15 de dezembro de 2023

XII Mistério - Coroação de Maria como rainha do céu e da terra

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Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Apocalipse, 12, 1

Paulo VI na sua Exortação Apostólica encíclica “Marialis Cultus” diz que a Solenidade da Assunção se prolonga jubilosamente na celebração da realeza de Maria. A mãe de um rei é rainha, rainha mãe. Não foi uma realeza herdada como filho de rei é rei, também foi uma realeza conquistada a pulso, uma realeza que doeu.

Foi uma coroa de glória precedida de uma coroa de espinhos, ou a espada profética de muito sofrimento referida pelo velho Simeão que Maria teve que passar por causa do seu filho. A realeza de Maria é, portanto, uma realeza por mérito, algo semelhante a um prémio Nobel pelos seus bons serviços prestados à humanidade.

S. Paulo, numa das suas cartas, fala dos atletas que se sacrificam com dietas e exercícios para depois ganharem uma coroa que murcha. Se isso acontece com eles, quanto mais acontecerá connosco caso queiramos ganhar, como Maria, uma coroa eterna de glória. Temos de aceitar os sofrimentos que vêm ao nosso encontro.

Maria e a imperatriz St. Helena
Ao pensar no que é dito neste texto, pois não existe uma base histórica para as coisas que entendemos que acontecem no Céu, pensei numa outra mulher que chegou bem alto começando, como Maria, muito por baixo, e que, tal como Maria, viveu para estar 100% ao serviço do seu filho. Trata-se, da imperatriz Sta. Helena que viveu ao serviço do seu filho.

Sta. Helena não nasceu de nenhuma família nobre em Roma, nasceu na Ásia Menor e, como o próprio nome indica, não era romana, mas sim grega. Casou com o imperador romano Constâncio Cloro que andava pela Ásia Menor em campanha militar. O seu filho é Constantino I que se tornou imperador romano em York, na Inglaterra em 306. Este conferiu a sua mãe o título de Imperatriz. Mais tarde, esta converteu-se ao cristianismo, o mesmo sucedendo com o seu filho, devido à grande influência que esta tinha junto dele.

Nos seus últimos anos de vida, fez uma peregrinação à Terra Santa. Naquele tempo Jerusalém ainda se chamava Aelia Capitolina, depois das tropas do imperador Tito a terem destruído. No lugar do Santo Sepulcro e Gólgota tinham construído um templo à deusa Vénus.

Helena mandou destruir o templo e construir sobre ele a grande Igreja do Santo Sepulcro, no sítio onde ela encontrou a verdadeira Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Helena construiu muitas outras igrejas, mais tarde destruídas pela ocupação muçulmana. As únicas duas que permanecem de pé e que são as principais, são a do Santo Sepulcro em Jerusalém e a da Natividade em Belém.

Muitas imagens de Sta. Helena a representam abraçando a cruz, a mesma cruz aos pés da qual Maria chorou a morte do seu Filho. Como Maria se alegrou com a Ressurreição do seu Filho e o fim do seu sofrimento, Helena representa o fim do sofrimento dos discípulos do seu filho que, até ela e ao seu filho Constantino, tinham sofrido a perseguição romana e o martírio de serem comidos pelas bestas nas arenas romanas. Helena é a primeira imperatriz ou rainha cristã; Maria, a rainha das rainhas, a rainha do Céu e da Terra.

Rainha mãe
Salve rainha, Salve rainha, Senhora minha mãe de Jesus (cântico mariano português)

Salve Regina, Mater misericordiae, ita dulcedo et spes nostra salve. Ad te clamamus exsules filii Hevae. Ad te suspiramus gementes et flentes, in hac lacrimarum valle. Eja ergo advocata nostra, illos tuos misericordes oculos ad nos converte. Et Jesum benedictum fructum ventris tui nobis post hoc exsilium ostende. O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria.

Nos meus tempos de estudante em Inglaterra, era ainda viva a rainha mãe da atual rainha Isabel II. Esta rainha mãe era uma figura muito querida pelo povo. Também ela era rainha, não por ter reinado mas porque o seu marido tinha sido rei. Tinha o título de rainha consorte e, naquele tempo, de rainha mãe de Isabel.

Maria é rainha mãe porque é mãe de Cristo que é Rei do Universo. A Mãe de Cristo, cabeça da Igreja que é o seu corpo místico, está sentada à direita do seu Filho como a rainha, ornada com ouro de Ofir do salmo 45 (44), 10.

Salve Regina, Mater misericordiae, – rainha porque mãe de Jesus, nossa rainha porque nossa mãe, uma mãe misericordiosa como Deus Pai. Uma mãe que por ser carne da nossa carne, totalmente humana, é ponte para o seu Filho. Um “Pontifex maximus” para aceder ao seu Filho porque ela, como a imperatriz Helena, sabe aceder ao coração do seu Filho e obter d’Ele para nós todas as graças de que necessitamos, tal como já o fez em Caná aparentemente com a oposição inicial d’Ele.

Rainha dos anjos, dos patriarcas, dos profetas, dos apóstolos dos mártires, dos confessores, de todos os santos, rainha da paz, como diz a ladainha em seu louvor. Maria é sobretudo rainha dos nossos corações onde reina com o seu amado Filho.

A Rainha Mãe em Israel
À tua direita está a rainha ornada com ouro de Ofir. Salmos 45 (44), 10

No episódio bíblico sobre a subida ao trono do rei Salomão, damo-nos conta da reverência do rei pela sua mãe Betsabé, quando esta vem visitá-lo: o 1º livro de Reis, capítulo 2, versículo 19, diz:

“Betsabé foi, pois, ter com o rei para falar-lhe em favor de Adonias. O rei levantou-se para lhe ir ao encontro, fez-lhe uma profunda reverência e sentou-se no trono. Mandou colocar um trono para a sua mãe, e ela sentou-se à sua direita” 1º Reis 2, 19

Essa atitude de Salomão remete imediatamente para o Salmo 44 acima citado. Os hebreus mantiveram essa tradição até o exílio da Babilónia, quando deixaram de ter reis. A partir dessa época, começa-se a esperar a vinda do novo filho de David, o Messias. Segundo a tradição, Maria é também da tribo de Judá, como José, ou seja, pertence também ela por nascimento à família real.

De facto, o anjo Gabriel já saudou Maria com o título de Ave, título usado para os imperadores de Roma. Ela estava destinada a ser rainha do Céu e da Terra, por isso já era rainha do Céu e da Terra quando aceitou ser mãe do Filho unigénito de Deus, o rei do universo.

Nesse mesmíssimo momento, ao conceber o rei, tornou-se rainha. Por outro lado, ao ser concebida sem pecado original, Maria já nasceu predestinada para ser rainha. A conceição imaculada de Maria faz correr nas suas veias o sangue azul da humanidade, por Deus criada sem o pecado original. Ao ser concebida sem pecado original foi já concebida como rainha.

“Tu és a glória de Jerusalém... tu és a honra de nosso povo... o Senhor te fortaleceu e por isso serás eternamente bendita. Judite 15, 10 b; 11 b

Conclusão – Maria é rainha do Céu e da Terra por ser mãe de Cristo, Rei do Universo. A sua coroação é algo semelhante a um prémio Nobel pelos serviços prestados em prol da salvação da humanidade.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de dezembro de 2023

XI Mistério: Dormição e Assunção de Maria

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«A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exultou em Deus, meu Salvador, porque pôs o olhar na humildade da sua serva. Eis que, a partir de agora, me chamarão feliz todas as gerações, porque o Poderoso fez em mim grandes coisas. Santo é o seu NomeLucas 1, 47-55

Tal como Maria iniciou a Jesus neste mundo e o levou a todos lados de pequeno e o lançou na vida pública antes do tempo nas bodas de Caná, assim agora é Jesus que a leva para o Céu em corpo glorioso semelhante ao Seu e a introduz no Seu mundo onde Ele é Senhor do Universo.

A exaltação da humilde serva de Sião
Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado. Mateus 23, 12 - A Assunção de Maria é a exaltação dos humildes da qual nos fala o evangelho, neste caso da humilde serva de Sião na qual o Senhor pôs os olhos já antes do seu nascimento, fazendo com que a sua conceição fosse imaculada.

Com humildade suportou o vexame de se achar grávida sem poder explicar a origem da gravidez; com humildade suportou os sofrimentos do seu filho quando este começou a encontrar a oposição nos líderes de Israel; com humildade e abatimento suportou a sua morte; agora, com mérito é exaltada e ascende ao Céu para estar sempre com Aquele que ela gerou, o Filho primogénito de Deus.

Assunção ou Dormição são a mesma coisa. O oriente celebra mais como Dormição, o ocidente mais como Assunção. Na minha terra é mais celebrada como Dormição. Desde criança que na minha terra se coloca o esquife ou caixão onde jaz uma imagem deitada da Nossa Senhora. No dia 15 de agosto, este esquife é colocado no lugar onde habitualmente se coloca o caixão dos mortos para a missa de corpo presente. Assim, a missa da Assunção de Maria ao Céu é como se fosse uma missa de corpo presente.

História do dogma da Assunção
Pela autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e em nossa própria autoridade, pronunciamos, declaramos e definimos como sendo um dogma revelado por Deus: que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, tendo completado o curso de sua vida terrena, foi assumida, corpo e alma, na glória celeste. Munificentissimus Deus, Pio XII 1 de novembro de 1950

A declaração do dogma da Assunção de Maria Santíssima ao Céu em corpo e alma, é bastante recente. No entanto, tanto este como todos os outros têm uma longa história de quase 2 000 anos de reflexão teológica, de piedade popular e espiritualidade e, em alguns casos, até de confirmação celeste, como acontece com o dogma da Imaculada Conceição nas aparições de Lourdes.

A primeira alusão à passagem de Maria deste mundo para o Céu acontece no século IV; Epifânio de Salamina, em 377, afirmou que ninguém sabia se Maria havia morrido ou não. A mais antiga narrativa é o chamado "O Livro do Repouso de Maria", do qual existe apenas uma tradução copta etíope, entendida como sendo do século IV, embora possa muito bem ser do século III.

A Assunção ao Céu da Nossa Senhora também aparece no livro “De Transitu Virginis”, uma obra do final do século V, atribuída a S. Melito. Este livro conta que os Apóstolos vieram transportados por nuvens brancas, cada um da cidade onde se encontrava no momento, para assistir à Dormição de Maria. Esta história tem uma continuação séculos mais tarde, com um apêndice segundo o qual Tomé, como sempre, não compareceu a este funeral de Nossa Senhora e, quando chegou mais tarde, fizeram abrir o túmulo que encontraram vazio.

Onde ocorreu esta Assunção ou Dormição não se sabe, uns dizem em Jerusalém, outros em Éfeso onde, segundo a tradição, viveu Maria os últimos anos da sua vida com S. João, na conhecida “Casa de Maria” que ali se encontra até aos dias de hoje e que pode ser visitada.

Com a sua Assunção ao Céu, Maria cumpre o que S. Ireneu disse: que Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus. Assim se cumpre o sonho de Eva que queria ser como Deus. Maria chegou a ser como Deus ao ser mãe. Pela obediência, o ser família íntima de Deus está aberto a todos nós: é “a minha mãe e os meus irmãos são os que ouvem a minha Palavra e a põem em prática.”

Assunção como união com Deus
"Fizeste-nos Senhor para ti e o nosso coração anda inquieto enquanto não repousa em Ti" Sto. Agostinho

Estamos no mundo, mas não somos do mundo. Ser e estar não são o mesmo verbo como em outras línguas. Estamos no mundo, mas somos do Céu, somos de Deus, de onde viemos e para onde voltaremos. A melhor forma de estar no mundo então é viver desprendidos e nós só conseguimos essa forma de estar no mundo se tivermos as nossas prioridades bem definidas, se Deus for a quem nós mais amamos, em teoria e na prática.

Sempre recordarei a experiência de atravessar os rios caudalosos na Etiópia: não se deve olhar para a água que corre com muita velocidade, mas sim para a margem do rio que não se move. A primeira vez que tive que atravessar um destes grandes rios, comecei a olhar para a água e comecei a ficar enjoado, atordoado e em perigo de ser levado pela corrente. Ao verificarem isto, os moços que me acompanhavam gritaram, “Abba, não olhe para a água, mas sim para a margem do rio”.

