1 de fevereiro de 2021

3 Obervâncias quaresmais: Esmola - Oração - Jejum

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Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Tende cuidado em não praticar as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Aliás, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está nos Céus. Mateus 6, 1

Sai o tiro pela culatra
Mateus 6, 1-18 é o evangelho que todos os anos lemos no dia de Quarta-feira de Cinzas que marca o início da Quaresma. São Mateus, o mais judeu dos evangelistas, coloca no mesmo texto três práticas muito caras à piedade judaica: a esmola, a oração e o jejum. A Igreja lê este texto no início da Quaresma com o intuito de exortar os fiéis a praticar estas obra de penitência durante os quarenta dias.

O texto, tal qual o escreveu Mateus, não se propõe exortar à prática destas obras que supostamente os judeus já praticavam ritual ou formalmente, mas sim praticá-las com uma intenção reta, pois os judeus faziam o bem por motivos maus. O fim não justifica os meios; os judeus praticavam estas obras em público e talvez não em privado, para se engrandecerem através delas; elas não eram um fim em si mesmas, não as praticavam por devoção, porque gostassem de as praticar, mas para adquirirem prestígio e popularidade por seu intermédio.

Se se pretende exortar os fiéis a praticar estas três obras durante a Quaresma, como me parece ser o intuito da Igreja, e precisamente porque o objetivo original do texto não é esse, acho que lhe sai à Igreja o tiro pela culatra. Esta exortação é contraproducente. E para estragar mais o programa de penitência quaresmal, a Igreja traz para a liturgia durante este tempo, muitos dos textos proféticos contra o jejum ritual.

“Acaso o jejum que eu prefiro não será isto: soltar as cadeias injustas; desamarrar as cordas do jugo; deixar livres os oprimidos, acabar com toda a espécie de imposição?” (Isaías 58,6). Eis um texto que, de alguma forma, tira o jejum fora do contexto, que lhe dá uma interpretação que não é a sua que nem sequer fala da privação de alimento.

O que a Igreja conseguiu com tudo isto foi extinguir a prática do jejum, reduzindo-o a dois dias no ano, quando tradicionalmente eram dois dias na semana. Esta prática saudável sob todos os pontos de vista, abandonada pela Igreja que cede ante o pecado da gula da sociedade consumista, é agora valorizada por dietistas, médicos, protestantes, vegetarianos e gentes da nova era.

Se a Igreja queria purificar ou reorientar o jejum, reduzindo-o a dois dias no ano, o que fez foi ritualizá-lo ainda mais. Dois dias, de facto, só têm sentido do ponto de vista ritual, pois para surtir o efeito desejado como adiante descreverei, o jejum deve ser praticado muito mais regularmente.

Por outro lado, a redução drástica do tempo de jejum pode também levar a uma redução drástica na prática das duas outras obras de penitência: a oração e a esmola. Nem sei porque se consideram obras de penitência. O jejum é a única obra de penitência, a oração e a prática da caridade deviam ser obras de amor, ou seja, deveríamos praticá-las com amor e por amor. Porque amamos a Deus rezamos, comunicamo-nos com Ele. Porque amamos o próximo somos caridosos para com ele. Porque motivo chamamos obras de penitência a atos de amor?

Parece passar uma mensagem de que não deviam praticar-se, sugerida por outros evangelhos posteriores onde os profetas falam contra o jejum.

A recompensa
Quando toda a religião tem um Céu como recompensa dos bons e um inferno como castigo dos maus, de alguma forma o evangelho acaba por parecer estranho porque é combativo em relação ao binómio prémio/castigo. Devíamos ser bons por ser bons, por convicção e não para obter o Céu, assim como deveríamos evitar o mal porque não o queremos e não por medo do inferno.

Houve um santo que pretendia apagar o fogo do inferno com água, e queimar as alegrias eternas do Céu com fogo. Porém, se isso acontecesse, o justo e o injusto teriam o mesmo fim. Há uma recompensa para tudo o que fazemos de bom e um castigo para tudo o que fazemos de mau. Como diz o provérbio português “o mal fica com quem o pratica” ou o inglês “what goes around comes around” (equivalente ao nosso “cá se fazem, cá se pagam”), o prémio é inerente, é intrínseco a toda a obra boa e o castigo é intrínseco a toda a obra má.

Nada é inócuo, neutro ou inconsequente, não há causa sem efeito, nem efeito sem causa. Por isso, toda a obra feita tem um efeito, obtém um retorno, tem uma consequência. Se a obra é boa, a consequência é boa, se é má a consequência é má. Toda a obra é como um e-mail com um anexo; o anexo está agarrado ao e-mail e segue o e-mail para onde quer que este esteja destinado.

