15 de março de 2025

Apresentação

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No quarto Mistério Gozoso, contemplamos a apresentação do Menino Jesus no templo.


Do Evangelho de São Lucas (2, 22 – 32)
"Quando se cumpriram os dias da purificação, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentar ao Senhor, como está escrito na Lei do Senhor: 'Todo o primogénito macho será consagrado ao Senhor', e para oferecer um sacrifício, como está dito na Lei do Senhor: 'um par de rolas ou duas pombas novas'.

Ora, havia em Jerusalém um homem chamado Simeão, um homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. (…) Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que não morreria antes de ver o Cristo do Senhor. (…) Tomou o Menino nos braços, bendisse a Deus e disse: 'Agora, Senhor, podes deixar partir em paz o Teu servo, segundo a Tua palavra, porque os meus olhos viram a Tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para revelação aos gentios e glória do Teu povo, Israel'."

Comentário de Santo Atanásio
"O Verbo, tomando sobre si o que era nosso, ofereceu-o como sacrifício e destruiu-o com a sua morte. Depois, revestiu-nos com a sua condição."

Meditação 1
Jesus não rompe com as tradições dos antigos, submetendo-se às leis da terra onde habita e do povo em que encarnou como homem. No entanto, ao obedecer ou cumprir essas leis, fá-las passar pela sua consciência moral, pois a lei foi feita para o homem e não o homem para a lei.

Maria, sendo ao lado de Jesus a mais pura entre os seres viventes, também se submete à tradição de purificação ritual. Ao referir-se a esta segunda parte do mistério, é necessário incluir a palavra "ritual", pois Maria foi sempre pura, antes, durante e depois do parto.

O Filho de Deus sujeitou-se à Lei e aos seus preceitos! Na vida da Sagrada Família, o respeito pela Lei nasce da certeza de que é Deus o seu Fundamento. Por isso, o cumprimento rotineiro do estabelecido, do aparentemente imutável, torna-se também lugar de revelação de Deus.

Meditação 2
A Apresentação de Jesus no Templo é uma oportunidade para contemplarmos o Deus Santo, que assume o ritmo dos homens: é o Deus de Amor, que se revela na história humana sem se impor. Quanta verdade e quanta revelação de Deus no cumprimento fiel dos deveres de cada dia!

Simeão, ao olhar para Jesus, reconhece que o Cristo, pelo qual esperava, chegou, conforme a promessa de Deus. Ele levanta os olhos ao céu em agradecimento, mas também adverte Maria de que o seu coração será trespassado. Apesar disso, Maria continua a confiar em Deus, sem saber o que o futuro lhe reserva. Que a nossa oração peça confiança no plano de Deus e paciência para esperar que ele se desenrole.

No dia da Apresentação, Deus recebeu infinitamente mais glória do que em todos os sacrifícios e holocaustos oferecidos no templo até então. Neste dia, é o próprio Filho de Deus que lhe é apresentado, oferecendo ao Pai uma homenagem infinita de adoração, ação de graças, expiação e súplica.

Esta oferta, tão agradável a Deus, é recebida das mãos da Virgem, cheia de graça. A fé de Maria é perfeita. Cheia da sabedoria do Espírito Santo, ela tem uma clara compreensão do valor da oferta que está a fazer a Deus naquele momento. O Espírito Santo harmoniza a sua alma com as disposições interiores do coração do seu Divino Filho.

Assim como Maria deu o seu consentimento em nome de toda a humanidade quando o anjo lhe anunciou o mistério da Encarnação, também neste dia ela oferece Jesus ao Pai em nome de todo o género humano. Ela sabe que o seu Filho é "o Rei da Glória, a nova luz que se acendeu antes da aurora, o Mestre da vida e da morte".

Oração
Senhor, nosso Deus,
Tu que revelaste a Tua salvação a Simeão no Templo,
dá-nos olhos para reconhecermos a Tua presença nas simplicidades do dia a dia,
e corações abertos para acolher a Tua vontade, como Maria e José.

Que, como a Sagrada Família, saibamos viver em obediência às Tuas leis,
mas também com a consciência de que a verdadeira Lei nasce do Teu Amor.
Ajuda-nos a cumprir com alegria e fé os deveres de cada dia,
sabendo que neles se manifesta a Tua presença e a Tua vontade.

