15 de outubro de 2024

Cosmovisão Medieval


Em termos históricos, a Idade Média tem esse nome  porque se situa a meio do percurso entre a Idade Antiga e a Idade Moderna. Começa no século V, com a queda do Império Romano do Ocidente e termina no século XV, com a transição renascentista para a Idade Moderna. Estes dez séculos de História da civilização ocidental costumam dividir-se em dois períodos: a alta Idade Média que vai do século V ao século X e a baixa Idade Média, do século X ao XV.

Causas do retrocesso cultural medieval
Há quem, de forma tendenciosa, culpe a Igreja pelo facto de a Idade Média ter sido um retrocesso cultural. É certo que a Igreja filtrou da cultura greco-romana só o que lhe interessava, mas também manteve muito desta cultura; se não tivesse sido assim, não teria preservado os manuscritos antigos, o que impossibilitaria o Renascimento.  

Para quem não é tendencioso, é claro que o fator principal para que a Europa mergulhasse num limbo ou num sonho de mil anos foi a tomada do poder pelos bárbaros, que levavam um atraso de mais de 2 000 anos em relação à cultura greco-romana. Este é decerto o fator principal, mas há outros que contribuíram ou acentuaram a Idade das Trevas.

 A Europa viveu durante a Idade Média num clima de instabilidade constante. A cultura não cresce em tempo de guerra. A Pax Romana tinha proporcionado o desenvolvimento cultural; o isolamento, a falta de comércio e de comunicações que o feudalismo causou transformou o mundo urbano e a sua cultura num mundo rural e fechado onde a agricultura era a única atividade para além das constantes guerras entre pequenos reinos e, dentro desses reinos, entre os senhores feudais o que não proporcionava um desenvolvimento cultural.

Enquanto dentro da Europa a Igreja se dedicava a educar os bárbaros, fora via-se constantemente ameaçada por outros bárbaros. Pelo lado ocidental, os muçulmanos, que tinham ocupado todo o norte de África, invadido a Península Ibérica e chegado até ao coração de França, até Poitiers, onde foram derrotados por Carlos Martel. O Império Otomano ameaçava pelo oriente estender-se pela Europa fora. A norte, surgiram os vikings, outra tribo germânica da Escandinávia que fazia rápidas incursões nas costas de Inglaterra e de França, com o único intuito de roubar, pilhar e matar.

Estes são todos os fatores que fizeram da Europa, unida pelo Império Romano, um monte de ilhas ou feudos desconectados entre si, com a única preocupação de sobreviver. A Igreja ou o cristianismo estava presente em todos estes estados e em todos eles foi o único fator de união. Por isso, foram possíveis empreendimentos como as cruzadas, porque não havia nenhum outro fator que conseguisse unir os povos e os fizesse sair dos seus feudos.

Alta Idade Média
A alta Idade Média é aquela que está mais longe de nós e mais perto da queda do Império Romano do ocidente. Durante este período de ocupação bárbara do Império Romano, os centros urbanos foram destruídos, o povo voltou ao mundo rural. Os bárbaros formaram pequenos reinos usando as estruturas do Império Romano. No século VII, tanto o Norte de África como o Médio Oriente se tornaram muçulmanos; este último tinha feito parte do Império Bizantino ou Império Romano do Oriente (o mais longo da história). Este Império continuou a existir por mais algum tempo, até 1453, já na baixa Idade Média, quando sucumbiu ao Império Otomano que durou mais 600 anos e acabou já depois da I Guerra Mundial, em 1922.

Durante a alta Idade Média, o cristianismo, que se constituiu a si mesmo como o herdeiro da cultura greco-romana, disseminou-se por toda a Europa e, como vimos no texto anterior, as tribos germânicas foram cedendo a esta narrativa religiosa muito superior à sua. Ao converter-se o chefe da tribo convertia-se toda a tribo por uma questão de lealdade, valor muito importante entre os bárbaros.

Ainda nesta alta Idade Média se dá uma tentativa, por parte dos francos durante a dinastia carolíngia, de restauração do antigo Império Romano. O Império Carolíngio surge nos séculos VIII e IX pela unificação dos reinos francos e germânicos durante a dinástica carolíngia, que se inicia com Carlos Magno. Mais tarde, este Império separou-se desta divisão; a parte oriental da França com o resto da Germânia formam o Império Romano Germânico durante o reinado da dinastia saxónia, com Oton I como imperador. Este foi nomeado como sagrado Imperador pelo Papa, facto que deu origem ao nome Sacro Império Romano Germânico.

