15 de outubro de 2022

Perfil do missionário do século XXI - 2ª Parte

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Enraizado na tradição
O missionário não é um franco-atirador; pertence a uma comunidade de vida com a qual se confronta, da mesma forma como se confronta com a Palavra de Deus que se esforça por encarnar.

Para uma árvore ter saúde, deve crescer nos dois sentidos: tanto para cima como para baixo. Neste sentido, o missionário confronta-se também com uma comunidade formada por todos os que, desde o princípio e ao longo de 2000, viveram na fé apostólica por exemplo: os padres da Igreja, Jerónimo, Agostinho, Tomás de Aquino, Boaventura, Teresa de Ávila… literatura como a Divina Comédia de Dante, pintura como a Capela Sistina de Miguel Ângelo, a música de Beethoven, Mozart, etc.

O missionário de hoje ama a tradição na qual está bem plantado, e vê-se a si mesmo como continuador da mesma, como corredor no aqui e agora numa corrida de estafetas que começou quando Cristo passou o testemunho a Pedro e aos apóstolos. Esta fé, que é essencialmente apostólica, vai passando de geração em geração, até ao fim dos tempos, pelos apóstolos de hoje, os missionários.

Demarcamo-nos do “sola fide sola gratia sola scriptura solus christus” de Lutero e seguidores. Primeiro, porque a Escritura ou Palavra de Deus, enquanto palavra escrita, é posterior à Igreja, ou seja, à tradição. É óbvio que as cartas de S. Paulo às comunidades de Tessalónica, Éfeso, Corinto e Roma são posteriores à constituição destas mesmas comunidades: o endereço existe antes da carta e não o contrário.

Os evangelhos são posteriores a muitas dessas cartas e supõem a reflexão dessas mesmas comunidades. Sem Igreja não haveria Novo Testamento, como sem povo de Israel não haveria Antigo Testamento.

Segundo, dogmas como Cristo verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus e o dogma da Santíssima Trindade, aceites por todos os protestantes, são extra bíblicos, são produto da reflexão da Igreja, ou seja, pertencem à tradição. Não faz sentido, aceitar a tradição até um certo tempo e depois rejeitá-la por princípio.

Amante da liturgia
(…) vi o Senhor sentado num trono alto e elevado; as franjas do seu manto enchiam o templo. Os serafins estavam diante dele, cada um tinha seis asas; com duas asas cobriam o rosto, com duas asas cobriam o corpo, com duas asas voavam. E clamavam uns para os outros: «Santo, santo, santo, o Senhor do universo! Toda a terra está cheia da sua glória!» E tremiam os gonzos das portas ao clamor da sua voz, e o templo encheu-se de fumo. Isaías 6,1-4

A liturgia e os sacramentos celebram a fé e são meios para crescer na fé. Sem a liturgia e os sacramentos, o povo de Deus não seria povo pois não se encontraria. Sem Eucaristia não há Igreja, sem Igreja não há eucaristia; só o corpo místico de Cristo que é a Igreja pode celebrar o corpo sacramental de Cristo.

Para além de celebrar, crescer na fé e fazer comunidade, a liturgia e os sacramentos são encontros virtuais com Deus. O grande profeta Isaías encontrou a sua vocação numa liturgia bem celebrada, na qual sentiu a presença de Deus. É a beleza do templo onde se celebra, a beleza das vestes dos ministros, as orações, os cânticos, a música, o incenso, o silêncio, o recolhimento, tudo contribui para fazer vibrar o nosso coração e sentirmos a presença de Deus como a sentiu Isaías.

Entoa o seu magnificat
A minha alma glorifica o Senhor. Meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da sua serva. Doravante todas as gerações me proclamarão Bem-aventurada.
Porque o Todo-poderoso fez em mim maravilhas. Santo é o seu nome
. Lucas 1,46-55

Ser missionário é, tal como Maria, entoar o Magnificat das maravilhas que o Senhor operou na nossa vida, de como a reprogramou, reorientou e lhe deu um objetivo. O Magnificat de Maria, como o de qualquer pessoa que experimentou a presença de Deus atuante na sua vida, é uma explosão de alegria; é um “non plus ultra”, o constatar que Deus nos enche as medidas, que “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17, 28)

O missionário, portanto, não é primeiramente aquele que anuncia o evangelho, o que catequiza, o que fala “objetivamente” de Jesus, da sua história, vida e milagres; isso seria proselitismo, não missão. O missionário não fala “objetivamente” de Cristo, mas subjetivamente, pois é a partir da sua experiência e vivência de Cristo que anuncia o “Kerigma”, ou seja, o evangelho.