Senhor, dá-nos a confiança de Maria,
que, mesmo ao ouvir sobre a espada que trespassaria o seu coração,
continuou a confiar em Ti sem hesitar.
Que possamos, como ela, oferecer-Te o melhor de nós mesmos,
sabendo que és o fundamento da nossa esperança.

Neste dia de Apresentação, lembramo-nos que o Teu Filho Jesus
se ofereceu a si mesmo ao Pai, por amor a toda a humanidade.
Que possamos também, nas nossas vidas, ser oferta de amor e adoração,
dando testemunho da Tua glória e da Tua salvação,
luz para todas as nações.

Amém.

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de março de 2025

Nascimento de Jesus

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No terceiro Mistério Gozoso, contemplamos o nascimento de Jesus.

Do Evangelho de São João (3, 16; 1, 14)
"De tal modo amou Deus o mundo que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que acredita n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. (...) E a Palavra fez-se carne e habitou entre nós, e nós contemplámos a Sua glória; glória como unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade."

Comentário de São Gregório Nazianzeno
"O Filho de Deus fez-se homem por amor ao homem. Quem dá a sua riqueza aos outros torna-se pobre. Ele implora que eu lhe dê a minha natureza humana para Ele me dar a Sua natureza divina."

Meditação 1
Deus Criador encarnou na criatura. Para muitas religiões, parece impossível que Deus possa encarnar num ser humano, tal como parece impossível que o mar possa caber numa pequena poça de água. Se pensarmos apenas na transcendência de Deus, sim, isso parece impossível, ilógico, improvável. Contudo, para Deus, não existem impossíveis.

Deus não é apenas transcendente, Ele também é imanente, já está presente aqui e agora, no coração de cada coisa e de cada pessoa. A expressão "Deus é-me mais íntimo a mim do que eu próprio" aplica-se a tudo; Deus é o coração tanto da matéria dos seres materiais como dos seres espirituais. Por isso, quando pensamos na Sua imanência, torna-se mais fácil compreender que Ele tenha assumido uma forma humana.

Deus "acampou" entre nós, ergueu a Sua tenda entre nós, como outrora, quando acompanhou o povo libertado do Egipto durante 40 anos no deserto. Essa tenda, onde Moisés se encontrava com Deus em colóquio, representando o povo de Deus, era chamada de "tenda do encontro". Jesus de Nazaré, o Emanuel, "Deus connosco", é a nova tenda do Encontro, pois n'Ele Deus e os homens se encontram. Por meio de Jesus, Deus vem ao Homem; por meio de Jesus, o Homem vai a Deus.

Meditação 2
"Deus fez-se Homem para que o Homem se fizesse Deus." Sto. Ireneu
Ao saírem de Jericó, uma grande multidão acompanhava Jesus (Mateus 20, 29).

Jericó é, ao mesmo tempo, a cidade mais antiga do mundo, com 8.000 anos de existência, e a cidade situada ao nível mais baixo da Terra, cerca de 500 metros abaixo do nível do mar. Na Bíblia, Jericó simboliza o pecado. Na parábola do Bom Samaritano, Jerusalém representa a graça, enquanto Jericó simboliza o pecado.

O homem que caiu nas mãos dos salteadores caiu em desgraça porque descia de Jerusalém, 800 metros acima do nível do mar, para Jericó. Ele viajava da Graça para o pecado; como diz o povo, "quem de Deus se esquece, todo o bem lhe falta". Para salvar o homem do pecado, Jesus também desce a Jericó, mas não fica lá. Ele sai de Jericó, e uma grande multidão segue-O, subindo com Ele do pecado de Jericó para a graça de Jerusalém.

O Filho de Deus nasce em suma pobreza: em circunstâncias inesperadas, sem lugar, sem conforto. À pobreza de Deus, Maria responde com a sua própria pobreza: oferece o melhor de si, envolvendo e aconchegando a fragilidade do Menino Deus, para que não lhe falte o mais importante – o Amor.

O Nascimento de Jesus é uma oportunidade para contemplarmos o Deus Santo, que Se entrega na debilidade: é o Deus Pobre, que desperta sempre o melhor de nós. Quanta fragilidade e impotência existem nas nossas vidas e nas daqueles que nos rodeiam! Quantas oportunidades temos, como Maria, de oferecermos o que temos e de nos centrarmos no Amor! Como enfrento as dificuldades e as
fragilidades da vida? Vejo nelas uma oportunidade para dar o melhor de mim?