Os imperadores germânicos consideravam-se sucessores diretos dos romanos. Estes imperadores eram eleitos por um conselho de quatro duques dos reinos mais importantes: Saxónia, Francónia, Suévia e Baviera. O imperador representava todo o Império, mas cada um dos reinos confederados tinha autonomia sobre o seu território que era governado segundo o sistema feudal. Este Império durou 900 anos: a partir da alta Idade Média, atravessou a baixa Idade Média e a Idade Moderna e entrou na Idade Contemporânea; terminou no ano de 1806, com as guerras napoleónicas.

Baixa Idade Média
A baixa Idade Média teve início no ano 1000; neste período dá-se um grande crescimento demográfico, o feudalismo é o sistema que impera por toda a Europa; o rei de cada estado era só uma figura simbólica, não tinha grande poder executivo. Durante este tempo, a Igreja estabelece-se não só como poder espiritual, mas também temporal, pois consegue incitar os nobres feudais a embarcar numa cruzada de reconquista da Terra Santa que o Império Bizantino tinha perdido para o Império Otomano.

Chegam de facto a conquistá-la, mas por pouco tempo, para logo a perderem, uma vez que o Império Otomano estava no seu apogeu. Não voltará a ser conquistada, nem por Ricardo, Coração de Leão, mas pelos ingleses na I Guerra Mundial. Nas cruzadas, as tribos germânicas mostram o seu lado bárbaro, pelo que fizeram mais mal que bem. Não conseguindo derrotar os muçulmanos, em 1204 na quarta cruzada voltaram-se contra os cristãos do Oriente, saqueando, aterrorizando e vandalizando Bizâncio que, enfraquecida, foi depois presa fácil para o poder otomano.

Os dois últimos séculos da baixa Idade Média ficaram marcados por várias guerras, adversidades e catástrofes. A população foi dizimada por sucessivas fomes e pestes; só a Peste Negra foi responsável pela morte de um terço da população europeia entre 1347 e 1350. Acontece também a Peste Negra Espiritual, com o Grande Cisma da Igreja no Ocidente que teve consequências profundas na sociedade e foi um dos fatores que estiveram na origem de inúmeras guerras entre estados.

A vida cultural foi dominada pela escolástica, uma filosofia que procurou unir a fé à razão, e pela fundação das primeiras universidades. A obra de Tomás de Aquino, a pintura de Giotto, a poesia de Dante e Chaucer, as viagens de Marco Polo e a edificação das imponentes catedrais góticas estão entre as mais destacadas façanhas deste período.

Feudalismo
A invasão bárbara provocou a fuga da cidade em direção ao campo. A Europa ocidental ruralizava-se, e a riqueza era a terra. A agricultura tornou-se na principal atividade económica, e a produção dos feudos era para o próprio sustento. Carlos Magno promoveu a distribuição de terras aos senhores feudais, exigindo em troca a sua fidelidade e auxílio em caso de guerra.

O feudalismo é o termo que usamos para toda organização social, política, cultural, ideológica e económica que existiu na Europa durante a Idade Média. O feudalismo é a ruralização da Europa urbana romana; as cidades só voltam a existir com a abertura do comércio na Idade Moderna, por altura do Renascentismo.

O símbolo do feudalismo é o castelo do senhor feudal, rodeado por terras de cultivo onde trabalham de sol a sol os servos da gleba, o povo, que prestam homenagem e vassalagem ao Senhor feudal ou Suserano, membro da Nobreza. Entre castelo e castelo encontram-se aqui e ali mosteiros onde vivem os monges que constituem a outra classe social, o clero.

Os nobres defendem o feudo pois são eles os proprietários das terras que o povo trabalha; o clérigo mantém a cultura e ensina tanto a religião como técnicas agrícolas ao povo, orando por ele; o povo sustenta com o seu trabalho tanto os nobres como o clero, se bem que este último era em grande medida autossuficiente. A Nobreza (bellatores) defende, o Clero (oratores) reza e o Povo (laboratores) trabalha: assim se resume a vida rural durante o feudalismo.

O ideal da cavalaria
O cavaleiro medieval encarna valores como a coragem, a proeza, a infalível lealdade, a fidelidade à palavra dada, a dignidade e a honra. Tem por norma defender os mais pobres e lutar pela justiça e pela paz. Leva uma vida errante de solidão, pelas batalhas e escaramuças que vai enfrentando. Está apaixonado por uma donzela com quem tem uma relação de amor platónico à distância.

