1 de julho de 2015

A Castidade como atitude

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Um jovem monge, olhando para um prado, maravilhosamente florido, disse ao seu mestre, “Como é difícil para nós monges a castidade; é como estar perante uma multidão de maravilhosas flores perfumadas, sem poder colher uma sequer... O homem casado que por ali passava, ao ouvir estas palavras observou, “Que diremos nós os casados? Colhemos uma flor, inebriámo-nos com o seu perfume, e agora temos um desejo fortíssimo para conhecer outras; não é acaso mais difícil a castidade para nós? Uma mulher ao escutar estas afirmações exclama, “Existe sofrimento maior que o não ser recolhida por quem verdadeiramente queríamos e quando queríamos? Deus ouvindo os três pensou, “Têm razão os três por isso mesmo prometi aos puros de coração de que veriam a minha cara.

A virgindade ou castidade, nem é inata, nem temporária, nem coisa só de padres e freiras. Os valores humanos, para serem valores e serem humanos, devem poder ser aplicáveis universalmente. Consideremos então que todos estão chamados a viver em castidade, embora a prática desta virtude por cada pessoa dependa da sua opção fundamental.

Sexualidade como liturgia do amor
Até há bem pouco tempo, a sexualidade era vista como algo impura e suja. O próprio acto conjugal, apesar de ser o único meio para a transmissão da vida, era visto como negativo. Depois de Sigmund Freud, começámos a olhar para a nossa sexualidade de uma forma mais positiva, superando até as dicotomias sujo-limpo, puro-impuro ao tratar-se de partes da nossa anatomia; desta forma, hoje, a grande maioria das pessoas conceptualiza o seu corpo como puro e limpo, na sua totalidade e em cada uma das suas partes.

Após ter sido dissociada de um hipotético lado sombrio da nossa natureza, a sexualidade começou também a ser entendida num sentido muito mais amplo para além do puramente genital. O ser humano não é só masculino ou feminino no seu corpo, mas também na sua mente, personalidade e carácter. Masculinidade e feminilidade são então duas formas diferentes e complementares de ser, estar, e expressar-se como indivíduo, e não apenas uma referência de género.

No contexto de um casal o ato conjugal é, e deve ser ante tudo, uma expressão de amor e só depois um meio para a procriação e nunca, como era entendido teologicamente, um remédio para a concupiscência. Na eventualidade do acto conjugal ser procreativo, os filhos são, e devem ser, frutos do amor e não do desejo, ou da concupiscência.

Como nem todos os actos conjugais estão naturalmente abertos à transmissão da vida, podemos concluir que, enquanto a procriação nem sempre sucede a todos e cada um dos actos conjugais, o amor deve sempre preceder e acompanhar todos e cada um destes actos.

Castidade para todos
Ao longo da história a castidade, entendida como abstinência, tem sido o atributo distintivo de, uns poucos, monges, padres e freiras. A mesma santidade entendida como sendo o ideal e o objectivo para todo cristão, com poucas excepções, estava somente ao alcance do citado grupo de pessoas, pois à partida considerava-se que estavam numa posição melhor para lá chegar. Os outros estavam vetados a ser candidatos à castidade e à santidade pelo simples facto de estarem casados

Os leigos casados eram encorajados a imitar o clero tanto quanto podiam, especialmente durante a Quaresma estendendo a abstinência e o jejum à prática sexual; alguns foram tão longe que chegaram a fazer o voto clerical de castidade, abstendo-se de qualquer forma de comportamento sexual para o resto das suas vidas, vivendo como irmãos e irmãs.

Como dissemos, para ser um valor universal, a castidade tem de ser aplicável universalmente a todo o ser humano, qualquer que seja a sua forma de ser e estar na vida. Como tal castidade, para a maior parte das pessoas, não pode significar abstinência de sexo pois esta é a forma de expressar amor e união entre os esposos.

Assim sendo, a castidade deve ser buscada mais nas atitudes que nos actos; todo o beijo, abraço e carícia pode ao mesmo tempo ser expressão de amor e de luxúria, tudo depende da intenção de quem os dá. Como tais, não há actos puros e actos impuros, limpos ou sujos em si mesmos; o amor ou a luxúria não se encontram no ato em si mas no actor e nas suas motivações.

Que há de mau no prazer?
Essa é a questão que muitos jovens adultos me fizeram no contexto do Sacramento da reconciliação. A minha resposta tem sido sempre, “O prazer não tem nada de mau com tal de que a obtenção do mesmo não seja o motivo principal de nenhum acto humano”. Por exemplo, apreciamos a nossa comida e criamos até um cem número de diferentes receitas para torná-la mais agradável, mas não comemos por prazer. O prazer não é, nem deve ser, a razão principal para comer.

O Prazer pode ser uma das razões pelas quais comemos, mas a primeira é a sobrevivência e a saúde. Aqueles que cedem ao prazer de comer depressa arruínam a sua saúde. Comemos com prazer, para ter saúde. Quando o prazer se torna uma motivação primordial, facilmente se cai na dinâmica do vício, actos obsessivos e repetitivos sobre os quais não se tem controlo.

O que dissemos sobre a relação comida – prazer - saúde pode aplicar-se à relação sexo – prazer -amor. O prazer degrada, vicia e instrumentaliza as pessoas, quando é a razão principal para a prática do acto sexual. O prazer pode, e deve acompanhar o acto sexual como o faz no acto de comer, mas é o amor que dignifica e dá valor ético ao sexo.

Como dizia Erich Fromm afirmar o prazer, para além da realidade, é equivalente a negá-lo. Qualquer prazer agradável ao longo da vida deve ser restrito dentro dos limites da natureza humana. Abusando do prazer, seja do tipo que seja, para além da condição e natureza humana, encurta a vida e por consequência também o prazer.

Castidade quer certamente dizer abstinência para alguns e às vezes para todos. No entanto, como valor universal ou virtude a ser proposta a todos, sejam casados, solteiros ou religiosos, a castidade refere-se não só à prática ou não prática do acto sexual genital, mas a toda a nossa vida e a todos os nossos actos, pensamentos e sentimentos; sendo a nossa sexualidade, masculina ou feminina, transversal e intrínseca ao nosso ser, não há pensamentos, sentimentos e acções que sejam assexuadas.

Tão casto é o religioso que por amor ao Reino se abstém de relações sexuais, como o casado que as tem com e por amor à sua esposa. Como atitude, a castidade tem mais que ver com a purificação do sexo, ou seja antepor o amor ao prazer, que com a ausência dele.

St. Agostinho, já no século IV, dava mais importância à atitude que ao acto quando dizia: "Ama et fac quod vis." Ama e faz o que queres. Amar como define Sto Tomás de Aquino, é querer o bem do outro pelo que quem ama, verdadeiramente, não pode não fazer o bem.
Pe. Jorge Amaro, IMC

15 de junho de 2015

Castidadde como segunda inocência

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Há eunucos que nasceram assim do seio materno, há os que se tornaram eunucos, pela interferência dos homens, e há aqueles que se fizeram eunucos a si mesmos, por amor do Reino do Céu. Quem puder compreender, compreenda. Mateus 19, 12

"Ainda sou virgem!", "Já não sou virgem!"
Pelo tom de voz e o enfase utilizados quando um/a jovem afirma: “Ainda sou virgem”, ou “Já não sou virgem” descobrimos de imediato a forma como conceptualiza e vive a sua sexualidade. Seja com tristeza ou com orgulho como de facto são ditas estas duas expressões, ambas denotam vários mal entendidos com respeito à sexualidade e a virgindade.

O primeiro acto sexual marca fisicamente, psicologicamente e até culturalmente uma mulher de uma forma diferente de um homem:
Fisicamente – A mulher perde o hímen, pelo que deixa de ser fisicamente, ou tecnicamente virgem; o homem nada perde e nada ganha neste aspecto.

Psicologicamente – Para ambos, o acto pode ter sido positivo, se foi vivido no contexto de amor, ou negativo, se foi buscado só por prazer, e até traumático, se foi induzido por violência.

Culturalmente – A cultura patriarcal, ainda dominante em todo o mundo, olha para o primeiro acto sexual de uma forma inócua ou até positiva no caso do varão, negativa e até estigmatizante no caso da mulher.

Para muitas pessoas, a virgindade ou castidade é algo que é tão permanente como um castelo de areia, à espera de render-se às ondas do casamento, 'defendido' até à realização deste ou simplesmente para evitar problemas. Com o casamento, o castelo deixa de existir e portanto não precisa de ser defendido.

A virgindade, como sinónimo de castidade, é um valor e uma virtude tanto para varões como para mulheres, e é vivida por ambos de igual forma; não é portanto física, nem algo que se possui à nascença e logo se perde para nunca se voltar a ter. Os valores e virtudes que nos caracterizam e dão forma e sentido à nossa vida não são inatos, nem se possuem naturalmente, pelo contrário, são o resultado de uma rigorosa disciplina e esforço pessoais com a ajuda da graça de Deus.

Sigmund Freud provou que a castidade, pureza ou virgindade, da criança é um mito; longe de viver num estado de pureza, o bebé vive num habitat de luxúria, sem censura, com formas muito subtis de auto-satisfação sexual. É só pelo quarto, quinto e sexto ano de vida que, através da educação, a criança aprende a estar em conformidade e a viver dentro de certas normas de decência.

A partir desse momento, até a idade de 12, a 'castidade' parece ser a morada natural das crianças. Com o início da puberdade, pouco a pouco, a natureza parece voltar em força e reivindicar os seus direitos.

Escravos da liberdade sexual
Com os estudos de Freud, Wilhelm Reich e outros de finais do século XIX e a revolução sexual dos anos sessenta, em pouco tempo passamos de uma visão negativa, puritana e maniqueia, da sexualidade a uma visão da sexualidade livre de todo e qualquer constrangimento moral. A sociedade actual prostituiu o sexo, entendendo-o como um bem de consumo e usando-o subliminarmente na publicidade do que quer que seja; desta forma conseguiu desligá-lo da reprodução, do amor e até da responsabilidade, fazendo passar a ideia de que fazer sexo é como beber um copo de água. Nem o risco da sida, e outras doenças sexualmente transmissíveis dos anos oitenta, conseguiu parar esta tendência liberal permissiva.

A sociedade está de tal maneira erotizada e permissiva que a todos resulta difícil ser casto, e muito mais àqueles adolescentes e jovens que estão despertando para as vicissitudes do desejo sexual, ou 'libido', como Freud lhe chamou. A primeira experiencia sexual é cada vez mais cedo e muitos, apesar de fisicamente estarem preparados para ela, não o estão psicologicamente, moralmente e espiritualmente.

Os resultados estão à vista de todos: um grau de promiscuidade elevado que leva tanto ao rompimento dos vínculos existentes, 51% de divórcios no nosso país, como ao optar por viver juntos, em vez de casar.

São cada vez menos os que conseguem passar da pureza e inocência da infância à castidade adulta e madura sem passar por experiências sexuais negativas, traumatizantes e estigmatizantes; são cada vez mais são os que aprendem com os erros cometidos, tal como o filho pródigo da parábola de Jesus. Estes têm uma experiencia semelhante à de Adão e Eva, expulsos do paraíso, da inocência por desobediência. No entanto, o poder salvador de Jesus a todos consegue uma segunda oportunidade, uma segunda inocência.