Ao estudarmos a comunicação não violenta, aprendemos que tudo o que fazemos para obter uma recompensa, o que fazemos por dever, ou o que deixamos de fazer para evitar o castigo é violento para o nosso psiquismo. Na vida, devíamos fazer apenas o que nos dá gosto fazer, não fazer nada por obrigação, nada por dever, nada para receber uma recompensa. O castigo não devia também ser um motivo para não fazer; já não somos crianças para necessitarmos de policiamento para nos obrigar a fazer o bem e evitar o mal.

Parafraseando Hipócrates que disse “Que a tua comida seja a tua medicina, e a tua medicina seja a tua comida”, eu digo “que o teu trabalho seja o teu passatempo, e o teu passatempo seja o teu trabalho”. Se realizas um trabalho para o qual não estás vocacionado, és um escravo.

Quando realizas um trabalho para o qual te inclinas naturalmente, és um artista, não um trabalhador, estás nesse trabalho de alma e coração, és criativo, não o fazes por obrigação, mas por gosto e quem corre por gosto não se cansa. O amor é melhor motivação que o dinheiro, o amor leva-te a fazer coisas a que o dinheiro nunca levaria, como por exemplo dar a vida pelos teus amigos, como fez Jesus.

Dar sua vida por amor é possível e já muitos o fizeram, ao contrário, dar a vida por dinheiro nunca ninguém o fez, porque é impossível.  Um pode argumentar que alguém com um seguro de vida elevado pode dar a sua vida para que um ente querido receba o dinheiro; o que sacrifica a sua vida para beneficiar alguém não o está a fazer por um dinheiro que não pode receber, mas por um dinheiro que pode dar, por isso, também neste caso  é um ato de amor. Nenhuma pessoa que atua por amor pensa na recompensa, porque no momento em que pensa numa recompensa, já não está a agir por amor.

ESMOLA
Assim, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. Mateus 6, 2-4

Quando a mão esquerda sabe o que faz a direita
Dar esmola a um pobre ante o público em geral não é um ato perfeito; a pessoa que assim procede, de alguma forma, usa o pobre para obter prestígio e, por isso, aquela esmola já nem é bem esmola. O pobre já a pagou com o seu serviço: ser um meio para prestigiar um famoso.

“Quem dá aos pobres empresta a Deus” - O rico que chamou a TV e os jornais para serem testemunhas da sua dádiva ao pobre, já recebeu em prestígio e popularidade a sua recompensa na Terra, Deus já não tem nada para lhe pagar pois já não lhe deve nada. O aspeto positivo do seu ato - prestar assistência a alguém necessitado - é anulado pelo negativo, ao usar o necessitado e a sua indigência como trampolim para o bom nome, prestígio e fama.

O seu ato, que em princípio era bom, foi “feito para inglês ver” ante as luzes da ribalta, deixou de o ser de forma absoluta ou inequívoca. Não é bom nem mau, ou tem tanto de bom como de mau. Porém, o pobre comeu, foi beneficiado. Se obrigarmos os ricos a dar segundo o evangelho, não sabendo a mão esquerda o que fez a direita, talvez não cheguem a dar nunca e assim o pobre não comerá. Ao pobre pouco lhe importa que o rico se sirva dele para se engrandecer, o que quer é comer nesse dia.

Ao entrarmos numa igreja, vemos logo na entrada o nome, em folhas douradas uma árvore, das pessoas que doaram para que a igreja fosse construída; ao olharmos para os vitrais, vemos ao fundo o nome da família ou indivíduo que doou esse vitral…. Supõe-se que estas pessoas eram gente de igreja, gente cristã que conhecia bem o evangelho…. E, no entanto, fizeram questão que o seu nome fosse visto sempre que alguém olhasse para o precioso vitral que doaram à igreja. Quando a igreja é antiga, já todos eles faleceram, receberam ou não receberam no Céu a sua recompensa?

Dar como devolução
Quem espolia alguém que está vestido é tido como ladrão; e quem, podendo fazê-lo, não reveste quem está nu merecerá outro nome? O pão que tu reténs pertence ao faminto, o manto que guardas no armário é de quem está nu; os sapatos que apodrecem em tua casa pertencem ao descalço; o dinheiro que tens enterrado é do necessitado. Porque tantos são aqueles aos quais fazes injustiças, quantos aqueles que poderias socorrer. São Basílio (329- 379 AD)

São Basílio, já no seu tempo, compreendeu que a pobreza é fruto da injustiça, da ganância, da avareza dos ambiciosos. Conhecia os mecanismos que tornavam ricas as pessoas da sua época: falsificação de documentos de propriedade, que possibilitava aos gananciosos expandir os seus latifúndios, invadindo uma propriedade após outra; a avareza, que impedia os afortunados de repartir, de ser magnânimos: a produção agrícola ia parar sempre às mãos de aproveitadores, que a retinham para vendê-la depois no mercado negro por preço muito mais elevado ou trocá-la pelos filhos dos pobres para fazê-los escravos.

