1 de fevereiro de 2018

CNV: O falacioso mito da Violência Redentora

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O que é um mito?
Os mitos, são narrativas que surgiram nos primórdios da civilização humana com o intuito de explicar e dar resposta às questões fundamentais que os homens desde sempre colocaram: a origem do mundo, do homem, de Deus, o sentido da vida, etc.

Os mitos não são históricos porque não se referem a coisas que realmente aconteceram; porém o facto de não o serem não significa que sejam falsos. São verdadeiros na medida que tentam explicar realidades num tempo em que a ciência não existia. Tomemos, por exemplo, o mito do deus do tempo chamado Cronos; Este dava à luz filhos e depois comia-os. É certo que não é histórico, mas é verdadeiro porque, de facto o tempo é algo que temos e depois consumimos; cada dia que nos levantamos pela manhã, damos à luz um dia e à noite já o temos consumido.

O sistema de domínio, ou estrutura de poder
Assim chama Walter Wink a um conjunto formado por relações económicas injustas, relações políticas opressivas, relações raciais tendenciosas, relações de género de tipo patriarcal; tudo isto dentro de uma sociedade que divide as pessoas em classes sociais, para que as relações entre estas sejam hierárquicas e não de igual para igual. Por fim, o uso da violência aparece para manter e  salvaguardar este “status quo”, que vigora desde o surgimento da Babilónia há 3000 anos AC.

As coisas não acontecem ao acaso, segundo Wink, um sistema de domínio tem que possuir necessariamente um mito de dominação: uma lenda ou narrativa que tenta explicar e justificar o porquê desta situação e como é que chegámos aqui.

“Might is right” - O mito chama-se “Violência redentora” que consagra a crença de que a violência salva e se justifica a si mesma, de que a guerra traz paz, “vis pacem para bellum”, como diziam os romanos, se queres a paz prepara-te para a guerra. Este mito defende que o poder é imprescindível para estabelecer a paz e a concórdia. Tal como recorremos a Deus quando tudo falha, assim recorremos à violência para solucionar os problemas individuais e sociais, pelo que esta parece funcionar como um deus. De facto, para Wink, esta, e não o Judaísmo, o cristianismo ou o islamismo, é a “religião” mais antiga e tem sido a mais predominante no mundo desde a Babilónia até aos dias de hoje.

O mito da violência redentora dota o sistema de domínio com uma narrativa que pode ser reproduzida de várias formas até ao infinito, convencendo todos os envolvidos nele, tanto os opressores, como os oprimidos, de que, sem este sistema de domínio, ou estrutura de poder, o mundo tal como o conhecemos colapsaria; portanto só a “violência legal”, ou seja a exercida pelo sistema de domínio, nos pode salvar deste destino.

O jogo dos polícias e dos ladrões ou do herói e do vilão
Vejamos paradigmaticamente o funcionamento deste mito: um indivíduo poderoso, um sistema ou grupo, causou dano ou angústia a um outro determinado indivíduo ou grupo. Dentro do grupo oprimido, surge um herói, ou grupo poderoso, que defronta violentamente, derrota e mata o opressor, terminando assim o seu reinado de terror.

A seguir, o protagonista vitorioso e herói cria um sistema no qual os libertados podem viver livres e em harmonia, durante algum tempo. Porém, como o poder corrompe, eventualmente, o anterior libertador justo, agora enamorado e agarrado ao poder, tornando-se ele mesmo num opressor, um vilão. Desta feita, o ciclo começa de novo, com o eventual surgimento de outro herói.

Com base neste mito que alguns historiadores afirmam que a história se repete. Tomemos como exemplo a Rússia opressora dos Czares; a revolução Bolchevique de 1917 libertou, por um curto período de tempo, o povo, do domínio absoluto dos Czares, para ficarem, talvez bem pior, debaixo do domínio de Stalin e dos que lhe seguiram na chamada “ditadura do proletariado”.