De prostituta a virgem
Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Mateus 18, 2

Há valores e virtudes que as crianças têm naturalmente e que nós adultos, por preceito de Jesus, estamos chamados a adquirir para entrar no reino dos Ceus; para que isso aconteça, de alguma forma, temos de nascer de novo, como Jesus aconselhava a Nicodemos. Quando Jesus diz bem-aventurados os pobres, não se refere aos que nascerem e vivem pobremente, devido às suas condições económicas e financeiras, mas sim aos que podendo ser ricos decidiram ser pobres; ou seja trocaram a riqueza material pela riqueza espiritual.

O mesmo sucede com o valor da inocência, virgindade, ou castidade pelo Reino dos Céus; não se trata da inocência ou virgindade inata, em virtude da ignorância e falta de experiencia num tempo em que as hormonas sexuais testosterona e a progesterona não estavam no seu auge de produção; trata-se de uma virtude adquirida pela graça de Deus, pela oração e pelo esforço diário.

O filho pródigo e Maria Madalena aprendem o que é o 'amor verdadeiro' depois de terem experimentado algo que parecia ser amor, mas não era. Depois de conhecer a Cristo, aquela a quem alguns estudiosos se referiam com sendo prostituta, torna-se uma virgem por ter seguido o mestre. Da mesma forma o filho pródigo, só entende o que é o amor e liberdade verdadeiros depois de ter abusado, de ambos estes valores, e ter sofrido as consequências.

Os virgens e as virgens pelo reino dos Ceus são os que, qualquer que seja o seu passado, escolhem prescindir da expressão física do amor, que leva à constituição de uma pequena família humana, para se colocar ao serviço da grande família humana. Escolhem ser e viver como Jesus, o seu mestre e o seu Senhor, que também foi virgem para dedicar ao Reino dos Céus o melhor de si mesmo, todo o seu ser, o seu tempo e as suas energias.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de junho de 2015

Castidade como sublimação de energia

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A fórmula da Vida humana
A minha paixão por simplificar as coisas, levou-me a pensar numa fórmula para a vida humana; usando o grego, por tradicionalmente ser a língua da ciência, achei que a vida humana era igual ao somatório de quatro diferentes elementos ou dimensões: Eros + Thanatos + Cronos + Logos.

Eros & Tânatos - Instinto de Vida e Instinto de Morte, afectividade e agressividade, são em linguagem freudiana o polo positivo e o polo negativo da energia humana;

Cronos - É a dimensão do tempo; somos um ser espácio temporal; ocupamos um espaço durante um tempo, que corresponde aos anos que nos são dados a viver;

Logos - Refere-se à autoconsciência que temos de que estamos vivos e possuímos uma liberdade, mais ou menos relativa, para fazermos o que quisermos com a vida. Os animais e as plantas são tempo e energia regulados pela natureza, como não sabem que existem também não têm poder sobre a sua existência. No exercício da nossa liberdade, Logos é a nossa opção fundamental, é o que decidimos fazer com a nossa vida; a quê e a quem vamos dedicar todos, e cada um, dos nossos dias.

A energia da vida humana
Eros & Tânatos, instinto de vida instinto e de morte, afectividade e agressividade, ying e yang, a força centrípeta e centrífuga, o amor e o ódio, polos positivo e negativo da electricidade ou energia com que fazemos tudo o que fazemos. Sem energia nada funciona, numa sociedade, o mesmo acontece connosco.

No ser humano todos os seus actos deveriam ser inspirados e decididos pelo Logos, pela razão; mas a verdade é que o instinto, de Eros & Tânatos, não só provê a energia para a realização de todos os actos, que a razão determina, como motiva, alimenta e orienta muitos outros que se subtraem ao poder da razão; apesar dos milhões de anos de evolução desde a animalidade, o nosso comportamento é mais movido pelo instinto do que gostaríamos de admitir.

Todos os actos humanos têm uma mistura de afectividade e agressividade, mesmo os mais polarizados, tanto na afectividade, como a educação, como na agressividade, como a guerra, há sempre um pouco do polo contrário; como há um pouco de feminidade num homem e um pouco de masculinidade numa mulher. É óbvio que a educação de um filho, pelos seus pais, tem mais de afectividade que de agressividade e no entanto uma educação só afectiva teria a tendência de ser paternalista. Na educação de uma criança a afectividade, os prémios e as caricias, devem ser doseadas com alguma agressividade, castigos e disciplina.

Sublimação
No seu livro, “O mal-estar da Civilização”, Freud defende que tanto a agressividade como a afectividade desbocadas, ou seja, abandonadas a si mesmas, têm um potencial destrutivo incomensurável; podem destruir o que ajudaram a construir. O ser humano abandonou a animalidade quando ganhou poder sobre estas duas forças, quando as conseguiu domesticar, quando lhes colocou rédeas para as aproveitar positivamente.

Desta forma, o Tabu do Incesto funcionou como o “cabresto” do Eros - afectividade – instinto de vida, proibindo as relações sexuais entre pessoas ligadas por laços de sangue. Sem esta proibição a consanguinidade acabaria com a raça humana. A regra “olho por olho, dente por dente” (que pertence ao código de leis mais antigo do mundo, o código Hamurabi) funcionou como o “cabresto” do Thanatos – agressividade - instinto de morte para limitar a natureza da violência que, de por si, deixada livre, tende a escalar e alastrar-se descontroladamente levando à destruição.

Sublimar significa desviar, substituir ou modificar a expressão natural de um impulso ou instinto para uma expressão que é socialmente e culturalmente aceitável e construtiva. O exemplo de uma energia destrutiva transformada numa energia construtiva é a transformação de um touro, de touradas, num boi que lavra a terra e puxa uma carroça.

Vistas as coisas sob este prisma, a civilização humana pode ser considerada como uma história da sublimação do Eros & Tânatos, ou seja o uso inteligente que a humanidade fez destas forças ou instintos básicos. Da mesma forma, a nossa própria história pessoal consiste também nos esforços para desviar o nosso afecto e agressão naturais de seu alvo natural e primordial, a fim de promover o cultivo dos valores humanos.

A Castidade como desvio de energia
Em consonância com essa forma de pensar, o voto religioso de castidade consiste em desviar a afeição natural do homem e da mulher do seu objecto primordial, casar e ter filhos, canalizando-a para uma finalidade mais cultural. Sacerdotes, religiosos e religiosas escolhem não ter esposas e maridos a fim de estabelecer uma fraternidade mais ampla; Optam por não reproduzir-se biologicamente, e ter filhos próprios, a fim de ampliar e estender a sua paternidade e maternidade para além dos laços de sangue.

O dar à luz uma criança, ou contribuir com material genético, faz de uma pessoa um progenitor, não, de per se, um pai e uma mãe verdadeiros. Há autênticos pais que não são progenitores e progenitores que não são pais autênticos. A verdadeira paternidade envolve a dedicação completa, o dom de si mesmo aos filhos, o acompanhamento contínuo e constante até eles se tornarem adultos, e a valentia de cortar o cordão umbilical e de lhes dar o seu espaço e liberdade, quando eventualmente se tornam adultos. A este respeito, ninguém negaria a maternidade de Madre Teresa, mesmo sabendo que ela nunca deu à luz.

Considerando o facto de que, ao longo da evolução, os laços familiares têm tido mais que ver com o instinto que com o puro afecto, podemos concluir que uma sociedade, em que a interacção social se baseie unicamente em relações de família, será sempre muito fragmentada e frágil. Uma irmandade e paternidade que se estende para além dos limites dos laços de sangue, pode ser um elo de união ou cimento entre famílias; mais concretamente, pode ajudar a resolver os conflitos que surgem entre famílias rivais e contribuir para a paz e bom entendimento entre todos, tal como a cartilagem entre os ossos permite um funcionamento das articulações, evitando que osso toque osso o qual causaria dor.

Recapitulando, o curso natural do impulso amoroso é a formação de uma família, onde as relações se baseiam nos laços de sangue. A castidade sublima, ou desvia, o mesmo impulso do seu fim natural para lhe dar um fim cultural - a fraternidade universal. O amor entre pessoas que não estão ligadas entre si, por laços de sangue, actua como elemento unificador da sociedade.

Marcuse chamou a isto, “erotismo difuso” e Freud chamou-lhe, “um impulso amoroso cortado (“castrado”) do seu objectivo primordial, e dá o exemplo de São Francisco de Assis como sendo o homem que melhor sublimou a sua energia de Eros; o homem que mais e melhor partido tirou dela ao universalizar o seu eros, o seu afecto irmanando-se com toda a criação, tratando tudo e todos como irmãos e irmãs: o irmão sol, a irmã Lua, até os seus antagónicos, o irmão lobo e a irmã morte.

Alguns diriam que este conceito de amor não é natural. Na verdade, não é porque transcende a natureza, mas, nesse mesmo sentido, toda a cultura humana se opõe à natureza. De facto o que é verdadeiramente natural no Homem não é o que é dado pela natureza, mas o que ele mesmo alcança através da sua mente criativa.

A Castidade é como uma barragem
O Amor dentro do voto de castidade pode ser comparado a uma barragem. A Natureza não cria barragens, os rios correm em vales entre montanhas, ou abrindo grandes sulcos em planaltos desertos, e a sua água volta ao mar de onde saiu sem nenhum aproveitamento. Com a construção de uma barragem, o nível de água sobe a ponto de poder irrigar os campos e transformar um deserto num oásis, criando e alimentando uma sociedade agrícola e rural; por outro lado pode também ser aproveitada para fazer energia eléctrica, criando e alimentando cidades industriais onde floresce a cultura urbana.

É claro que a barragem reprime, e comprime, a água impedindo o seu fluxo natural; por isso as suas paredes têm de ser fortes e côncavas. Por outro lado, feita nos limites do possível, a mais-valia e os benefícios que se obtém da força da motriz da água para produzir energia, e da sua canalização para a irrigação, justificam plenamente a sua represa ou repressão.

Tal como as paredes côncavas e fortes da barragem, a sublimação do Eros requer que a pessoa possua um caracter forte e robusto, para conter o impulso natural do Eros que se manifesta no desejo sexual e na paternidade natural, e poder assim canalizar a sua energia para uma paternidade e irmandade mais universal. O bem que se faz aos outros, no contexto desta paternidade e irmandade universal, ecoa em nós em forma de alegria; o ver que os outros estão melhores graças à nossa actuação, compensa largamente o esforço e o sacrifício envolvido no processo de sublimação.
Pe. Jorge Amaro, IMC

15 de maio de 2015

Amor universal sem matrinónio

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Nós, os errantes, sempre em busca do caminho mais solitário, não acabamos um dia onde o tivermos começado; e nenhum amanhecer nos encontra onde nos deixou o entardecer.
Khalil Gibran, O Profeta

O padrão dos filmes de cowboys
Nos meus tempos de criança, e de adolescente, gostava muito de ver filmes de cowboys na televisão. Hoje, pensando em retrospectiva, é claro para mim que esses filmes influenciaram, diria mesmo, forjaram de alguma forma o meu futuro. O que é que tem que ver um missionário com um cowboy herói (o bom ou artista dizíamos na altura referindo-nos ao protagonista)? Na verdade, não são assim tão diferentes; de facto têm em comum a mística que os move, a sede e o amor pela justiça e pela liberdade; só divergem na forma de actuar.