A Terra é de todos os que nela habitam, a propriedade é sempre comum; por inerência à dignidade humana e pelo simples facto de existirem, todos têm o direito inalienável de possuir o suficiente para sobreviver. O sistema que faz com que uns tenham demasiado e outros não o suficiente não pode ser justo. Algum mecanismo foi usado para que tal aconteça e esse mecanismo não é outra coisa senão roubar.

Em 2015, a Oxfam disse que 99% da humanidade possuía menos que 1% da humanidade, parece ficção, mas é a grande verdade: o fosso entre os ricos e os pobres aumenta cada vez mais. Não há riqueza que não cause pobreza, por isso, quanto mais cresce a riqueza mais aumenta a pobreza.

Neste estado de coisas, a esmola que damos não é verdadeiramente uma dádiva, mas uma devolução: devolvemos ao pobre o que antes lhe roubamos. O sistema que nos fez ricos, fez alguém pobre, por isso, o que temos de sobra foi roubado a quem não tem, não é nosso. Ninguém como São Basílio articulou esta ideia como acima citamos, mas parece que o mundo pouco mudou em 2000 anos.

Tipos de esmola
Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede e me destes de beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e fostes visitar-me’. Mateus 25, 34-36

Como nem só de pão vive o homem, dar pão a quem tem fome não é a única coisa que podemos fazer pelo nosso próximo. São muitas e variadas as obras de caridade. Mateus 25 faz a lista de algumas bem concretas e variadas para nos dizer que, por um lado, a lista pode continuar, por outro, os atos não têm de ser grandes: pequenas coisas repetidas, tornam-se grandes coisas.  

O importante é ter sempre uma resposta na ponta da língua quando Deus dentro da nossa voz da consciência nos pergunta onde está o teu irmão? (Génesis 4, 9) Não podemos responder que não somos o guardião do nosso irmão, porque, de facto, somos o guardião do nosso irmão, a todo o momento devemos saber como está o nosso irmão. Muitos dos nossos irmãos têm vergonha de vir até nós e revelar as suas necessidades, por isso devemos estar nós atentos e ir até eles e inquirir se estão bem.

É bom dar quando vos é pedido, mas é melhor dar se vos pedirem só através da compreensão…
Kalil Gibran, O Profeta

Devemos desenvolver a capacidade de observação para ler a situação do nosso irmão e, tal como um bom psicoterapeuta, fazer perguntas exploratórias que demonstrem o nosso interesse em ajudar sem satisfazer a nossa curiosidade. Por incrível que pareça, perguntas abertas como por exemplo “como estás?”, não servem para nada, pois a resposta vai ser óbvia: por muito mal que a pessoa esteja, vai dizer que está bem.

São mais úteis perguntas pelas quais tentamos adivinhar o que se passa, segundo a nossa leitura da situação e da linguagem corporal: “estás com dor de cabeça? estás com saudade dos teus pais?” Tentamos descobrir pelos nossos palpites e assim a pessoa, ao corrigir-nos, acaba por dizer o que se passa.

Muitas vezes, o nosso próximo não precisa de nada, apenas de companhia, de um ombro para chorar ou desabafar. Há muita solidão no nosso mundo moderno, o que explica o sucesso das redes sociais, onde as pessoas se encontram sem correrem muitos riscos. O principal valor é de facto estar com as pessoas, é ser empático, é perder tempo com os outros. Tudo isto entra na categoria de esmola, pois nos leva a sair de nós mesmos para ir ao encontro do outro.

Igualdade e amor ao próximo
O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes. Marcos 12, 31

Como a esmola é riqueza ou bens materiais que passam das mãos de quem tem muito para as mãos de quem tem pouco, este ato de caridade é a concretização de um dos valores básicos do ser humano como parte de uma família, de uma comunidade, de um clã, de uma tribo, de uma nação, de um continente, de um planeta. A Revolução Francesa sintetizou os três valores básicos sem os quais não há vida humana do ponto de vista individual e do ponto de vista social.

Liberdade - O ser humano é sempre único, indivisível, livre, válido em si mesmo e por si mesmo, com uma dignidade inerente ao facto de que é um ser humano e não devido à posição social, classe ou pedigree familiar. O valor que salvaguarda isto é a liberdade.

Igualdade - São precisos dois para fazer um. O ser humano resulta da união de dois seres humanos e, ao crescer, do ponto de vista físico é uma união de triliões de seres vivos ou células unidas pelo mesmo vínculo de um código genético único e irrepetível na História do planeta, da galáxia e do universo. Do ponto de vista psíquico, a sua personalidade forma-se na interação com outros indivíduos, os pais, os irmãos, os professores, os amigos… Espiritualmente, faz parte de um povo que tem a Deus como criador.

Fraternidade – Do ponto de vista civil, convém lembrar que sem fraternidade não existe nenhum dos outros dois valores. Porém, do ponto de vista religioso, os valores da Revolução Francesa já estão contidos na síntese que Jesus fez do Antigo Testamento: o duplo mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo.