Desde muito cedo que as crianças são doutrinadas neste sistema de domínio por intermédio do culto e admiração pela figura do herói nos desenhos animados e depois em todos os filmes. A um herói invencível opõe-se um vilão aparentemente também invencível. As crianças, os jovens, ou nós mesmos, conscientemente identificamo-nos com o herói, neste caso temos um bom conceito de nós mesmos. Mas inconscientemente também nos identificamos com o vilão, no qual projetamos a nossa ira reprimida, a nossa rebeldia e luxúria e disfrutamos desta nossa maldade durante três quartos do filme em que o mau parece prevalecer.

Quando por fim, eventualmente, o bom prevalece, depois de muito esforço e sofrimento, é como se no nosso íntimo conseguíssemos reestabelecer a ordem sobre as nossas próprias maldades e maus instintos. Por isso gostamos tanto de ver filmes ou talvez necessitemos deles para manter a nossa agressividade debaixo de controlo ou a um nível manejável. Este tipo de sublimação acontece também com o desporto, sempre é preferível que os grupos ou os países rivais se defrontem no estádio ou nos jogos olímpicos que no campo de batalha.

Os filmes funcionam então como uma catarse libertadora, pois a punição do vilão no cinema corresponde a uma autopunição das nossas tendências más. A salvação encontra-se na identificação com o herói, ficando assim justificado e reforçado o uso da violência e auto violência e a perpetuação do sistema de domínio.

Tal como nas antigas arenas romanas onde os gladiadores lutavam entre si até à morte, onde os cristãos eram devorados pelas feras como, ainda hoje, nas arenas das touradas, a violência não é apenas um meio para obter a justiça e a paz; a nossa cultura tem feito dela um espetáculo agradável e gratificante.

A violência na educação
“La letra com la sangre entra”
Era o provérbio castelhano que exaltava a violência sobre as crianças como a melhor forma de aprendizagem. À mercê de professores sádicos e sem escrúpulos as crianças eram espancadas nas escolas e nos colégios além de o serem no seio da família. Sempre recordarei um colega de escola, que tinha perdido o pai; como a mãe já era idosa e não tinha força para lhe bater, e as pancadas da escola eram insuficientes, então sistematicamente ia ao posto da GNR para ser espancado todos os dias.

O mito babilónico da criação
O mito mais antigo da criação do universo e dos seres humanos reza que no princípio existiam o deus Apsu e a deusa Tiamat que tiveram vários filhos. Como os mais novos eram barulhentos quando brincavam e Apsu não conseguia nem dormir nem trabalhar, decidiu matá-los. Entretanto os deuses novos descobrem o plano e antecipam-se matando Apsu.

Tiamat prometeu vingança pela morte do marido. Cheios de medo os deuses rebeldes solicitam a ajuda do primo Marduk; este, capturou Tiamat e, matou-a despedaçando posteriormente o seu corpo e espalhando o seu sangue. Assim foi criado o Universo segundo o mito babilónico. Ou seja, a criação é um ato de violência e não de bondade como no mito bíblico da criação.

A ordem cósmica requer a supressão violenta do feminino e é espelhada na ordem social pela sujeição das mulheres aos homens e a dos homens ao seu governante. No princípio era o caos e a violência foi usada para estabelecer a ordem. Fica assim justificado o uso da violência pois sem ela não haveria ordem. O mito da violência redentora é a vitória da ordem sobre o caos por intermédio da violência.

Depois da criação do mundo, Marduk atirou para a prisão os deuses que estavam do lado de Tiamat; como estes protestavam, porque a comida na prisão não era boa, Marduk e o seu pai Ea (filho de Apsu), mataram um deles e, do seu sangue criaram os seres humanos para serem servos dos deuses.

Portanto, segundo o mito babilónico da criação, a violência é natural está incorporada nos nossos genes. Não foi a humanidade que criou a violência, como ato de desobediência a Deus, como no caso do mito bíblico; no mito babilónico a violência sempre esteve presente, fazendo parte da natureza cósmica e humana. Os seres humanos estão naturalmente incapacitados para a coexistência pacífica; a paz tem de ser imposta a partir de cima.

