1 de abril de 2016

Perdidos & Achados - Os dois filhos

A parábola do filho pródigo é sem lugar a dúvidas, a narrativa mais notável de todos os tempos. É realmente uma obra-prima e de alguma forma o ex libris do Evangelho. Para além de “Parábola do filho pródigo” é também chamada a parábola dos dois filhos, pois a atitude pouco louvável do filho mais velho, é parte integrante da história; por esta mesma razão outros chamam-lhe O menos mau de dois maus filhos, e por fim, retirando o protagonismo aos dois filhos para o dar ao Pai, também há quem lhe chame a parábola do Pai Misericordioso.

Disse ainda: «Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: 'Pai, dá-me a parte dos bens que me corresponde.' E o pai repartiu os bens entre os dois.

Disse ainda… - Jesus introduz esta parábola ligando-a às duas precedentes, a da ovelha e da dracma perdidas. Uns perdidos em casa dentro do rebanho:  a dracma, o filho mais velho e as 99 ovelhas que simbolizam os fariseus; outros perdidos para fora do rebanho, a ovelha perdida e o filho pródigo, que simbolizam os publicanos, as prostitutas e os pecadores em geral; para Jesus tanto uns como outros, todos são pecadores necessitados de perdão, doentes necessitados de cura. Na verdade, como diz a Escritura, Todos nós andávamos errantes como ovelhas perdidas, cada um seguindo o seu caminho. Mas o Senhor carregou sobre ele todos os nossos crimes (Isaías 53,6). Cristo morreu por todos porque todos eramos pecadores.

'Pai, dá-me a parte dos bens – Segundo a lei Judaica, um pai não podia dispor da sua propriedade como quisesse. O filho mais velho tinha direito a dois terços e o mais novo a um terço da propriedade (Deuteronómio 21:17). Nesta terceira parábola o drama acentua-se, não se trata já da perda de uma ovelha, um dracma, nem mesmo de parte da propriedade; o que preocupa este pai é a perda do filho. Para entender a aflição daquele pai, recordemos a angústia de Jacob quando julgou ter perdido José, o seu filho mais novo e preferido, por ser filho de Raquel a mulher que ele amou à primeira vista e por quem teve de trabalhar 14 anos.

O drama deste pai, implícito na parábola, é a ingratidão do seu filho mais novo. Pedir a herança antes da morte, da sua morte, é como dizer-lhe: “Para mim já morreste por isso herança deve ser repartida; não vales pelo que és, ou por quem és para mim, mas pelo que tens, como não quero viver contigo não vou ficar aqui à espera da tua morte, quero o que me pertence já”.

E o pai repartiu os bens entre os dois – Apesar de profundamente ofendido pela ingratidão do seu filho, o pai não discute, nem tenta convence-lo de que está a proceder mal; sabe muito bem que o que ele não lhe conseguiu ensinar com amor a vida lho ensinará com dor; o erro e o sofrimento como consequência é muitas vezes parte integrante do processo de aprendizagem. De facto, aprendemos mais com os nossos erros de que com os nossos acertos; neste sentido “Não há males que por bem não venham”.

No respeitar a liberdade do homem, revela Deus Todo-Poderoso a sua impotência. Como não se pode obrigar um adulto a fazer o bem, tal como Deus, quantos pais contemplam como os seus filhos destroem as suas vidas, pelo vício ou a preguiça, sem nada poderem fazer.

Não há mulheres nesta parábola porque as mulheres naquele tempo nem possuíam bens nem eram herdeiras deles; mas vemos um pai com atitudes e rasgos que tradicionalmente são mais próprios de uma mãe, pelo que podemos dizer que a mulher, o caracter feminino, está também presente nesta parábola.

Poucos dias depois, (…) juntando tudo, partiu para uma terra longínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía, numa vida desregrada. Depois de gastar tudo, (…) começou a passar privações. (…) E, caindo em si, disse: 'Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome!

Caindo em si - Foi preciso cair bem fundo para cair em si e se dar conta da sua situação; passar fome, descer à condição de guardador de porcos, animal impuro por excelência, e nem sequer ter acesso às alfarrobas que estes comiam.

Deus intimior intimo meo est- Deus está para além do meu intimo; pelo que o caminho para Deus passa pelo profundo do meu ser; quando caminhamos para Deus caminhamos para uma maior consciência de nós mesmos; ao contrário, quando voltamos as costas a Deus, como o filho pródigo fez, voltamos as costas a nós mesmos; fora de si como os drogados, os alcoolizados, andou desvairado enquanto fugia de Deus e de si mesmo.

Não aceitava a sua realidade de ser filho de Deus, pelo que de certa forma, voltou à “animalidade”, ao tempo em que os seres humanos ainda primitivos não tinham consciência de si mesmos lá longe na evolução das espécies. Possuídos por uma paixão ou por um vício, quando fazemos o mal andamos fora de nós mesmos; perdemos a autoconsciência, o autocontrole, e a identidade.

Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e vou dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.' E, levantando-se, foi ter com o pai.

Decide voltar não tanto porque estivesse arrependido, mas porque tem fome… primum vivere deinde filosofare… ao voltar ainda está à procura do seu interesse; volta porque tem fome e precisa de mais bens; não volta por saudades do pai, mas porque na sua casa até os servos estão melhor do que ele como guardador de porcos. Não é digno de ser filho, diz no seu discurso em preparação, e não parece interessado em ser filho.
   