“O amor ou nasce entre iguais ou faz as pessoas iguais” – Este provérbio ilustra de facto este ponto, uma vez que o que fazemos por amor é mais eficaz coerente, consistente e duradouro que o que fazemos por obrigação. Por isso, como sugere o provérbio, quando nasce amor entre duas pessoas de diferentes estratos sociais e desigual riqueza, verifica-se o princípio dos vasos comunicantes da física. Ao colocarmos em comunicação dois vasos com diferentes quantidades de água, esta nivela-se nos dois vasos; ou seja, a água passa do vaso que tem mais para o vaso que tem menos, ficando ao mesmo nível nos dois vasos.

O amor entre pessoas desiguais, o amor que nivela a desigualdade, ficou imortalizado no arquétipo do enamoramento do Príncipe Azul pela Gata Borralheira ou Cinderela. Ao apaixonar-se pela Cinderela, o Príncipe fez com que esta subisse de estrato social.

Um outro arquétipo é o beijo, símbolo do amor, que uma princesa dá a um sapo e que lhe restaura a sua dignidade perdida de príncipe. O amor faz dos sapos príncipes e das gatas borralheiras princesas, porque há um príncipe em todo o homem e uma princesa em toda a mulher. Assim, podemos concluir que igualdade e amor ao próximo são uma e a mesma coisa.  

Há mais alegria em dar que em receber
Em tudo vos mostrei que, trabalhando desse modo, se deve ajudar aos fracos, recordando as palavras do Senhor Jesus, que disse: ‘Há mais felicidade em dar do que em receber’”. Atos 20, 35

S. Paulo demonstra maturidade psicológica e efetiva conquistada ao longo da sua vida quando, no seu discurso de despedida aos cristãos de Mileto, lhes diz que há mais alegria em dar que em receber. Como referimos já ao mencionar a teoria da comunicação não violenta sobre a qual escrevemos largamente no ano de 2018, não devemos fazer nada que nos custe, por dever, por obrigação. Quem corre por gosto não cansa e, quem se cansa, não corre por gosto. Exercer violência sobre o nosso psiquismo é sempre contraproducente.

“Vale mais pão com amor que galinha com dor” diz sabiamente o povo. Quando tens um hóspede, se te custa dar galinha, não dês galinha dá somente pão, mas por amor. Facilmente, pela linguagem corporal, o teu hóspede vai aperceber-se que está a custar-te dar o que estás a dar e, desta forma, vai sair-te o tiro pela culatra.

As crianças têm mais alegria em receber que em dar. Mas entende-se, são crianças, estão em formação, estão a encher até ao dia em que, depois de satisfeitas, começam também elas a dar. O mesmo acontece com o amor: amar e ser amado é a primeira necessidade psicológica ou espiritual. Para as crianças, o mais importante é serem amadas, porque é quando são amadas incondicionalmente que aprendem elas também a amar. Ser amado não depende de nós, mas dos outros, não podemos implorar para que nos amem, porque os outros só podem amar-nos livremente; se o amor não é dado livremente, não é amor.

Para um adulto, porém, a necessidade mais importante já não é ser amado, mas amar; um adulto pode muito bem passar sem ser amado, o que não pode é passar sem amar. Jesus de Nazaré, como modelo de humanidade, também é neste sentido um exemplo para nós.

Jesus passava bem sem ser amado, não se deprimia; foi odiado pelos chefes do povo, abandonado e traído pelos seus amigos, e não se desesperou nem quando sentiu o abandono do maior amor da sua vida, o do seu Pai.

Aquele que passou pelo mundo fazendo o bem, passava bem sem o amor que lhe davam, embora nunca o tenha recusado, mas não passava bem sem amar e todos os dias o seu amor de traduzia em obras de caridade para com todos os necessitados que se cruzavam no seu caminho.

ORAÇÃO
Quando rezardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de orar de pé, nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. Mateus 6, 5-6

Orar nas esquinas
Conta-se que um muçulmano estava a correr atrás do seu inimigo com o punhal em riste para o matar, quando escutou do alto do minarete da sua mesquita o chamamento à oração. Imediatamente parou, estendeu a sua esteira no chão e rezou fervorosamente. Ao terminar, recolheu a esteira, agarrou no punhal e retomou a perseguição do seu inimigo de punhal em riste.

A história é sem dúvida uma caricatura de uma prática espiritual de caráter formal e ritual que não influencia a vida prática de cada dia, vida essa que nada tem a ver com a vida espiritual. É como se fossem as duas linhas paralelas do caminho de ferro. Isto não é problema só de muçulmanos ou judeus, mas também de cristãos.

A expressão “católico praticante”, não se refere à prática da religião e dos seus preceitos na vida, mas sim à prática dos sacramentos, dos rituais litúrgicos, sobretudo o da participação na missa dominical e a confissão uma vez por ano, jejum e abstinência de carne na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa e a comunhão pela Páscoa florida.