Isto pode ser uma metáfora da nossa vida. Tenhamos os olhos fixos não no que se move que é temporal e passageiro, mas no que não se move, em Deus que não muda e é eterno, para não sermos levados pela corrente do presente, para não nos deixarmos embriagar pelo prazer presente ou desesperar pela dor presente. Só atravessaremos bem o rio da vida se tivermos os olhos postos na outra margem, em Deus no Céu. Se não for assim, seremos levados pela corrente, qualquer que seja a tendência, moda, poder, riqueza, coisas do mundo.

Em busca da sua própria identidade, um boneco de sal viajou milhares de quilómetros por um deserto, até que, finalmente, alcançou o mar. Fascinado pela massa estranha e móvel, completamente diferente de tudo quanto tinha visto até então, perguntou:
- Quem és tu?
 Com um sorriso, o mar respondeu:
- Sou o mar.
- Mas o que é o mar? inquiriu o boneco.
- Vem, toca-me e saberás.
O boneco de sal colocou o pé na água e imediatamente ficou sem ele.
- Que fizeste? perguntou assustado.
- Para me conheceres tens de te dar, respondeu o mar.
Então o boneco de sal foi adentrando o mar e, antes de uma onda o cobrir por completo, disse num suspiro:
-  Finalmente descobri quem sou
. Tony De Mello

Se queremos conhecer a Deus já aqui nesta vida, temos que nos envolver. Não podemos conhecer a Deus sem nos comprometermos. Não pode ser um conhecimento frio no qual não nos implicamos, como se fizéssemos aquela experiência do oxigénio com algas e sol. Neste caso, não estamos diretamente envolvidos, mas com Deus, se o conhecermos temos de O amar. O mesmo acontece quando começamos a conhecer uma pessoa que nos é estranha: pouco a pouco começamos a gostar dela até porque o conhecimento entre as pessoas e das pessoas é afetivo; assim é com Deus. Só o afetivo é efetivo, ou seja, é real e surte efeito.

Assunção como Levitação
Uma experiência interessante a realizar em Nova Iorque, se visitarmos o museu da NASA, é a experiência da falta de gravidade: é como voar, as batatas fritas voam, a água em gotas voa também. Voar sempre foi o sonho de todo o ser humano e, de facto, parece ser um sonho muito recorrente em cada um de nós. Eu, pessoalmente sonho muitas vezes que voo.

A Assunção é uma experiência espiritual que fazem aqueles que se desprendem das coisas e afetos deste mundo. Os santos levitavam porque as suas ataduras a esta Terra eram poucas. Sta. Teresa de Ávila dizia, “Vivo sem viver em mim e tão alta vida espero que morro porque não morro...” A Assunção é como levitar, quando nos desprendemos do que nos liga à Terra, dos afetos pelos bens temporais e até por pessoas.

O mistério da Encarnação e a emancipação da mulher
Nos primórdios da humanidade, quando os homens ainda não sabiam de onde vinham os bebés, (o efeito estava muito longe da causa: o ato sexual 9 meses antes do nascimento; o mesmo acontece com o melhor raticida cuja eficácia está precisamente em separar no tempo o efeito e a causa) quem reinava na sociedade era a mulher. Ela e só ela era o futuro e a esperança da espécie, ela e só ela trazia novos seres ao mundo.

Consequentemente, o primeiro deus a ser adorado era uma deusa: a deusa da fecundidade da terra e da mulher. Terra ainda hoje é um termo feminino em quase todas as línguas. Foi também a mulher que inventou a agricultura. Porque a mulher era vista como a origem da vida, deus era concebido com forma feminina.

Quando a conexão entre o coito e o nascimento de um bebé foi estabelecida, a mulher perdeu pouco a pouco todo o prestígio social. Ao princípio da deusa feminina foi acrescentado o homem consorte. Com o tempo, o consorte expulsou do céu a deusa e ficou sozinho. A mulher é só como a terra que o homem trabalha e domina, Deus manda a chuva como o homem semeia o sémen, todo o novo ser está contido no sémen do homem, a mulher é só o recetáculo.

Neste novo conceito de Deus, Yahveh é rei e senhor e os reis naquele tempo não tinham uma rainha, mas um harém de mulheres. A mulher foi então tratada como a terra na agricultura “Crescei e multiplicai-vos, dominai a terra... e a mulher desapareceu da cena social e do céu habitado por um rei, todo poderoso e sozinho. A mulher foi a última a ser criada e a primeira a pecar.

O cristianismo é um fator emancipador da mulher. Vejamos, nas sociedades não cristãs a mulher é maltratada. Ainda hoje, em África, a mulher é quem trabalha, o homem não faz nada; a mulher é vendida, obrigada a casar-se aos 15 anos com homens de 50 ou mais. No Japão, serve de prato nos restaurantes, ainda hoje. Na Ásia, e nas Filipinas que a mulher está mais emancipada. Os muçulmanos circuncidam a mulher de forma a que ela nunca tenha prazer sexual.

A anunciação foi o começo desta emancipação da mulher. Deus, para vir ao mundo, precisou de uma mulher e não de um homem. E não foi só o ventre que usou, foi também o óvulo. Com a vida de Maria, a mulher voltou ao Céu na Assunção, como mãe do Filho unigénito de Deus.

Nenhum homem nasceu sem o pecado original, só ela; Deus não precisou do espermatozoide do homem, mas do óvulo da mulher. Maria aponta para o rosto feminino de Deus, como Jesus de Nazaré, o seu Filho, para o rosto masculino de Deus.

Conclusão – A Assunção de Nossa Senhora ao Céu, é o desfecho lógico da sua vida na Terra. Concebida sem pecado original, deu à luz o autor da vida, tornando-se Mãe de Deus. Maria introduz Jesus no mundo, Jesus introduz a sua mãe no Céu.

Pe. Jorge Amaro, IMC



15 de novembro de 2023

X Mistério: Maria mãe da Igreja em Pentecostes

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"Tendo entrado no cenáculo, subiram ao quarto de cima, onde costumavam permanecer. Eram eles: Pedro e João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelador, e Judas, irmão de Tiago. Todos eles perseveravam unanimemente na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele." Atos dos Apóstolos 1, 13-14

Igreja ou Reino de Deus?
“Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas o que veio foi a Igreja.” - Alfred Loisy (1857-1940)

Há uma descontinuidade entre Jesus de Nazaré e a Igreja; de facto, enquanto a palavra “Ekklesía” só aparece duas vezes, e apenas no evangelho de S. Mateus 16,18; 18,1, em dois textos muito discutíveis, a expressão Reino de Deus ou Reino dos Céus, como prefere Mateus, aparece 127 vezes.

Existe, portanto, um flagrante contraste com a palavra IGREJA, que aparece 112 vezes e quase só nos Atos dos Apóstolos e nas Cartas, a palavra REINO, aparece 162 vezes e, destas, só 35 vezes aparece no livro dos Atos e nas Cartas; as restantes 127 vezes aparecem nos evangelhos. Fica assim demonstrada a importância que o Reino de Deus tinha para Jesus e a pouca importância que este mesmo Reino tinha para a Igreja nascente fundada por Cristo.

A Igreja, como corpo místico de Cristo, não pode ter outro objetivo senão continuar a obra de Cristo. Portanto, o objetivo da sua existência não é implantar-se em todos os cantos desta terra, mas sim levar a Boa Nova do Reino a todos os cantos da Terra.

O objetivo principal não é produzir cristãos, aumentar o número dos seus membros, mas sim juntar-se a todos os homens de boa vontade, de outras religiões, ateus ou agnósticos e, com eles, ajudar na construção de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa e mais fraterna, onde reina a justiça, a paz e a harmonia e o amor entre os povos. Se este tivesse sido o objetivo da Igreja desde o início, tal como foi do seu fundador, não teria havido fundamentalismos como a Inquisição, nem guerras santas como a movida pelas cruzadas.

Igreja, fermento do Reino de Deus
A Igreja é a forma que Cristo teve de estar aqui e agora, em todos os “aquis” e “agoras” da história da humanidade. Cristo só podia ter uma única vida humana, mas a sua Palavra era eterna para todos os tempos e todas as culturas; Ele mesmo não foi Caminho, Verdade e Vida para os homens do seu tempo, mas para toda a raça humana; para isso, tinha de deixar alguém que continuasse a sua obra.

Não faz nenhum sentido que o verbo eterno de Deus se tenha encarnado, o filho unigénito de Deus tenha adquirido natureza humana, o criador se tenha feito criatura só para salvar os que viveram durante a sua vida terrena.

É certo que a palavra Igreja, como dissemos, só aparece duas ou mesmo uma única vez em todos os evangelhos, o facto de Jesus ter escolhido, desde o princípio, colaboradores seus com a obra do Reino demonstra que Jesus quis deixar uma estrutura que continuasse a sua obra. Já em vida, Jesus enviou os seus discípulos a cidades e vilas onde Ele próprio pensava ir, (Lucas 10, 1) e depois os enviou ao mundo inteiro (Marcos 16, 15-18).

Prova de que estes seus discípulos seriam na terra os seus representantes é o facto de os ter equipado com os mesmo poderes e faculdades que Ele possuía, (Mateus 21, 21; João 14.12). Neste último texto de João, Jesus diz também a razão pela qual passa aos seus discípulos todos os poderes e faculdades: “porque eu vou para o Pai”.

Apesar de ir-se, garantiu aos seus discípulos também que estaria com eles até ao fim dos tempos (Mateus 28, 20) e o facto de ter dito a Paulo não “porque persegues os meus discípulos?”, mas sim “por que me persegues?” (Atos dos Apóstolos 9, 4). Por último, na sua oração sacerdotal, Jesus reza pelos seus discípulos, mas também por aqueles que iriam acreditar no seu testemunho (João 17, 20).

A Igreja não existe para si mesma nem deve pregar-se a si mesma, pois o seu Mestre e fundador não se pregou a si mesmo: a Igreja existe para a Missão, ou seja, para continuar a obra do seu fundador e o objetivo da Missão que é o Reino. Igreja é o que somos, é a nossa identidade, o Reino é a nossa missão, o que fazemos. A Igreja é o fermento que vai levedar o mundo até se transformar todo ele em reino de Deus.

Maria e o Reino de Deus
Mostrou a força do seu braço e dispersou os soberbos no pensamento dos seus corações; derrubou os poderosos dos tronos, e exaltou os humildes; aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu sem nada. Lucas 1, 51-53

A quase totalidade das imagens que se fazem de Maria, tanto estátuas como pinturas, mostram uma mulher comedida nas palavras e nas ações, humilde e até submissa, serena pacífica e triste… não refletem esta faceta de Maria, a Maria do Magnificat ou, ao menos, da parte do Magnificat que citei.

Sempre que leio, recito ou medito esta parte do Magnificat, a imagem de Maria que vem à mente é aquela da mulher de tronco nu com a bandeira da república na mão, em posto de comando, à frente do povo na Revolução Francesa. Esta imagem sim faz jus ao conteúdo da oração do Magnificat.

Não parece verosímil que a mulher que representam as imagens de Maria possa ter dito que Deus vai derrubar os poderosos dos seus tronos, que vai dar aos pobres e tirar aos ricos. Mas quem disse isso parece ser verdadeiramente mãe daquele que fez precisamente isso: Jesus de Nazaré. “De tal palo tal astilla” diz um provérbio castelhano, “Filho de peixe sabe nadar” diz o seu correspondente em português. Maria parece anunciar nestas frases o reino que estava para vir com o seu filho; um reino de Justiça e de Paz. 

Ecclesiae Mater
“Mãe da Igreja, isto é, de todo o Povo de Deus, tanto dos fiéis como dos pastores, que lhe chamam Mãe amorosíssima” e estabeleceu que “com este título suavíssimo seja a Mãe de Deus doravante honrada e invocada por todo o povo cristão”. Paulo VI 21 de novembro 1964 ao encerrar o Concílio Vaticano II

Maria é mãe da Igreja porque é mãe de todos e cada um dos discípulos do seu filho (João 19, 25-27). Como cada um dos discípulos do seu filho é “ipso facto” membro da Igreja também, logo Maria é mãe da Igreja.

