15 de abril de 2016

O Bom Samaritano

Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante.

Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: 'Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar.'

Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?» Respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» Jesus retorquiu: «Vai e faz tu também o mesmo.» Lucas 10, 25-37

A segunda parábola mais conhecida depois do Filho Pródigo, é sem duvida a do Bom Samaritano. De tal forma esta parábola influenciou a cultura ocidental que hoje o termo “samaritano”, mais que referir-se a um habitante da Samaria, aplica-se a toda a pessoa que é solidária, se compadece e ajuda os que estão em dificuldades.

Como ganhar a vida eterna
A parábola está inserida no contexto do diálogo que Jesus tem com um doutor da lei que o interpela sobre o que deveria fazer para ganhar a vida eterna. Jesus, tal como um bom psicoterapeuta não diretivo, ao estilo de Rogers, ajuda-o a buscar ele mesmo a resposta à sua pergunta remetendo-o para a sua leitura da Lei. O doutor da lei diz em resposta o que Jesus quer ouvir; ou seja, em vez de mencionar leis concretas, dá ao amor o estatuto e a importância de uma lei, assumindo que Jesus faria isso mesmo.

A resposta do doutor da lei sintetiza o Antigo Testamento, a Lei e os profetas, ao unir o amor a Deus, descrito no livro do Deuteronómio (6, 4-8), como o amor ao próximo, descrito no livro do Levítico (19, 18). A esta síntese Jesus limitou-se a aprovar dizendo faz isso e viverás; viverás aqui e agora segundo a Lei e entrarás na vida eterna.

Se alguém disser: «Eu amo a Deus», mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. 1 João, 4,20

Com este texto podemos concluir que o amor a Deus que não se verifica e manifesta no amor ao próximo, não é real nem genuíno; porem, como diz o evangelho, só podemos verdadeiramente amar o próximo, quando entendemos que o fazemos aos outros, o estamos a fazer a Deus. 'Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes. (Mateus 25, 40)

Desta forma estamos de volta ao amor a Deus comos sendo o primordial e o mais importante, porque só quando vemos a Deus como Pai a que vemos o outro como nosso irmão. Se Deus não é Pai de todos, então o meu próximo não é meu irmão, mas sim meu rival, meu inimigo, a quem temo invejo ou odeio. Por melhor que estejam na vida os nossos irmãos de sangue, não os invejamos, da mesma forma quando verdadeiramente amo a Deus como Pai, todas as pessoas que me rodeiam, grandes e pequenos, de perto ou de longe, são meus irmãos de sangue porque Deus é Criador e Pai de tudo e de todos.

Cristianização da gramática
Quem é o meu próximo? – Tal como os outros doutores da lei que vieram ter com Jesus, também este não veio com a intenção de enfatizar a doutrina de Jesus. A primeira pergunta que faz a Jesus é só a preparação da segunda, na qual pretende denunciar o facto de Jesus não aceitar diferenças entre as pessoas. Portanto, a segunda pergunta deixa supor que há pessoas que podem ser consideradas como próximo e outras, pelo contrário, não. E assim era para os Judeus; eles eram o povo escolhido por Deus, por isso para eles o próximo era o que era da sua mesma tribo e religião; os outros eram gentios, pagãos e como tal não podiam ser tidos como próximo para um Judeu.

 Para Jesus não existe diferença entre pessoas. É o que tenta explicar com a parábola do bom samaritano. Em pleno deserto de Judá jaz um ferido; ninguém o conhece; não se sabe nada dele; o rosto desfigurado, pelo que não podemos ler as feições do seu rosto para o definir etnicamente; meio morto, pelo que não pode falar para sabermos que idioma fala ou que dialeto ou sotaque tem; talvez despojado meio nu, pelo que não sabemos como veste para saber quais são os seus usos e costumes e poder identificá-lo. Jesus não menciona nenhum destes detalhes, porque para Ele não são importantes, a única coisa que é clara é que é um ser humano, isso é o único que conta. A dignidade não está subjugada a diferenças étnicas, linguísticas ou politicas, mas simplesmente ao facto de ser um ser humano.

Deus é Pai de todos pelo que quando rezamos o Pai Nosso, ninguém deveria ficar excluído do pronome “nosso”. Aliás se levássemos a nossa fé até às últimas consequências, modificaríamos a gramática e aboliríamos todos os pronomes pessoais ficando só com três, pois trinitária é a nossa fé; Eu + Tu = Nós.