Oração
Senhor Deus,
que enviaste o Teu Filho para nascer entre nós em humildade e pobreza,
faz com que, à semelhança de Maria, possamos oferecer o melhor de nós mesmos,
acolhendo o Teu amor em cada situação da nossa vida.

Ajuda-nos a reconhecer a Tua presença na fragilidade e nas dificuldades,
e a ver em cada desafio uma oportunidade para crescer no Teu amor.
Que, como Maria, saibamos centrar-nos no essencial,
oferecendo o que temos com generosidade e simplicidade.

Senhor, assim como Jesus nasceu num estábulo humilde,
faz com que o nosso coração seja uma morada digna para o Teu Filho,
cheia de paz, amor e esperança.

Que nunca nos esqueçamos da grandeza do Teu plano,
onde até nas circunstâncias mais inesperadas e difíceis,
Tu te manifestas em amor e misericórdia.
Que possamos, como a grande multidão que seguiu Jesus,
subir da escuridão do pecado para a luz da Tua graça.

Amém

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de fevereiro de 2025

Visitação

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No segundo Mistério Gozoso, contemplamos a visita de Maria Santíssima à sua prima Santa Isabel.


Do Evangelho de São Lucas (1, 39-43, 46)
Por aqueles dias, Maria levantou-se e foi apressadamente para a montanha, para uma cidade de Judá. Entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança saltou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. Levantando então a voz com um forte brado, disse: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! (...) Feliz aquela que acreditou, porque se cumprirá o que lhe foi dito da parte do Senhor!».

Comentário de Santo Ambrósio
"Bem-aventurada és tu que acreditaste", diz Isabel. Mas também vós sois abençoados porque ouvistes e acreditastes: toda a alma que crê e faz a vontade de Deus concebe e gera a Palavra de Deus, reconhecendo as suas obras."

Meditação 1
Se na Anunciação Maria está em oração, na Visitação Maria está em ação; se na Anunciação Maria escuta a palavra de Deus, na Visitação Maria põe essa mesma palavra em prática, como tantas vezes sugere o seu Filho; se na Anunciação Maria ama a Deus sobre todas as coisas, na Visitação ela ama o próximo como a si mesma.

Se na Anunciação Maria tem uma experiência de Deus como discípula, na Visitação, ao entoar o seu Magnificat e dar testemunho da sua experiência de Deus, ela age como missionária, relatando e testemunhando tudo o que Deus operou nela.

Nestes dois Mistérios Gozosos, encontramos o caminho de toda a vida cristã; por isso, Maria é para nós modelo de discípula e missionária. Nela se concentram todas as virtudes que o cristão deve cultivar. Maria é, portanto, não só a Mãe de Jesus e Nossa Mãe, mas também um exemplo de seguimento de Cristo.

Meditação 2
“Feliz és tu porque acreditaste”, foram as palavras de Isabel a Maria. Estas palavras recordam-nos que a fé é uma opção, uma aposta, uma decisão que tomamos livremente após esgotar o uso da razão. A fé é um salto no desconhecido, e só depois de o darmos saberemos se acertámos ou não. Maria encontrou a felicidade na sua fé na Palavra de Deus, dita pelo anjo. Também nós seremos felizes se acreditarmos, e infelizes se não o fizermos.

Maria deslocou-se de Nazaré até Ein Karen, percorrendo cerca de 150 km, para ajudar a sua prima. No entanto, Isabel reconhece nela algo mais que a sua prima Maria, pois esta já estava grávida do Filho de Deus. Ao responder às palavras de Isabel com o seu Magnificat, Maria mostra o que significa ser missionário. Não se trata propriamente de um pregador de doutrinas; a doutrina vem em segundo plano.

Tal como Maria no Magnificat, o missionário deve testemunhar as grandes obras que Deus operou na sua vida. Assim como a História se divide em antes e depois de Cristo, também a nossa vida muda quando encontramos Cristo, tal como aconteceu com Paulo.

No Magnificat, Maria relata as grandes coisas que o Todo-Poderoso fez na sua vida. Da mesma forma, o projeto de Jesus não é apenas individual, mas também social, chamando-nos a fazer deste mundo o Reino de Deus.