A religião não se pratica na Igreja, mas sim na vida. A oração privada, pública e litúrgica, assim como a participação nos sacramentos e a leitura da Palavra de Deus são meios, não fins em si mesmos; são meios para melhorar a nossa vida, ajudam-nos a ler a nossa vida à luz da Palavra para ajustar esta àquela.

O verbo fez-se carne e habitou entre nós. A prática dos sacramentos, a leitura da Palavra e a oração ajudam-nos a encarnar o Verbo na nossa vida; ajudam-nos a configurar a nossa vida com Cristo, a revestir-nos de Cristo, como diz S. Paulo. Ajudam-nos a encarnar a Palavra no nosso comportamento do dia a dia, a ponto de podermos dizer um dia, tal como disse S. Paulo, “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. Um cristão não é outra coisa que um outro Cristo no aqui e agora da História da humanidade.

É frequente ver muçulmanos a rezarem em público. Em Israel, vi judeus a rezarem nas esquinas e também no aeroporto. Quem sou eu para julgar se o fazem para serem vistos? Mas, mesmo que assim seja, o vê-los rezar é uma publicidade também à oração, não só a eles mesmos. Ou seja, o seu rezar em público é também uma exortação a que também eu reze. É um testemunho público do valor da oração.

Pode ter também o valor de martírio, pois incorrem no risco de serem ridiculizados e molestados por ateus e agnósticos militantes que estão empenhados em reduzir a religião à esfera do privado. Tem o valor das procissões portuguesas em cidades modernas como esta de Toronto: rezar em público é um testemunho de fé e do valor da oração.

Tipos de oração
Quando orardes, não useis de muitas palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por força das muitas palavras. Não sejais como eles, pois o vosso Pai sabe do que precisais, antes de vós o pedirdes. Mateus 6, 7-8

“Deus interior intimo meo” – Deus está mais perto de mim que eu estou de mim mesmo, dizia Sto. Agostinho. Para chegar a mim mesmo, passo por Deus, por isso nunca estou tão consciente de mim mesmo como quando estou em oração. A oração é certamente o exercício de amor a Deus, mas também é um exercício de autoconsciência.

Essa autoconsciência, que foi o resultado de largos milhões de anos de evolução da humanidade, é a marca distintiva da vida humana em relação à vida animal. Essa autoconsciência ainda hoje nos falta, depois de milhões de anos de evolução. Por isso, ainda agimos muitas vezes sem ela, não temos consciência do que dizemos e do que fazemos, possuímos um comportamento mais reativo e, portanto, mais animal que humano.

Essa autoconsciência, que os psicoterapeutas nos exortam a alcançar como condição necessária para todo o processo de mudança ou conversão no nosso comportamento, é a mesma que conseguimos pela oração e pela meditação.
Vigiai e orai, para não cairdes em tentação; pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca”. Mateus 26, 41 – A atitude de oração mantém-nos despertos, atentos. Quando baixamos a guarda, quando adormecemos, quando ficamos desatentos, outras forças tomam conta de nós que não a razão e o interesse do espírito.

Então caiu em si e disse: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Lucas 15, 17 - Muito mal fez o filho pródigo durante o tempo em que esteve fora de si. Ao divorciar-se de si mesmo, divorciou-se de Deus e vice-versa; ao voltar a si mesmo, voltou ao seu Pai.

Isto prova que tinha razão Sto. Agostinho ao dizer “Deus está mais perto de mim que eu de mim mesmo”. Um divórcio de mim mesmo é um divórcio de Deus, o divórcio de Deus é um divórcio de mim mesmo. A oração tem então duas valências: manter-nos no caminho que traçamos, e manter-nos com Deus. Como diz o povo “Quem de Deus não se lembra, todo o bem lhe falta”

Ação de graças
Minha alma, bendize o Senhor, e não esqueças nenhum de seus benefícios. Salmo 103, 2

Criado como fui num país profundamente católico como Portugal, vivendo muitos anos em países tradicionalmente protestantes, vejo duas formas de viver o cristianismo. O defeito dos católicos é o de serem demasiado pedinchões e esquecerem-se dos benefícios que receberam de Deus: “conta as bênçãos que recebeste” é uma expressão que não tem equivalente em Portugal, nem em Itália nem em Espanha, os países católicos que melhor conheço.

A oração preferida do protestante é a de Ação de Graças. Rezam sempre antes e depois da refeição e até têm uma festa de Ação de Graças que é feriado nacional. Na Igreja católica, os que mais dão graças a Deus são os carismáticos, movimento pentecostal que nasceu fora de Igreja católica, mas acabou por ser adotado por esta.

Se toda a minha oração se concentra em pedir, nunca poderei cantar e entoar o meu magnificat como a Virgem Santíssima e dar-me conta das maravilhas que o Senhor fez em mim. O que dá graças a Deus é mais positivo, mais jovial, mais otimista. O católico pedinte desconhece o que tem, por isso não dá graças e só olha para o que lhe falta. É demasiado consciente da sua indigência.

