão, para a terra prometida da liberdade e prosperidade; as idas a Jerusalém pela Páscoa; depois de Cristo, as peregrinações dos cristãos à Terra Santa e a Roma, a Santiago de Compostela; na tradição ortodoxa, o peregrino russo um livro acerca da espiritualidade ortodoxa.

Já no nosso tempo, as peregrinações a Guadalupe no México, a Lurdes em França, a Fátima em Portugal, a Chestocova na Polónia; a peregrinação é uma prática cristã muito importante porque, de alguma forma, é uma parábola da vida. Viver é peregrinar, o cristão deve comportar-se com o mundo à sua volta e com os seus semelhantes, como peregrino.

O livro de Gênesis não esconde o fato de que Deus prefere o pastor e, portanto, o nómade Abel, em vez de seu irmão agricultor e, portanto, sedentário. Contrariamente ao fugitivo, o peregrino vive reconciliado com o seu passado, por isso não depende dele; contrariamente ao vagabundo tem uma meta, um objetivo que pretende atingir, por isso vive com intensidade o momento presente, sabendo sempre quem é, de onde vem e para onde vai, nunca está desnorteado nem desorientado pois a sua vida é regulada como se tivesse um GPS.

Egito, deserto, terra prometida, paradigma da humanidade do peregrino. O peregrino está sempre a sair de um Egito e sempre a cruzar um deserto e quando chega a um oásis sabe que ainda não é a terra prometida, por isso continua. Oásis o Reino já está aqui, mas ainda não na sua totalidade, como diz o evangelho, e nunca estará na sua totalidade. Para o peregrino, procurar o reino, a justiça e a paz são as preocupações principais, ao contrário do vagabundo.

ENERGIA
Eros e Tanatos, instinto de vida, instinto de morte, afetividade e agressividade, ying e yang, a força centrípeta e centrífuga, o amor e o ódio, polos positivo e negativo da eletricidade ou a energia com a qual fazemos tudo o que fazemos. Sem energia, nada funciona numa sociedade; o mesmo acontece connosco.

No ser humano, todos os atos deveriam ser inspirados e decididos pelo Logos, pela razão; mas a verdade é que o instinto de Eros e Tanatos não só provê a energia para a realização de todos os atos que a razão determina, como motiva, alimenta e orienta muitos outros que se subtraem ao poder da razão. Apesar dos milhões de anos de evolução desde a animalidade, o nosso comportamento é mais movido pelo instinto do que gostamos de admitir.

Todos os atos humanos têm uma mistura de afetividade e agressividade, mesmo os mais polarizados, tanto na afetividade como na educação, como na agressividade, como na guerra, há sempre um pouco do polo contrário; como há um pouco de feminilidade num homem e um pouco de masculinidade numa mulher. É óbvio que a educação de um filho pelos seus pais tem mais de afetividade que de agressividade; no entanto, uma educação só afetiva teria a tendência para ser paternalista. Na educação de uma criança, a afetividade, os prémios e as carícias, devem ser doseadas com alguma agressividade, castigos e disciplina.

Sublimação
A energia elétrica produzida numa central, seja ela hidroelétrica, nuclear ou a carvão, não pode ser consumida diretamente. Tem de passar por um transformador que a reduz, de modo a para poder ser consumida nas nossas casas. O mesmo acontece com a energia humana em bruto, comum tanto aos humanos como aos animais. 

Nos animais, a natureza encarrega-se da sublimação de Eros e Tanatos, de forma a que estas duas energias estejam só ao serviço da vida; os animais acasalam só para se reproduzirem, não o fazem por nenhuma outra razão, nem sequer para obter prazer. São agressivos quando têm necessidade de comer ou de defender o seu território e não fora destas circunstâncias; não têm, como alguns humanos, o prazer de matar.

No seu livro, “O Mal-estar na Civilização”, Freud defende que tanto a agressividade como a afetividade, descontroladas, ou seja, abandonadas a si mesmas, têm um potencial destrutivo incomensurável; podem destruir o que ajudaram a construir. O ser humano abandonou a animalidade quando ganhou poder sobre estas duas forças, quando conseguiu domesticá-las, quando lhes colocou rédeas para as aproveitar positivamente.