A maioria dos filmes de cowboys tem uma narrativa semelhante: No início do filme, ao som de uma música característica deste tipo de filmes, vemos o cowboy cavalgando em direcção a uma cidade. Ao chegar, rapidamente se dá conta de que algo de errado se passa naquela localidade. As ruas estão desertas e as poucas pessoas que se podem ver escondem-se atemorizadas, por detrás das suas janelas. Mesmo dando-se conta da sensação de terror, que paira no ar, o cowboy cavalga, e depois de atar o cavalo, caminha intrepidamente com a descontracção e autoconfiança que sempre o caracterizam em direcção à porta do Bar, que abre com um pontapé..

É lá que encontra os fora da lei (barrascos, como lhes chamávamos na altura) que depois de matarem o xerife, e quantos se lhes opuseram, incutiram o medo aos restantes. Enquanto pede um whisky, ao empregado de balcão, aproxima-se dele um dos bandidos para o desafiar; o whisky termina normalmente na cara do bandido e enquanto este leva a mão à pistola já o cowboy disparou sobre ele, apontando a arma aos restantes. Deste primeiro confronto ficou evidente que o nosso protagonista é um durão e, ao contrário do resto dos homens da cidade, não é facilmente intimidável.

Saindo do bar, com o mesmo à vontade com que entrou, encontra-se com as gentes da cidade para se inteirar da gravidade da situação. Inspira-lhes confiança, coragem e juntos divisam um plano e começam a trabalhar para a libertação da cidade. Muitas vezes ensina-lhe técnicas de autodefesa, que rapidamente aprendem, ganhando assim também confiança neles mesmos.

Como sempre tem que haver algum romance para despertar o interesse do público, os filmes de cowboys não são excepção. Enquanto duram os preparativos para a batalha final, uma mulher apaixona-se pelo nosso protagonista, dando assim início a um romance que se desdobra em simultâneo com o trabalho de libertação.

Eventualmente chega o dia tão esperado. Com a ajuda das pessoas da cidade, o cowboy derrota os bandidos. Aqui o padrão dos filmes de cowboys diverge um pouco; nuns quando as pessoas buscam o cowboy para lhe agradecer este já não se encontra, apenas se vê a sua silhueta cavalgando a galope contra a luz do pôr-do-sol ao som da música com que começou o filme; noutros o cowboy permanece só o tempo suficiente para se despedir daqueles a quem amou, e por quem arriscou a vida, por puro amor, pela verdade e pela justiça, sem buscar nada em troca. É certo que o povo lhe oferece, estabelecer-se ali, ser o seu Xerife, casar com a mulher etc…. Até à data não conheço nenhum filme de cowboys que acabe como os contos: “casaram-se, tiveram muitos filhos e foram muito felizes”.

São-lhe oferecidos poder, dinheiro e amor…. Que mais pode desejar uma pessoa humana debaixo do sol? Mesmo assim ele recusa e não fica, porque a justiça, a verdade e a paz, com quem ele está comprometido, e por quem ele arrisca a vida pedem-lhe que se mantenha livre… Se ele aceitasse e permanecesse na cidade, outras cidades não seriam libertadas.

Abraço inclusivo
Como o cowboy, o missionário ama universalmente. O mundo inteiro é a sua pátria e a humanidade a sua casa. Tem fome de Justiça e sede de paz. Por elas, e para elas, vive cada momento da sua vida e está sempre pronto a sacrifica-la, toda, em cada um desses momentos.

Ao longo de toda a sua vida, o missionário esforça-se para amar a todos, por igual, sem exclusivismos e em liberdade. O seu objectivo não é pertencer a uma pessoa, mas ser um com todos. Na sociedade de hoje, que coloca tanta ênfase no sexo e onde masculinidade se tornou sinónimo de desempenho sexual, um missionário, tal como Jesus no seu tempo, encarna uma maneira não-erótica de amar. Num mundo onde tantos procuram sexo sem amor, os missionários esforçam-se por amar sem sexo.

Um abraço fechado inclui algumas pessoas, mas exclui todas as outras. O missionário não fecha os braços sobre ninguém em particular, o qual não quer dizer que ame menos intensamente. Como uma mãe com vários filhos, no aqui e agora da sua vida, o missionário ama com toda a intensidade a pessoa que tem à sua frente, sem esgotar nela o seu amor, porque o amor nunca se esgota.

Embora a sociedade de hoje tenda a colocar o instinto sexual ao mesmo nível que outras necessidades físicas individuais, tais como comer e beber, a verdade, que poucos querem admitir, é que, à diferença destas apetências que são intrínsecas ao indivíduo em função dele mesmo, a apetência sexual, também intrínseca ao individuo, não se realiza em função dele mas em função da espécie. A relação sexual não é tanto uma necessidade dos seres humanos, como indivíduos, mas uma necessidade da raça humana para sobreviver.

Em função do indivíduo a prática do sexo é completamente inócua, nem tira nem acrescenta nada à pessoa que o pratica ou não pratica. Portanto, o indivíduo não precisa da realização do acto sexual para preservar, afirmar, ou aumentar a sua masculinidade ou feminilidade. Os homens e as mulheres tanto se distinguem como se complementam em todas as áreas de sua masculinidade e feminilidade, não só nos órgãos genitais.

O amor pode existir e subsistir, e faz sentido, sem sexo pois há uma infinidade de situações amorosas onde o sexo não se aplica, não entra nem deve entrar; ao contrário, o sexo sem amor não deve existir, não faz sentido, pois transforma a pessoa num objecto de prazer instrumentalizando-a e degradando-a, mesmo no caso do sexo consentido entre adultos onde ambos são sujeito e objecto.

Amar é, como diz Sto. Tomás de Aquino, querer o bem do outro. Por isso diz o provérbio espanhol “obras son amores y no buenas razones” o amor manifesta-se nas obras tal como a fé. Contrariamente ao que diz o dito popular: praticar sexo não é “fazer amor”, pois o amor manifesta-se nas obras, cresce ou decresce com e por elas.

Longe de ser a única, o acto sexual é tão só uma das muitas formas de dizer: “Eu amo-te”; e não aplica, nem é lícito, nem moral em muitas formas de amar. Mas, mesmo nas situações amorosas em que é correcta e adequada a expressão sexual, esta, por si só, nem tira nem acrescenta nada ao amor, apenas expressa ou não expressa o amor que existe ou não existe.

A necessidade é amar e ser amado
"All you need is love" costumavam cantar os Beatles nos anos 60. De facto, depois das necessidades básicas que não inclui o sexo, amar e ser amado é a única necessidade e condição sem a qual a vida humana nem existe nem subiste. Nenhuma pessoa jamais atingirá maturidade plena, como ser humano, se não for amado incondicionalmente durante a infância e amar incondicionalmente como adulto.

Quem em adulto busca ser amado, mais que amar, comporta-se afectivamente como uma criança. E como a sociedade não tolera que adultos se comportem como crianças, buscará ser amado de forma enviesada, com enganos, manipulações e jogos psicológicos; é disso que tratam as telenovelas. Quem é maduro afectivamente pode passar sem ser amado; não pode passar sem amar. Jesus na sua vida terrena, buscando sempre amar e servir os mais pobres e desfavorecidos, não buscava ser amado, mas também não repelia o amor que lhe devotavam.

Amor universal, paternidade universal
Todo o homem, e toda a mulher, têm uma vocação natural para serem pai e mãe. O missionário está chamado a realizá-la, não de uma forma biológica ou física, mas de uma forma psicológica e espiritual. Mesmo para aqueles que são pais, no sentido biológico, o mais importante não é o escasso tempo do processo de conceção, mas os longos anos do processo educativo.

O missionário não é pai trazendo mais filhos ao mundo, mas contribuindo para a educação e humanização dos que já cá estão. A sua paternidade ou maternidade não se mede pelo número de filhos biológicos que tenha gerado, mas pelas vidas que influenciou positivamente. A sua missão é inspirar os outros para que vivam de forma mais justa, mais pacífica e plena.

O missionário, tal como o vaqueiro solitário dos filmes, nunca fica num só lugar. Continua o seu caminho, levando consigo o seu desejo insaciável de justiça, o seu amor pela verdade e a sua sede de paz. Porque, para ele, a vida não se trata de estabelecer-se num local, mas de continuar a avançar, libertando os cativos e proclamando um amor que não conhece fronteiras nem condições.

E, tal como nos filmes de cowboys, a sua partida deixa uma marca indelével. Embora não busque glória nem reconhecimento, o amor que semeou floresce naqueles que tocou, transformando corações e comunidades inteiras. Assim, a sua missão perpetua-se, para além da sua própria vida, em cada ato de amor e justiça que inspirou.

O missionário ama sem esperar nada em troca. Ama em liberdade, com os braços sempre abertos, pronto para abraçar o próximo que cruzar o seu caminho. Porque, para ele, a vida é uma aventura em que o amor é a única bússola que importa. Do missionário pode-se dizer, como se disse de Jesus: "Passou pelo mundo fazendo o bem."

Conclusão -
O missionário, tal como o vaqueiro solitário, move-se por um amor universal e desinteressado, buscando a justiça e a paz sem se prender a nada nem a ninguém. A sua vida é um ato contínuo de entrega, onde o amor se expressa em obras para além das relações convencionais. Comprometido, mas não preso.

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de maio de 2015

A causa real da pobreza

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Oxfam, a ONG inglesa que luta contra a pobreza no mundo, declarou no fórum económico mundial em Davos 2015 que, por este andar, no próximo ano 1% da humanidade que este ano já possui 48% da riqueza mundial terá mais riqueza que os outros 99%. Pois possuirá 52%. Ante esta situação gostaríamos de perguntar ao sr. Adam Smith, pai do capitalismo moderno, onde está a mão invisível que deveria buscar o interesse comum quando cada um busca o próprio interesse.

As contradições do capitalismo
Deambulando pela praia um turista, de um país rico, deparou-se com um pescador recostado na sua barca, fumando pacificamente o seu cachimbo, ante um sol que já ia declinado no horizonte.
“Porque é que não foste pescar?", Perguntou o homem rico.
“Já fui”, respondeu o pescador.
“E porque é que não vais outra vez” continuou o homem rico.
“Porque já pesquei o suficiente para hoje”.
“E porque não pescas mais do que o que precisas?”, Questiona o homem rico.
“E que faria eu com tanto peixe?”, Inquiriu o pescador.
“Vendias e ganhavas mais dinheiro; desta forma, poderias colocar um motor no teu barco. Então poderias pescar em águas mais profundas e apanhar mais quantidade de peixe, que te permitiria talvez comprar um barco maior e melhores redes e apetrechos. Com o tempo até podias chegar a ter dois barcos e pessoas a trabalhar para ti e então ficarias rico como eu.
“E que faria eu depois?", Perguntou o pescador.
“Ah depois podias desfrutar a vida”, respondeu o rico.
“E não é o que estou a fazer agora?” Concluiu o pescador, com ar divertido.