O filho pródigo queria impor-se uma penitência; queria de alguma forma fazer restituição, compensar pelo que ele fez, mas o pai não o deixa concluir o discurso que tinha preparado de antemão, e detém-no após ter escutado a sua confissão.  Deus não precisa de nossa restituição e da nossa penitência para nos perdoar; Deus perdoa e esquece. Mas então e o purgatório? É uma necessidade da nossa natureza e não de Deus; porque Deus perdoa-nos mais facilmente e mais depressa do que nós nos perdoamos a nós mesmos.

Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos. O filho disse-lhe: 'Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho.' Mas o pai disse aos seus servos: 'Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o dedo e sandálias para os pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.' E a festa principiou.

Ao longe não é o filho que vê o pai, mas o pai que vê o filho por quem estava à espera, pois nunca deixou de o esperar, nunca se esqueceu dele e refez a sua vida, como se costuma dizer; ao contrário nunca o deu por perdido, nunca prescindiu dele e viveu na esperança de que ele um dia ia voltar. O lugar que ocupamos no seio de Deus não pode ser ocupado por mais ninguém e fica sempre vazio até que regressemos a Ele.

O filho fez um pouco de estrada em direcção ao pai e a ele mesmo, mas foi o pai quem mais estrada fez; pois foi ele que nunca o deu por irremediavelmente perdido, nunca o esqueceu, sempre esteve de atalaia à sua espera, e quando o filho se apresentou como jornaleiro ele sem ressentimentos e cheio de compaixão recebeu-o como filho. Abraça-o, não se abraçam jornaleiros, beija-o como a um filho e de igual para igual pois não o deixa ajoelhar-se, depois coloca-lhe um anel de herdeiro com o selo do poder; veste-lhe a veste melhor de filho predilecto, como Jacob fez com José. Por fim mata o bezerro mais cevado e é festa.

Ora, o filho mais velho (…) ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo. Disse-lhe ele: 'O teu irmão voltou e o teu pai matou o vitelo gordo, porque chegou são e salvo.' Encolerizado, não queria entrar;

O filho que pecou aprendeu uma lição; quantas vezes precisamos de nos ver privados das coisas para nos darmos conta do seu valor. O filho mais novo entendeu o que era o amor do pai porque o negou e porque fugiu para longe dele. O filho mais velho nunca chegou a entender. É precisamente neste sentido que Sto. Agostinho desenvolve a sua teologia da “Felix culpa” referindo-se ao pecado de Adão, e Lutero agrega o seu paradoxo “pecca fortiter”; se pecas peca forte pois só um pecado forte, é motivo para uma forte conversão. A “peccata minuta” do filho mais velho não o demoveu da sua vida também pecaminosa.

'Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos; e agora, ao chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo.' O pai respondeu-lhe: 'Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.'» Lucas 15, 11-32

O pecado do filho mais novo foi rejeitar a paternidade do seu pai, o pecado do filho mais velho é o mesmo; também ele não se considera como filho mas como jornaleiro, entendendo o seu pai um capataz justiceiro pelo que lhe obedece não por amor mas por medo. Tal como o jovem rico e os fariseus nunca transgrediu um só mandamento. Cumpriam só a letra da lei porque, como bem dizia Jesus, o seu interior estava cheio de imundícia como fica claro pela forma como o filho mais velho descreve a vida dissoluta do seu irmão. O filho mais velho é, de alguma forma, como os que só se comportam bem diante da polícia e da autoridade; patrão fora dia santo na loja

Um filho verdadeiro partilha a vida e os bens com o pai e comporta-se segundo a “liberdade dos filhos de Deus” (Romanos 8,21). Por isso não precisava de pedir um cabrito pois dispunha da herança que é devida aos que são e se comportam como filhos de Deus (Mateus 25).

De como o filho pródigo gastou o dinheiro não o sabemos do narrador mas do filho mais velho; em todo o texto não se fala de prostitutas até o filho mais velho as mencionar apelando à possibilidade de que o pai fosse puritano e rigoroso contra este tipo de pecados. Há uma certa moralidade católica que julga toda a matéria sexual como pecaminosa e que faz a vista gorda aos pecados de justiça social.

Por outro lado, se psicanalisamos o enfase que o filho mais velho dá à forma como o seu irmão gastou o dinheiro chegamos à conclusão que afinal o filho pródigo só fez o que o irmão mais velho sempre quis e desejou, mas nunca teve a coragem de fazer. É, portanto, uma questão de inveja.

Ao contrário do filho mais novo que chama ao Pai, pai, o filho mais velho ao dirigir-se ao Pai não o trata como tal. E também não trata o irmão como irmão referindo-se a ele como “esse filho teu”. Quando Deus não é Pai os outros não são irmãos, mas sim inimigos ou rivais. Ante os quais sentimos inveja, ressentimento e ódio. Muito se fala do amor ao próximo como sendo o mais importante e a prova de que amamos a Deus; mas é só quando amamos a Deus que o nosso próximo é verdadeiramente próximo e não um estranho.

Uma catequista depois de ter contado a parábola do filho pródigo às crianças pediu-lhes que a contassem por palavras suas. Uma criança recontou parábola tal qual até ao momento em que o filho pródigo aparece no horizonte. Depois disse que quando pai viu o filho agarrou num cacete e pôs-se a correr ao encontro do filho.

No caminho encontrou o filho mais velho que lhe perguntou para onde ia, o pai disse-lhe que ia ao encontro do seu irmão, este ao ouvir que o seu irmão estava de volta agarrou também noutro cacete e foram ambos ao encontro do desgraçado que deixaram meio morto. Depois de terem ambos descarregado toda a raiva acumulada, disseram entre si façamos festa comamos e bebamos à saúde deste tratante.

Desta forma expressou, aquela criança, o que naturalmente qualquer pai do mundo faria, mas Deus Pai não é assim; porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor (Isaías 55. 8).
Pe. Jorge Amaro, IMC

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