Desta forma, o tabu do incesto funcionou como o “cabresto” do Eros / afetividade / instinto de vida, proibindo as relações sexuais entre pessoas ligadas por laços de sangue. Sem esta proibição a consanguinidade acabaria com a raça humana. A regra “olho por olho, dente por dente” (que pertence ao código de leis mais antigo do mundo, o código Hamurabi) funcionou como o “cabresto” do Tanatos / agressividade / instinto de morte, para limitar a natureza da violência que, por si só, tende a escalar e a alastrar-se descontroladamente, levando à destruição.

Sublimar significa desviar, substituir ou modificar a expressão natural de um impulso ou instinto por uma expressão que é social e culturalmente aceitável e construtiva. O exemplo de uma energia destrutiva transformada numa energia construtiva é a transformação de um touro, de touradas, num boi que lavra a terra e puxa uma carroça.

Vistas as coisas sob este prisma, a civilização humana pode ser considerada como uma história da sublimação de Eros e Tanatos, ou seja, do uso inteligente que a humanidade fez destas forças ou instintos básicos. Da mesma forma, a nossa própria história pessoal é também constituída pelos esforços para desviar o nosso afeto e agressão naturais do seu alvo natural e primordial, a fim de promover o cultivo dos valores humanos.

VOCAÇÃO
Ganhar a vida ou perder a vida
Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? Mateus 16, 25-26

É frequente ouvir dizer, acerca daquele que trabalha e anda numa azáfama constante, que anda a “ganhar a vida”. Neste sentido, ganhar a vida é sinónimo de ganha-pão; mas buscar o sustento para a vida e viver a vida não são a mesma coisa. Tal como viver e estar vivo não são a mesma coisa.

Os que gastam a sua vida (tempo e energias) a buscar meios de vida são diferentes dos restantes seres vivos deste planeta; as gazelas e os leões, os tigres e os leopardos, todos os seres vivos passam o dia a buscar meios para se manterem vivos ou sobreviverem; os animais não vivem, pois não exercem qualquer poder ou controlo sobre as próprias vidas: sobrevivem ou estão vivos.

Ao contrário dos demais seres vivos, o ser humano tem poder e controlo sobre a sua própria vida, pode fazer dela o que quiser; pode fazer dela um céu ou um inferno, dependendo de como administra o tempo e as energias que lhe são dados.

Olhai, guardai-vos de toda a ganância, porque, mesmo que um homem viva na abundância, a sua vida não depende dos seus bens. (…) Havia um homem rico, a quem as terras deram uma grande colheita. E pôs-se a discorrer, dizendo consigo: (…) Tens muitos bens em depósito para muitos anos; descansa, come, bebe e regala-te. 'Deus, porém, disse-lhe: 'Insensato! Nesta mesma noite, vai ser reclamada a tua vida; e o que acumulaste para quem será?' Assim acontecerá ao que amontoa para si, e não é rico em relação a Deus.» (Lc. 12,16-17-20-21)

Há pessoas que em vida chegam a acumular bens que dariam para duas ou três vidas humanas…, mas acaso vão ter essas vidas ou sequer aumentar a vida que têm anos por ter acumulado bens suficientes? Não, a vida não é ganhar meios de vida. A vida não é engordar, é emagrecer; a vida não é ganhar, mas perder; a vida não é uma força centrípeta, varrer para dentro, puxar a brasa à sua sardinha, mas sim centrífuga, partilhar, dar e dar-se aos outros por uma causa. Por isso, anacronicamente, a vida perde-se quando se retém e ganha-se quando se dá.

A tua vida não gira à tua volta, nasceste para uma missão
Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos Marcos 10, 45

Pois, quem é maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, Eu estou no meio de vós como aquele que serve. Lucas 22, 27

Ninguém perguntou a Jesus qual era o objetivo da sua vida, mas se o tivessem feito, acima está a resposta que Ele daria.