Esta história é citada, em um dos livros de Anthony de Mello, com o intuito de satirizar a ideologia capitalista: primeiro criamos um excedente de mercadorias; depois, baseados na psicologia profunda da natureza humana, através da publicidade e marketing criamos necessidades fictícias, que levem as pessoas a consumir mais. As consequências desta ideologia são:
  • Imoral delapidação dos recursos do planeta, sobretudo nos países mais pobres e sem grandes vantagens para eles;
  • Contaminação do ecossistema humano por gases tóxicos irrespiráveis cujo efeito estufa, levou a um aumento da temperatura global e a mudanças climatéricas, que já se fazem sentir e são uma grande preocupação para o futuro.
  • Deterioração da saúde nos países mais ricos, causada pela poluição atmosférica, contaminação dos terrenos de cultivo, dos mares e dos rios, e pelo excessivo consumo de alimentos geneticamente modificados, produzidos com fertilizantes químicos, tratados com pesticidas e processados com corantes e conservantes artificiais.
  • Criou-se, nas mãos de poucos, uma riqueza que é inversamente proporcional à pobreza criada no resto da população do mundo.
A população mundial já passou de 7 bilhões de pessoas. Os ambientalistas dizem que, se cada um destes 7 biliões de pessoas vivesse como vivem as pessoas no mundo ocidental, Europa, América do Norte Austrália, o planeta poderia suster a vida dos seus habitantes por três meses; depois já não haveria mais recursos e a poluição do mar, da atmosfera e das terras cultiváveis seria tal que a vida não seria possível.

Podemos concluir que o nosso modo de vida é prejudicial para a maioria das pessoas, que nunca atingirão o mesmo nível de vida e é prejudicial para o planeta que habitamos. Como solucionar este problema? Para que todos os habitantes deste planeta possam viver com dignidade, e com o mínimo indispensável, os ricos têm que consumir menos para que os pobres possam consumir o indispensável. Como os ricos não querem descer o nível de vida que atingiram, nem querem que o planeta morra, é preciso criar mecanismos para que os pobres não saiam da sua pobreza.

Uma globalização injusta
Esta última etapa do capitalismo trouxe crescimento económico, a nível planetário, mas não envolveu uniformemente todos os habitantes do planeta. Há mecanismos que fazem com que os países ricos sejam ainda mais ricos e os países pobres cada vez mais pobres.

O princípio físico dos vasos comunicantes diz-nos que se um recipiente cheio de água se comunicar com um quase vazio, o nível de água fica igual nos dois recipientes. A globalização, ou seja a intercomunicação entre todos os países, deveria trazer mais igualdade, mas não trouxe. Isto porque a comunicação não se faz sem impedimentos, como no princípio dos vasos comunicantes, mas com válvulas. A válvula é um mecanismo que faz com que o movimento se faça num só sentido. Por exemplo o duodeno é uma válvula, entre o intestino e o estômago, e a sua função é deixar que os alimentos passem do estômago para o intestino, e não voltem ao estômago.

Portanto, a globalização, que seguindo o princípio natural dos vasos comunicantes, deveria ser justa, a existência de uma espécie de “duodeno” entre os países ricos e os países pobres; faz da globalização uma forma moderna de exploração.

Há uns anos atrás, a economia substituiu a política no comando deste mundo; agora estamos a assistir ao momento em que as finanças, ou seja fazer dinheiro com dinheiro sem criar riqueza, substituem a economia no comando.

Para a política o mundo era um fórum, um grande parlamento; para a economia o mundo era um grande mercado; para as finanças o mundo é apenas um casino, onde uns ganham fortunas à custa de outros desgraçados que jogaram e penhoraram a casa, a mulher e os filhos, e nem assim evitaram a banca rota.

Feudalismo económico-financeiro - Estamos marchando cegamente em direcção a um feudalismo económico e financeiro. A fusão de grandes empresas multinacionais, com a consequente monopolização de sectores inteiros da economia mundial, supõe uma ameaça à democracia; o enorme poder, concentrado nas chefias de ditas empresas, escapa ao critério e escrutínio da política e dos governos dos países onde estas empresas estão sediadas e actuam.

Nas democracias antigas o poder residia no povo que o delegava, por um tempo determinado aos políticos, podendo o povo sempre chama-los a contas. No feudalismo actual o poder do povo é fictício; o verdadeiro poder reside nas chefias das grandes empresas e grupos; os políticos existem “para inglês ver” são como os reis em monarquias constitucionais, reinam mas não governam; são apenas marionetas que executam os interesses financeiros das tais chefias que costumam não ter rostro e não respondem ante ninguém, porque o dinheiro compra tudo e todos e são eleitas por elites endogâmicas.

Na assembleia da Republica, como no parlamento de qualquer país, sentam-se deputados que uma vez eleitos pelo povo se deixam prostituir pelas empresas e grupos e oligarquias e na hora de votar as leis são os interesses destas, que lhes pagam por fora, que eles representam e defendem e não os interesses do povo que os votou para ocupar aquele lugar. Até mesmo os que ali estão em regime de exclusividade, como outrora o actual primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, recebem pelos dois lados.

Desmaterialização dos produtos - Estamos também a assistir a uma desmaterialização dos produtos. Quando compramos algo pagamos cada vez menos pelo valor da sua matéria-prima e cada vez mais pelo valor acrescentado, mão-de-obra, marketing, publicidade, invólucro, marca etc… Por exemplo se o preço de uma chávena de café é um euro, só dois cêntimos vão para o que colheu o café, 8 para o dono da plantação, 10 para o transporte, 10 para o importador, 10 para o vendedor a granel, 10 para o processador, 10 para o distribuidor e 40 cêntimos para o que o vende ao consumidor. Uma quantidade enorme de pessoas que vive à custa de um produto… Só este mecanismo, de por si, faz com que os consumidores ricos vivam à custa dos produtores pobres.

Desnacionalização dos produtos – O “made in”, que os produtos traziam, é puramente fictício e muitos já nem o trazem. Cada produto é feito por componentes que são produzidos em diferentes países, onde a mão-de-obra é mais barata e onde se pode contaminar à vontade. Por exemplo a Nike, pagava 80 cêntimos, por mês, a crianças da India, que trabalhavam de sol a sol, para depois vender os ténis, que estas produziam, a 150 dólares nos Estados Unidos.

Do ponto de vista ecológico, não faz sentido que um quilo de uvas da Califórnia seja exportado em avião para a Alemanha, gerando na atmosfera um quilo de dióxido de carbono. Mas acontece…. Também é pouco racional que os caranguejos, pescados no Atlântico Norte, sejam levados a Marrocos para descascar, empacotados na Polónia e consumidos na Alemanha…

Génese do Terrorismo
Escusado será dizer que esta situação, do mundo actual, é o caldo de cultivo, o tipo de ambiente, que produz e reproduz o terrorismo, como vamos testemunhando desde o 11 de Setembro de 2001. Disparidade global é fundamentalmente incompatível com a segurança global. Não podemos esquecer que as torres, que foram alvejadas, eram chamados, "World Trade Center" -  Centro do comércio mundial.

Lutar contra o terrorismo apenas através do exército e da polícia é repetir, uma e outra vez, a lenda do dragão de 7 cabeças: por cada cabeça cortada nascem outras 7. O combate mais eficaz na luta contra o terrorismo, em todo o mundo, é trabalhar pela justiça e pela paz.

Economia saudável à custa da saúde dos trabalhadores
Está-se a quebrar a antiga distribuição equilibrada do tempo: 8 horas de trabalho, mais 8 horas de descanso, e mais de 8 horas de relações sociais, quando as horas de trabalho são para tantas pessoas 10 e até 12 horas, voltamos à situação da primeira revolução industrial. A excessiva produção leva ao excessivo consumo e à doença física e psicológica, pois reduz os seres humanos a máquinas de produção e consumo.

Por outro lado há pouco tempo para o descanso e vida familiar pelo que as crianças, que já antes não tinham pai mas ainda se arremediavam com a mãe, agora também não têm mãe, pois ambos trabalham para sobreviver e pagar as contas. Esta situação causa doença nas famílias e na sociedade, que não é mais que um conjunto de famílias.

Jesus diz que o Sábado é para o homem e não o homem para o sábado. A economia está em função do homem e não o homem em função da economia. O que é mais importante: a saúde da economia ou a saúde do homem, que sustem a economia? Podíamos ser mais saudáveis, e mais felizes existencialmente, se trabalhássemos menos e consumíssemos menos. A economia é de facto saudável, no mundo ocidental, mas é à custa de um homem cada vez mais doente, a todos os níveis. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? Marcos 8, 36
Pe. Jorge Amaro, IMC

15 de abril de 2015

"Felix Culpa"

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Ó indispensável pecado de Adão,/ Pois Cristo o dissolve em seu amor; /Ó feliz culpa, que há merecido/ A graça de um tão grande redentor!Pregão Pascal

A expressão latina “Felix Culpa” deriva dos escritos de Santo Agostinho sobre a queda de Adão e Eva, que arruinou a natureza humana dando início ao pecado original, que qual doença genética se tem vindo a propagar de geração em geração.

À luz da Ressureição de Cristo, Santo Agostinho reinterpreta, de forma “positiva”, o pecado de Adão e Eva, estendendo assim a positividade do presente à negatividade do passado. Por esta razão a Igreja colocou esta exclamação do santo no pregão pascal que é o momento litúrgico, dentro da vigília Pascal, em que se proclama a ressurreição de Cristo.

Na vida do dia-a-dia encontramos exemplos desta realidade: A mulher que dá à luz, ante a alegria tamanha que sente com o seu filho nos braços, depressa esquece as dores do parto, ou olha para a dor de uma forma distinta; Que a garrafa está meia de vinho é um facto irrelevante; o que é relevante é a minha interpretação do facto; para o pessimista está meio vazia, para o optimista está meio cheia.

“Não há males que por bem não venham”
O cavalo de um velho agricultor fugira para as montanhas. “Azar”, declararam os vizinhos por empatia, ao que o velho retorquiu “Azar ou sorte quem sabe?” Uma semana depois o cavalo voltou com uma manada de cavalos selvagens e desta vez os vizinhos felicitaram o agricultor pela sorte. A sua resposta foi a mesma “Sorte ou azar, quem sabe?” Sucedeu então que o filho do agricultor ao tentar domar um dos cavalos selvagens caiu e partiu uma perna. Todos, viram nisto azar, mas o velho limitou-se a repetir “Azar ou sorte quem sabe?” Algumas semanas mais tarde passou por ali o exército e recrutaram todos os jovens aptos para o serviço, menos o filho do velho que ainda andava de muletas…

A maçã do jardim do Éden tinha bom aspecto; muito do que aparentemente parece bom pode ser mau e vice-versa, o que parece mau pode ser bom. As palavras sorte ou azar fazem sentido só para o supersticioso; o crente vê tudo o que acontece, de bom e de mau, como providência divina orientada para um final feliz. 

Como a antimatéria existe por oposição e em função da matéria, assim Deus criou a possibilidade do mal, como uma alternativa a Si mesmo, para que o homem fosse livre para O amar ou rejeitar. Foi o mau uso, ou abuso, dessa liberdade que criou os males concretos, dos quais a humanidade tem vindo a sofrer desde aquele momento.

Desta feita, como nada existia antes de Deus e a possibilidade do mal foi criada por Ele, podemos concluir que Deus é indirectamente responsável pelo mal no mundo. Ao colocar aquela árvore no jardim Deus sabia o risco que corria. Por outro lado, a alternativa, a não criação da possibilidade do mal faria de nós robots, marionetas, extensões de Deus mas não seres pessoais, livres, autónomos e independentes, como Deus quis que fossemos, desde o primeiro momento.