Os mais espertos e poderosos apresentam-se então ante os outros, como reis, Czares, imperadores, príncipes, sacerdotes e mestres, representantes da bondade e justiça de Deus com a missão de combater os maus e de os punir. A violência “legal” dos líderes da sociedade opõe-se à violência “natural” para subjugar os maus, dissuadir os outros das suas más tendências e facilitar a convivência social.

Desta feita, as mulheres são aconselhadas a não ter necessidades, pelo que devem sacrificar-se para bem da família; os homens abdicam dos seus interesses pessoais para servirem o rei, a ponto de lhe darem a vida em guerras para proteger e aumentar os seus domínios. As crianças são instruídas desde muito pequenas de que há certo e errado, maus e bons, e que, para serem boas devem usar o seu poder natural não exteriormente, mas interiormente contra si mesmas reprimindo as suas más tendências e obedecendo à autoridade incondicionalmente sem a questionar.

O mito bíblico da criação
Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. (…) Deus disse: «Reúnam-se as águas que estão debaixo dos céus, num único lugar, a fim de aparecer a terra seca.» E assim aconteceu. Deus chamou terra à parte sólida, e mar, ao conjunto das águas. E Deus viu que isto era bom. (…) Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia. Génesis 1, 3, 9, 10, 31

Bem diferente é o mito bíblico da criação descrito no livro do Génesis. Foi redigido enquanto o povo judeu vivia exilado no cativeiro da Babilónia. Por isso tem semelhanças com este, mas no fundamental opõe-se ao mito babilónico. Na bíblia Deus é bom e a criação é um ato de bondade de Deus. À medida que Deus vai criando cada uma das várias realidades dá-se conta de que o que cria é bom. Deus é bom e dá origem a uma criação boa. (Génesis 1, 4, 12, 18, 21, 25)

O mal e a violência não fazem parte da criação tal como Deus a concebeu. A criação é um jardim idílico onde os primeiros seres humanos vivem em harmonia entre si, com a Natureza e com Deus. O mal entra posteriormente, como resultado de um mau uso ou abuso da liberdade. O mundo e a realidade que Deus criou eram inicialmente bons, tendo sido posteriormente corrompidos pelo pecado do Homem.

Na bíblia, depois de Adão e Eva terem roubado a Deus a prerrogativa do bem e do mal e de se colocarem a si mesmos como medida de todas as coisas, a arbitrariedade entrou no mundo e, com ela a violência, que se vê exercida logo na segunda geração por Caim sobre o seu irmão Abel. A violência nunca aparece na bíblia como uma realidade naturalmente boa, mas sempre como artificialmente má; não se apresenta como um facto natural que tem de ser assumido e aceitado, mas sim como um problema a resolver.

Está claro que este não foi o mito que prevaleceu em todo o mundo, desde a Babilónia ou Mesopotâmia ao Egipto, à Grécia, à Índia, à China. O mito da Babilónia é o mais antigo e o mais atual, e não tem rival; são bem poucos os que o confrontam e põem em causa. É uma espécie de religião civil que é transversal a todas as culturas, civilizações, e religiões, e a matriz sobre a qual estão feitos todos os filmes e desenhos animados, no intuito de educar as gerações jovens sobre a necessidade da violência para restabelecer a ordem.

A religião como legitimação do poder
Que todos se submetam às autoridades públicas, pois não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. Por isso, quem resiste à autoridade opõe-se à ordem querida por Deus, e os que se opõem receberão a condenação. Romanos 13, 1-2

A crença de que a autoridade vem de Deus e que quem a exerce na terra fá-lo em nome Dele é ideologia do sistema de domínio. Desta crença a idolatrar a autoridade vai um passo curto que muitos reis e imperadores deram. Já no nosso tempo, o ditador Francisco Franco, após a guerra civil, e para justificar a usurpação do poder, declarou-se, e fez até cunhar moedas com a sua efígie e as palavras “Francisco Franco, Caudillo de Espanha pela graça de Deus”.

A religião, em vez de fazer valer o seu mito, de que o homem não é violento de per se, pois, foi criado por um ato de amor de Deus, deixou-se influenciar pelo mito babilónico tornando-se numa religião violenta, no caso da religião judaica.