A minha vida para os outros é um valor absoluto, mas para mim é um valor relativo; absoluta para mim, é a razão pela qual eu vivo, porque a minha vida não gira à minha volta; se eu fosse a razão da minha própria vida, viver seria sobreviver, ou seja, manter as funções vitais, preservar a vida. Mas esta não é a verdade da vida humana; a vida é tempo e energia dedicados a uma causa.

A vida de Beethoven centrou-se na música; a vida de Picasso centrou-se na pintura; a vida de Einstein centrou-se na Física; a vida de Nelson Mandela centrou-se na igualdade entre brancos e pretos. A vida de Jesus, Filho de Deus, centrou-se na salvação da Humanidade. Ninguém é mais feliz que aquele que é útil e ninguém é mais útil que aquele que ama e entende que amar é querer e buscar o bem dos outros.

Estes personagens da história tornaram-se famosos, populares, heróis, eternos, porque passaram a sua vida cultivando valores humanos, como a pintura, a musical, a igualdade social.… como dissemos antes, os valores humanos são atemporais e sem espaço, transcendem todos os lugares, ou culturas e tempos, são eternos. Por isso, quando passas tua vida, ou temporalidade cultivando valores eternos atinges a eternidade. Ao contrário, quando passas a tua vida cultivando valores temporais, como o poder, a riqueza, de alguma forma já estás cultivando a morte e quando eventualmente morreres é a morte eterna.

Os talentos são como os dons do Espírito Santo: estão orientados não para a tua realização pessoal, mas para o serviço da comunidade; e é na medida em que és útil à comunidade que te consideras válido em ti próprio.

Talentos, as alfaias da vida
Deus, arquiteto da nossa vida, idealizou um projeto para nós. Ninguém vem ao mundo sem um projeto. Em interação com Ele na oração e interpretando os sinais dos tempos, devemos descobrir qual é o projeto que Deus tem para nós e para o qual nos equipou com suficientes talentos, para o executarmos no âmbito de uma vida viável.

Portanto, em vez de invejar os talentos dos outros, como fazem os adolescentes enchendo as paredes dos seus quartos com pósteres de “ídolos”, voltemo-nos para nós próprios e descubramos quais são os nossos talentos. Pode haver algum talento escondido que eu nunca pensei que tinha…. Assim como é a situação que cria o ladrão, são os grandes desafios que criam os grandes homens, quando estes se lançam para a frente e arriscam; só arriscando podem saber se estão ou não à altura do trabalho.

Quem não arrisca não petisca: o talento não usado é talento irremediavelmente perdido. Talentos não encontrados nem trabalhados não nos levam ao objetivo que Deus traçou para nós e, não chegando a esse objetivo, a nossa vida foi fútil. O que não tem utilidade é lixo e o que é lixo é queimado - é isso que significa o inferno.

3 atitudes perante o espaço: colono – turista - peregrino
Não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a futura. Hebreus 13,14

Se na maneira como nos relacionamos com o tempo podemos ser fugitivos ou vagabundos, na maneira como nos relacionamos com o espaço, o mundo que nos rodeia, podemos ser colonos ou turistas. Colonos, turistas e peregrinos têm em comum o facto de não serem oriundos do lugar que habitam durante o tempo da sua vida. E relacionam-se de uma maneira diferente com o meio em que habitam.

Tanto o colono como o turista e o peregrino têm em comum o facto de serem oriundos de outro lugar ou país que não é o que habitam no aqui e agora das suas vidas, mas diferem na forma como se relacionam com o mundo que os rodeia e os seus semelhantes. As pessoas foram criadas para serem amadas, as coisas para serem usadas. Só o peregrino encarna esta verdade na sua vida, pois o colono usa as pessoas e ama as coisas e o turista usa tanto as coisas como as pessoas.

Colonos
Veni vidi et vincit, (Vim, vi e venci) como diria o conquistador César Augusto, o colono vem para conquistar e possuir tanto as pessoas como as coisas. Conquista e explora tudo e todos sem escrúpulos, até os recursos do planeta, sem lhe importar a ecologia; neste sentido, possui a mentalidade do burro que dizia, “depois de eu morrer que não cresça mais erva sobre a terra”. Também explora os outros, regulando-se pela única regra que conhece: o lucro e o interesse pessoal.