Começando por mim pois me reconheço com um ser livre autónomo, distinto de tudo e de todos os que me rodeiam; seguidamente, olhando à minha volta e reconheço um alter ego, um Tu, diferente de mim, mas de igual dignidade; por fim, o facto de precisarmos um do outro, e de termos iguais direitos e deveres, faz surgir uma terceira entidade o “Nós” ou seja o eu e o tu juntos; para alem destes, os restantes podemos descarta-los por ser discriminativos.

Os pronomes “Ele” e “ela” “Vós” e “Eles” estabelecem distinções que ao ser irrelevantes quanto á dignidade da pessoa humana, abrem o passo para a discriminação que pode até estar camuflada no reconhecimento objetivo de diferenças entre pessoas. Uma vez mais, como cristãos que somos, o nosso, do Pai Nosso, deve englobar toda a gente sem distinção e discriminação.

Anatomia geográfica
A ciência diz-nos que o ser humano vem de um tronco comum. Com a filosofia grega na mente, verificamos que a dignidade da pessoa humana está ligada à essência e não aos acidentes. O que Jesus quer que este doutor da lei entenda é que as diferenças étnicas, de género, de posição social, de classe, de cor da pele, de tipo de cabelo etc., são acidentes, ou seja, são formas de existir e nada têm que ver com a essência pois não a alteram. Como a dignidade da pessoa humana provém da essência e não dos acidentes, Jesus conta a parábola na esperança que o seu interlocutor conclua por ele mesmo que o próximo, de cada pessoa humana, é toda a pessoa humana.

Nascidos de um tronco comum, há cinco milhões de anos no vale de Rift na África, as características fisiológicas, que apresentam os seres humanos de hoje, devem-se às condições morfológicas e climatéricas do meio ambiente em que habitaram por muitos milhares de anos. Por exemplo, a cor da pele é proporcional à distância do equador; quanto mais perto mais preta, quanto mais longe mais clara; os Congoleses são os seres humanos mais pretos, os Marroquinos são mais claros que os Congoleses, os Portugueses mais claros que os Marroquinos e os Noruegueses mais claros que os Portugueses.

Com a distância do equador tem que ver também a cor dos olhos e do cabelo; no norte da Europa proliferam os azuis, no centro os castanhos, no Sul os pretos; o mesmo vale para a cor do cabelo; no norte da Europa é louro, no centro castanho, no sul preto. O tamanho do nariz tem que ver com a temperatura do ar; além de o filtrar, o nariz tem também a função de o aquecer, pelo que nos países frios as pessoas têm um nariz maior.

Também tem que ver com a temperatura e incidência do sol o cabelo encaracolado e o cabelo liso. O cabelo encarapinhado dos africanos forma uma caixa de ar a qual permite que o ar circule, protegendo assim a cabeça dos raios solares e do calor. Por fim os olhos dos asiáticos tem que ver com o clima extremo das estepes asiáticas; no inverno muito frio e muita luminosidade, no verão muito vento e pó.

A revolução francesa “avant la lettre”
No ocidente, foi a revolução francesa instituiu a ideia que tem sido a pedra angular da democracia de que pelo nascimento e perante a lei, somos todos iguais; desta forma não há escravo nem senhor, nem nobre e plebeu. No entanto muito antes de sermos iguais perante a lei já eramos iguais perante Deus.

Se observarmos atentamente, verificamos que os ideais da revolução francesa, não são verdadeiramente descoberta dos revolucionários, mas já estavam implícitos no mandamento do amor, a Deus e ao próximo.

Liberdade – Está implícita no mandamento do amar a Deus sobre todas as coisas; só quando amamos a Deus sobre todas as coisas, e sobre todas as pessoas, é que colocamos ordem e hierarquia no nosso coração e somos verdadeiramente livres. Ao prestar vassalagem a um ser Transcendente transcendo-me, coloco-me por cima de todos as coisas que não são Deus; assim e só assim sou verdadeiramente livre.

Igualdade – Está Implícita no mandamento do amar ao próximo como a mim mesmo; o outro é um alter-ego, um outro eu de onde vem o conceito de altruísmo. Não é um estranho, portanto, mas sim uma pessoa de igual dignidade, iguais direitos e deveres. Como me amo a mim mesmo assim devo amar o outro que está na minha frente, nem mais nem menos; a medida da minha autoestima é a medida do meu amor pelo outro, pelo que não há melhor afirmação de igualdade que esta.

Fraternidade – Esta palavra é uma derivação de “frater” que em latim significa irmão. Uma das marcas do cristianismo é o considerar que Deus é Pai de todos, o qual nos faz a todos seus filhos e portanto irmãos entre nós. Por isso tudo o que faço, de bem ou de mal, a um irmão o estou a fazer; e por outro lado, como diz Mateus 25, a Cristo o nosso irmão mais velho o estou a fazer.