O nosso dia deveria começar com o dar-nos conta de todos os benefícios recebidos, de como Deus atua na nossa vida, a começar pelo dom da vida, da saúde e de todos os talentos recebidos. É certo que também somos indigentes, porém este nunca deveria ser o nosso primeiro pensamento.  

Petição
Eu sou a videira e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim, como eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim, nada podeis fazer. João 15, 5

(…) o vosso Pai sabe do que precisais, antes de vós o pedirdes. Mateus 6, 8

Se levarmos pela mão uma criança num supermercado e se esta criança não nos pedir nada, não é certamente uma criança normal. Para entrarmos no reino dos Céus, necessitamos da consciência de simplicidade, humildade e indigência que a criança tem. Nada podemos fazer sem a ajuda de Deus; se passar muito tempo sem que peçamos nada a Deus, pecamos por orgulho e por autossuficiência.

Devemos sempre pedir e com a mesma insistência com que o faz uma criança, tendo também a fé radical que ela tem nos seus pais que, embora não lhe dando tudo o que pede, nunca lhe faltaram com o que verdadeiramente necessita. As crianças não se cansam de pedir e pedem tudo o que vêm, mas deixam ao critério dos pais darem-lhe só o que lhes convém e lhes faz falta.

Um amigo protestante dizia-me que se Deus sabe o que nos faz falta, como diz o evangelho, porque devemos pedir? Eu respondi que devemos pedir, porque é pedindo que manifestamos a nossa indigência, que manifestamos a nossa consciência do que nos falta; é pedindo com insistência que demonstramos a Deus e a nós próprios o quanto necessitamos e desejamos algo.

Contemplação
O Santo Cura de Ars notou que, à hora do meio-dia, um homem da aldeia, todos os dias vinha à Igreja e se sentava na presença do sacrário, parado, estático, sem articular palavra. Intrigado o santo Cura D’Ars perguntou-lhe um dia o que fazia ali: «Eu olho para Ele e Ele olha para mim», respondeu o camponês. Sto. Cura D’Ars

O camponês não era nenhum monge nem eremita, nem tinha formação em budismo ou meditação transcendental, Zen ou ioga, mas tinha captado o âmago do que é a oração contemplativa. Uma oração onde as palavras sobram porque não conseguem expressar os sentimentos, onde os sentimentos também são superados e só fica a presença.

Contemplar é fazer já na terra o que um dia faremos no céu por toda a eternidade. Manter a mente em Deus é esvaziar a mente, a alma e o coração de todo o pensamento, de todo o desejo e simplesmente estar com Aquele que é o autor da nossa vida, a razão do nosso ser. A criatura esvazia-se de si mesma, esvazia a sua mente e o seu coração, para se encher de Deus, desligando-se mais e mais do mundo, até chegar à visão beatífica do seu Criador.

Como sugere o camponês, não é preciso tirar um curso para chegar à contemplação. Só aprende a tocar piano quem o toca frequentemente: da mesma forma, o que muitas vezes contempla, chega lá, pois apenas temos de ser persistentes na contemplação e ela mesmo nos instruirá sobre como contemplar.

Liberdade e amor a Deus
Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. Marcos 12, 29-30

Um escravo é um ser humano desprovido da sua dignidade de ser humano; custa-nos entender esta mentalidade nos tempos que correm, mas houve tempos e não muito distantes, em que havia seres humanos que eram olhados como se fossem animais, sem direitos, sujeitos a um senhor que tinha poder absoluto sobre eles e que podia até matá-los sem ir contra a lei, porque eram propriedade sua e podia fazer com eles o que quisesse.

A liberdade é “condictio sine qua non” para a vida humana. Custa entender como certos regimes como o chinês se mantêm tanto tempo. É certo que compram o povo com pão, com riqueza, mas a liberdade é o pão do espírito; sem esta, o espírito não se alimenta não se expande.

Quando se fala de liberdade, afluem à nossa mente as amarras exteriores, como por exemplo, as amarras que prendiam os escravos no mundo antigo e, mais perto de nós, as que prendiam os escravos nas plantações de algodão no sul dos Estados Unidos, os escravos judeus no Egito ou mesmo a interpretação marxista do mundo capitalista da Revolução Industrial em que os trabalhadores levavam uma vida quase de escravatura por trabalharem demasiadas horas por dia.

Pouco se fala das escravaturas interiores, agora em que na maior parte dos países democráticos já não há escravaturas provocadas por elementos exteriores. Mas há outro tipo de escravatura: escravos do poder, da fama, da riqueza, do dinheiro, do manter uma imagem jovem, do terror da velhice, escravos de maus hábitos, escravos de substâncias, do álcool, das drogas, do tabaco, dos medicamentos desnecessários.

São muitas as coisas que podem escravizar-nos. Por isso tem razão de ser o mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas e sobre todas as pessoas. Não acredito na existência de puros ateus e agnósticos; não acredito naqueles que dizem não prestar homenagem e submissão a nenhuma realidade terrena. Não acredito que os ateus e agnósticos consigam manter a mente e o coração livres de afeições de coisas, pessoas ou realidades que facilmente se transformam em ídolos.