Itinerante
Para muitos evangelizadores de agora, a constante é viver retirados da vida social, confinados a um âmbito restrito sacristia-Igreja-sacristia, esperando que o povo ouça o sino tocando “pardais ao ninho” e venha a eles, sentindo-se frustrados quando são poucos os que vêm.

Para Jesus, a constante era estar fora e ir ao encontro da vida do povo onde esta se desenvolvia. Só de vez em quando, sobretudo à noite quando o povo descansava, se retirava também Ele em intimidade com o Seu Pai. Jesus era como um carteiro que entregava a cada pessoa uma Boa Nova personalizada e todos encontravam em Jesus a saúde – salvação que com fé buscavam.

Muitas vezes o evangelizador confina-se ele mesmo, outras vezes é o próprio povo de Deus que o quer confinado, pois não vê com bons olhos a sua presença em certos ambientes. A ambos é preciso recordar que Jesus entrava em casa de pecadores, comia com eles e convivia com mulheres, tanto de boa como de má reputação, e não se contagiava pelos seus pecados ou forma de vida: pelo contrário, eram “contagiados” pela positiva todos os que entravam em contacto com Ele.

“Omnia munda mundis”, tudo é puro para os puros. Tal como para Jesus, para o evangelizador atual não deve haver nenhum sítio proscrito. “Onde não entra o sol, entra o médico” – como o evangelizador é, ao mesmo tempo, o Sol e o médico, se não entra como sol, entra como médico.

Itinerante foi Jesus, itinerantes foram Paulo, Francisco de Assis, Francisco Xavier, etc. itinerantes devem ser os evangelizadores de hoje. Se as Testemunhas de Jeová conseguem arranjar prosélitos com uma mensagem tão pobre e deficitária, quanto mais não arranjaríamos nós se tivéssemos a sua coragem e o seu zelo.

Jesus escolheu para discípulos pescadores e não pastores. Os pescadores não têm ovelhas que cuidar, não têm nada, podem ter peixe se saírem com os seus barcos e o pescarem, como faziam Pedro e o seu irmão André. Para o pescarem, precisam de remendar as redes, como faziam os filhos de Zebedeu com o seu pai, o que equivale a dizer que o missionário de hoje deve ser uma pessoa de oração e formação permanente.

A oração não é tempo perdido para a evangelização pelo contrário: por ela e nela o missionário purifica a palavra de Deus das impurezas que ele mesmo lhe coloca com o seu caráter, personalidade e outras crenças e convicções.

Para além da oração que coloca o missionário em contacto com o Senhor da Vinha e da mensagem que o evangelizador proclama, este deve ser um homem de reflexão. Com vinagre não se caçam moscas, para cada tipo de peixe há um tipo de rede ou de anzol. O pregador não prega da mesma forma a crianças, a jovens e a adultos, numa cultura ou noutra; deve adequar a Palavra aos que a ouvem.

Amante dos novos Média
A Internet é o sexto continente. Papa Francisco

Com as redes sociais, a Internet já não é só a nova enciclopédia do saber, onde todos vão pesquisar, mas é também um lugar de encontro virtual em tempo real entre pessoas de diferentes latitudes e longitudes, culturas, etnias e religiões. A partir deste púlpito virtual, a Palavra de Deus chega a mais gente e a um tipo de gente que, por uma razão ou outra, não frequenta as Igrejas.

É certo que aqui a Palavra de Deus compete com muitas outras palavras; mas como não há Boa Nova mais bonita, mais razoável e mais humana, que o evangelho, nem é preciso ser grande comunicador para a fazer render 100% quando é aqui semeada. (Cf. A parábola do semeador em Mateus 13: 1–9, 18–23

O evangelizador de hoje que descuida este novo areópago não está a ser fiel às palavras de Jesus “Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura.” (Marcos 16,15)

Conclusão – Enraizado na tradição, respaldado por uma comunidade, o evangelizador de hoje, prega a tempo e a destempo, a propósito e a despropósito em todos os areópagos, ou seja, em todos os lugares onde a gente se reúne.