Tem que dar provas de temperança em batalha, de generosidade, tanto em relação aos amigos como aos inimigos, e de cortesia para com as mulheres. A liberalidade do cavaleiro que redistribui todos os seus bens às pessoas e aos pobres faz parte da sua fama. Os valores celebrados pela cavalaria são o fruto de uma longa educação.

O aspirante a cavaleiro, deve fazer a sua aprendizagem junto de um senhor de quem passa a ser o criado e depois o escudeiro. Aprende então tanto o manejo das armas como a ética da cavalaria. Uma vez investido, deverá demonstrar o seu valor atuando nos torneios ou participando das aventuras que lhe surgem pela frente. Na procura de glória e reconhecimento, estes cavaleiros errantes vão realizar igualmente múltiplas buscas, das quais a mais prestigiosa é a do Santo Graal, ou seja, o cálice da Última Ceia de Jesus e tambéma da arca da aliança.

Os Templários
Assim chamados porque nasceram no templo de Jerusalém onde buscavam precisamente o Santo Graal; foram uma ordem religiosa militar. Estes e outros membros de ordens religiosas militares eram quem melhor encarnava o espírito do cavaleiro, pois, ao não casar, dedica toda a sua vida à guerra santa ou justa. Eram os mais temidos pelos muçulmanos pois eram mártires da causa; de facto, quando os muçulmanos aprisionavam um templário não se contentavam em matá-lo como faziam com qualquer cruzado, mas torturavam-no durante muito tempo antes de o matar.

Os Templários cresceram em poder e em riqueza e chegaram a ter em França mais terras, mais poder e riqueza que o próprio rei de França, pelo que este, juntamente com o Papa, combinou a sua dissolução. Antes que isto acontecesse, a armada dos templários zarpou de França e diz-se que veio para Portugal, onde o rei D. Dinis, numa atitude inteligente, em vez de dissolver uma Ordem poderosa em Portugal desde D. Afonso Henriques, mudou-lhe o nome para cavaleiros da Ordem de Cristo. Os Descobrimentos portugueses foram feitos pelos templários, financiados pelos judeus. De facto, as caravelas portuguesas levavam nas suas velas a cruz quadrada dos templários.

Eclesia mater ed magistra
“Em terra de cego quem tem um olho é rei” diz o povo; a Igreja tornou-se uma instituição poderosa e influente não apenas na religião, mas também na sociedade medieval. Os povos germânicos não estavam minimamente interessados na cultura, não sabiam ler nem escrever, mas sabiam que a formação e a informação representam poder, por isso reconheciam na Igreja não só um poder religioso, como também cultural, como herdeira da cultura greco-romana. Consequentemente, era respeitada, apesar de, como mais tarde Hitler afirmou, não ter exércitos para submeter os povos.

O poder da Igreja era só espiritual. No entanto, como o ser humano é um ser espiritual, quando submetes a alma de uma pessoa, submetes o seu corpo uma vez que o corpo obedece aos ditames da alma. Podemos ver uma imagem dessa submissão no seguinte episódio que é iconográfico e representativo da Idade Média e das relações entre a Igreja e os povos germânicos:

quando o feroz chefe e rei dos hunos estava para invadir e saquear Roma, cobiçada por todas as tribos germânicas, o papa S. Leão Magno saiu ao seu encontro e, por meios pacíficos certamente, conseguiu dissuadi-lo desta invasão.

Os reinos germânicos adaptaram os seus costumes aos dos romanos. A Igreja aliou-se aos reis e tornou-se na grande ponte entre o mundo germânico e o mundo romano. Os povos bárbaros abandonaram as suas antigas práticas religiosas e aderiram ao cristianismo. A fé cristã expandiu-se pela Europa ocidental, reforçando o poder do Papa. Foi no Império Carolíngio, no século VII, que a Igreja conseguiu consolidar o seu domínio, continuando depois no Sacrossanto Império Romano Germânico.

Nos séculos IV e V, com uma pregação intensa e geral, em pouco tempo a Igreja converteu ao cristianismo os povos conquistadores do Império Romano. Numa época de guerras, desagregação e fragmentação do poder, como foi o feudalismo, a religião era o único fator de união entre os povos. Era também a única instituição do mundo antigo capaz de fazer frente à hegemonia dos novos dominadores bárbaros.