O missionário, tal como Maria narra no seu Magnificat, é aquele que ajuda a derrubar os poderosos dos seus tronos e a exaltar os humildes; é aquele que enfrenta as injustiças deste mundo, lutando para que o Reino de Deus se estabeleça aqui, numa sociedade mais justa, pacífica e fraterna.

Oração
Senhor, nosso Deus,
assim como Maria se levantou apressadamente
para servir e levar a Tua presença à casa de Isabel,
também nós, movidos pelo Teu Espírito,
queremos responder com prontidão ao Teu chamamento.

Faz de nós discípulos fiéis,
que escutam a Tua Palavra com o coração aberto,
e missionários generosos,
que a colocam em prática através do serviço e do amor ao próximo.

Que, como Maria,
possamos reconhecer e testemunhar
as grandes maravilhas que realizas nas nossas vidas,
e anunciar com alegria o Teu Reino de justiça, paz e fraternidade.

Senhor, ajuda-nos a derrubar as barreiras que nos separam dos outros,
a exaltar os humildes e a combater as injustiças
que impedem a Tua paz de reinar no mundo.
Que a nossa fé seja firme e confiada em Ti, como a de Maria,
e que saibamos encontrar a verdadeira felicidade
em acreditar nas Tuas promessas.

Assim como Maria entoou o seu Magnificat,
nós Te louvamos e bendizemos,
porque és fiel e misericordioso,
e em Ti depositamos toda a nossa confiança.

Amén.

Pe. Jorge Amaro, IMC

15 de janeiro de 2025

Anunciação

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No primeiro Mistério Gozoso, contemplamos a anunciação do anjo à Virgem Maria.

Do Evangelho de São Lucas (1, 26-31):
No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David. O nome da virgem era Maria. Ao entrar onde ela estava, o anjo disse: «Salve, cheia de graça, o Senhor está contigo!».

Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que saudação seria esta. O anjo, então, disse-lhe: «Não tenhas medo, Maria, pois encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu ventre e darás à luz um filho, e chamá-lo-ás Jesus».


Das Atas do Concílio de Éfeso:
A palavra que pronunciamos e de que nos servimos nos diálogos é incorpórea, impossível de ser apreendida pela visão ou pelo toque. Quando, no entanto, se reveste de letras e de formas exteriores, torna-se visível e acessível ao olhar e ao toque. Do mesmo modo, o Verbo de Deus, que por sua natureza é invisível, tornou-se visível; sendo também incorpóreo por essência, assumiu um corpo tangível.

Meditação 1
Como nos diz a carta aos Hebreus (1, 1-10): "Antigamente, por meio dos profetas, Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados. Mas, nestes últimos tempos, falou-nos por meio do seu Filho."

As comunicações dos profetas nos tempos antigos eram sempre imprecisas, imperfeitas e incompletas. Por isso, Deus decidiu intervir diretamente na história da humanidade, como tantas vezes fez ao longo da história de Israel. Jesus de Nazaré revela, ao mesmo tempo, a verdadeira natureza de Deus e a verdadeira natureza do homem, ensinando como Deus se relaciona com o homem e como o homem deve relacionar-se com Deus.

Meditação 2
Ao aparecer grávida após a sua visita à prima Isabel, Maria teve de enfrentar sozinha os seus pais, José e o povo da sua aldeia. A conceição milagrosa, obra do Espírito Santo, foi um evento único na história, sem precedentes, que soaria inverosímil para as gentes daquela aldeia.

Naquela época, Maria corria o risco de ser vista como adúltera, pois já estava prometida a José, e a punição para o adultério era o apedrejamento, como sabemos pelo episódio da mulher adúltera apresentada a Jesus para ser apedrejada. Decerto Jesus se lembrou da sua mãe naquele momento.

Maria sofreu silenciosamente com as calúnias durante toda a sua vida, algo sugerido em várias passagens do Evangelho. Para muitos da época, Jesus era visto como filho de pai desconhecido, o que era uma vergonha tanto para Ele quanto para Maria, especialmente numa sociedade patriarcal. Marcos refere-se a Jesus como "filho de Maria", enquanto Mateus diz que é filho de José. Lucas resolve não dizer nada.