O salário do pecado é a morte (Romanos 6,23) Com a morte do Seu Filho, Deus pagou o preço de ter criado a possibilidade do mal para que o homem fosse livre. A providência divina diz-nos que, nada acontece que seja alheio à vontade de Deus. Se Deus permite o mal é porque tem em mente um bem maior. A mesma Providencia divina convida-nos a não interpretar nenhum acontecimento, seja individual seja comunitário, desligado do seu contexto. Cada acontecimento deve ser visto como a peça de um puzzle, no qual só Deus tem a visão da totalidade; cabe-nos, a nós, termos fé de que, Deus orienta tanto a nossa história como a da humanidade, para um bem maior e um final feliz.

Todos nós temos na vida exemplos de como, de facto, “não há males que por bem não venham”: Foi uma desavença entre São Paulo, Bernabé e Marcos que levou o ultimo a deixar a companhia do santo, e em vez de este, seguir São Pedro, desta forma tivemos um evangelho nascido da pregação de São Pedro, o de São Marcos, como tivemos, mais tarde, um nascido da pregação de São Paulo, o de São Lucas.

Quando Sto António de Lisboa foi para Itália, o seu trabalho era lavar tachos e panelas. Foi preciso que ficasse doente o pregador, designado para pregar na ordenação de um sacerdote, para tirar Sto. António da cozinha e o colocar no seu devido lugar, o púlpito, pois depressa se revelou um exímio pregador.

Foi uma doença, e o tempo de convalescença, que transformou a vida de São Francisco de Assis, de Sto. Inácio de Loiola e de tantos outros santos, que seguiam um caminho que não levava à santidade, muito pelo contrário.

“Felix Culpa” na nossa vida
“Deus escreve direito por linhas tortas” e vai um passo à nossa frente. Ao falhar o plano A, com a queda de Adão, Deus arranjou logo um plano B; quando a humanidade matou o Seu Filho, Deus ressuscitou-o. Podemos ler a história da humanidade, com as linhas tortas, onde Deus escreve direito.

Felix Culpa é uma exclamação feita no presente sobre algo que aconteceu no passado.
Felix culpa é a leitura presente de uma realidade passada.
Felix culpa é a reinterpretação do passado negativo à luz do presente positivo.

A parábola do trigo e do joio (Mateus 13:24-30) sugere que no mundo e na sociedade, tal como o trigo e o joio, o mal e o bem estão tão interligados que resulta difícil distinguir um do outro pelo que o melhor é não precipitar-se, confiar na providência divina e esperar pelo fim.

O Felix culpa não é só aplicável à história da salvação, da humanidade, mas também à nossa história pessoal de salvação. Só nos sentimos como pessoas salvas quando, olhando para a negatividade do nosso passado, entoamos o nosso “Felix Culpa”.

O primeiro passo é fazermo-nos responsáveis, de tudo o que fizemos e de tudo o que nos aconteceu. Não podemos culpar os outros, dizer que foi o diabo que nos tentou, ou apelar à nossa herança genética, culpar o nosso meio social, ou os nossos pais. É verdade que todos estes factores moldaram-nos, e contribuíram para dar forma ao que hoje somos, seria um erro negar a sua importância. Conscientes de que não há sociedades, famílias, pais e educações perfeitas, devemos fazer-nos responsáveis, por tudo o que fizemos e por tudo o que nos aconteceu, agarrando assim, nós próprios, as rédeas da nossa vida.

Fazer-se responsável não significa instalar-se, e chafurdar numa espécie de culpa falsa e insalubre, cruel, abusiva e depressiva; estas são as “areias movediças” de uma espiritualidade suicida. Para sair deste impasse é preciso olhar para o conjunto da nossa vida, entoar o nosso Felix Culpa e verificar que não há males que por bem não venham.

Na vida aprendemos mais com os nossos erros que com os nossos acertos. Cada facto negativo é um presente que a vida nos dá. Todo o presente vem dentro de uma caixa; a caixa é o facto negativo, o seu conteúdo, o presente, é a lição que nos proporcionou esse facto negativo, ou seja o que aprendemos com ele.

Conheci uma jovem que não conseguia superar o trauma, de ter sido abusada sexualmente pelo tio e entoar o seu Felix Culpa, até ao dia em que se deu conta que a visão negativa que tinha do sexo, de alguma forma a livrou de uma vida sexual promiscua, de gravidezes e de abortos, que foram a realidade de algumas das suas amigas.

Não há famílias perfeitas, nem pais, nem tios perfeitos, nem primos, nem professores, nem catequistas; muito antes de sermos auto conscientes, antes de nos conhecermos como pessoas, já o pecado nos tinha tocado de mil e uma maneiras.

O “Félix Culpa” não transforma o mal em bem, nem justifica, nem desculpa os que praticaram o mal. Apenas ajuda a reinterpreta-lo, para o encaixar no contexto geral da vida, a olha-lo de uma forma menos negativa, evitar que arruíne o presente.

O que interessa é o resultado final
Se o pecador renuncia a todos os pecados que cometeu, se observa todas as minhas leis e pratica o direito e a justiça, ele deve viver, não morrerá. Não serão lembradas as faltas que cometeu, viverá por causa da justiça que praticou. (…) Mas se o justo se desvia da sua justiça e pratica o mal, (…) A justiça que praticou não será recordada; por causa da infidelidade a que se entregou e do pecado que cometeu, morrerá. Ezequiel 18, 21, 22, 24

Esta passagem da escritura sugere que, o que verdadeiramente conta é a forma como nos encontramos no fim das nossas vidas
; o que conta é o momento presente; o que chegamos a ser. Positividade e negatividade são como os andaimes da construção da nossa vida. Como sugere o profeta Ezequiel, Deus não tem memória histórica do bom e do mau que fazemos durante a nossa vida; o importante, não são portanto os actos mas as atitudes; ou seja as pessoas que nos tornamos, no fim da construção da nossa vida. É portanto a situação ou o resultado final que conta; por isso, como dizem os espanhóis com certa ironia, “que Dios nos coja confessados”.

Inspirando-nos na parábola dos talentos, podemos afirmar que, Deus não nos pede o que não nos deu; inspirando-nos na parábola do semeador, podemos afirmar que, Deus não pede a todos que dêem 100%; Fica igual de contente com 60% ou até mesmo com 30%, o importante é que não escondamos o talento e que o façamos render; que façamos a omelete com os ovos que nos deram e nunca concluir que não temos ovos suficientes para a fazer.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de abril de 2015

As coisas que o dinheiro não compra

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Deus manda no outro mundo, o dinheiro manda neste. Não há nada que o dinheiro não te faça fazer; todos têm um preço.

Quanto custas? Ouvimos tantas vezes nos filmes; o dinheiro compra tudo e todos; ninguém resiste ao vil metal. As pessoas que chegam ao ponto de venderem a sua honra, a verdade e a sua dignidade fazem-no na certeza de que o dinheiro lhes vai comprar tudo, que é essencial para a auto-realização e para a felicidade.

A verdade é que o dinheiro, longe de comprar tudo, não compra sequer as coisas mais importantes, as de que realmente precisamos na vida. É por isso que não é difícil encontrar pessoas deprimidas e infelizes entre os ricos, e pessoas felizes e auto realizados entre os pobres.

O dinheiro pode comprar uma cama, mas não pode comprar o sono; pode comprar comida, mas não o apetite; pode comprar livros, mas não a inteligência; pode comprar luxo, mas não beleza; pode comprar uma casa, mas não um lar; medicamentos, mas não a saúde; reuniões sociais, mas não amor; brincadeira ou diversão, mas não felicidade; um crucifixo, mas não a fé; um lugar luxuoso no cemitério, mas não no céu. Não há nada mais valioso do que a vida e a vida é um dom de Deus; o amor, que é o princípio da vida, é livre e não pode ser vendido nem comprado. Em essência, só se compram os meios materiais, essenciais para estarmos vivos; a vida, nem se compra, nem se vende, nem se possui.

A Princesa Diana, de Gales, tinha tudo que uma jovem poderia pedir na vida: juventude, beleza, poder, dinheiro, fama, "sangue azul" e dois filhos preciosos, e mesmo assim não estava feliz porque lhe faltava, o principal, o que o dinheiro não pode comprar, amor. À procura deste, abandonou tudo e foi nessa busca que perdeu a vida. Outros há, que tendo o essencial, o amor, fazem o oposto da princesa, buscando afanosamente tudo aquilo que ela desprezou, gastando nisso as suas vidas, muitas vezes acabando por perder o que de antemão tinham, o amor.

Tal como Diana de Gales, São Bento de Nursia, São Bernardo de Claraval, São Francisco de Assis, Sto. Inácio de Loyola, São Francisco Xavier, Sto António de Lisboa, Sta. Isabel de Portugal, São Nuno Alvares Pereira, Sta Beatriz da Silva etc., os santos da Igreja católica, na sua grande maioria, eram de classe media alta, cultos, jovens, belos, ricos alguns de sangue azul, e todos abandonaram tudo por Cristo, tal como São Paulo outrora fizera, por causa dele, tudo perdi e considero esterco, a fim de ganhar a Cristo, Fl, 3, 8.

O valor e não valor da pobreza
A pobreza, exaltada na Bíblia, não é a que impede os seres humanos de sustentar as suas vidas e viver com dignidade. Desde o princípio, a Biblia apresenta-nos um Deus que, longe de ser neutral ou imparcial, luta contra este tipo de pobreza.

Com efeito, Deus está do lado dos pobres contra os ricos, como vemos no cântico de Maria (Lucas 1:53). Alegra-se com a queda dos ricos, como tal, não como seres humanos. Enquanto seres humanos, Deus quer a conversão do pecador não a sua morte. Deus é provavelmente o único que diferencia entre o pecador e os seus pecados, condenando o pecado, salvando o pecador.

Como religiosos, o nosso voto de pobreza brota da segunda bem-aventurança, que São Mateus cita no seu Evangelho: a opção pela pobreza (Mateus 5:3). A escolha da pobreza, portanto, é motivada pela liberdade em relação ao dinheiro, que pode dominar o coração, e também pelo desejo de testemunhar o amor de Deus pelos últimos, os discriminados, os rejeitados, partilhando a sua condição. Procuramos partilhar da condição dos pobres tanto, ou da mesma forma, como o fez Jesus: que sendo rico se tornou pobre... 2 Coríntios 8,9.

O voto de pobreza
Como os votos religiosos de castidade, pobreza e obediência fazem referência a valores eternos, aqueles que os encarnam transformam-se em sacramentos, embaixadores, signo e símbolo de eternidade para o resto dos cristãos. Ao viverem, já no aqui e no agora, os valores que todos estamos chamados a viver no céu, relativizam realidades como o dinheiro, o poder, o prazer.

Quanto ao voto de castidade, como no céu não há morte, não há nenhuma necessidade de haver casamentos como sugere Mateus 22,30. Viver em castidade, ou amizade universal, é o que a todos nos espera.

Quanto ao voto de obediência o que o religioso quer relativizar é o amor pelo poder, que tantos têm; a mania de querer chegar ao topo, pensando que uma vez lá não se tem que obedecer a ninguém. Obedecendo o religioso quer mostrar que é fazendo a vontade de Deus que melhor nos auto realizamos.