Para que isso fosse possível, teriam que viver sem se relacionar com nada nem com ninguém para poderem manter-se puros e limpos de afeições por coisas e pessoas. E quando isto fosse verdade, estariam a idolatrar-se a si mesmos. Mas como isto é quase impossível, os que se dizem ateus ou agnósticos facilmente idolatram realidades, coisas ou pessoas pelo que, mais que ateus ou agnósticos, são politeístas.

Quem amar o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem amar o filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim. Mateus 10, 37

Um pai tinha uma filha que era o enlevo da sua vida. Quando esta faleceu, nunca mais recompôs a sua vida e acabou por se suicidar. Quando o seu corpo sem vida foi encontrado, verificaram que no bolso do seu casaco estava um desenho que a sua menina tinha dedicado ao seu papá onde ele tinha escrito “quero ser sepultado com este desenho na minha algibeira”.

Uma história verídica enternecedora que mostra o amor de perdição que este pai tinha pela sua filha. Por muito que possa ser de louvar do ponto de vista puramente humano, também é de condenar do ponto de vista religioso. Este pai tinha idolatrado a sua filha, ou seja, amava-a mais do que amava a Deus; caso contrário, não teria acabado com a sua vida. Os filhos, os pais, todos podem faltar-nos e vão faltar-nos um dia certamente. Mas Deus nunca nos falta; por isso a Ele devemos amar primeiro e todas as outras pessoas depois Dele, tal como o nosso Pai na fé fez ao estar disposto a entregar a Deus o seu filho único quando Este lho pediu; também Abraão teve a tentação de idolatrar Isac.

A oração a Deus é uma manifestação do nosso amor por Ele e, quando O amamos, amamo-lO sobre todas as coisas, pessoas e realidades porque, ainda que o amor humano possa encher-nos as medidas de alguma maneira, só o amor divino nos preenche totalmente pois só Ele, por si mesmo ,nos basta.

A oração do Pai Nosso
Vós, portanto, orai assim: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, como no céu, assim também na terra. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje. Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos que nos devem. E não nos introduzas em tentação, mas livra-nos do Maligno. Mateus 6, 9-13

A oração do Pai Nosso será objeto de um texto próprio. Jesus não pretendia ensinar uma oração para que a repetíssemos uma e outra vez. Recordemos que os discípulos também não pediram ao mestre que lhes ensinasse uma oração, mas sim que lhes ensinasse a rezar, como João batista tinha ensinado os seus discípulos.

Gosto de olhar para esta oração como um evangelho de bolso, pois ela contém em si mesma tudo o que devemos saber e tudo o que devemos praticar na nossa vida. Por outro lado, é para mim como uma lista de compras. Alguns de nós, quando vamos às compras, fazemos antes uma lista das coisas que necessitamos para que não aconteça que nos esqueçamos de algo importante e tenhamos que voltar atrás quando já pagamos o que compramos.

É neste sentido que digo que o Pai Nosso não é propriamente uma oração porque é composto de afirmações desligadas entre si, como acontece com os seus artigos ou cláusulas. Cada afirmação do Pai Nosso tem sentido em si mesma e está desligada da seguinte. O Pai Nosso é, portanto, composto pelos artigos essenciais de toda a oração. 

O Pai Nosso é um esquema de oração, o esqueleto de uma oração, o método que contém todos os pontos que devemos ter em conta quando nos dirigimos a Deus e por ordem de importância, ou seja o que devemos pedir primeiro, como e a quem o devemos pedir.

Quando falarmos do Pai Nosso noutro texto, veremos que apesar de parecer ser uma oração que se dirige exclusivamente ao Pai, não nomeando explicitamente as outras pessoas da Santíssima Trindade, é uma oração trinitária, em que cada uma das pessoas da Santíssima Trindade aparece no seu papel ou no papel que desempenha na história da salvação.

JEJUM
Quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto, para mostrarem aos homens que jejuam. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai, que está presente em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. Mateus 6, 16-18

Jejuar com o rosto desfigurado
A Quaresma é uma campanha espiritual para que as pessoas façam algo com o motivo da Paixão, na esperança de que depois continuem. Tenho um colega que toda a Quaresma deixava de fumar e depois na Páscoa voltava a fumar. Mais edificante é o exemplo do meu pai que juntamente com os outros jovens da JOC (Juventude operária católica) prometeram diante do pároco, o Pe. Prata, que deixariam de fumar durante toda a Quaresma; terminada a Quaresma, no dia de Páscoa, enquanto os colegas do meu pai fumavam um cigarro atrás do outro, o meu pai nunca mais voltou a fumar.