Oração
Senhor Deus,
Tu que escolheste Maria, uma humilde serva,
para ser a Mãe do Teu Filho,
ensina-nos a ter a mesma confiança e fé
que ela demonstrou ao ouvir o Teu chamamento.

Dá-nos a coragem de responder "Sim" à Tua vontade,
mesmo quando não compreendemos os Teus desígnios,
assim como Maria aceitou, com humildade e entrega,
o plano divino que mudaria a história da humanidade.

Senhor, tal como o anjo Gabriel a saudou com a graça,
nós também pedimos a Tua bênção,
para que sejamos portadores
da Tua presença e do Teu amor no mundo,
e que, como Maria,
possamos levar a Tua luz e dar testemunho do Teu Filho Jesus.

Ajuda-nos, Senhor, a enfrentar as adversidades
e incompreensões que surgem no nosso caminho,
com a mesma paciência e silêncio de Maria,
que soube sofrer em paz e guardar tudo no seu coração,
confiando plenamente em Ti.

Que, como José, saibamos agir com justiça e misericórdia,
evitando o julgamento apressado
e acolhendo o próximo com amor e compreensão.

Ó Pai, ensina-nos a seguir o exemplo de Jesus,
que não procurou condenar,
mas sim trazer a reconciliação e a esperança de vida nova.
Que também nós sejamos instrumentos da Tua justiça reparadora,
desejando sempre a conversão
e a vida do pecador, e não a sua queda.

Senhor, faz-nos compreender que,
assim como Maria e o Teu Filho carregaram
o peso das calúnias e do sofrimento,
nós também devemos perseverar nas dificuldades,
confiando que Tu estás sempre connosco,
mesmo quando o mundo nos julga e nos condena.

Nós Te louvamos, ó Deus, por Teu amor incondicional
e pela promessa de salvação,
confiando em Ti, hoje e sempre.
Amém

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de janeiro de 2025

Contemplando os vinte mistérios do Santo Rosário

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"Rezem o Terço todos os dias para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra.
"
(13 de maio de 1917 - Aparição de Nossa Senhora em Fátima)

O que é o Rosário
Nossa Senhora não pediu apenas na primeira aparição que se rezasse o rosário todos os dias; insistiu nesse pedido em todas as suas aparições subsequentes até à última. O Rosário e Fátima são inseparáveis, mas o Rosário é também inseparável de outras aparições marianas.

O termo "Rosário" advém das 150 (agora 200) Ave-Marias entrelaçadas em grupos de 10 com a oração do Pai-Nosso e do Glória, além das meditações dos mistérios da vida de Jesus e da nossa redenção, formando assim uma "coroa de rosas" oferecida a Maria, Mãe do Senhor e nossa Mãe.

Os vinte mistérios da vida de Cristo estão divididos em quatro séries de cinco mistérios cada. Em cada Rosário, reza-se apenas uma dessas séries, que são: os Mistérios da Alegria, referentes ao nascimento e infância de Jesus; os Mistérios da Luz, que refletem Jesus como a luz do mundo durante o seu apostolado; os Mistérios da Dor, relacionados com a Paixão e morte de Cristo; e, por fim, os Mistérios da Glória, que contemplam a Ressurreição e Ascensão de Jesus ao Céu.

Inspirado no capítulo 12 do Livro do Apocalipse, que se refere a Maria coroada com uma coroa de 12 estrelas, concebi 12 mistérios marianos, refletindo como a vida de Maria está entrelaçada com a do Seu Filho, desde a sua conceção até à Assunção e coroação no Céu. Tal como os mistérios do Santíssimo Rosário, estes mistérios marianos também contemplam a vida de Jesus, porém sob a ótica de Sua Mãe.

A importância do Rosário na nossa vida espiritual
Rezar o Rosário é permitir que Maria nos guie na meditação dos mistérios da vida do Seu Filho. Esta prática ajuda a manter o coração e a mente focados nos ensinamentos do Evangelho, fortalecendo a nossa fé em Deus e a Sua presença no dia-a-dia.

O ritmo repetitivo e meditativo das orações proporciona um estado de calma e introspeção. Muitas pessoas encontram paz interior e conforto ao rezar o Terço, especialmente em momentos de dificuldade, ansiedade ou angústia.