Pe. Jorge Amaro, IMC












1 de outubro de 2022

Perfil do missionário do século XXI - 1ª Parte

Sem comentários:

Ter uma relação íntima e pessoal com Cristo O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, (…) isso vos anunciamos. 1ª João 1, 1,3

O Teólogo Karl Rhaner disse que os cristãos do futuro ou são místicos ou não são cristãos. Ser cristão é fundamentalmente ter uma relação afetiva com Cristo como a tiveram os primeiros cristãos, os seus discípulos, que Ele escolheu primariamente não para serem continuadores da sua obra, mas para que vivessem com Ele. (Marcos 3, 14).

O cristianismo não é, portanto, uma doutrina ou uma filosofia de vida; é uma relação afetiva com Cristo que leva a uma relação afetiva com todos os que nos rodeiam. Para o cristão de hoje, como sempre, o afetivo tem de ser efetivo, ou seja, tem de mudar a vida e dar ao cristão de hoje autorrealização e felicidade.

O principal papel de um missionário é evangelizar, não é catequizar nem fazer caridade, mas sim testemunhar a relação pessoal e íntima de amor que tem com o Senhor e oferecer essa mesma experiência aos outros. Ninguém dá o que não tem; se não temos essa relação, não podemos nem devemos ser missionários.

O evangelizador que anuncia Aquele com o qual não tem uma relação íntima é como um papagaio; fala do que aprendeu e, em vez de se colocar ao serviço da Palavra, coloca a Palavra ao seu serviço, ou seja, usa-a subliminarmente para se pavonear e promover.

Dom de palavra
O missionário deve ser o que em inglês se chama um “motivacional speaker” (orador motivacional), empolgante, cheio de ardor e entusiasmo. Um bom comunicador até banha da cobra consegue vender. O nosso produto, a Palavra de Deus, já deu ao longo de mais de 2000 anos provas da sua excelência.

Uma Palavra de Vida comunicada sem vida desautoriza-se a si mesma. Nós, mais que ninguém, temos razões para estar alegres pois possuímos uma fé que dá sentido ao nosso existir aqui e agora e nos lança para o futuro, cheios de Esperança, sem nada que temer.

Conhecer a Bíblia
Todo o doutor da Lei instruído acerca do Reino do Céu é semelhante a um pai de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro Mateus 13, 52.

O evangelizador do nosso tempo deve ser um bom conhecedor da Sagrada Escritura e ser capaz de trazer a realidade à Escritura para nela encontrar iluminação, respostas e soluções ou levar a Escritura à realidade para que a Palavra de Deus encarne em atitudes, comportamentos e ações concretas.

Muitas seitas cristãs e os coptas na Etiópia colocam o Novo Testamento ao lado do Antigo, dando igual importância a um e a outro. Isto é errado porque o Novo Testamento, a Nova Aliança, não pode ter o mesmo valor que a anterior; se assim fosse, não precisávamos dela. A Nova Aliança veio substituir e dar cumprimento à antiga. O Antigo Testamento deve ser lido a partir da perspetiva do Novo e na medida em que concorda com o Novo.

O Antigo Testamento contextualiza o Novo, por isso não se entende o Novo Testamento sem entender o Antigo; assim como não se entende o Antigo Testamento sem conhecer e entender a história do povo de Israel.

Conhecer a nossa cultura
O cristianismo começa com o Natal; o missionário é aquele que faz nascer a Cristo, ou seja, encarna a Palavra de Deus em cada momento e em cada lugar. Para este efeito, precisa de possuir um conhecimento profundo da cultura e do momento histórico que o povo atravessa. Ter “o jornal numa mão e a Bíblia na outra” como dizia o grande teólogo protestante Karl Barth.

Encarnar a Palavra é saber encontrar nela a salvação para o “aqui e agora” de um povo; ou seja, a resposta às questões e a solução para os problemas do momento presente. Neste sentido, o missionário está chamado a ser um profeta, o homem que sabe ler os sinais dos tempos; “the man of the year” (o homem do ano), o líder natural, um Moisés que pode guiar o povo pelo caminho da salvação, ou seja, da plena saúde espiritual, física, mental e moral.

Conclusão – Como o bispo diz na ordenação de um diácono ao entregar-lhe os Evangelhos, assim deve ser um missionário de hoje: “Recebe o Evangelho de Cristo, que tens missão de proclamar. Crê no que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas.”

Pe. Jorge Amaro, IMC