A necessidade de bens materiais está relacionada com o facto de ter, de sustentar a vida nas suas implicações biológicas. No céu, teremos um corpo glorioso (1 Coríntios 15, 44) ou espiritual, feito à imagem e semelhança do nosso corpo físico mas não é o corpo físico. Como é um corpo imaterial, não há necessidade de possuir e armazenar bens materiais.

Muitas pessoas vivem na ilusão de que, por possuir mais meios de vida, têm mais vida, ou podem alongá-la mais. Em si mesma a vivência do voto apregoa a verdade de que não se pode amar a Deus e ao dinheiro; o possuir, para além do necessário para nos mantermos em vida, impede de “armazenar tesouros no céu”, (Mateus 6,19-20), ou seja gastar a vida cultivando valores humanos. São estes valores que dão sentido e relevância à nossa vida, tanto do ponto de vista individual como social, e a sustêm na eternidade fazendo parte do nosso corpo espiritual, com o qual viveremos com Deus.

Vivendo o voto de pobreza, no contexto de uma comunidade religiosa, destacamos o valor da partilha de bens comuns, assim como o valor de os usar e administrar com responsabilidade, sem possuí-los. Nós acreditamos, na verdade, que só Deus é o verdadeiro dono de tudo o que as pessoas pensam, que possuem. Não somos proprietários de coisa nenhuma, nem de nós mesmos, nem da nossa vida; apenas somos administradores de tempo, de talentos, de recursos e dessa administração prestaremos um dia contas.
Pe. Jorge Amaro, IMC

16 de março de 2015

O dinheiro nunca fez ninguém rico

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- Rabino que pensas acerca do dinheiro? O discípulo perguntou a seu mestre.
- Olha pela janela, disse o mestre. O que vês?
- Eu vejo uma mulher com uma criança, uma carroça puxada por dois cavalos e um homem que está a ir para o mercado.
- Bom. Agora olha para este espelho que vês? ”
- O que quer que eu veja mestre? Vejo-me a mim mesmo, obviamente.
- Considera então: a janela é feita de vidro, o espelho também. Um fino revestimento de prata atrás do vidro é suficiente para fazer com que um homem só se veja a si mesmo.

Um todo e uma parte
A vida humana está fundada sobre dois princípios, a liberdade e a igualdade; O ser humano para viver autenticamente tem de ser livre autónomo e independente; porém como não existe sozinho, mas coexiste com outros; o valor da liberdade deve ser doseado e harmonizado com o valor da igualdade. Com efeito, os outros, com quem o ser humano coexiste, são seres iguais a ele em dignidade.

A liberdade define o ser humano como um ser pessoal e individual, a igualdade define-o como um ser social. O Amor pela riqueza é regressivo, porque faz a pessoa regressar e permanecer no estado egocentrista do desenvolvimento infantil negando assim o princípio da igualdade.O ser humano define-se ao mesmo tempo, individualmente como um todo, porque é livre e independente, socialmente como uma parte pois sempre faz parte de uma família, um povo, uma sociedade dentro da qual estabelece relações de igualdade.

Estes dois valores correspondem aos dois mandamentos do cristianismo:
Amar a Deus sobre todas as coisas - é a única garantia de liberdade: ao darmos a Deus o nosso coração, ao prestarmos vassalagem só a Ele, estamos livres de todos os outros e de tudo o resto; somos livres quando o afecto por Deus está por cima dos outros afectos.

Amar o próximo como a nós mesmos – é como dizer que eu sou igual ao meu próximo e o meu próximo é igual a mim; que o amor que me devo a mim mesmo, devo-o em igual medida ao meu próximo; que a estima que devo ter ao outro não deve ser menor que a minha auto-estima. Sem entender o outro como “alter ego” um outro eu, sem altruísmo não há vida social; é através da partilha a todos os níveis, incluindo os bens materiais, que a vida em sociedade é possível.

Com a psicanálise em mente, nunca devemos incorporar, declarar ou tornar nosso, o que não é nosso. Porque somos seres temporais, o nosso possuir é passageiro; em realidade não somos donos de nada; só Deus é Senhor de tudo e de todos, pois é eterno. Nunca se viu que um camião de mudanças fizesse parte da comitiva que se dirige para o cemitério. As pessoas que se definem pelo que TÊM são pobres, porque vivem na insegurança de perder o que eventualmente perderão. As pessoas que se definem pelo que SÃO, possuem uma riqueza que nem a morte pode corromper.

Não sendo proprietários de coisa nenhuma nem da nossa própria vida, devemos sinceramente considerar-nos administradores, tanto da nossa vida como dos recursos que possuímos, e dessa administração prestaremos um dia contas.

Quando na nossa mente conseguimos substituir o chip do conceito “dono” pelo de “aministrador”, uma sensação de desapego e desprendimento, dos bens materiais, invade a nossa mente. Esta nova mentalidade é imprescindivel para o crescimento espiritual, como pessoa livre e independente, mas ao mesmo tempo parte de uma comunidade e como filhos de Deus.

Ser ou ter
Sto. Antão, São Bento, São Francisco de Assis e muitos outros, também de outras religiões, abdicaram dos seus bens porque viram neles um empecilho para o crescimento pessoal. Deram-se conta que não podiam servir ao mesmo tempo a Deus e ao dinheiro (Lc 16, 13). Que o ter e o ser eram antagónicos.

O psicanalista Erich Fromm no seu livro titulado “Ter ou ser?” Debruça-se sobre este tema; para ele há duas formas de viver a vida, uma baseada no “Ter”, a outra no “Ser”. Para ele o que tem é possuído pelas coisas que tem e são elas que definem o seu ser; só o que vive em modo de ser é que é verdadeiramente livre. Em modo de Ser as pessoas são activas, pois são o sujeito da sua actividade; em modo de Ter as pessoas estão ocupadas, têm ocupações e algumas até as realizam contra a sua vontade.

Não acumuleis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os corroem e os ladrões arrombam os muros, a fim de os roubar. Acumulai tesouros no Céu, onde a traça e a ferrugem não corroem e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois, onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração. Mt 6,19-21

O que se define pelo que tem vive inseguro, tem medo dos ladrões, das mudanças económicas e políticas, dal altas e baixas da bolsa, da doença, da morte, da dor; sofre uma hipocondria crónica, em relação à saúde e a tudo o que tem e pode perder. Se eu sou o que sou ninguém pode ameaçar a minha segurança, nem o meu sentimento de identidade, pois o meu centro está em mim mesmo.

Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena o corpo e a alma. Mt 10, 28

Enquanto o “Ter” é algo que se consome com o uso, o “Ser” é algo que aumenta com a prática; pensemos o muito que podemos fazer com os nossos talentos e virtudes; estes aumentam quando os usamos, enquanto os bens materiais diminuem quando os usamos ou doamos. Para quem vive em modo de ter, amar é possuir o outro e sente ciúmes quando aparece um potencial rival; para quem vive em modo de ser, amar é entregar-se ao outro e querer o bem do outro.

A ganância é a pobreza dos ricos
"Quanto menos és e quanto menos expressão tem a tua vida, tanto mais tens e mais alienada ela é” disse Karl Marx. Jesus expressou isso muito antes quando ele disse, "Não se pode servir a Deus e o dinheiro" Lucas 16:13. Isto quer dizer, que na nossa vida, não podemos conjugar ao mesmo tempo os verbos, Ter e Ser, porque sendo antagônicos auto excluem-se. "O homem sábio é também pobre ou torna-se pobre" (Sêneca); o materialmente rico é, por regra geral, espiritualmente pobre e vice-versa.

O homem pobre que está feliz com o que tem, e não procura mais riquezas materiais, é rico. Enquanto o homem rico que nunca está satisfeita com o que possui quer e busca ter mais, é pobre.

É como uma adolescente anoréxica auto enganada por uma falsa percepção da realidade; está tão obstinada em tornar-se mais magra que sempre que se vê ao espelho se vê gorda; como não foca a sua atenção na magreza, que já tem mas na que ainda pode ter, sempre se verá gorda e obrigada a perder mais peso, arriscando a morte se não for curada da sua falsa percepção da realidade.

O rico é pobre porque a sua atenção não está virada para o que já tem, mas para o que ainda pode vir e sonha ter, investindo nesse objectivo todo o seu tempo e as suas energias. Como sempre haverá alguém mais rico que ele, sempre se verá a si mesmo como faltando-lhe ainda algo pelo que, para todos os efeitos, é pobre. O pobre é rico porque está satisfeito com o que tem e investe no Ser o seu tempo e as suas energias; o rico é pobre porque ao não achar que tem o suficiente investe no Ter mais toda a sua vida.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de março de 2015

Possuidores ou Possuídos?

Sem comentários:

O clero secular, embora não fazendo explicitamente um voto em matéria de castidade e de obediência, está chamado a viver estas duas virtudes, tal como nós. A pobreza é o voto que mais caracteriza o religioso e sobre o qual o clero regular nada promete.

O religioso vive em comunidade, por isso a ordem pode até ser rica mas o frade é pobre, pois nem tem acesso nem uso dessa riqueza. Os sacerdotes seculares vivem sós, uns até mais pobres que os religiosos mas outros amassam grandes fortunas, causando desavenças entre os sobrinhos que as vão herdar, será ou não por isso que se diz: “A quem Deus não dá filhos, dá o diabo sobrinhos”

Primum vivere, deinde philosophari
Alguns, ocupados em altas filosofias, esquecem-se de que têm que trabalhar para conseguir o necessário para a sua subsistência. A estes recorda São Paulo quem não quer trabalhar que não coma. (2 Ts 3, 10). É o trabalho que gera a riqueza que nos permite manter as funções vitais, ou seja estar vivos.

Na verdade, quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há-de salvá-la. Marcos 8, 35. Viver e estar vivos são uma e a mesma coisa para os animais, não assim para os humanos. É certo que para viver é preciso estar vivo, mas o sentido e objectivo da vida humana não é manter-se vivo, não é reter a vida; pelo contrário, é perder, é dar a vida, é desviver-se, entregar-se a uma causa, usar todo o tempo e energias de que é composta a nossa vida por um ideal, um sonho, uma ambição. A vida não é portanto um valor absoluto mas relativo; valor absoluto é a razão pela qual eu vivo.

Os bens materiais, portanto, nada tem que ver com a vida mas sim só com o estar vivos, com o manter as funções vitais. Quem dedica a sua vida a amassar riquezas está a dedicar a sua a vida a manter a vida pelo que pode até chegar a ter o necessário para manter as funções vitais de duas e mais vidas mas só vai ter uma e essa uma gasta estupidamente sem sentido.

Psicanalise do possuir
Quando lemos contos populares que falam sobre dinheiro transformado em fezes, e vice-versa – de acordo com Freud – é apenas uma referência de como o conceito de “posse”, de dinheiro ou qualquer outro bem, se originou no nosso psiquismo.

Na fase narcisista do desenvolvimento, as fezes têm muita importância para a criança, pela simples razão de que as fezes saem de – ou se originam – no seu próprio corpo. Isto reflecte o elevado apreço, ou estima, que a criança tem para si mesma. A mãe reforça esta "atitude", quando se preocupa com a criança, nos momentos em que esta está com prisão de ventre e é incapaz de defecar. Quando, finalmente, a criança tem um movimento intestinal, a criança mostra e exibe com orgulho as suas fezes à sua mãe, e esta fica muito contente.