O colono veio para ficar, não se move, agarra-se às coisas e às pessoas como uma carraça, é sedentário, deixou de procurar, deixou de caminhar e vive instalado na vida como se tivesse chegado já à Terra Prometida. Desfruta de tudo o que a vida lhe dá como se nunca tivesse de a deixar. Deus rejeitou Caim e aceitou Abel que era pastor.

Turistas
Ao contrário do colono, o turista vive superficialmente, para ele tudo tem o mesmo valor, coisas e pessoas, procura divertir-se, não está interessado em possuir nada nem ninguém, apenas fotografias de tudo e de todos. Para o turista, tudo é paisagem, o valor das coisas mede-se pelo potencial de diversão ou satisfação dos seus cinco sentidos; por isso, tudo o que é exótico, erótico, invulgar, excêntrico, que produz emoções fortes e espevita a adrenalina é que tem valor.

O turista não chega a penetrar na realidade, vê o mundo como se fosse um teatro que o diverte, mas não sabe nem está interessado no que se passa nos bastidores. Não se compromete com nada nem com ninguém, busca diversão e foge de tudo o que tenha a ver com sofrimento.

O peregrino
Era uma vez um homem que todos os dias ia buscar água ao rio com um balde em cada mão. Um dos baldes estava furado pelo que chegava a casa só com metade da água. Por esta razão, sentia-se triste, inferiorizado e até envergonhado diante do seu colega. Ao referir isto mesmo ao seu senhor este sorriu e disse: “já reparaste que o caminho do teu lado está cheio de flores e não há nenhumas do lado contrário? Como eu sabia que o teu balde estava furado, semeei flores do teu lado e tu, cada dia, encarregavas-te de as regar...”

O peregrino não possui coisas nem pessoas como o colono, nem as usa e deita fora como o turista; não está instalado no aqui e agora como o colono nem caminha desinteressado com o turista. No seu caminhar, compromete-se, entregando-se totalmente a pessoas e a causas humanas concretas, mas como não procura ser amado, mas amar, dá-se sem se prender às pessoas que ama.

Muitos dos peregrinos de Santiago eram jograis e deixavam música e alegria por onde passavam; a nossa língua, o galaico-português, nasceu destas cantigas de amigo, amor, escárnio e mal dizer. Por outro lado, o caminho português está embelezado por pontes e igrejas românicas; o caminho francês por igrejas e grandes catedrais góticas. 

Depois da Páscoa, é costume no norte de Portugal o pároco visitar as famílias da sua paróquia uma por uma. É uma grande festa para os membros da família alargada que vão à casa uns dos outros beijar a cruz pascal, a cruz gloriosa da ressurreição.

Por esta ocasião, as pessoas dão o folar ao sacerdote em reconhecimento pelo seu trabalho durante o ano na paróquia. Havia um sacerdote na minha terra, em Loriga que recebia tanto quanto repartia, nas casas ricas recebia dinheiro que depois deixava nas casas pobres; essa era a sua visita pascal, levava dos ricos, deixava nos pobres, contribuindo assim, pelo menos num dia do ano, para a igualdade dos cristãos na sua paróquia.

Um americano em peregrinação pela Terra Santa visitou a casa de um rabino e com ele se demorou algum tempo em conversa. Enquanto conversavam, observando que o rabino vivia muito pobremente, apenas com uma enxerga onde se sentava e onde dormia, em determinado momento, o americano perguntou, “rabino, onde estão os teus móveis?” e o rabino respondeu com uma pergunta “e onde estão os teus?”, “os meus? Eu sou peregrino”, disse o americano, “eu também”, respondeu o rabino.

Deus dá a cada um o tempo, as energias, os recursos e os talentos para que a vida seja viável e tenha sentido para o próprio e para os que vivem à sua volta. Portanto, a nossa autorrealização e felicidade, dependem exclusivamente de nós.
Pe. Jorge Amaro, IMC