Maria é mãe da Igreja porque é mãe do seu fundador, porque, como discípula do seu filho, seguiu os seus passos juntamente com outras mulheres, e não abandonou a companhia dos seus discípulos depois da morte, ressurreição e ascensão aos Céus do seu filho.

Cristo é a cabeça do seu corpo místico que é a Igreja; ora o nascimento da Cabeça é, também, o nascimento do Corpo, o que indica que Maria é, ao mesmo tempo, mãe de Cristo, Filho de Deus, e mãe dos membros do seu corpo místico, isto é, da Igreja. A maternidade divina de Maria não terminou com o nascimento de Jesus; ela está durante toda a sua vida na Terra, e agora no Céu, intimamente unida à obra redentora do seu filho

Maria é mãe da Igreja porque, tal como assistiu ao nascimento do Seu filho também assistiu ao nascimento da Igreja, pois ela, como outras discípulas de Jesus, estava junto dos discípulos do seu filho no dia de Pentecostes em que o Espírito Santo desceu sobre eles em forma de línguas de fogo.

Mais que mãe da Igreja ela é “Mater ed Magistral” (“Mãe e Mestra”, título da encíclica de João XXIII) porque ela era já mestra nas coisas do Espírito Santo, ela já tinha concebido por obra e graça da terceira pessoa da Santíssima Trindade, por isso ela mais que ninguém podia instruir os apóstolos sobre como preparar-se para O receber. Mais que mãe, ela foi catequista, pois preparou os apóstolos para receberam o Crisma. Podemos dizer que ela foi a Madrinha do Crisma de cada um dos discípulos do seu filho.

Conclusão: Maria é mãe da Igreja porque é mãe daquele que a fundou, e por vontade do filho expressa do alto da cruz, mãe de cada um dos seus discípulos, membros da Igreja, que juntos formam o corpo místico de Cristo. Se Maria é mãe de Cristo, cabeça do corpo místico que é a Igreja, também é mãe do corpo.

Pe. Jorge Amaro, IMC


1 de novembro de 2023

IX Mistério: Aos pés da cruz do seu filho, Maria torna-se Nossa Mãe

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Junto à cruz de Jesus, estavam de pé a sua Mãe, a irmã da sua Mãe, Maria, mulher de Cleopas, e Maria Madalena. Então Jesus, ao ver a Mãe e, próximo, o discípulo que amava, disse à Mãe: «Mulher, eis o teu filho». Depois disse ao discípulo: «Eis a tua Mãe». E, a partir daquela hora, o discípulo recebeu-a entre os seus. João 19, 25-27

Solidário apesar da dor
Não há nada que te faça mais presente contigo mesmo, mais autoconsciente, que a dor. É de facto uma das melhoras formas de chamar-te a ti mesmo à atenção, provocar dor, nem que seja morder o lábio ou cravar uma unha num dedo.

Jesus padecia no corpo pelo cansaço do caminho da cruz, pela falta de alimento e de sono, pela sensação de asfixia provocada por estar pregado a uma cruz, pela perda de muito sangue desde a flagelação e também pela coroa de espinhos espetada na sua cabeça e pelos cravos que lhe trespassavam os pulsos e os tornozelos.

Jesus padecia no seu coração o facto de ter sido entregue aos sumos sacerdotes e aos romanos por um dos seus, que comia, dormia e o acompanhava a todo lado, sofria porque o resto dos discípulos o tinham abandonado, sofria porque o povo ingrato, os mesmos que tinham sido beneficiados com os seus milagres e que antes o tinham aclamado como Hosana filho de David, haviam gritado “crucifica-O”, exercendo pressão sobre Pilatos que lhes fizera a vontade.

Sofria na alma porque Seu Pai Deus que durante a sua vida esteve tão perto Dele e a quem recorria com frequência, com quem comunicava antes dos momentos mais importantes e dos milagres, esse Pai omnipresente na sua vida estava agora distante ou Jesus assim o sentia ao dizer, “Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?” (Mateus 27, 46, Marcos 15, 34).

Apesar de estar a padecer uma dor tripla – no corpo, no coração e na alma – Jesus ainda pensava mais nos outros que n’Ele mesmo. A dor absorve-nos, faz com que nos centremos em nós mesmos e facilmente nos esqueçamos dos outros. Pensemos nas vezes que tivemos uma dor forte, como uma dor de dentes: parece que tudo e todos desaparecem à nossa volta, só nós existimos, só nós contamos.

Jesus, apesar do seu sofrimento pessoal, conseguia ser empático com a sua pobre mãe que, como a viúva de Naim, ia ficar sozinha no mundo. E mesmo na cruz sem muito poder fazer, confiou-a ao seu discípulo amado. Aquele que já nos tinha dado tudo, que se tinha dado a si mesmo, dava-nos agora a sua querida mãe em herança. Herdamos de Jesus tantas coisas, até a sua própria mãe.

Antes de Jesus eramos apenas criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus; com Jesus, fomos adotados por Deus como filhos adotivos e, como Jesus confiou a sua mãe ao discípulo amado, na medida em que também nós somos discípulos de Jesus, somos adotados por Maria sua mãe como filhos.

Filho único de sua mãe que era viúva
Ao contemplarmos Maria aos pés da cruz do seu filho não podemos deixar de recordar o episódio da viúva de Naim que ia sepultar o seu único filho, sendo ela já viúva e ficando assim sozinha no mundo. Também este sofrimento lhe estava destinado e profetizado por Simeão.

“Em guerra, caça e amor por um prazer cem dores”, “Quem se obriga a amar obriga-se a padecer”. Não há amor sem sofrimento e o amor de Maria ao projeto de Deus e ao Filho unigénito de Deus também seu filho lhe trouxe mais dor que prazeres, mais sofrimento que alegria. E este derradeiro sofrimento era o pior de todos...

“Eu não vou enterrar o meu filho, o meu filho é que me vai enterrar a mim” dizia um pai que sequestrou uma sala de operações de um hospital e obrigou o médico a operar o seu filho por não ter dinheiro para a operação. Não deve haver dor psíquica maior que a de ver um filho padecer e morrer, enquanto a mãe nada pode fazer...

Pela ordem natural das coisas, primeiro morrem os pais, depois os filhos. Por isso, ver morrer um filho vai contra a ordem natural das coisas e inutilizar a vida dos pais, que se vão deste mundo sem poder deixar a ninguém a sua herança, seja genética, seja material.

Maria, nossa mãe do Céu
No Céu, no Céu, no Céu, /Um dia a irei ver!
Virgem pura, tua ternura /É de alívio ao meu penar; /Noite e dia, de Maria, /A beleza hei de cantar!


Antes das aparições de Fátima, a pequena Lúcia que não perdia o terço em família ou na Igreja, tinha como cântico mariano preferido o que acima citamos. “No céu um dia a irei ver” referindo-se a Maria; mal ela sabia que ia vê-la ainda na Terra, pois para a ver no céu ia ter de esperar quase cem anos.

Com minha mãe estarei /na santa glória um dia/Junto à virgem Maria /no céu triunfarei.
No céu, no céu, com minha mãe estarei /No céu, no céu, com minha mãe estarei


Este outro cântico demonstra também o carinho que o povo português tem por Maria. Os cânticos anteriores e posteriores às aparições de Fátima demonstram quanto o povo português ama a sua Mãe do Céu.

À segunda parte da oração do Ave Maria falta-lhe este detalhe, a afirmação de que ela é nossa mãe. Deveria ser assim: Santa Maria mãe de Deus e mãe nossa, rogai por nós, teus filhos pecadores, agora e na hora da nossa morte Amém.

Como Abraão para o povo de Sodoma, Moisés para o povo de Deus, Maria era já nossa intercessora. Agora com muito mais razão, ela intercede por nós porque, ao interceder por nós, está a interceder pelos seus filhos. Como Abraão é o nosso pai na Fé, Maria é a nossa Mãe na fé; foi a sua fé, o seu “fiat” que nos trouxe a todos a salvação.

Maria, o rosto feminino de Deus
Umas mulheres judias perguntaram um dia a uma outra mulher judia, professora universitária, sobre qual era na sua opinião a judia mais famosa. E não gostaram de ouvir dos lábios desta professora judia de raça e religião que, quer queiramos quer não, Maria é certamente a judia mais famosa do mundo e eu diria da humanidade inteira, por ser a mãe do verbo incarnado, do Filho unigénito de Deus.

Dentro da nossa visão de Deus que sempre será um pouco antropomórfica, se Jesus representa o rosto masculino de Deus, Maria representa o rosto feminino de Deus. O nosso amor por Maria faz-nos recordar os tempos de antanho, quando a humanidade, ainda num estado primitivo de evolução, entendia que Deus era mãe.

Para fazer jus a esses tempos, o Papa João Paulo I disse que Deus, mais que Pai, era Mãe. Na pintura de Rembrandt sobre o filho pródigo, vemos de facto que o pai do filho pródigo tem uma mão feminina, a que está sobre o coração do seu filho, e outra masculina.

Eva, a nossa progenitora, Maria, a nossa mãe
Eva não foi a nossa mãe, mas sim a nossa progenitora: só nos deu à luz, mas não nos educou. A mãe que educa, cria e alimenta é chamada na Etiópia “Injera enat”, ou seja, a “mãe do pão” que, muitas vezes, não coincide com a que deu à luz.

Tive como colega de noviciado e estudante de teologia um jovem que à tia chamava mãe e à mãe chamava tia. Àquela que o tinha dado à luz, ele chamava tia e àquela que o tinha educado como mãe e que era biologicamente a sua tia, chamava mãe. Eram duas irmãs: uma teve o meu colega de uma forma acidental, mas mais tarde encontrou o homem da sua vida; este não aceitava o filho dela, pelo que a sua irmã, que não pensava em casar-se, ficou com ele para que ela ficasse livre e pudesse iniciar uma vida nova com o seu noivo.

O meu colega não tinha para com a sua progenitora a quem chamava tia nenhum sentimento filial e, no entanto, tinha sido ela que o tinha dado à luz; sentimento filial tinha só por aquela que o tinha criado com muito amor, educado e guiado na vida, dedicando-se a ele exclusivamente, pois nunca quisera casar. E, no entanto, a nível biológico, era só a sua tia.

No ser humano, a biologia pouco conta. Chamamos-lhe Madre Teresa de Calcutá e suponho que ninguém se atreveria a negar-lhe o título de madre. No entanto, como todos sabemos, ela nunca foi biologicamente mãe, embora se tenha comportado como tal para muitas crianças órfãs e até adultos, que viram nela a mãe que nunca tiveram.

A devoção do povo cristão, ao menos dos católicos e ortodoxos, a Maria parte da proximidade que temos com a nossa mãe na Terra. Ela está mais perto de nós que o nosso pai e, muitas vezes, fazemos dela intermediária entre nós e ele, pois temos mais confiança com a nossa mãe que com o nosso pai.

Ela está sempre ao nosso lado e acompanha-nos mais que o nosso pai. Esta experiência faz com que o povo cristão tenha por Maria uma especial devoção e projete nela a mesma experiência, o mesmo tipo de relacionamento que teve ou tem com a sua mãe.

Maria é nossa mãe porque, como toda a mãe, está atenta às necessidades dos seus filhos, como esteve nas bodas de Caná e está ainda hoje ao visitar-nos em Guadalupe, Lourdes e Fátima. Maria é a nossa mãe porque ela nos educa com o evangelho do seu filho quando nos diz “fazei tudo o que ele vos disser”. Eva foi a nossa progenitora, Ave Maria é a nossa mãe do Céu que acompanha a nossa vida na Terra até nos unirmos a ela no Céu.

A imagem que ilustra este texto representa São Bernardo, um grande amante da devoção mariana, recebendo o leite maternal da Virgem Maria. Uma imagem que choca as nossas mentalidades de hoje em dia, mas que estava muito de acordo com a piedade medieval mariana que exaltava os seios da nossa mãe celeste como os exalta aquela mulher do evangelho de São Lucas.

