1 de abril de 2015

"Felix Culpa"


Ó indispensável pecado de Adão,/ Pois Cristo o dissolve em seu amor; /Ó feliz culpa, que há merecido/ A graça de um tão grande redentor!Pregão Pascal

A expressão latina “Felix Culpa” deriva dos escritos de Santo Agostinho sobre a queda de Adão e Eva, que arruinou a natureza humana dando início ao pecado original, que qual doença genética se tem vindo a propagar de geração em geração.

À luz da Ressureição de Cristo, Santo Agostinho reinterpreta, de forma “positiva”, o pecado de Adão e Eva, estendendo assim a positividade do presente à negatividade do passado. Por esta razão a Igreja colocou esta exclamação do santo no pregão pascal que é o momento litúrgico, dentro da vigília Pascal, em que se proclama a ressurreição de Cristo.

Na vida do dia-a-dia encontramos exemplos desta realidade: A mulher que dá à luz, ante a alegria tamanha que sente com o seu filho nos braços, depressa esquece as dores do parto, ou olha para a dor de uma forma distinta; Que a garrafa está meia de vinho é um facto irrelevante; o que é relevante é a minha interpretação do facto; para o pessimista está meio vazia, para o optimista está meio cheia.

“Não há males que por bem não venham”
O cavalo de um velho agricultor fugira para as montanhas. “Azar”, declararam os vizinhos por empatia, ao que o velho retorquiu “Azar ou sorte quem sabe?” Uma semana depois o cavalo voltou com uma manada de cavalos selvagens e desta vez os vizinhos felicitaram o agricultor pela sorte. A sua resposta foi a mesma “Sorte ou azar, quem sabe?” Sucedeu então que o filho do agricultor ao tentar domar um dos cavalos selvagens caiu e partiu uma perna. Todos, viram nisto azar, mas o velho limitou-se a repetir “Azar ou sorte quem sabe?” Algumas semanas mais tarde passou por ali o exército e recrutaram todos os jovens aptos para o serviço, menos o filho do velho que ainda andava de muletas…

A maçã do jardim do Éden tinha bom aspecto; muito do que aparentemente parece bom pode ser mau e vice-versa, o que parece mau pode ser bom. As palavras sorte ou azar fazem sentido só para o supersticioso; o crente vê tudo o que acontece, de bom e de mau, como providência divina orientada para um final feliz. 

Como a antimatéria existe por oposição e em função da matéria, assim Deus criou a possibilidade do mal, como uma alternativa a Si mesmo, para que o homem fosse livre para O amar ou rejeitar. Foi o mau uso, ou abuso, dessa liberdade que criou os males concretos, dos quais a humanidade tem vindo a sofrer desde aquele momento.

Desta feita, como nada existia antes de Deus e a possibilidade do mal foi criada por Ele, podemos concluir que Deus é indirectamente responsável pelo mal no mundo. Ao colocar aquela árvore no jardim Deus sabia o risco que corria. Por outro lado, a alternativa, a não criação da possibilidade do mal faria de nós robots, marionetas, extensões de Deus mas não seres pessoais, livres, autónomos e independentes, como Deus quis que fossemos, desde o primeiro momento.

O salário do pecado é a morte (Romanos 6,23) Com a morte do Seu Filho, Deus pagou o preço de ter criado a possibilidade do mal para que o homem fosse livre. A providência divina diz-nos que, nada acontece que seja alheio à vontade de Deus. Se Deus permite o mal é porque tem em mente um bem maior. A mesma Providencia divina convida-nos a não interpretar nenhum acontecimento, seja individual seja comunitário, desligado do seu contexto. Cada acontecimento deve ser visto como a peça de um puzzle, no qual só Deus tem a visão da totalidade; cabe-nos, a nós, termos fé de que, Deus orienta tanto a nossa história como a da humanidade, para um bem maior e um final feliz.

Todos nós temos na vida exemplos de como, de facto, “não há males que por bem não venham”: Foi uma desavença entre São Paulo, Bernabé e Marcos que levou o ultimo a deixar a companhia do santo, e em vez de este, seguir São Pedro, desta forma tivemos um evangelho nascido da pregação de São Pedro, o de São Marcos, como tivemos, mais tarde, um nascido da pregação de São Paulo, o de São Lucas.

Quando Sto António de Lisboa foi para Itália, o seu trabalho era lavar tachos e panelas. Foi preciso que ficasse doente o pregador, designado para pregar na ordenação de um sacerdote, para tirar Sto. António da cozinha e o colocar no seu devido lugar, o púlpito, pois depressa se revelou um exímio pregador.

Foi uma doença, e o tempo de convalescença, que transformou a vida de São Francisco de Assis, de Sto. Inácio de Loiola e de tantos outros santos, que seguiam um caminho que não levava à santidade, muito pelo contrário.