Era a Igreja que garantia a paz e defendia os povos dos excessos dos invasores bárbaros, opondo-se às injustiças, não pela força das armas que não as tinha, mas pela força da razão, da decência e da ética. Os bárbaros respeitavam a Igreja pelo ascendente que esta tinha perante o povo e por ser a herdeira do grande Império Romano que, de facto, ainda existia no oriente. Com a subjugação das populações nas zonas mais rurais, o único poder era o do bispo; por outro lado, a nível de Roma, o Papa era o único representante do ocidente romano. Desta forma, a Igreja tornou-se num poder político e, como tal, também cometeu alguns erros.

Monaquismo
Os monges e os frades eram os cavaleiros espirituais da Idade Média. A cultura da Idade Média estava concentrada nos mosteiros. A produção da Antiguidade Clássica foi guardada e os monges copistas tinham a missão de copiar os textos antigos para que não se perdessem com o tempo. O acesso às bibliotecas dos mosteiros era restrito e o trabalho era manual.

Na Europa da alta Idade Média, dividida em tantos reinos instáveis, a Igreja era a única instituição forte e eficiente, instruída, rica e presente em todo o lado. Nas cidades, o bispo era frequentemente a única autoridade existente. No mundo rural, afirma-se a presença dos mosteiros com a regra Beneditina de “Orat ed labora”: o monge não deve apenas rezar, mas também trabalhar para se sustentar a si mesmo e a quem necessita.

Em toda Europa, nasceram mosteiros beneditinos e cistercienses que se transformaram em centros económicos e que, através da agricultura e da criação de animais, produziam alimento para as populações.

Estes mosteiros foram oásis de cultura e celeiros da mesma, pois era aqui que se copiavam os antigos textos latinos e gregos. Sem estas cópias, estes textos ter-se-iam perdido. A invasão bárbara do império romano parece ter feito a cultura andar para trás, mas a Igreja preservou essa cultura, pois era a única herdeira das últimas civilizações ilustradas: a da Grécia e a de Roma.

Os americanos chamam a esta idade a Idade das Trevas e de alguma forma o foi. No entanto, custa a acreditar que precisamente nesta época se tenham construído os edifícios mais belos que o mundo já construiu: as catedrais góticas. Cada pedra foi talhada para ocupar um lugar exato, sem cimento e sem ferro, arcos, colunas, ogivas, abóbadas, um conjunto harmonioso e elegante, iluminado pelos vitrais multicolores, um autêntico céu na terra.

A catedral gótica como ex libris da cosmovisão medieval
Foram necessários os templos gregos e as basílicas romanas para que houvesse catedrais góticas; no entanto, qualquer que seja a dívida dos arquitetos medievais para com seus predecessores, a verdade é que os superaram mil vezes. A catedral gótica representa um avanço exponencial em relação à arquitetura grega e romana.

A vertiginosa verticalidade de tais edificações revela plenamente as transformações do gosto, do pensamento filosófico escolástico, dos ideais estéticos, traduzidas, para o plano arquitetónico, por uma renovação das técnicas mediante a introdução de uma série de elementos originais típicos do estilo gótico: a abóbada sustentada por uma cruzaria ogival, a utilização do arco quebrado em vez do arco de volta inteira, ou arco românico, o emprego do arcobotante e dos contrafortes para sustentar o teto de pedra formado por um conjunto de abóbadas.

É a cosmovisão cristã que explica a unidade de espírito que caracterizou a civilização medieval, e daí a razão de existir uma íntima relação entre a escolástica e as catedrais góticas, uma vez que a plena aceitação da conceção católica da vida gerou, não somente um autêntico e inconfundível estilo de vida, como também uma filosofia e um estilo arquitetónico próprios.

Como indicam as teses de S. Tomás de Aquino, fundador da filosofia escolástica, a Deus chega-se não só pela fé, mas também pela razão, ou seja, por um esforço do pensamento complexo mas requintado, rigidamente formal mas rico de subtilezas. Esses mesmos conceitos inspiraram na arquitetura as catedrais góticas, a sua ascensão para Deus, através de construções complexas, mas requintadas, formalmente rigorosas, mas de igual modo ricas de pormenores. Deste modo, pode afirmar-se que o pensamento escolástico se vê perfeitamente expresso na arquitetura das catedrais góticas.

Conclusão: É certo que a constante instabilidade interna provocada pelas invasões bárbaras e pelo fim da Pax Romana, assim como a instabilidade externa causada pela constante ameaça dos vikings a norte e dos muçulmanos a oriente, sul e ocidente, fizeram a Europa mergulhar num limbo de paralisia e retrocesso cultural. No entanto, também foi esta Idade que produziu um alto paradigma de humanidade no ideal de cavalaria, e na catedral gótica com o exponente mais lato da arquitetura mundial.

Pe. Jorge Amaro, IMC






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