De São Bernardo é também conhecida a oração mariana chamada “Memorare” que exalta a Maria como mãe e, como tal, intercessora por nós no Céu:

Lembrai-vos, ó puríssima Virgem Maria,
que nunca se ouviu dizer que algum
daqueles que tenha recorrido à Vossa proteção,
implorado a Vossa assistência e reclamado o Vosso socorro,
fosse por Vós desamparado.

Animado eu, pois, de igual confiança,
a Vós, Virgem entre todas, singular,
como a Mãe recorro, de Vós me valho,
e, gemendo sob o peso dos meus pecados,
me prostro aos Vossos pés.
Não desprezeis as minhas súplicas,
ó Mãe do Filho de Deus humanado,
mas dignai-Vos de as ouvir propícia
e de me alcançar o que vos rogo. Ámen

Conclusão: Eva é a nossa progenitora, Ave Maria é a nossa Mãe, pois é ela que nos educa, dando à luz a Palavra Deus em forma humana, a referência de humanidade, Jesus de Nazaré.  

Pe. Jorge Amaro, IMC


 

15 de outubro de 2023

VIII Mistério, Maria discipula e mãe

1 comentário:

Enquanto ele assim falava, uma mulher levantou a voz do meio do povo e lhe disse: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos que te amamentaram! Mas Jesus replicou: “Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a observam! Lucas 11, 27-28

Jesus falava ainda à multidão, quando veio sua mãe e seus irmãos e esperavam do lado de fora a ocasião de lhe falar. Disse-lhe alguém: “Tua mãe e teus irmãos estão aí fora, e querem falar-te”. Jesus respondeu-lhe: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”. E, apontando com a mão para os seus discípulos, acrescentou: “Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. Mateus 12, 46-50

Estes dois textos devem ser lidos no contexto um do outro. No primeiro, a maternidade de Maria é exaltada; no segundo, esta não é rebaixada porque os dois textos dizem o mesmo, isto é, a maternidade de Maria é consequência do seu discipulado. Maria, antes de ser mãe, foi discípula pois ouviu a Palavra de Deus por intermédio do Arcanjo Gabriel e colocou-a em prática ao aceitar ser a mãe do filho unigénito de Deus. Maria foi mãe porque foi discípula e não discípula porque foi mãe.

Em certo sentido, Maria não é mãe por especial privilégio, mas por ter sido discípula. “Feliz és tu porque acreditaste”, diz a sua prima Isabel, o que significa que infeliz teria sido Maria se não tivesse acreditado. Em Maria, como em todos nós, foi a fé que a salvou e o cumprimento da Palavra que a fez mãe de Jesus.

Este mesmo caminho nos é oferecido por Jesus, o de sermos íntimos com ele tal como ele e sua mãe o são. Basta ouvir a Palavra e colocá-la em prática. Pois quem me ama, diz Jesus, ou seja, quem é ou pretende ser íntimo comigo, cumpre os meus mandamentos (João 14, 21).  

Ouvir a Palavra sem a pôr em prática é como construir uma casa ou uma vida sobre a areia (Mateus 7, 21-27) e estar à mercê dos ventos e das marés, dos tempos, das modas e das situações, ser uma pessoa sem personalidade própria guiada pelo exterior, uma cana agitada pelo vento, (Mateus 11, 7) e, ao fim de uma vida inconsequente arriscar a que o Senhor, ao batermos à porta da eternidade, nos diga lá de dentro que não nos conhece (Lucas 13, 27).

Uma outra forma de provar que a maternidade, tanto em Maria como em todos nós, é consequência do discipulado, ou seja, do ouvir a palavra e colocá-la em prática, é o facto de que Jesus entregou sua mãe nos braços do discípulo amado, ou seja, do discípulo preferido, do que melhor cumpria a sua palavra. Esse discípulo, por ser autêntico, passou a ser também filho da Sua mãe. (João 19, 25-27)

Textos e contextos
O texto que exalta a maternidade de Maria é único em Lucas, não tem paralelo nem em Mateus nem em Marcos. Se as feministas tivessem que escolher um evangelho, Lucas seria certamente o evangelho eleito, pois é o que coloca mais atenção no feminino, o que confere mais protagonismo às mulheres, tanto na vida de Jesus como nas suas parábolas e eventos.

Ambos os textos acima citados, Lucas 11, 27-28 e Mateus 12, 46-50, são precedidos pelo episódio da alma limpa de demónios que, ao não ser preenchida com boas obras, foi assaltada por outros demónios piores, ficando numa situação pior que antes.

Deste facto podemos concluir que o episódio da alma e dos demónios serve, tanto para Lucas como para Mateus, de ilustração e prova de que de facto a Palavra de Deus ou é posta em prática ou de nada lhe aproveita ao que a escuta, podendo a sua situação ficar pior depois de ter escutado a Palavra e não a ter posto em prática como o jovem rico.  

Espiritualidade negativa
Quando um espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos, buscando repouso; não o achando, diz: Voltarei à minha casa, donde saí. Chegando, acha-a varrida e adornada. Vai então e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele e entram e estabelecem-se ali. E a última condição desse homem vem a ser pior do que a primeira. Lucas 11, 24-26

O texto não o diz, mas as palavas da mulher foram certamente inspiradas pelo Espírito Santo. Para fazer justiça à mulher, o texto devia dizer “uma mulher no meio do povo cheia do Espírito Santo exclamou…” A exclamação da mulher aconteceu depois de Jesus ter narrado o que acontece quando uma pessoa consegue erradicar o mal da sua alma, mas não a enche de bem. A sabedoria de Jesus chegou ao coração desta mulher.

Este texto é insólito, mas alude a uma espiritualidade a que eu chamo de negativa, ou seja, colocar todo o nosso tempo e energia a combater o mal sem fazermos nada de bom. Diz o povo, quando a morte vier que nos apanhe confessados, ou seja, o importante é não ter pecado. Esta espiritualidade é negativa, pois o foco não está em fazer o bem, mas sim em evitar o mal, em não pecar.

Uma pessoa não é boa porque evita o mal, mas porque faz o bem. Quem evita o mal supera a negatividade e coloca-se a zero; só quem faz o bem se coloca acima de zero. O jovem rico que foi ter com Jesus eram um digno representante do Antigo Testamento, pois desde os seus tempos de criança tinha observado os mandamentos; mas quando Jesus lhe pediu uma única coisa positiva, voltou atrás; evitar o mal é bem mais fácil que sair da minha zona de conforto e fazer o bem.

O sacerdote e o levita passaram ao largo do homem roubado e agredido pelos salteadores e que jazia à sua frente, precisando de ajuda porque a preocupação deles não era fazer o bem, mas evitar o mal. O mal que presenciavam nesse momento não tinha sido causado por eles, por isso era perfeitamente moral passar-lhe ao largo. Uma vida baseada em evitar o mal leva à falta de solidariedade para com o próximo. Como a melhor defesa é o ataque, a melhor maneira de combater o mal é fazer o bem.

A natureza tem horror ao vazio
É uma lei da física cuja aplicação no campo espiritual vemos exemplificada no texto evangélico que abre este artigo. A mania da limpeza é uma doença psíquica: há pessoas que passam a vida a lavar as mãos. Talvez possam apresentar-se diante de Deus com as mãos limpas, mas Deus vai dizer-lhes que estão vazias…

Se quisermos retirar o ar de um copo podemos extraí-lo artificialmente com uma máquina, criando um vácuo ou podemos naturalmente enchê-lo de vinho. Ou seja, se ocuparmos o tempo e as energias dos nossos dias a fazer o bem, não nos resta tempo para fazer o mal. Desta forma, matamos dois coelhos com a mesma cajadada, fazemos o bem e evitamos o mal. É isto que sugere o texto insólito de Jesus sobre uma alma vazia sem mal nenhum dentro que, se não for preenchida com bem, rapidamente volta a ser ocupada pelo mal.

No Juízo Final, os que se salvam são os que socorreram o Senhor no pobre e desvalido e lhe deram de comer, de beber, o acolheram quando era estrangeiro ou peregrino, o vestiram quando estava nu e o  visitaram quando estava na prisão ou no hospital.

Os que se condenaram não foram os maus, mas os que voltaram as costas a todas as oportunidades que a vida lhes deu para fazerem o bem, pois a sua preocupação era evitar o mal (Mateus 25, 31-46). São os maus samaritanos, os que passam ao largo quando vêm um irmão em necessidade, os que dizem que o problema não é seu.

Segundo o texto do juízo final em Mateus 25, a nossa confissão já não deveria ser fazer um exame de consciência para buscar o mal que fizemos, mas sim buscar o bem que não fizemos. Devíamos até esquecer o mal que fizemos e praticar o bem, procurar oportunidades para fazer o bem e não perder as que a vida nos apresenta para isso. São os pecados de omissão que levam à condenação, as oportunidades que tivemos de fazer o bem e em que nada fizemos.

O mandamento do amor e a regra de Ouro
Jesus substituiu os 10 mandamentos que praticamente só nos dizem o que não devemos fazer, por um mandamento positivo: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. (Mateus 22, 37-39). Sto. Agostinho é quem melhor interpreta estes dois mandamentos na sua célebre frase, “Ama e faz o que queres”. O que fazes por amor nunca será errado. Entendendo, é claro, o amor como o define S. Tomás de Aquino, amar é querer o bem do outro.

"Guarda-te de jamais fazer a outrem o que não quererias que te fosse feito.” Tobias 4, 16
Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas. Mateus 7,12

A própria regra de ouro existe em todas as religiões e a Bíblia formula-a numa regra que todos aprendemos nos bancos da catequese: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. O minimalismo está tão enraizado na nossa psique, a espiritualidade negativa de evitar o mal sem fazer o bem, que os nossos catequistas não nos ensinaram a regra de ouro de Jesus que está redigida em tom positivo. Ensinaram-nos sim a regra negativa, a que se encontra no livro de Tobias e que é a regra dos judeus, incluída no Antigo Testamento.

Conclusão – Maria é mãe de Jesus porque antes foi discípula, ou seja, ouviu a Palavra e a colocou em prática. Se ouvirmos a Palavra e a colocarmos em prática, também nós podemos gozar da mesma intimidade que Jesus e Sua mãe tinham.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de outubro de 2023

VII Mistério: A mediação de Maria nas bodas de Caná de Galileia

Sem comentários:

Três dias depois, celebravam-se bodas em Caná da Galileia, e achava-se ali a mãe de Jesus. Também foram convidados Jesus e os seus discípulos. Como viesse a faltar vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: “Eles já não têm vinho”. Respondeu-lhe Jesus: “Mulher, isso compete-nos a nós? A minha hora ainda não chegou”. Disse, então, a sua mãe aos serventes: “Fazei o que ele vos disser”. João, 2, 1-12

No evangelho de São João, ao fim do capítulo anterior, Jesus disse a Natanael “verás coisas maiores do que esta” (João 1, 50). As bodas das quais nos fala o capítulo seguinte deram-se em Caná da Galileia, precisamente a cidade de Natanael. O último vinho que nas bodas normais é o pior, nestas bodas que são também um símbolo das bodas nas quais Deus Pai casa o seu filho com a humanidade (Lucas 14, 15-24), o último vinho é o melhor.

Natanael foi declarado por Jesus como “Um verdadeiro israelita no qual não há falsidade” (João 1, 47). Portanto podemos concluir que, neste texto, Natanael representa o povo judeu no seu melhor. Para este povo, que também é comparado à Vinha do Senhor (Salmo 79), o melhor estava para vir; pelo que o último vinho é o próprio Jesus, o vinho novo para o qual é preciso ter odres novos, ou seja, mentes novas e abertas para poder conter a potência de um vinho cheio de espírito.

Havia seis potes de água de pedra; e ao comando de Jesus a água neles transformou-se em vinho. De acordo com os judeus, sete é o número que é completo e perfeito; e seis é o número que é inacabado e imperfeito.  Pelo que, os seis potes de água em pedra representam todas as imperfeições da lei judaica. Jesus veio acabar com as imperfeições da lei e colocar no seu lugar o novo vinho do evangelho da sua graça. Jesus transformou a imperfeição da lei na perfeição da graça.

A quantidade de vinho é astronómica: 680 litros de vinho. Em nenhuma boda neste planeta se poderia beber tal quantidade; o que João quer dizer é que a graça que veio em Jesus e por Jesus é tamanha que chega para todos em todo o mundo para todos os tempos e ainda sobra, pois é ilimitada como o próprio Deus. “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (João 10, 10).