De acordo com Freud, quando perde as suas "altamente valorizadas" fezes, a criança sente que perdeu algo, e que este algo, lhe pertence e deveria estar dentro do seu corpo, mas que agora está fora dele; a criança também se dá conta de que por muito que quisesse, não pode voltar a colocar as fezes dentro de si. Ao não poder fazer voltar a si as fezes, a criança declara “suas” que essencialmente ou simbolicamente significa que as quer voltar a incorporar em si mesma.

Como dissemos, do ponto de vista da psicanálise, o amor pelos bens materiais está enraizado na fase narcisista, ou anal, do desenvolvimento de uma criança. Nesta fase, o egocentrismo é predominante na criança, ainda não desenvolveu a capacidade de sentir afecto pelos outros, nem possui ainda qualquer capacidade de amor ou de ódio, pois são realidades que pertencem à fase seguinte, a fase genital.

Possuidores ou possuídos?
Se as vossas riquezas crescerem, não lhes entregueis o coração. Salmo 62, 11
Porque, onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. Lucas 12, 34

Infelizmente o jovem rico, do evangelho de Mateus (19:16-23), decidiu ficar com as riquezas quando Jesus o confrontou e lhe deu a escolher entre riqueza material e riqueza espiritual. Diz o evangelho que ele ficou triste ante a sua própria opção; as riquezas podem dar prazer mas não alegria e o prazer é quase sempre seguido pela tristeza.

O jovem rico recusou seguir o mestre porque ante a perspectiva de perder as riquezas, a sua falsa segurança paralisou-o. Seguir o mestre foi o que o moveu ir ter com Jesus, ele queria seguir o mestre mas não podia; e não podia porque possuía muitas riquezas, mas sim porque era possuído por elas pelo que não era livre, não se possuía a si mesmo nem era senhor do seu destino. O que aconteceu ao jovem rico, e acontece a todos os que dão o seu coração às riquezas, é como vender a alma ao diabo.

Onde está o teu tesouro aí está o teu coração adverte o evangelho. Por isso quando damos o coração às riquezas, vendemos a alma ao diabo; a partir desse momento só possuímos do ponto de vista contabilístico porque do ponto de vista psicológico e espiritual nós somos possuídos.

Se o objecto de amor são bens materiais então uma estranha simbiose acontece, entre a pessoa e os bens matérias que ama. Define-se simbiose como sendo uma relação de mútua beneficio e dependência entre dois seres vivos. Há uma troca ou partilha entre os dois: os bens materiais partilham a sua matéria, pelo qual a pessoa que os ama materializa-se; a pessoa partilha o seu espirito, pelo qual os bens matérias espiritualizam-se. O sujeito que antes dizia que possuía passa a ser possuído. Não é o jovem rico que possui os bens materiais, são os bens materiais que possuem o jovem rico.

 Porque o dinheiro é um bom escravo, mas um mau mestre, aquele que é seduzido pela riqueza, perde a sua liberdade. Na realidade, é a riqueza que passa a "comandar" a sua vida e não ele mesmo. Quando o único objectivo da vida é possuir, e o possuir só serve para manter as funções vitais, a pessoa vive para estar viva, ou seja vegeta.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de fevereiro de 2015

A Pessoa do Ano

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En dónde están los profetas /que en otro tiempos nos dieron /las esperanzas y fuerzas para andar. /En las ciudades, en los campos, /Entre nosotros están. /Sencilla cosa es la muerte /difícil cosa la vida /cuando no tiene sentido ya luchar. Nos enseñaron las normas /para poder soportarnos/ y nunca nos enseñaron a amar. Ricardo Cantalapiedra

A vida religiosa como profecia
A tradição de escolher a pessoa do ano começou com a revista Time em 1927. É declarada pessoa do ano, alguém que foi admirável, que fez algo pela humanidade, que se destacou pelo seu carisma, que respondeu da maneira mais adequada aos desafios do seu tempo. Alguém que em certo sentido foi um profeta. 

Por exemplo Barack Obama foi a pessoa do ano 2008 e 2012 por ser o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, com tudo o que isso significava num país onde a escravatura só foi abolida no século XIX e os pretos e o racismo em pleno seculo XX depois de Luther King. Em 2012 o Papa Francisco foi nomeado a pessoa do ano, pois em poucos meses conquistou a simpatia de milhões de pessoas com a sua simplicidade e os seus gestos simbólicos

Na tradição do Antigo Testamento, o profeta é o homem certo para o momento certo; é o que sabe interpretar o momento presente da vida do povo à luz da vontade de Deus, de quem se sente mensageiro, por vezes também intermediário entre Deus e os homens. É sempre um líder natural e uma pessoa carismática; tanto criticava um comportamento que não era adequado, aos olhos de Deus, como confortava e infundia esperança nas horas amargas, como o exílio da Babilónia.

Eu não era profeta, nem filho de profeta. Era pastor e cultivava frutos de sicómoros (Amós 7, 14). Ao contrário dos sacerdotes de Jerusalém e dos doutores da lei, os profetas não provinham do establishment, não tinham pedigree. Era o Espírito que aqui e ali, nos momentos em que era preciso, ia suscitando um guia para o seu povo.

Agora não há nem príncipe, nem profeta, nem chefe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem um local para te oferecer as primícias e encontrar misericórdia (Daniel 3, 28). Como se nota do texto o profeta era uma figura importante para o povo, sem ele o povo sentia-se desorientado, confuso, abandonado, sozinho, inseguro…

Segundo a distinção canónica temos hoje dois tipos de clero, o regular, os religiosos e o clero secular. O clero diocesano está mais metido no mundo, são os pastores das ovelhas do Senhor; neste sentido, o seu papel é muito semelhante ao dos doutores da lei e dos sacerdotes de Jerusalém.

Ao contrário, o religioso está um pouco apartado do mundo para melhor o poder entender e ajudar, só fora da floresta se pode ver a floresta; na tradição do antigo testamento o seu papel é semelhante ao dos profetas. O religioso está chamado a ser a pessoa do ano, um nobel, um superstar para um tempo e um lugar. Um profeta que sabe ler os sinais dos tempos e diz a palavra certa no momento certo; conhecedor dos problemas do tempo e do lugar aponta com a sua palavra, acções e talante para as soluções.

A vida religiosa em geral está associada à Missão Profética da Igreja. Na Idade Média enquanto os estados se guerreavam entre si foi nos Mosteiros onde se manteve a cultura; foi neles que nasceram as escolas, as universidades e os hospitais. Até o mesmo registo civil nasceu com o assento dos baptizados pela Igreja; registo esse que o Estado com a Republica em 1910 roubou às paróquias.

Actos simbólicos dos profetas de Israel
O comportamento dos profetas, do antigo testamento, era tão bizarro que conforme aos actuais padrões seculares de sanidade, acabariam institucionalizados ou, pelo menos, em alguma forma de terapia intensiva.

Estes profetas não eram apenas falantes da palavra, encarnavam-na nas suas vidas, no seu talante, no seu comportamento e actos; tudo neles fazia parte da mensagem; a sua escolha de roupas e até mesmo seus corpos e linguagem corporal. Testemunhavam assim, na própria carne, o quão transformador e desconcertante pode ser a Palavra de Deus. Palavras leva-as o vento, os actos simbólicos e dramáticos dos profetas falavam bem ais alto e eram mais difíceis de serem esquecidos.

  • Isaías, despiu toda a sua roupa e vagueava nu. (Isaías 20).
  • Jeremias, escondeu a sua roupa interior numa rocha, e depois de muito tempo veio à procura dela (Jeremias 13).
  • Oseias casou deliberadamente com uma prostituta e pôs o nome de Loruhama não amada à filha de ambos (Oseias 1)

Com a vinda de Cristo podemos olhar para trás e ver estes profetas como prenúncio, não só através das profecias, que falavam da sua vinda, mas através de suas acções proféticas. Cristo é, afinal, a palavra feita carne da maneira mais rica e mais completa possível. E, tal como o dos profetas, o comportamento de Cristo foi totalmente bizarro, desconcertante e confuso conforme aos padrões sociais e convencionais da época.

Era, afinal de contas, alguém que garantiu que reconstruiria o templo em três dias, comia com prostitutas e cobradores de impostos, expulsou demónios para uma vara de porcos, curou um homem cego, esfregando lama que fez com a sua saliva nos seus olhos, e andou sobre as águas. A mais chocante acção dramática, foi sem dúvida lavar os pés aos seus discípulos. Quis executar o acto mais servil para que nunca esquecessem o que já tinha dito de palavra: o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos Mc 10, 45

O religioso como acto simbólico
O consagrado vive já aqui e agora a vida que todos estamos chamados a viver no Céu; ao encarnar os valores do evangelho é como uma estrela polar que indica o verdadeiro caminho para Deus, um dedo apontado para o Céu; ao relativizar certas realidades deste mundo, que o homem tem a tentação a absolutizar, o religioso é também um farol que expõe os perigos à navegação, perigos de perder a vida durante a nossa peregrinação para a pátria celeste.

Desta maneira, os três conselhos evangélicos podem ser vistos como gestos ou acto simbólicos que falam por si, à maneira dos actos dramáticos e simbólicos dos profetas do Antigo Testamento:

O voto de Pobreza - Relativiza o possuir pois, para além de manter as funções vitais, as riquezas materiais são um empecilho para o crescimento espiritual. Como diz o evangelho, onde está o teu tesouro está o teu coração, quem dá o seu coração às riquezas, vende a alma ao diabo; já não se possui, é possuído pelo que pensa possuir.

O voto de Castidade - Relativiza o sexo pois, ao contrário do que a sociedade nos quer impingir, o sexo não é uma necessidade individual mas sim da espécie; nem sequer é intrínseco ao amor, é tão-somente uma das tantas expressões de amor. Se o amor, na sua expressão natural, cria a família e os laços familiares, o amor, na sua expressão sublimada, cria a fraternidade universal e a solidariedade.

O voto de Obediência - Relativiza o poder e a liberdade. Para o evangelho o poder é serviço ou seja obedecer às necessidades dos outros. Sou livre até encontrar a minha opção fundamental, uma vez encontrada, a vida resume-se a ser fiel, ou a obedecer, aos compromissos assumidos. Se guardares a regra, a regra te guardará a ti, e te dará um sentido de identidade, de propósito e de segurança.
Pe. Jorge Amaro, IMC


15 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie

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Porque entendo que a liberdade de expressão, como todas as liberdades, tem limites, e é bullying ridiculizar as crenças dos outros; porque, ao contrário do advogado de Charlie Hebdo, não reconheço o “direito à blasfémia” ou insulto, mantenho que, a abominável chacina dos 12 jornalistas do dito jornal, foi mais um atentado contra o Estado de Direito que contra a liberdade de expressão propriamente dita.

O “mas” que é politicamente incorrecto
Ser do contra não é sempre um defeito, e ser a favor não é sempre uma virtude. “Maria-vai-com-as-outras” pode ser sinónimo de solidariedade, mas também de carneirismo que anula o pensamento individual, faz de pessoas massa, e geralmente massa bruta que ao largo e ao longo História tem linchado muitos inocentes, um deles, Jesus de Nazaré. Para existir como pessoas autónomas, livres e independentes devemos manter o nosso espírito crítico em estado de alerta, e não fazer acriticamente, coro com os que gritam mais alto.