“Felix Culpa” na nossa vida
“Deus escreve direito por linhas tortas” e vai um passo à nossa frente. Ao falhar o plano A, com a queda de Adão, Deus arranjou logo um plano B; quando a humanidade matou o Seu Filho, Deus ressuscitou-o. Podemos ler a história da humanidade, com as linhas tortas, onde Deus escreve direito.

Felix Culpa é uma exclamação feita no presente sobre algo que aconteceu no passado.
Felix culpa é a leitura presente de uma realidade passada.
Felix culpa é a reinterpretação do passado negativo à luz do presente positivo.

A parábola do trigo e do joio (Mateus 13:24-30) sugere que no mundo e na sociedade, tal como o trigo e o joio, o mal e o bem estão tão interligados que resulta difícil distinguir um do outro pelo que o melhor é não precipitar-se, confiar na providência divina e esperar pelo fim.

O Felix culpa não é só aplicável à história da salvação, da humanidade, mas também à nossa história pessoal de salvação. Só nos sentimos como pessoas salvas quando, olhando para a negatividade do nosso passado, entoamos o nosso “Felix Culpa”.

O primeiro passo é fazermo-nos responsáveis, de tudo o que fizemos e de tudo o que nos aconteceu. Não podemos culpar os outros, dizer que foi o diabo que nos tentou, ou apelar à nossa herança genética, culpar o nosso meio social, ou os nossos pais. É verdade que todos estes factores moldaram-nos, e contribuíram para dar forma ao que hoje somos, seria um erro negar a sua importância. Conscientes de que não há sociedades, famílias, pais e educações perfeitas, devemos fazer-nos responsáveis, por tudo o que fizemos e por tudo o que nos aconteceu, agarrando assim, nós próprios, as rédeas da nossa vida.

Fazer-se responsável não significa instalar-se, e chafurdar numa espécie de culpa falsa e insalubre, cruel, abusiva e depressiva; estas são as “areias movediças” de uma espiritualidade suicida. Para sair deste impasse é preciso olhar para o conjunto da nossa vida, entoar o nosso Felix Culpa e verificar que não há males que por bem não venham.

Na vida aprendemos mais com os nossos erros que com os nossos acertos. Cada facto negativo é um presente que a vida nos dá. Todo o presente vem dentro de uma caixa; a caixa é o facto negativo, o seu conteúdo, o presente, é a lição que nos proporcionou esse facto negativo, ou seja o que aprendemos com ele.

Conheci uma jovem que não conseguia superar o trauma, de ter sido abusada sexualmente pelo tio e entoar o seu Felix Culpa, até ao dia em que se deu conta que a visão negativa que tinha do sexo, de alguma forma a livrou de uma vida sexual promiscua, de gravidezes e de abortos, que foram a realidade de algumas das suas amigas.

Não há famílias perfeitas, nem pais, nem tios perfeitos, nem primos, nem professores, nem catequistas; muito antes de sermos auto conscientes, antes de nos conhecermos como pessoas, já o pecado nos tinha tocado de mil e uma maneiras.

O “Félix Culpa” não transforma o mal em bem, nem justifica, nem desculpa os que praticaram o mal. Apenas ajuda a reinterpreta-lo, para o encaixar no contexto geral da vida, a olha-lo de uma forma menos negativa, evitar que arruíne o presente.

O que interessa é o resultado final
Se o pecador renuncia a todos os pecados que cometeu, se observa todas as minhas leis e pratica o direito e a justiça, ele deve viver, não morrerá. Não serão lembradas as faltas que cometeu, viverá por causa da justiça que praticou. (…) Mas se o justo se desvia da sua justiça e pratica o mal, (…) A justiça que praticou não será recordada; por causa da infidelidade a que se entregou e do pecado que cometeu, morrerá. Ezequiel 18, 21, 22, 24

Esta passagem da escritura sugere que, o que verdadeiramente conta é a forma como nos encontramos no fim das nossas vidas
; o que conta é o momento presente; o que chegamos a ser. Positividade e negatividade são como os andaimes da construção da nossa vida. Como sugere o profeta Ezequiel, Deus não tem memória histórica do bom e do mau que fazemos durante a nossa vida; o importante, não são portanto os actos mas as atitudes; ou seja as pessoas que nos tornamos, no fim da construção da nossa vida. É portanto a situação ou o resultado final que conta; por isso, como dizem os espanhóis com certa ironia, “que Dios nos coja confessados”.

Inspirando-nos na parábola dos talentos, podemos afirmar que, Deus não nos pede o que não nos deu; inspirando-nos na parábola do semeador, podemos afirmar que, Deus não pede a todos que dêem 100%; Fica igual de contente com 60% ou até mesmo com 30%, o importante é que não escondamos o talento e que o façamos render; que façamos a omelete com os ovos que nos deram e nunca concluir que não temos ovos suficientes para a fazer.
Pe. Jorge Amaro, IMC

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