Para esta boda estavam convidados a mãe de Jesus e os seus irmãos. Jesus provavelmente convidou os seus discípulos também. Nesta boda, Jesus deixa de ser o filho de Maria para ser o Senhor, o mestre dos seus discípulos. É uma boda de despedida em que Jesus se embrenha na sua vida pública e corta o cordão umbilical que o une à família. Mais tarde, como sabemos, estes dois grupos, os irmãos do Senhor e os seus discípulos, não vão dar-se bem até a questão ser dirimida no Concílio de Jerusalém, presidido não por Pedro mas por Tiago, o menor e irmão do Senhor.

“Eles já não têm vinho”
Maria, a mãe do Senhor, depois que visitou a sua prima Isabel, continua a visitar o seu povo, em Fátima, Guadalupe e Lourdes e em tantos outros sítios, porque ela é um bom samaritano (Lucas 10, 25-37). Ela é uma boa observadora, tal como Deus Pai, das necessidades dos outros (Êxodo 3, 7) e, tal como Deus Pai, compadece-se do pobre e do aflito.   

O Senhor dos exércitos fará neste monte para todos os povos um banquete de manjares substanciosos, de vinhos bons, de carnes gordas e tenras, de vinhos escolhidos e depurados. Isaías, 25, 6

Naquele tempo, como em todos os tempos, faltar vinho numa boda era um autêntico desastre. O vinho tem lugar numa boda, tal como a carne. Uma boa comida sem vinho não apetece. Seria uma desonra para os noivos e um mau presságio que o vinho acabasse sem que os convivas se sentissem saciados. Maria anteviu tudo isto e dirigiu-se ao seu filho para que ele resolvesse a situação. É ele o salvador, não ela; é ele que pode fazer alguma coisa, remediar a situação, salvar a reputação dos noivos, não ela.

Maria que é a medianeira da Graça principal que é a vinda de Deus ao mundo, pois por ela veio e nela incarnou, provou, neste episódio das bodas de Caná, ser a medianeira de todas as graças pequenas ou grandes. Tudo o que Maria pede ao seu filho este concede. Maria é a nossa intercessora no Céu, ela observa o que nos falta e reporta ao seu filho.

A Vinha do Senhor que representa a casa de Israel (Salmo 79) já deu o que tinha a dar, já não produz fruto. Deus que manda sucessivos profetas à procura do fruto da uva não o encontra e, finalmente, manda o seu filho e os vinhateiros têm a ousadia de o matar fora da vinha. (Marcos 12, 1-12). O vinho na Bíblia significa geralmente alegria. Eis alguns dos muitos textos que testemunham isto mesmo:

Regressarão entre gritos de alegria às alturas de Sião, acorrendo aos bens do Senhor: ao trigo, ao vinho e ao óleo, ao gado menor e ao maior. Sua alma se assemelha a jardim bem regado, e sua fraqueza cessará. Jeremias 31, 12

Fazeis brotar a relva para o gado, e plantas úteis ao homem, para que da terra possa extrair o pão e o vinho que alegra o coração do homem, o óleo que lhe faz brilhar o rosto e o pão que lhe sustenta as forças. Salmos 103, 14-15

E as árvores disseram à videira: “Vem tu, reina sobre nós!”. Mas a videira respondeu: Poderia eu renunciar ao meu vinho que faz a alegria de Deus e dos homens, para colocar-me acima das outras árvores? Juízes 9, 12-13

Faz-se festa para se divertir; o vinho alegra a vida… Eclesiastes 10, 19

Afastaram-se a alegria e o regozijo dos vergéis da terra de Moab; fiz com que secasse o vinho nos lagares; já não se amassam as uvas entre gritos de alegria… Jeremias 48, 33

Já não beberei mais do fruto da vinha até ao dia em que o beberei de novo convosco no Reino de meu Pai. Mateus, 26, 29

Maria é a humilde filha de Sião, a virgem que deu à luz o vinho novo, Deus connosco, é a esperança de Israel, um rebento novo de uma vinha seca que já não produz vinho. Dela jorrará um vinho que é a salvação e sanação da humanidade. Nela e por ela, a vinha volta a produzir e há alegria já não só para Israel, mas para o mundo inteiro.

“Mulher, isso compete-nos a nós?”
Maria é uma mãe que corta o cordão umbilical com o seu filho e, em vez de o reter para si, o lança para a vida ainda antes de este, hesitante, pensar que já tenha chegado a sua hora. Faz recordar as andorinhas que lançam os seus filhos para fora do ninho pois chegou a altura de voarem para poderem emigrar para terras mais quentes quando o inverno vier.

As andorinhas não levantam voo do chão; por isso, o primeiro voo fora do ninho, se correr mal, pode também ser o último. Maria corre esse risco com Jesus, de o lançar demasiado cedo. Mas também ela era assistida pelo Espírito Santo, pelo que atuou com audácia e determinação.

A inicial relutância de Jesus em fazer o milagre é pedagógica, como acontece no caso da mulher sírio- fenícia. O que quer dizer é que mesmo que Jesus não queira ou que não esteja nos seus planos ajudar-nos, se fizermos o pedido por intermédio da sua Mãe Santíssima, ele não vai recusá-lo pois agora não é só um pedido nosso é também um pedido dela. Ela, por nós, coloca todo o seu peso, todo o seu valor, toda a sua importância e poder de influência nesse pedido, por isso Jesus não pode recusá-lo.

A desculpa de Jesus de que a falta de vinho não nos diz respeito a nós, é de facto a desculpa de todo o mau samaritano. Maria faz seu o problema dos outros, é empática. Muitas pessoas veem as necessidades dos outros e tal como os sacerdotes na parábola do bom samaritano, passam ao largo, pois pensam que o problema não é seu. Hoje sou eu que tenho uma necessidade, amanhã podes ser tu; por isso, o que queres que os outros te façam, faz tu aos outros: esta é a regra de ouro positiva de Jesus. (Mateus 7, 12)

“A minha hora ainda não chegou”

Jesus vê a sua vida como uma missão: não tem mãos a medir, o tempo é curto, não tem passatempos nem mata o tempo. É neste sentido que devemos entender esta frase, a sua missão ainda não começou, ainda está no tempo da preparação para ela. Lucas descreve a vida de Jesus numa peregrinação para Jerusalém; e, nesta peregrinação, todos os lugares e eventos apontam para a hora final da sua morte e redenção da humanidade.

Jesus parece ter sempre uma agenda cheia e tudo está devidamente organizado, controlado e calculado:

Vamos às aldeias vizinhas, para que eu pregue também lá, pois, para isso é que vim”. Ele retirou-se dali, pregando em todas as sinagogas e por toda a Galileia, e expulsando os demónios. Marcos 1, 38-39

Disse-lhes ele: “Ide dizer a essa raposa: eis que expulso demónios e faço curas hoje e amanhã; e ao terceiro dia terminarei a minha vida. É necessário, todavia, que eu caminhe hoje, amanhã e depois de amanhã, porque não é admissível que um profeta morra fora de Jerusalém. Lucas 13, 32-33

“Fazei o que ele vos disser”
A resposta de Jesus ao apelo da sua mãe, foi duplamente negativa; a primeira sacudindo a água do capote, dizendo que o problema não era nem seu nem dela e a segunda dizendo que, mesmo que pudesse e quisesse fazer alguma coisa, ainda não tinha chegado a sua hora.

Grande é a fé de Maria como a da mulher sírio-fenícia do evangelho (Mateus 15, 21-28) que não se desencoraja pelas negativas de Jesus e continua a acreditar que ele pode curar a sua filha e vai curá-la. Maria também faz ouvidos surdos às palavras negativas de Jesus e está tão certa de que ele vai fazer alguma coisa para solucionar o problema, remediar a situação, que imediatamente diz ela aos serventes que se coloquem à disposição do seu filho, para fazerem de imediato o que ele lhes ordenar.

É como se Maria nos dissesse, a cada coisa que lhe pedimos, “considera-o já feito o que acabas de me pedir”, ainda antes de referir a matéria ao Seu filho, porque sabe que um bom filho nunca recusa o pedido de uma mãe. Por outro lado, a nossa querida mãe do Céu não incomoda o seu filho por qualquer coisa, mas apenas quando se trata de um problema grave; e aquele problema das bodas de Caná era grave.

Podemos interpretar à letra este evangelho – faltar vinho numa boda – ou interpretá-lo metaforicamente, ou seja, a humanidade sem o vinho novo que é Jesus não tem alegria de viver, vive deprimida e sem sentido; e a depressão como sabemos, pode levar ao suicídio.

Fazer a vontade de Jesus é de facto a atitude do verdadeiro discípulo; mais que isso, é a condição “sine qua non” para sermos ou não sermos discípulos de Jesus: Mateus 23, 3 – Lucas 11, 28 – Mateus 6, 1 – João 13, 17 – Mateus 7, 23 - João 3, 21 – Mateus 7, 21-24 – Mateus 28, 18-20 – Lucas 11, 28.

Jesus tinha como alimento fazer a vontade do Pai (João 4, 34) o verdadeiro discípulo de Jesus não pode ter outro alimento senão ouvir a Palavra, digeri-la (Jeremias 15, 16) e fazer dela vida, ou seja, encarnando-a em todos e cada um dos seus atos, a ponto de poder ser outro Cristo na terra e assim continuar a sua obra de salvação.

Conclusão: Como embaixadora, Maria, informa o seu Filho das necessidades dos homens - “Não têm vinho…”; e informa os homens do que precisam de fazer para que essas necessidades sejam satisfeitas – “Fazei tudo o que ele vos disser…”

Pe. Jorge amaro, IMC












 

15 de setembro de 2023

VI Mistério: A Sagrada Família, triângulo de amor e harmonia 2ª Parte

1 comentário:

Três dias depois acharam-no no templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. Todos os que o ouviam estavam maravilhados com a sabedoria das suas respostas. Quando eles o viram, ficaram admirados. E sua mãe disse-lhe: “Meu filho, que nos fizeste?! Eis que teu pai e eu andávamos à tua procura, cheios de aflição.Lucas 2, 46-48

Observam sem julgar
Parece que os pais de Jesus conheciam já as normas da comunicação não violenta, pois não julgam, não criticam nem castigam o comportamento de Jesus. Apenas se limitam a observar o comportamento do seu filho e a comunicar-lhe essa observação. Ao passarem para Jesus a sua observação, fazem-no assertivamente, não agressivamente, tendo o cuidado de se responsabilizarem pelo sentimento de aflição, sem acusar Jesus de ser o causador dessa aflição.

Não pretendem ter a última palavra
Respondeu-lhes ele: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”. Eles, porém, não compreenderam o que ele lhes dissera. Lucas 2, 49-50

Nas nossas famílias, durante a nossa infância, eram sempre os nossos pais que tinham a última palavra. O mesmo não acontece com a Sagrada Família de Nazaré. Neste episódio, é Jesus que tem a última palavra; a ignorância e a falta de compreensão dos pais de Jesus sobre a sua vida e ministério não os faz violentos nem quererem ter sempre razão.

Como diz S. Paulo, não usou os seus pergaminhos, rebaixando-se até à morte e morte de cruz
Em seguida, desceu com eles a Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração. E Jesus crescia em estatura, em sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens. Lucas 2, 51-52

Jesus deve ter sido um menino prodigioso, como tantos no nosso mundo. Precoce em muitas coisas que decerto causavam admiração nos seus pais e vizinhos. No entanto, além de todos os talentos que Jesus possuía, era inerente à sua pessoa uma atitude de humildade que o fazia acatar com obediência as ordens dos seus pais.

José, o sonhador
Um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar”. José levantou-se durante a noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que o Senhor dissera pelo profeta: do Egito chamei meu filho (Os 11,1). Mateus 2, 13- 15

José transcendeu o seu próprio ego e ouviu a palavra de Deus à qual obedeceu prontamente, tendo partido para o Egito para salvar a vida do seu filho. A Sagrada Família sabe o que é ser perseguida politicamente, e sabe o que é ser refugiada política e emigrante num país que não é o seu. Fugiam de um genocídio que é coisa que sempre aconteceu e ainda acontece no nosso mundo. E o pior genocídio do nosso tempo é o aborto. O ser humano é o único animal que mata as suas próprias crias.