Fraternidade é ao mesmo tempo sinónimo de amor ao próximo e de igualdade, pois tendo em mente o conto do Príncipe Encantado que se apaixona pela gata borralheira ou Cinderela, há proverbio que no assegura que “O amor ou nasce entre iguais ou faz as pessoas iguais”. Assim sendo, podemos concluir que igualdade e fraternidade são uma e a mesma coisa. A fraternidade leva á igualdade e a igualdade leva à fraternidade. A liberdade, ou o amor a Deus é o alicerce da vida humana na sua vertente individual; a igualdade ou o amor ao próximo, o alicerce da vida humana na sua vertente social; Uma não existe sem a outra

Ante o dito é inadmissível que existam castas, como na Índia, e que estas ainda hoje pautem as relações entre pessoas a ponto de não serem iguais perante a lei. Como também é inadmissível que os muçulmanos considerem infiéis a todos os que não adoram o seu deus e não se comportam segundo a lei da Sharia.

Religião como opio
Discordamos de Karl Marx quando diz que a religião é o ópio do povo. A religião em si não é ópio, mas a sua pratica pode ser. Uma religião que crie diferenças entre as pessoas, que me leve a relacionar-me com elas diferentemente é opio do povo; porque me aliena, aliena outros e cria ódios e contendas. Uma religião que me afasta dos outros, que desumaniza, que me impede ajudá-las e que busca desculpas para não o fazer é ópio. Uma religião que não me ensina o caminho para sair da minha zona de conforto, do meu egocentrismo, não é sequer uma religião. Religião vem de “religare” relação, a verdadeira religião é a que motiva o maior número de relações possíveis e todas elas baseadas no amor.

O sacerdote e o Levita passam de largo para não serem contaminados e poderem praticar a sua religião, oferecer sacrifícios no templo; por isso têm desculpa, têm alibi; a própria religião os proíbe de fazerem o bem; uma religião que é ópio funciona assim, justifica, ilumina e fundamenta ideologicamente o egoísmo e a inatividade, acabando até por matar a compaixão que surge natural, quando presenciamos o sofrimento humano e até mesmo o sofrimento de um animal. Uma religião assim é uma superestrutura, na linguagem de Karl Marx, que desumaniza o ser humano.

O sacerdote e o levita, algo assim como o padre e diácono nos nossos tempos, são por sua natureza pontífices; ou seja, pontes entre Deus e os homens. A sua função é a de interceder a Deus pelos seus semelhantes; levar Deus aos homens e os homens a Deus. Estes clérigos ficaram-se com a teoria, iam certamente para o templo para interceder pelos homens, mas por um homem genérico inexistente, pois homem era aquele que viram a precisar de ajuda e passaram de largo. A sua religião era ópio e ideologia, pois em vez de os aproximar dos homens e mulheres concretos distanciava-os deles.

A compaixão vem de quem menos se espera, de um homem de negócios, em quem normalmente se presume a ganância e busca do proveito próprio em todo tempo e lugar. Um para quem o tempo é dinheiro e todas as atividades devem ser lucrativas. Sendo um homem de negócios, se alguém tinha “desculpas” para passar de largo era o samaritano, e, no entanto, é precisamente ele que pára e coloca de lado a sua agenda e atende o desafortunado.

Talvez por não ser religioso, o sentimento natural de compaixão não estava anulado ideologicamente pelo que, anacronicamente, é precisamente nele que vemos a compaixão e a misericórdia, atributos de Deus que não os vemos nos religiosos, o sacerdote e o levita, que teoricamente mais perto de Deus, mais deveriam ser como Ele.

O samaritano não só sente compaixão, mas atua com base nessa compaixão; muitos há que sentem e nada fazem. A sua compaixão faz com que coloque o seu programa de lado, não só oferece tempo, a sua montada e ele vai a pé, mas abre os cordões à bolsa, e paga por ele o equivalente ao ordenado de dois dias e comprometendo-se a pagar ainda mais caso fosse necessário. O samaritano é-nos apresentado como um ícone vivo da misericórdia divina, um exemplo que o próprio Cisto nos convida a seguir.

Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericordiae Vultus Papa Francisco.
Pe. Jorge Amaro, IMC



1 comentário:

  1. A hipocrisia e a falsidade de quem aparenta ser algo que na realidade da vida não o demonstra ,pois a atitude e a bondade do samaritano em doar-se ao outro é certamente o que agrada a Deus ,um lindo momento de reflexão ,um grande abraço Jorge.

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