A minha condena da horrenda chacina dos doze jornalistas, não significa que estou de acordo com todas as caricaturas que eles produziram; da mesma forma que, o facto de estes, no meu entender, terem abusado algumas vezes, não sempre, da liberdade de expressão, não significa que justifico o crime aterrador perpetrado pelos dois extremistas selvagens. Não me junto ao coro dos que dizem “Je suis Charlie”, mesmo correndo o risco de ser politicamente incorrecto, ou seja de ser uma ovelha negra, por que acho que posso e tenho o direito de condenar o acto sem ter que me identificar “totalmente” com Charlie

Quando digo “Je ne suis pas Charlie” quero dizer que apesar de me identificar com as vítimas, na qualidade de pessoas humanas a quem, sem nenhuma justificação, foi roubada a vida, não me identifico com a blasfémia, o insulto, e a ridicularização de algumas das suas caricaturas.

A liberdade absoluta não existe
Não há liberdades ilimitadas; a minha liberdade só seria mais ou menos ilimitada se eu existisse sozinho no mundo. Como coexisto com outros, os meus direitos limitam com os direitos dos outros. De facto os meus direitos coincidem com os deveres dos outros e vice-versa; por isso a minha liberdade cessa onde começa a liberdade alheia.

Condeno com a máxima veemência todo atentado contra a vida humana; desde o aborto legal, a eutanásia, a pena de morte legal a todos os tipos de violência, física, sexual, verbal e psicológica. Raramente a violência é solução de algum problema, e sempre cria mais problemas, porque a violência sempre gera violência. Chamada espiral de violência porque ao mesmo tempo que cresce em intensidade alastra-se ao envolver num mesmo conflito cada vez mais gente.

Todos sabemos que, os que foram abusados, fisicamente, sexualmente, verbalmente ou psicologicamente quando eram crianças, de adultos, transformam-se eles mesmos em abusadores. Também é sabido que, quando duas ou mais pessoas entram em conflito, as vias de facto, ou seja a violência física é o que quase sempre segue à violência verbal, aos insultos e injurias.

A vida humana é dom de Deus, só Deus tem poder sobre a vida e sobre a morte. Todo aquele que tira a vida ao seu semelhante está a roubar uma prerrogativa que só pertence a Deus; ao colocar-se no lugar de Deus está a ser ateu. Por isso é impossível matar em nome de Deus que é vida e amor.

O porta-voz do Conselho Judicial Muçulmano emitiu um comunicado, no qual afirma que, “a liberdade de expressão é para ser respeitada, mas tem limites quando faz fronteira com o que poderia ser percebido como discurso de ódio. Se alguém critica o teu local de trabalho, o teu carro, os teus sapatos, não há problema; mas quando alguém insulta, humilha ou degrada uma personalidade que está ligada ao coração da religião muçulmana, excede os limites da liberdade de expressão”.

Passo a citar alguns exemplos das caricaturas de Charlie Hebdo, que a meu ver abusam do direito de liberdade de expressão: há uma que desenha o profeta Maomé com um turbante em forma de bomba com o rastilho aceso prestes a explodir, a mensagem subliminar é a de que na sua essência o Islão é violento, extremista e terrorista, o qual é falso.

Uma outra desenha o Papa, levantando a hóstia no momento da consagração mas em vez de hóstia é um preservativo, classifico esta caricatura de blasfémia à eucaristia, que é o acto central da vida da Igreja, pelo que não vejo como algum cristão pode olhar para ela sem se sentir ofendido.

Entre as caricaturas com as quais estou de acordo, destaco louvar aquela que saiu, como capa, do último número de Charlie Hebdo no rescaldo dos homicídios. Com um fundo verde, que é a cor mais usada nas bandeiras de muitos países muçulmanos, vemos o profeta Maomé a chorar segurando com as mãos o popular cartaz no qual diz “Je suis Charlie” e por cima, a letras bem visíveis, “Tout est Pardoné” Tudo foi perdoado.

Como o perdão incondicional aos que nos fazem mal e o amor aos inimigos são características do cristianismo, esta capa é a melhor resposta que mundo ocidental, cristão na sua matriz, quer o reconheça quer não, pode dar à barbárie do extremismo muçulmanos. Identifico-me plenamente com esta caricatura.

Atentado contra o estado de direito, mais que liberdade de expressão
Defendo que a interpretação dos factos como um atentado à liberdade de expressão, se bem que é a oficial e a politicamente correcta, é a meu ver facciosa. Com o seu acto hediondo e injustificável, os assassinos dos jornalistas mais que ir contra a liberdade de expressão foram contra o Estado de Direito. Num estado de direito ninguém faz justiça pelas suas mãos, ninguém se vinga; ninguém é juiz em causa própria, nem executa penas, neste caso a pena máxima, a pena de morte.

Os injuriados, o mundo muçulmano, podiam ter-se defendido nos tribunais. Desta feita, os países muçulmanos, em vez de usarem o dinheiro para financiar fanáticos terroristas, que matam pessoas inocentes, como os 12 jornalistas, usavam-no para contratar os melhores advogados que levassem Charlie Hebdo aos tribunais por blasfémia, insulto e falta de respeito pela crença de milhões de pessoas.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de janeiro de 2015

Ano da Vida Consagrada

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https://www.youtube.com/watch?v=0IvXA0yRDwY
Purify my heart, let me be as gold and precious silver.
Purify my heart, let me be as gold, pure gold.

Refiner's fire, my heart's one desire is to be holy, set apart for you, Lord.
I choose to be holy, set apart for you, my master, ready to do your will.

Purify my heart, cleanse me from within and make me holy.Purify my heart, cleanse me from my sin, deep within.

Ao reflectir sobre a vida consagrada, tema que a Igreja escolheu para este ano, veio-me à mente este cântico, tantas vezes cantado nos anos em que vivi no Canadá pelo grupo de jovens que ali seguia. A letra do cântico é todo um tratado sobre a vida Consagrada; sobre o que é ser consagrado e o processo que deve seguir todo aquele que entra na Vida Religiosa.

Set apart for you, LordReservado para ti, Senhor – Os Judeus punham de lado para o Senhor as primícias das colheitas e dos rebanhos. Tudo o que abria o ventre era do Senhor como agradecimento; os próprios filhos primogénitos eram do Senhor e por isso tinham de ser apresentados no Templo para serem resgatados na troca de um sacrifício, que para os abastados era um boi, para os menos abastados um cordeiro ou cabrito e para os pobres, como foi o caso de Jesus, um par de pombas ou rolas.

“Consagrar” um objecto significa retira-lo do uso ordinário para o colocar de parte, ou apartar, e reservar para um uso determinado e exclusivo. Quando um cálice, ou outro objecto, é consagrado é reservado ou guardado para um uso sagrado, neste caso, a celebração da Eucaristia.

É neste sentido que se deve interpretar a “fuga mundi” dos religiosos da Idade Média. Não se tratava de fugir ao mundo, para não ser contaminados por ele, mas sentir-se chamado a uma Missão que comportava apartar-se da vida ordinária e viver de uma forma diferente.

Dentro da floresta nós não vemos a floresta, vemos apenas árvores; para ver a floresta temos de sair dela. O consagrado afasta-se do mundo para o conhecer melhor; de facto aparta-se do mundo para se dedicar ao mundo. Retira-se do seu pequeno mundo para se dar a todo o mundo de uma forma peculiar. Coloca de parte a sua vidinha particular, para entrar ao serviço da Vida em sentido Universal.

Purify my heart, let me be as gold, pure gold- Purificai o meu coração, que eu seja como ouro, ouro puro – Quando com 10 anos entrei para os Missionários da Consolata, a minha motivação principal era a aventura; era conhecer o mundo, sobretudo a Africa. Por esta razão recusei veementemente entrar no seminário da diocese. Já no seminário cada um dos meus colegas tinha também a sua motivação; recordo que a um o que o tinha aliciado era que no seminário jogava-se futebol todos os dias.

Com o passar do tempo e a formação que nos era dada, estas motivações de criança foram se modificando e purificando. É isto que tinha em mente o nosso fundador, o Beato José Allamano,quando aconselhava os primeiros missionários a “fazer o bem, bem”. Jesus denunciou os hipócritas e fariseus não porque estes não cumprissem a lei jejuando, orando e praticando a caridade mas porque faziam isto mesmo hipocritamente paraserem vistos pelos homens. Faziam o correcto por motivos incorrectos.

A hipocrisia é o perigo constante do religioso, pelo que necessita de uma purificação contínua das suas motivações. O coração é o que move tudo no nosso organismo; é o centro das moções, emoções ou motivações e por isso precisamos de um coração puro, purificado de falsas motivações. Purificado e limpo por dentro, de todo do pecado, como diz o cântico; pois o mal está dentro de nós não fora de nós.

Refiner's fire, my heart's one desire is to be holy - Fogo de refinador, o anseio do meu coração é ser Santo –Tendo como objectivo ser puro como o ouro a purificação é feita pelo fogo; não é um fogo devorador e destruidor mas de refinador. É o fogo que queima todas as impurezas e aquilata o ouro; quanto mais forte o fogo mais puro fica o ouro.

São Francisco de Assis rebolava-se nu na neve para vencer a insidia do pecado; outros santos autoflagelavam-se. Não precisamos de andar à procura de penitências artificiais; a vida depara-nos com suficientes situações, que nos penitenciam naturalmente, basta-nos abraçar a cruz de cada dia (Lucas 9, 23). A título de exemplo, quando estava na Etiópia cheguei a estar uma vez 5, outra vez 7 dias sem comer; e considero isso mais fácil que comer só o estritamente necessário no dia-a-dia.

A única aspiração do religioso é ser santo como Deus é santo (Levítico 19, 2) este é o objectivo da contínua purificação de motivos e intenções, uma purificação levada a cabo pelo fogo do Espirito Santo. Se formos dóceis ao Espírito Santo, como o barro o é nas mãos do oleiro, o seu fogo irá purificando os nossos pensamentos, as nossas intenções, as nossas motivações, e as nossas acções dos solapados impulsos do instinto.

A santidade encontra-se quando se busca o pecado. Quando escarduçamosa nossa vida à procura de defeitos, pecados e imperfeições é quando estamos no caminho da santidade. A este respeito São Francisco de Assis, que já em vida era tido como santo por todos os que o conheciam, dizia de si mesmo que era um grande pecador.

Ready to do your will - Pronto para fazer a Tua vontade. “Primeiro santos depois missionários” dizia o nosso fundador; o ser santo refere-se à nossa essência, ao que estamos chamados a ser, à nossa vocação; o ser missionários refere-se à nossa existência, ao que estamos chamados a fazer; à nossa maneira de estar no mundo.

Só depois de purificada a nossa essência, o nosso ser, é que a nossa existência,o nosso estar e actuar no mundo é puro. Só estamos verdadeiramente prontos, para fazer a vontade de Deus, quando somos santos; quando todo o nosso ser se submete à nossa vontade e esta à vontade de Deus.

Isto só é possível quando nos negamos a nós próprios (Lucas 9, 23) e podemos afirmar, como São Paulo, já não sou eu que vivo,mas é Cristo que vive em mim. (Gálatas 2, 20)É só quando Cristo vive em nós que somos autenticamente cristãos, e capacitados para continuar no aqui e agora a obra que ele iniciou em Israel há 2000 mil anos.
Pe. Jorge Amaro, IMC