Herodes, o grande, pensou que era justificado aos olhos dos seus súbditos matar tantos inocentes pelo medo de que um destes pequenos inocentes lhe roubasse o trono. Líderes como este sempre encheram e enchem o mundo: pessoas que se apaixonam pelo poder conquistado e não mais o largam, sendo capazes de tudo para o ter e manter.

Quando cada membro da família põe de lado os seus projetos pessoais, como José, para obedecer ao projeto comum que é sempre aquele que Deus inspira nas nossas almas e corações, então todos os membros da família encontram a felicidade e a autorrealização. Herodes amava Herodes e as suas próprias ambições; e isso levou-o até a assassinar os seus próprios filhos.

José está sempre ao serviço da família, por isso a família está em primeiro lugar. Herodes coloca os seus projetos em primeiro lugar e a família fica em último; temos exemplos de grandes políticos que têm filhos problemáticos porque as suas famílias são disfuncionais por causa dos pais que, à semelhança de Herodes, colocam os seus projetos em primeiro lugar. Os filhos dos famosos raramente são famosos como os pais…

Muitos pais, nos seus trabalhos, fazem horas extraordinárias porque o patrão os faz pensar que são imprescindíveis: os pais aceitam de bom grado, pois assim têm mais meios financeiros para a sua família. Dizem que não querem que lhes falte nada mas, na realidade, falta-lhes o mais importante: a presença e o amor que não se concretiza sem esta. A falácia é que se o trabalhador morrer ou ficar doente, o patrão depressa o substitui. É na família, como pai ou mãe, que um trabalhador ou trabalhadora é verdadeiramente insubstituível.

O que pensam os familiares de Jesus
Quando os seus o souberam, saíram para o reter; pois diziam: “Ele está fora de si.Marcos 3, 21

Uma mãe que toda a sua vida guarda silêncio e guarda no seu coração com respeito todas as coisas que não entende da vida e do ministério do seu filho, não vai ter uma atitude como a que nos descreve o evangelista S. Marcos. São os outros familiares, os primos de Jesus, um deles provavelmente Tiago que depois foi o líder da primeira comunidade cristã de Jerusalém, foram estes familiares de Jesus, não a sua mãe, que se antagonizaram com o seu ministério. E que mais tarde se antagonizariam com os discípulos de Jesus.

Numa monarquia, quem sucede ao rei é um familiar do rei, se este não deixar descendência. O líder da comunidade cristã não era Pedro, como poderíamos pensar que fosse por ordem do Mestre, mas sim o primo de Jesus, Tiago. Vê-se claramente isto no concílio de Jerusalém, quando se debate sobre obrigar ou não os cristãos que anteriormente tinham sido judeus a respeitar as leis judaicas ou não. Pedro inspira a decisão, mas quem decide é Tiago, pois é este que tem a última palavra.

A divisão entre familiares de Jesus e discípulos de Jesus poderia ter acontecido na Igreja como aconteceu entre os muçulmanos: os xiitas descendentes do profeta por via de Fátima, a sua filha preferida, e os sunitas descendentes dos primeiros discípulos do profeta.

Jesu deixou bem claro que o verdadeiro discípulo, ou seja, o que ouve a sua palavra e a põe em prática é que é a sua mãe, irmão e irmã. (Lucas 8, 21)

E para que não ficassem dúvidas, chamou a João filho da sua própria mãe e a esta mãe do seu discípulo   preferido. (João 19, 26)

A Mãe de Jesus e nossa mãe
Quando Jesus viu sua mãe e, perto dela, o discípulo que amava, disse à sua mãe: “Mulher, eis aí o teu filho.” Depois disse ao discípulo: “Eis aí a tua mãe”. E dessa hora em diante o discípulo a recebeu como sua mãe. João 19, 26-27

Os evangelhos apresentam um Jesus às vezes distante e com pouca consideração pela sua mãe. Porém, a prova de que isto não é verdade está aqui. Mesmo no auge do seu sofrimento na cruz, Jesus não esquece a sua mãe, não esquece que, tal como a viúva de Naim a quem ele tinha devolvido a vida do filho, a sua mãe era viúva, estava a assistir à morte do seu único filho e se preparava para ficar sozinha no mundo.

A avó, com as suas mãos trémulas, deixou um dia cair um prato de fina louça chinesa de sua filha, em casa de quem vivia. A filha ficou furiosa com a própria mãe e mandou o seu filho comprar um prato de plástico no qual ela deveria comer doravante. O rapaz olhou para a sua mãe com ar de desaprovação e recusou-se a ir comprar o prato de plástico. No entanto, acabou por ter de obedecer e lá foi. Ao voltar a casa, apresentou dois pratos de plástico sobre a mesa. A mãe irritada perguntou por que havia comprado dois quando lhe tinha dito que comprasse só um. “O outro,” disse o moço, “é para ti quando fores idosa como a avó.”

Os pais amparam os filhos na sua infância e estes devem amparar os pais na sua velhice. Mas nem sempre assim acontece neste mundo onde o que conta é ser consumidor e produtor. Quando não se pode ser nem uma coisa nem outra, deixamos de ter lugar na sociedade.

Conclusão – Tal como Jesus é para nós, enquanto indivíduos, Caminho, Verdade e Vida, a sua família, a Sagrada Família é também para nós, membros de uma família, modelo de vida familiar a imitar.

Pe. Jorge amaro, IMC



1 de setembro de 2023

VI Mistério: A Sagrada familia, triângulo de amor e harmonia - 1ª Parte

Sem comentários:

Deus é único e trino, porém nenhum mistério do santo Rosário contempla esta realidade de que Jesus de Nazaré, que vinha de uma família celestial constituída por Deus Pai, Filho e Espírito Santo, como o filho unigénito de Deus Pai, nasceu numa família terrena, teve pais humanos com os quais viveu em perfeita harmonia e amor, crescendo em sabedoria e em graça como nos dizem as escrituras, como qualquer rapaz do seu tempo.

Normativo para os cristãos não é só Jesus como pessoa individual, Caminho, Verdade e Vida, mas, como o ser humano tem uma dimensão social, a vida social e familiar de Jesus, a sua família constituída pela sua mãe e pelo seu pai humano adotivo, também é normativa para nós, pois não há vida humana fora da família.

Deus é uno e trino, o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus é também, naturalmente, uno e trino. Pai-Mãe-Filho, não há vida humana para além deste triângulo. Todos os humanos são pai, ou mãe ou filho(a). Somos, ao mesmo tempo, um ser individual e social, porque somos um todo, como seres individuais e em parte como membros de uma família humana.

Cada uma das três categorias humanas, pai-mãe-filho(a), implica a existência das outras duas. Ou seja, nenhum homem é pai sem ter uma esposa e um(a) filho(a), assim como nenhuma mulher é mãe sem ter um esposo e um(a) filho(a); por último, um(a) filho(a) de mãe solteira tem de ter um pai. A existência de um implica a existência dos outros dois. Jesus diz sobre o matrimónio, “Os dois serão uma só carne”, precisamente quando os dois são únicos e estão compenetrados no ato conjugal ou sexual, tornam-se três. Daí o ser humano ser uno e trino ao mesmo tempo.

Mãe sem cordão umbilical
Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. Tendo ele atingido doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa. Acabados os dias da festa, quando voltavam, ficou o menino Jesus em Jerusalém, sem que os seus pais o percebessem. Pensando que ele estivesse com os seus companheiros de comitiva, andaram caminho de um dia e o buscaram entre os parentes e conhecidos. Mas não o encontrando, voltaram a Jerusalém, à procura dele. Lucas 2, 41-45

Mãe galinha, péssima futura sogra
Um pai, mesmo sendo o progenitor da criança, é sempre um pai adotivo porque é a mãe que concebe no seu corpo a criança e a nutre durante 9 meses e depois durante dois anos ao seu peito. Ao nascer, a criança só conhece a mãe e conhece-a até pelo cheiro; o pai é-lhe apresentado mais tarde. E quando isso acontece, o filho e o pai olham-se mutuamente como dois estranhos e, se a criança for do sexo masculino, até como dois rivais, mais tarde.

Ao contrário da maternidade, a paternidade carece de experiência física, pois só acontece a nível celular microscópico e fora do corpo do homem. Por isso, S. José que foi para Jesus um pai adotivo, pode ser perfeitamente o modelo de paternidade e o padroeiro de todos os pais, progenitores e não progenitores. Ao fim e ao cabo, também Deus Pai que está no Céu é nosso Pai adotivo, pois Ele só tem um Filho que é unigénito e nós somos criaturas adotadas por Deus Pai, pelos méritos de Jesus Cristo que se tornou no nosso irmão mais velho.

Ser pai e ser mãe tem as suas vantagens e inconvenientes. O facto de o pai ser adotivo, sempre mantém uma distância entre si e o seu filho, pois a paternidade não se dá ao nível fisico. A maternidade, ao contrário, dá-se ao nível instintivo, pelo qual, uma mãe sempre encontra dificuldade em ver o seu filho como separado de si e muitas nunca chegam a cortar o cordão umbilical, olhando sempre o seu filho não como uma pessoa distinta, mas como uma extensão do seu ser.  

Gosto muito de anedotas e nunca vi uma anedota contra os sogros; todas as anedotas são contra as sogras. Uma mãe galinha tem a tendência de ser uma péssima sogra, de procurar interferir na vida do filho mesmo até quando este já está casado e formou uma família.

O texto acima citado denota que Maria e José davam bastante liberdade ao seu filho, ao ponto de passarem dias sem o ver. Podemos concluir que Maria não era uma mãe galinha, mas uma mãe que sabia ocupar o seu lugar e olhar para o seu filho como distinto de si e não como uma extensão de si mesma.

O objetivo da educação de um filho é torná-lo livre, independente e autónomo. Por outras palavras um pai e uma mãe devem ter como objetivo tornar-se eles mesmo obsoletos e desnecessários quando os filhos atingem a maioridade, a maturidade e a autonomia. Amar como dizia S. Tomás de Aquino é querer o bem do outro tal como o outro vê o seu bem, e não como nós o vemos.

É certo que o pai procure que o filho chegue onde o pai não conseguiu, mas nem por isso deve impedir o filho de escolher a sua vida porque é ele que a vai viver. Conheci muitos pais que fizeram todo o tipo de chantagem para evitar que os filhos seguissem a sua vocação, sobretudo a vocação religiosa, apesar de serem eles mesmos profundamente religiosos.

A família e os valores da liberdade – igualdade – fraternidade
A liberdade – é o valor sobre o qual assenta a vida da pessoa humana, enquanto ser independente e autónomo. Sem liberdade não existe vida humana; para se realizar como pessoa humana, um indivíduo deve ser livre, não dependente de nada nem de ninguém. Livre de constrangimentos externos, mas também livre de restrições internas, como vícios.... Portanto, há duas liberdades: uma externa e outra interna.

A igualdade – é o valor sobre o qual assenta a vida do indivíduo que vive em sociedade. Nenhum indivíduo é uma ilha, porque todos os indivíduos nasceram de uma relação de dois indivíduos, um pai e uma mãe. Pelo que todo o indivíduo é e sempre será parte de uma família, de um clã, de uma tribo, de um país...

A fraternidade – um quark é a união de vários gluões; vários quarks formam um protão que é um dos três elementos de um átomo. O glúten é uma proteína que faz com que um cereal como o trigo pareça uma cola depois de amassado. Temo que a intolerância ao glúten comece a ser igualmente proporcional ao individualismo na sociedade e desapareça o amor que faz de todos os humanos irmãos.

Família, a única escola de vida
Tal como o ser humano, a família é o resultado de milhões de anos de evolução. Na evolução, os répteis não necessitam de família, nascem de ovos; as aves e os mamíferos necessitam por alguns meses; quanto mais perto do ser humano estiver um animal na evolução das espécies, mais tempo de convivência familiar necessitará até ser livre, independente e autónomo.