No Santíssimo Rosário, a repetição das Ave-Marias, 50 vezes (10 vezes por mistério), tem a finalidade de evitar que a mente se distraia da contemplação do mistério. O objetivo não é focar-se em cada Ave-Maria e Pai-Nosso, mas sim usar estas orações como mantras, permitindo que a mente alcance um estado de contemplação do divino.

Como se reza o Rosário em Fátima
Ao fazer o sinal da cruz diz-se:
Deus vinde em nosso auxílio. /Senhor, socorrei-nos e salvai-nos.

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. / Como era no princípio, agora e sempre. Ámen.

  • Enunciação do Mistério da vida de Cristo a ser contemplado.
  • Proclamação do texto bíblico referente ao mistério
  • Pausa por um período de tempo adequado
  • Recitação de 1 Pai-Nosso e 10 Ave-Marias.

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. /Como era no princípio, agora e sempre. Ámen.

Ó Maria, concebida sem pecado, /rogai por nós que recorremos a vós.

Ó meu Jesus, perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno; (morte eterna)
Levai as almas todas para o Céu, principalmente as que mais precisarem da vossa misericórdia.
 
No final do quinto mistério rezam-se 3 Ave-Marias pelas intenções do Papa

Salve-Rainha
Salve, Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve! A vós bradamos os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei, e, depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre. Ó clemente, ó piedosa, ó doce e sempre Virgem Maria. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Amém.

Distribuição dos Mistérios de Cristo pelos dias da semana

  • Domingo e quarta-feira: Mistérios da Glória (ou gloriosos)
  • Segunda-feira e sábado: Mistérios da Alegria (ou gozosos)
  • Terça-feira e sexta-feira: Mistérios da Dor (ou dolorosos)
  • Quinta-feira: Mistérios da Luz (ou luminosos)
  • Sábado: Mistérios Marianos

Mistérios Gozosos
Meditamos o início da redenção da humanidade, desde a Anunciação a Maria e a encarnação do Filho de Deus até à adolescência de Jesus.

Mistérios Luminosos
Os Mistérios Luminosos, introduzidos pelo Papa João Paulo II em 2002, visam preencher a lacuna entre os Mistérios Gozosos e Dolorosos, mas acabam por deixar de fora uma parte essencial da vida de Jesus, onde Ele se revela como modelo da Humanidade, Caminho, Verdade e Vida. Ele é aquele com quem devemos comparar-nos para sermos autêntica e genuinamente humanos, e, simultaneamente, é a nossa salvação, a fonte da nossa saúde espiritual aqui e agora, para além de ser o caminho para o Pai.

A vida de Jesus pode ser resumida nos milagres realizados e nos ensinamentos proferidos, sendo o Reino de Deus o objetivo primordial da sua vinda. Assim, proponho, no terceiro mistério, substituir a “Proclamação do Reino de Deus” por “O Reino de Deus nas palavras e nos milagres de Jesus”.

Com efeito, Jesus não apenas anunciou a vinda do Reino, mas também demonstrou que este já está presente no meio de nós através dos seus ensinamentos e dos seus milagres. O Reino de Deus iniciou-se com a vinda de Jesus ao mundo; ele está entre nós, ainda que não em plenitude. Cabe a nós, Seus discípulos, a tarefa de continuar a sua missão de transformar este mundo no Reino de Deus.

Esta alteração no terceiro mistério luminoso oferece uma visão mais completa da vida pública de Jesus e está alinhada com o propósito original dos Mistérios Luminosos.

Mistérios Dolorosos
Meditamos no processo da Paixão e morte de Jesus, desde a agonia no Jardim das Oliveiras até ao Seu último suspiro na Cruz. Ao dizer que Jesus morreu pelos nossos pecados, entendemos que Ele pagou a dívida que não podíamos saldar, refletindo o pecado de toda a humanidade.

Mistérios Gloriosos
Meditamos no triunfo de Jesus sobre a morte com a Sua Ressurreição. A morte foi vencida, assim como o pecado que a causava. Agora, a morte é uma passagem para a vida eterna, e a vida de Jesus, que começou com o "sim" de Maria, culmina com a glorificação daquela que é exemplo de vida cristã para todos nós.

Mistérios Marianos
Meditamos no reflexo da vida de Jesus na vida de Maria, que começa antes da do Seu Filho e continua após a Ascensão.