Todo o sistema sacrificial está baseado na crença de que só com sangue se redime ou resgata sangue.  A única diferença entre os judeus e os povos circundantes, ou os longínquos Maias e os Astecas, é que os sacrifícios humanos foram substituídos por sacrifícios de animais, sendo, de alguma forma o cristianismo uma volta a ao sacrifício humano, mas desta vez de um só por todos, válido para todo o tempo e lugar.

O cristianismo, sucessor do judaísmo, como o texto de S. Paulo acima citado sugere, seguiu as pisadas do judaísmo, abençoando e adotando o mito da violência redentora. É certo que Jesus de Nazaré é um caso aparte, e precisamente por isso, não foi entendido pelos seus discípulos. Por isso, este lado foi deslavado ou aguado já na geração apostólica pelos seus mesmos seguidores.

Para Walter Wink, o cristianismo foi pervertido e feito capelão, ou tutelar religioso e garante moral, de tudo o que o Estado fazia. O Cesaropapismo é a ideologia que passou a governar o mundo ocidental desde que o cristianismo se tornou religião de Estado com o imperador romano Constantino, não obstante Jesus ser contra a união de poderes como concluímos pela sua advertência de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. (Mateus 22,21)

As cruzadas e a Inquisição são os casos mais exponenciais onde os interesses da política se unem e coincidem como os interesses da religião, fundindo-se num único objetivo e estratégia, justificando-se mutuamente. Pelas cruzadas a Igreja, que as declarou, mobilizou exércitos para defender os lugares santos ocupados pelos muçulmanos, o conceito de guerra santa, o matar em nome de Deus é o “non plus ultra” na autojustificação da violência.

A Inquisição, instrumento da Igreja para purificar e obrigar os fiéis à verdadeira fé e doutrina, foi mais usada pelo Estado que pela própria Igreja; o caso mais flagrante foi a condenação de Joana d’ Arc. Tanto no mundo católico como no mundo protestante, a caça às bruxas era promovida pelo Estado, com o beneplácito da Igreja, que dessa forma se via livre de indivíduos que ameaçavam o sistema.

O triangulo de Karpman ou das "Bermudas"
Em suma, o mito da violência redentora é a história da vitória da ordem sobre o caos através da violência. Como neste mito a violência se apresenta como a única solução possível ante o caos, a barbárie e a anarquia; como a violência não é um problema, mas sim um facto, o nosso mundo nem é perfeito nem é aperfeiçoável. O mundo é o teatro de um eterno conflito no qual vigora uma versão mais ou menos branda da lei da selva, ou seja, da lei do mais forte.

Em última análise, a violência redentora não redime coisa nenhuma, nem a vítima, nem o vilão, muito menos resolve o problema ou conflito que a originou. A única coisa que faz é perpetuar-se a si mesma numa espécie de eterno círculo vicioso. Assim sendo temos uma versão do triângulo de Karpman (perseguidor – salvador – vítima, equivalente a vilão – vítima – herói) e desta espécie de triângulo das Bermudas, ninguém sai vivo.

O pensamento grego está formatado no mito do eterno retorno, a própria dialética hegeliana de tese-antítese-síntese que se transforma numa nova tese à qual segue uma nova antítese e assim por diante ad infinitum… tem este mito como paradigma; é ao fim e ao cabo, o mesmo mito que faz dizer a alguns que a História se repete. Círculo vicioso é também a visão do tempo na filosofia grega; o deus do tempo chamado Cronos dá à luz filhos e come-os.

Se não mudarmos de paradigma, se não destituirmos o mito babilónico e adotarmos o mito bíblico, não há esperança, o mundo está num beco sem saída pelo que a autodestruição da humanidade é o fim mais provável.

Contrário ao paradigma grego do eterno retorno, o pensamento judeu é bem diferente pois está enraizado na epopeia hebraica da saída da escravidão do Egipto - passagem pelo deserto de purificação - e entrada na Terra prometida da liberdade. O tempo não é cíclico, mas sim linear; nesta visão do tempo nunca regressamos ao ponto de partida, como um rato a correr numa roda, mas caminhamos para um futuro que nos possibilita um progresso ad eternum.
Pe. Jorge Amaro, IMC