O ser humano é o ser vivo que necessita de mais tempo, pelo que a família é o único lugar onde pode existir vida humana. A família é o “habitat” da vida humana, tal como o mar o é para a baleia e o tubarão, o Polo Sul para os pinguins, o Pólo Norte para os ursos polares e a savana para o leão. Como o ser humano não nasce no estado adulto, como o resto dos seres vivos, sem família não há vida humana.

Os seres humanos não nascem, fazem-se. Uma criança filha de pais humanos, tem todas as potencialidades para se tornar numa pessoa humana. Porém, estas potencialidades devem ser cultivadas no seio de uma família, pelos pais e pelos irmãos mais velhos. Tudo no ser humano é aprendido, o andar ereto, o falar, o amar, tudo na vida humana é aprendido havendo muito pouco de inato.

Uma criança sem o contacto com os homens nunca aprenderia a andar nem a falar, como sugere o mito de Tarzan; se uma criança fosse criada por chimpanzés seria um chimpanzé sem pelo; se fosse por uma loba seria um lobo para todos os efeitos, com apenas uma aparência humana.

São precisos muitos anos de estudo para formar um médico, um engenheiro ou um arquiteto; e precisando o mundo mais de bons pais que destas profissões, Como é possível que não há sequer um curso de fim de semana para aprender a ser pai e mãe?

A educação é “área” e contínua
“Filho és, pai serás, como fizeres assim acharás”

Ao contrário das outras escolas, em que há períodos de lição e períodos de intervalo, na escola da vida, da família, não há férias. Todos os momentos e situações familiares são educativos, para bem ou para mal. A educação é “aérea” e contínua; na escola da vida, a criança está sempre na sala de aula.

Porque a educação é “aérea”, a família é uma escola onde as crianças aprendem não o que lhes dizem, mas o que veem; é a sementeira onde o crescimento pode ser controlado e guiado. Fazer um bebé é fácil, a dificuldade é fazer de uma criança um ser humano. Uma coisa é ser progenitor, outra é ser pai ou mãe.  

Na família aprendemos as atitudes principais pelas quais viveremos; por isso, os pais devem ter em conta que uma criança imita mais que aprender. Uma criança que vê o pai bêbado bater na mãe, dizer coisas obscenas, ter comportamentos imaturos, imorais e ilegais, muito provavelmente reproduzirá esses mesmos comportamentos na vida adulta.  

Todos nos lembramos de frases dos nossos pais que marcaram a nossa vida, umas positivas, outras negativas. “Quem semeia ventos colhe tempestades”, “semeia amor e colherás amor; semeia ódio e ódio será o que colherás”, “uma criança é como um campo, só produzirá o que nela for semeado”, “filho de peixe, sabe nadar”. Ninguém dá o que não tem; um pai não pode passar para o seu filho o que ele não tem. O filho de um patife, será um patife assim como o filho de um ladrão será um ladrão.

Educar um filho é uma responsabilidade imensa para o próprio, perante o filho e a sociedade. O mundo melhora não tanto por revoluções, mas por conversões, quando os homens se tornam melhores; é o nosso contributo para o mundo. Quantos pais tomam a sua tarefa com ligeireza? Um pai deve procurar passar ao filho as suas virtudes e não os seus defeitos. Se os teus filhos e filhas forem como tu ou piores do que tu, qual é o sentido da tua vida?

"De pequenino se torce o pepino"
Para as crianças, a família é como uma estufa, uma vez que as crianças não estão preparadas para viver no mundo aberto; na estufa, podemos controlar o seu crescimento, temperatura, humidade combater as pestes, etc.

O mundo fora da família é um lugar inóspito, para o qual a família nos prepara, nos fortalece ou nos enfraquece. A escola e a rua, más ou boas, são iguais para todos: há rufias, há drogas, há crime em potência e nelas sucumbem os que não têm uma família forte e significativa onde reina o amor, a harmonia e a paz.

Para além de ser uma estufa, a família é também um hospital onde se recuperam os adolescentes, os jovens e até os adultos das feridas que a sociedade lhes infligiu. Na família passam a sua convalescença, até poderem voltar à sociedade, fortalecidos e com lições aprendidas.

"An Englishman’s home is his castle” (o lar do inglês é o seu castelo”). É uma expressão muito interessante sobre a dedicação que os pais devem ter ao espaço sagrado que é a família. Hoje, há muitos inimigos da família, até o próprio governo pode chegar a ser inimigo da família. Os pais não devem cuidar só dos inimigos de fora: a TV, a Internet, o telemóvel ou o computador, podem ser hoje como um autêntico cavalo de Troia, que boicota a educação e os valores que os pais querem transmitir.

Amor incondicional.
Como habitat e escola da vida humana, a atitude, o valor mais importante a aprender é o amor incondicional. Só na família nos amam incondicionalmente pelo que só na família podemos aprender a amar incondicionalmente. Aprende a amar incondicionalmente quem é amado incondicionalmente pelos seus pais e irmãos.

O amor é incondicional ou não é amor. A família é o único lugar onde és amado sem condições, sejas mau ou bom, feio ou bonito, inteligente ou burro. Deus ama incondicionalmente, mas quem não for incondicionalmente amado pelos seus pais, dificilmente descobrirá a incondicionalidade do amor de Deus. Muitos cristãos pensam que devem ser bons para serem amados por Deus. Quem não aprende a amar incondicionalmente nunca poderá viver em plenitude e ser autêntica e genuinamente humano.

Conheci uma moça que, em criança, recebia beijos e abraços dos seus pais só quando era bem-sucedida na escola. Aprendeu a confundir amor com sucesso escolar que mais tarde se transformou em sucesso profissional. Hoje, já adulta, é muito bem-sucedida profissionalmente, mas não tanto na vida amorosa, pelo que é infeliz. Não há nada mais importante que o amor. Quem não ama nunca viveu porque viver é amar.

Conclusão – O mito de Tarzan revela-nos que, na vida humana, muito pouco é inato, quase tudo é aprendido no seio da família que é a única e insubstituível escola de vida.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de agosto de 2023

V Mistério: A profecia de Simeão sobre Maria e o Seu Filho - 2ª Parte

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Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de surgimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal de contradição, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada trespassará a tua alma. Lucas 2, 34-35

Há muitas interpretações sobre esta espada, algumas demasiado espirituais ou teológicas. Eu prefiro ver nesta profecia o puro sofrimento humano de Maria. “Em guerra, caça e amor, por um prazer cem dores”. Assim foi com Maria: Jesus deu-lhe mais dor que alegria, desde a conceição à sua morte e ressurreição.

O nascimento, vida e morte de Jesus foram para Maria uma paixão contínua de dor e sofrimento. Tudo começou no dia em que deixou de ser possível esconder a sua gravidez ou explicá-la.

Natal de Jesus, paixão de Maria
Na volta da visita à sua prima Isabel que durou vários meses, Maria apareceu grávida. Que podia ela dizer? Como podia ela explicar o sucedido? Engravidar por obra e graça do Espírito Santo não tinha precedente, era um acontecimento único na história da humanidade; nunca acontecera, nem nunca mais ia acontecer. Esperava-se que o Messias, que o povo de Israel aguardava e ainda aguarda, surgisse de uma forma natural na casa de David.

O Natal de Jesus foi a Páscoa ou paixão de Maria. A paixão do Senhor foi também a paixão de Maria. Ainda hoje, mesmo numa sociedade não puritana nem machista, o escândalo sexual faz as delícias da boca de muita gente. Parece que a nossa autoestima cresce, quando vemos os outros a afundarem-se. Não há nada mais degradante e estigmatizante que o escândalo sexual: todos te apontam o dedo, vives sem honra nem bom nome, é como morrer em vida.

“Calunia, que algo queda” diz um provérbio espanhol; lança a dúvida sobre alguém em áreas de comportamento sexual que a má fama dessa pessoa a acompanhará até à sepultura. Pode até vir a provar-se que era mentira, não importa, as pessoas ficarão sempre na dúvida, agarrar-se-ão à primeira notícia como sendo verdadeira e ao desmentido como sendo mentira. Estes escândalos abrem os noticiários da televisão e fazem primeira página nos jornais; os desmentidos aparecem como um quadradinho perdido dentro do jornal que ninguém lê.

A morte física por apedrejamento esteve também muito perto… Maria era considerada uma adúltera, pois era prometida de José e, embora estes ainda não vivessem juntos, para os efeitos da lei ela já estava casada. Uma tal relação já não era separável, a menos que houvesse divórcio. Bem sabemos qual era o castigo que sofriam as adúlteras… (João 8, 1-11) eram apedrejadas.

Acontecia em Israel regularmente o que ainda hoje acontece nalguns países muçulmanos, onde se aplica a lei da Sharia; aí estão os vídeos em certos sites da Internet que documentam estes tristes factos em pleno século XXI.

Já muitos, sedentos de sangue, tinham as pedras na mão, preparadas, esperando José, o ofendido, para lançar a primeira pedra. Lançar a primeira pedra era um direito que pertencia ao ofendido. Lançar a primeira pedra era, ao mesmo tempo, a declaração do veredito pela pessoa injuriada e o primeiro ato da execução da sentença que os hipócritas, ávidos de sangue, cumpriam com prazer.

Para Jesus, no episódio da mulher adúltera (João 8, 1-11), o direito a lançar a primeira pedra, ou seja, a julgar e aprovar uma sentença de morte, não é direito do injuriado nem do que tem autoridade por delegação ou eleição, mas sim do que tem autoridade moral, ou seja, do que não tem pecado.

Jesus não acredita na justiça retributiva, pois é apenas uma vingança legalizada, é o antigo “olho por olho e dente por dente”. Jesus acredita na justiça reparadora, aquela que Deus pratica, pois não quer a morte do pecador, mas que este se converta e viva. (Ezequiel 18,23-32)

Jesus, o filho de Maria
Maria, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração (Lucas 2,19) e sofria em silêncio, não podendo defender-se das calúnias… O sofrimento durou toda a sua vida, como é natural nestes casos.

Aqui e além no evangelho, este estigma transparece, por exemplo numa das polémicas que Jesus tem com os fariseus, no evangelho de João. A um dado momento, estes dizem «Nós não nascemos da prostituição” (João 8, 41) subentendendo “como tu nasceste”.

“Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?” Marcos 6, 3.

Numa sociedade patriarcal, ninguém é conhecido como filho de sua mãe, ou seja, ninguém é conhecido por referência à sua mãe, mas sim por referência ao seu pai. Recordemos que Jesus, ao dirigir-se a Pedro de uma forma pessoal para lhe perguntar se O ama, chama-o pelo seu nome de família, por referência ao pai de Pedro e não à sua mãe: “Simão, filho de João… (João 21, 15-19).

O evangelista Marcos, apesar de ser hebreu de Jerusalém, escreve o seu evangelho em Roma para romanos e não está com meias medidas: relata a verdade tal como ela é. Jesus é chamado por referência à sua mãe e não por referência ao seu pai. Mesmo que o pai tivesse morrido, nunca um hebreu seria chamado por referência à sua mãe; se o fizeram, foi porque Jesus era, para os do seu tempo, filho de pai incógnito, para vexame de sua mãe e d’Ele próprio.

Mateus, o evangelho escrito para os judeus, corrige e diz: “Não é Ele o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas?” (Mateus 13, 55-56). Lucas, no seu evangelho, também menciona o episódio da visita do Senhor à sua terra natal, porém, por respeito ao Senhor não copia Marcos, mas também não diz uma mentira como Mateus, pelo que, omite o que os seus conterrâneos lhe chamaram.

Maria e a viúva de Naim
No dia seguinte, dirigiu-se Jesus a uma cidade chamada Naim. Iam com ele diversos discípulos e muito povo. Ao chegar perto da porta da cidade, eis que levavam um defunto a ser sepultado, filho único de sua mãe que era viúva; acompanhava-a muita gente da cidade. Vendo-a o Senhor, movido de compaixão para com ela, disse-lhe: “Não chores!”. E, aproximando-se, tocou no esquife, e os que o levavam pararam. Disse Jesus: “Moço, eu te ordeno, levanta-te. Lucas 7, 11-14

É dos poucos milagres que Jesus faz sem que ninguém lho peça, e sem inquirir sobre a fé da pessoa que vai ser agraciada com o milagre. A alta capacidade de empatia de Jesus faz com que entenda que o sofrimento daquela pobre viúva era tão grande que não podia comportar dialogar com ninguém. Vemos neste evangelho a empatia de Lucas na forma como descreve a cena. Concentra o máximo de sofrimento num mínimo de palavras: 

“levavam a sepultar um rapaz filho único de sua mãe que era viúva”. Não deve haver sofrimento maior do que o de uma mãe que perde um só dos seus filhos, pois vai contra a natureza da vida. Espera-se que os filhos sepultem os pais e não que os pais sepultem os filhos. Uma mãe que está disposta a morrer pelo seu filho, ter de o ver morrer sem poder fazer nada, é sofrimento que não cabe no coração humano.