NB – Nos seguintes artigos um para cada um dos 20 mistérios apresento material para ajudar na meditação de cada mistério. Este material a ser usado depois da anunciação de cada mistério e antes da recitação das 10 Ave-Marias consta do seguinte:

  • O texto bíblico referente a cada mistério
  • Uma meditação dos Padres da Igreja
  • Uma meditação minha
  • Uma Oração inspirada em todos os textos

Consoante o tempo disponível, a pessoa que preside à recitação pode escolher só o texto bíblico ou o texto dos Padres da Igreja, uma das duas meditações, a oração, ou tudo quando o tempo de que se dispõe é muito.

Pe. Jorge Amaro, IMC

15 de dezembro de 2024

Cosmovisão Integral

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A minha reflexão este ano sobre a cosmovisão, enquanto o esqueleto ou estrutura onde assentam as nossas ideais ou a Magna Carta que rege o nosso pensamento e a nossa vida, foi inspirada na leitura de um livro intitulado “The Powers that be”, do teólogo protestante Walter Wink. O livro não é acerca da cosmovisão, mas sim dos poderes que governam este mundo. Porém, em cinco páginas deste livro, Wink descreve as 5 cosmovisões que têm governado o imaginário dos seres humanos até agora.

São elas a cosmovisão antiga, a espiritualista, a materialista, a teológica e a integral. Entendi que havia mais cosmovisões que as citadas neste livro e também muitas mais para além das que menciono nos textos deste ano. Como se pode observar, três das cosmovisões que Wink menciona fazem parte do meu estudo: a materialista, a espiritualista e a integral, objeto deste texto.

Como dissemos, a cosmovisão materialista é a que governa o mundo da cultura, da política, das artes, da ciência, da alta finança e da universidade. Estes ambientes foram completamente esterilizados de qualquer sentimento, manifestação, pensamento ou símbolo religioso. A cultura ocidental, filha do cristianismo, meteu a mãe na prisão e fez uma “limpeza étnica” de muitos elementos associados ao cristianismo.

Outros elementos, rouba-os sem os citar, como por exemplo os livros de registo dos batismos que a primeira república roubou às Igrejas para começar o registo civil. A outros elementos muda-lhes os nomes; os historiadores em vez de dizer antes ou depois de Cristo dizem antes ou depois da era comum.  

Tão materialista se tornou a sociedade ocidental que é quase desumana, fria, egoísta, ninguém se importa com ninguém; o individualismo e o egoísmo cresceram desmesuradamente; os ateus e agnósticos dizem que têm valores, mas não os vemos em ação em lado nenhum. Neste clima de tanta desumanidade materialista, muitos se refugiam no espiritualismo e, seguindo a lei do pêndulo, aderem a um espiritualismo que nega e demoniza toda a matéria. Constituem pequenas comunidades que são autênticos oásis neste deserto materialista.

A cosmovisão integral é uma cosmovisão que busca reconciliar o homem com a sua natureza. Como já dissemos, entendemos que o homem moderno reprime o sentimento religioso como uma sociedade puritana reprime o sexo. A cosmovisão integral visa também superar os dualismos próprios da cosmovisão espiritualista, buscar a síntese destas teses e antíteses: espírito vs matéria, alma, vs corpo, criacionismo vs evolucionismo, sagrado vs profano, puro vs impuro, etc.

Esta nova mentalidade, esta nova cosmovisão, esta nova ótica e forma de ver as coisas está a surgir das cinzas do materialismo, como uma Fénix renascida. Não é um espiritualismo tosco, ignorante e reacionário que tem a ciência como inimiga, mas a vivência do sentimento religioso à luz da ciência, em diálogo constante com ela. Trata-se de uma fé que se deixa purificar pela ciência de todos os mitos, superstições e irracionalismo, é uma ciência que se deixa guiar e inspirar pela fé, que não tem vergonha dela. Poucos são os que já vivem nesta dimensão, a maioria da população ou é materialista ou espiritualista.

História do materialismo
Da religião à anti-religião, a história do materialismo é a história da evolução, da vivência do sentimento religioso. Tudo começou com uma matéria impregnada de espírito, a respirar espírito por todos os poros: foi a etapa do animismo. À medida que o ser humano ia conhecendo as realidades materiais do mundo à sua volta, ia-lhes roubando a alma.