O Ramadão para os muçulmanos é um jejum social, assim como o jejum dos cristãos da Etiópia que é, de todos os jejuns, o mais severo; abrange dois dias por semana, a quarta e a sexta-feira de todo o ano, à exceção das quartas e sextas dos 50 dias de tempo de Páscoa. Todos os dias do Advento e todos os dias da Quaresma são dias de jejum; a estes agrega-se um mês pela Nossa Senhora.

No total, o ano tem quase mais dias de jejum que dias de não jejum. Nos dias de jejum só se come uma vez ao dia, e nessa única vez, não há nenhuma proteína animal; ou seja, nem carne, nem peixe, nem ovos, nem leite ou derivados.

Jejuar não é fácil. O jejuar dos outros ajuda o nosso jejum: a pressão social nos países onde se jejua é muito forte. Portanto, tal como dissemos com a esmola e a oração em público, o facto de sabermos que os muçulmanos estão em jejum não deixa de ser uma silenciosa exortação a que também nós experimentemos o valor do jejum.

Jejum em sentido lato
Se orar é a nossa atitude para com Deus, é dizer-Lhe que O amamos sobre todas as coisas, sendo também a mais alta manifestação da nossa liberdade; se dar esmola é a nossa atitude para com os outros, amando-os como nos amamos a nós mesmos, sendo esta a única garantia de igualdade e de justiça social, para que serve o jejum?

Tal como a oração e a esmola, o jejum também é algo mais que privar-se de alimentos: refere-se à atitude que temos para connosco próprios. Já descrevemos os dois valores sobre os quais assenta a vida humana: a liberdade, na sua dimensão individual e a igualdade, na sua dimensão social.

O jejum é como o zero ao serviço da matemática; foi a invenção do zero que fez possível a matemática. Com a numeração romana, onde este não existe, a matemática não seria possível. Analogicamente, é o jejum que faz possível a igualdade e o amor ao próximo, assim como a liberdade e o amor a Deus.

Como posso afirmar na minha vida o outro, seja ele Deus ou o meu semelhante, se não me nego a mim mesmo? (Marcos 8, 34) Se não faço jejum do meu egocentrismo e renuncio ao engrandecer e inchar do meu ego privando-me de ter mais, que vassalagem posso prestar a Deus se me considero senhor de mim mesmo?

Como posso servir a Deus e ser livre, se sirvo o dinheiro, (Mateus 6, 24) se dei o meu coração às riquezas, ao poder, ao prazer? Se não me possuo, como posso dar-me ao Outro, Deus, ou ao outro meu semelhante? Como posso amar o próximo e sentir-me igual a ele se, em vez de o servir, me sirvo dele? E como posso partilhar o que é meu, coisas, tempo e energias, se antes não renuncio a elas? Usando uma expressão muito atual no nosso país em crise, jejuar é cortar na despesa; é cortar na despesa que tenho comigo próprio, tempo, energias e recursos para poder dar e dar-me aos outros.

Jejum em sentido restrito, ou seja, privação de alimento
O jejum, ou dieta em linguagem médica, está para a saúde da alma como o desporto está para a saúde do corpo. Não fazemos vida do jejum pois não somos monges, nem some atletas profissionais, pois fazemos vida do desporto; mas a prática moderada do jejum, potencia tanto a saúde da alma como a prática moderada de desporto potencia a saúde do corpo.

O jejum e o desporto, assim entendidos, estão ao serviço da vida, pois nos treinam para ela, concedendo-nos muitos benefícios. O desporto treina o corpo e a mente dando-lhe mais energia e saúde; o jejum, no sentido de privação de alimentos, ou a abstinência, no sentido de privação de certos alimentos, treinam a alma na arte e capacidade de negar-se a si mesma, da abnegação, do autocontrolo e da força de vontade.

Como, depois do respirar, o alimento é a necessidade mais indispensável que temos, privarmo-nos dele custa muito; por isso mesmo constitui o melhor treino para conseguir jejuar em sentido lato, ou seja, fazer cortes ao EU para afirmar o TU, que é o que verdadeiramente importa.

O jejum faz a pessoa animicamente mais forte e prepara-a para maiores sacrifícios e abnegações. O contrário também se verifica: aquele que não tem autocontrolo no consumo de alimentos e é guloso, dificilmente será uma pessoa que partilha, e é bem provável que também seja volúvel e ganancioso.

Esaú perdeu a progenitura por um prato de lentilhas (Genesis 25, 29-34); que a gula, pecado que já ninguém confessa nesta sociedade de consumo, não nos leve a perder o corpo e a alma. Como diz o povo “o guloso escava a sepultura com os dentes” e “a avareza rompe o saco”

Conclusão: Na oração amamos a Deus na esmola amamos o próximo, no jejum amamo-nos a nós mesmos. Este último, é o que os psicoterapeutas chamam amor exigente, e que no evangelho corresponde ao negar-se a si mesmo, “conditio sine qua non” para na nossa vida darmos espaço ao Outro, que é Deus e o outro, que é o nosso próximo.

Pe. Jorge Amaro, IMC