Dentro desta categoria, o sofrimento desta mulher é ainda agravado pelo facto de ela já ser viúva e de este ser o único filho. Era ele a única garantia de ficar viva na sociedade, pois as mulheres daquele tempo não podiam viver sozinhas uma vez que não podiam deter propriedade. Por isso, o seu único filho era também a sua garantia de vida.

Jesus devolve a vida ao rapaz... Sempre vi neste episódio uma projeção pessoal de Jesus; Jesus viu na viúva de Naim a sua própria mãe, que dentro em pouco também sepultaria o seu filho único, sendo ela, Maria, já viúva.

Conclusão: Por causa do seu filho, a vida de Maria foi uma contínua paixão e morte. Tudo começou no dia em que deixou de ser possível esconder a sua gravidez ou explicá-la. Não há no mundo pior calúnia que aquela que Maria sofreu toda a sua vida.

Pe. Jorge Amaro, IMC





1 de julho de 2023

V Mistério: A profecia de Simeão sobre Maria e o Seu Filho - 1ª Parte

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O seu pai e a sua mãe estavam admirados pelas coisas que dele se diziam. Lucas 2, 33

Grandes surpresas aguardavam Maria na apresentação do seu filho no templo. O evangelho diz várias vezes que Maria guardava tudo no seu coração. Em relação ao seu filho, Maria não compreendia muitas coisas. Caminhou a vida inteira na fé de que tudo correria bem, mesmo quando via que tudo se voltava contra ele e contra ela. O seu filho não parou de a surpreender e causar admiração, desde a sua conceição até à sua morte e ressurreição. Maria não compreendia, mas aceitava em silêncio e seguia fielmente o seu filho, de perto ou de longe.

A apresentação do seu filho no Templo deve ter deixado na boca de Maria um sabor simultaneamente amargo e doce. A alegria de Simeão e de Ana que tão pacientemente esperaram este momento de ver o libertador com os próprios olhos, deve ter causado alegria também no coração de Maria. A ambiguidade da profecia de Simeão que se apresentou como alguém que tinha boas e más notícias, deve ter causado bastante perplexidade e dor no coração de Maria que, que segundo Simeão, seria atravessado por uma espada.

Jesus de Nazaré convulsionou Israel e o mundo
Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de surgimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal de contradição, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada trespassará a tua alma. Lucas 2, 34-35

Jesus de Nazaré entrou na história da humanidade como um meteorito, que ao esbarrar com o oceano faz círculos concêntricos que se fazem sentir primeiro onde o mesmo cai e depois até aos confins da Terra. O maior impacto foi sentido em Israel há dois mil anos, porém a sua influência alastrou-se no tempo e no espaço, de tal forma que ainda hoje se faz sentir e se fará sentir até ao fim dos tempos, pois ele mesmo disse: Eu estarei convosco até ao fim dos tempos, (Mateus 28, 20)

Tal foi o impacto de Jesus no o mundo que dividiu a História da humanidade em duas eras. Antes de Cristo (AC) Depois de Cristo (AD), ano da graça de nosso Senhor… Cristo é, portanto, o centro da história da humanidade, pois tudo o que acontece neste mundo vem referenciado como acontecendo antes de Cristo ou depois de Cristo. Incomodados, os agnósticos e ateus do mundo ocidental têm substituído o AC por “antes da era comum” e o AD por “era comum”.

Porém, se alguém no espírito de querer saber, como as crianças no tempo em que questionam tudo e bombardeiam os adultos com perguntas, os questionarem, os senhores da “era comum” vão ter de explicar o que é isso da “era comum” e por que é comum, e quando começou. Se forem honestos, o que nem sempre acontece nos dias que correm, vão ter que mencionar o nome de Cristo. A “era comum” tem como ponto de partida o nascimento de Cristo. Não é, portanto, arbitrária ou convencional, como a escala Fahrenheit para medir a temperatura ambiente.

Jesus: causa de queda ou pedra de tropeço para muitos em Israel
Ide e contai a João o que ouvistes e o que vistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos pobres... Bem-aventurado aquele para quem eu não for ocasião de queda! Mateus 11, 4-6

A palavra grega “escândalo” significa pedra de tropeço. As palavras de Jesus são duras contra os escandalosos, porém Ele mesmo tem que admitir que escandalizou muita gente no bom sentido. Muitos não conseguiram digerir e aceitar muitas das suas ideias; mesmo quando estas eram provadas com atos prodigiosos. Contra factos não há argumentos, diz o povo. Porém, os judeus no tempo de Jesus encontravam argumentos até nos factos, ao dizerem que expulsava os demónios com o poder de Satanás. “Não há pior cego que aquele que não quer ver”.

Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. Mas a todos aqueles que o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus… João 1, 11-12
 
Não é Deus que julga o homem, o homem julga-se a si mesmo. O seu julgamento é a sua reação a Jesus Cristo. Se, ao ser confrontado com Jesus a sua resposta for positiva, tem fé e aceita o seu amor, é salvo e entra no reino dos Céus. Se, porém, permanecer friamente indiferente e imóvel ou mesmo ativamente hostil, é condenado, ou seja, condena-se a si mesmo.

Em relação a Jesus de Nazaré não se pode assumir uma posição neutra. Ou temos fé n’Ele e nos rendemos a Ele ou estamos em guerra com Ele. Para muitos, o orgulho vai impedi-los de optarem pela rendição que os levaria à vitória.

Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigénito de Deus. João 3, 18

No tempo de Jesus, os fariseus, os sumos sacerdotes, os ricos, os abusadores do poder, os exploradores dos pobres tropeçaram na pedra Jesus e pensaram que, retirando a pedra do caminho, como fizeram matando a Jesus, se veriam livres d’Ele. Mas isso não aconteceu, pois o mesmo Jesus, na pessoa dos seus seguidores, tornou-se para eles uma pedra no sapato que incomoda eternamente. Uma vez vindo ao mundo, veio para ficar.

Jesus:  causa de surgimento, pedra de degrau e pedra angular para muitos em Israel
Este Jesus é pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se tornou pedra angular. Atos 4, 11

Cristo, verdadeiro Deus, verdadeiro homem, é o único caminho de Deus para os homens e dos homens para Deus. Na Bíblia, Jericó representa o pecado, por isso, o que caiu nas mãos dos salteadores descia de Jerusalém para Jericó, caiu da graça para o pecado. Jesus visita Jericó e cura Zaqueu ao entrar e, ao sair, cura o cego Bar Timeu que se juntou à grande multidão que com ele subia para a salvação e graça, em direção a Jerusalém celeste.

Caminho, Verdade e Vida, Cristo é o modelo, o paradigma da vida humana. Cristo, nas suas palavras, obras e comportamento pessoal é normativo, pois possui 100% de humanidade. Quem quiser ser autêntica e genuinamente humano, é em comparação com Cristo e com nenhum outro que tem que se avaliar. O que é humano é cristão, o que é cristão é humano, pois não existe uma ética humana e uma moral cristã.

Quem não está comigo, está contra mim
“Mestre, vimos um homem que expulsava demónios em teu nome, e nós lho proibimos, porque não é dos nossos”. Mas Jesus disse-lhe: “Não lho proibais; porque, o que não é contra vós é a vosso favor”. Lucas 9, 49-50

Quem não está comigo está contra mim; e quem não se junta comigo, espalha. Mateus, 12, 30

Estes dois textos parecem estar em contradição; porém, se olharmos ao contexto em que Jesus diz duas frases opostas uma à outra, conseguimos entender. Jesus diz que tem outras ovelhas que não são deste redil, por isso é possível que pessoas fora da Igreja façam também o bem, os tais cristãos anónimos. Quem, por outras vias e sem ser do nosso grupo, contribui para a construção do reino, é cristão mesmo sem o saber porque são cristãs ou humanas as suas atitudes.

A segunda afirmação é feita no contexto de que ninguém vai ao Pai se não por mim (João 14, 6-14). Ou seja, como Cristo é a medida do humano e do divino, só quem se assemelha a Ele se salva, porque, como diz a seguir, quem não junta comigo espalha, dispersa, pois não há outro com quem se juntar. Não existe alternativa igualmente válida a Cristo.

Não a paz, mas a espada
Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa. Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim não é digno de mim. Quem ama seu filho mais que a mim não é digno de mim. Mateus, 10, 34-37

O amor divide o que estava unido e une o que estava dividido. Tomemos como exemplo o amor clássico de Romeu e Julieta. As famílias destes dois amantes eram inimigas viscerais, em guerra uma contra a outra. Antes de se conhecerem, cada um dos amantes vivia em paz, harmonia e amor com as respetivas famílias.

Quando a chispa de amor surgiu entre os dois, também a divisão e a discórdia se instalou com as respetivas famílias por causa da união do que antes estava dividido. O mesmo acontece nas famílias onde alguns dos seus membros decidem seguir Jesus e os outros não. É neste sentido que Jesus, o príncipe da paz, sem querer, em vez de trazer a paz traz a guerra e a discórdia ao seio das mesmas famílias onde antes d’Ele reinava o amor e a harmonia.

Maldição de Deus?
Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se tivessem sido feitos em Tiro e em Sidónia os milagres que foram feitos em vosso meio, há muito tempo elas se teriam arrependido sob o cilício e a cinza. Por isso, vos digo: no dia do juízo, haverá menor rigor para Tiro e para Sidónia que para vós! E tu, Cafarnaum, serás elevada até ao céu? Não! Serás atirada até ao inferno! Porque, se Sodoma tivesse visto os milagres que foram feitos dentro dos teus muros, subsistiria até este dia. Por isso, te digo: no dia do juízo, haverá menor rigor para Sodoma do que para ti! Mateus, 11, 21-24

A maldição de Deus é um antropomorfismo, ou seja, uma forma de entender a Deus à maneira do homem. Deus é incapaz de amaldiçoar, Deus só sabe abençoar. A maldição é o voltar as costas à bênção de Deus. Muito milagre fez Jesus em Corazim, Betsaida e Cafarnaum, pois eram grandes cidades no tempo de Jesus. Hoje só existem restos arqueológicos destas cidades. Ao contrário, Nazaré e Belém eram pequenas e diminutas e hoje são grandes cidades.

“Quem de Deus se não lembra, todo o bem lhe falta”. No seu discurso ao povo depois da saída do Egito, Moisés colocou diante do povo a bênção e a maldição. A bênção para os que aceitam Deus e seguem os seus mandamentos, a maldição ipso facto para os que não seguem os desígnios de Deus. A bênção vem de Deus, a maldição resulta da rejeição da bênção, não de um castigo de Deus porque Deus não castiga.

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os teus filhos, como a galinha reúne os seus pintainhos debaixo das suas asas... e tu não quiseste! Pois bem, a vossa casa vos é deixada deserta. Mateus, 23, 37-38

Jesus chora de raiva, pena e impotência pela ruína que estava para cair sobre Jerusalém. Uma ruína causada pelos próprios moradores da cidade que não souberam reconhecer em Jesus o messias esperado pelas nações. O messianismo político e militar dos judeus trouxe-lhes a ruína, a invasão das hostes romanas, a destruição da cidade e do templo e a dispersão pelo resto do mundo durante séculos, até ao surgimento do estado de Israel em 1948, por pena e misericórdia das potências cristãs que ganharam a guerra.

Conclusão: sendo Cristo a medida do que é autêntica e genuinamente humano, não se pode ser neutro e indiferente a Ele; a indiferença, é já, em si mesma, uma rejeição.

Pe. Jorge Amaro, IMC