Ao passar do animismo ao politeísmo, o ser humano roubou a alma a um sem-número de realidades materiais, conhecendo apenas um punhado delas às quais atribuiu o estatuto de deuses, ou seja, de líderes de uma realidade como o tempo, o mar, o amor, a guerra. Por questões de simplificação, concentrou essas realidades numa única divindade, mas não ficou por aí.

Quando, pelas descobertas científicas do século XIX e respetivas aplicações práticas no seculo XX, o ser humano pensou que acabara de descobrir tudo o que havia para descobrir, orgulhoso e cheio de si mesmo como a soberba rã que se encheu de ar para ver se conseguia ser um boi, retirou ao sentimento religioso a carta de cidadania, declarando que afinal não tinha sido Deus a criar o homem à sua imagem e semelhança mas sim o homem que criou Deus à sua imagem e semelhança. Mais tarde, não contente com a sua criação, matou Deus e colocou-se a si mesmo no seu lugar.

Pouco a pouco, o Homem moderno está a dar-se conta de que o sentimento religioso, não é invenção da ignorância nem um a explicação para as coisas que não têm explicação. Que o facto de que por mais que o ser humano conheça, sempre haverá coisas que desconhece, prova que afinal a matéria parece ter certas propriedades comuns com o Espírito.

Alguns intelectuais do nosso tempo, não se definindo como religiosos, chegam a dizer que se Deus não existisse teria de ser inventado. Sim, porque reconhecem que este mundo, tal como está estruturado, pressupõe que a maioria dos seres humanos são crentes. Porque se fosse ao contrário as coisas não se passariam como se passam. Por isso, como disse eu algures, sorte têm os ateus e agnósticos de que a maioria seja crente. De facto, o mundo tal como está estruturado pode sobreviver com uma minoria agnóstica, desde que a maioria, como é o caso, seja crente.

A cosmovisão integral vai supor um devolver o roubado ao seu dono; devolver o Espírito à matéria, pois nem a matéria é tão material como pensam os materialistas, nem o Espírito é tão imaterial e incorpóreo como pensam os espiritualistas. A cosmovisão integral vai supor de alguma maneira o regresso ao animismo, mas não o mesmo animismo desinformado dos homens primitivos ou o nosso de quando somos crianças; será um animismo que colocará o espírito no centro de cada coisa. Hoje sabemos pela ciência que afinal a matéria visível é composta por partículas subatómicas invisíveis e intangíveis.

A física é a alma da ciência
Quando falámos de cosmovisão e ciência dissemos que as descobertas científicas fazem mudar a perspetiva que temos em relação a tudo o que nos rodeia, a forma como nos relacionamos com o meio, a nossa visão da vida; não é o mesmo pensar que a Terra é o centro do Universo que pensar que afinal não é a Terra, mas sim o Sol e, por fim, nem o Sol é o centro do Universo que provavelmente não tem centro. Não é a mesma coisa pensar que a matéria e a energia são duas realidades de natureza diferente que pensar que a matéria é uma forma de energia e a energia é uma forma de matéria, tal como a água existe em três estados físicos diferentes, e nenhum deles é semelhante ao outro, de tal forma que até parecem realidades completamente diferentes.

Todas as descobertas científicas podem provocar uma metanoia, uma conversão, um mudar de ideias, uma cosmovisão ou uma forma nova de ver as coisas. A nossa mente, a nossa fé e a nossa vida têm de se ir adaptando à evolução do conhecimento da realidade que nos envolve e com a qual nos relacionamos. A ciência que pode mexer mais com a nossa cosmovisão é a Física, pois é a que estuda as coisas mais básicas e fundamentais para a nossa vida, como a matéria e o cosmos.

É neste sentido que podemos afirmar que a cosmovisão materialista está fora de moda porque não acompanhou as últimas descobertas científicas no campo da física, sobretudo da física quântica. A cosmovisão materialista está certa e faz sentido no contexto da física mecanicista como é a de Newton, onde a realidade funciona com a precisão, cadência, ritmo e previsão de um relógio suíço.

Esta cosmovisão era já em si enganosa pois apresentava um relógio sem relojoeiro. Mas mais que isso, desde Einstein sabemos que a realidade nada tem a ver com a precisão de um relógio, mas se fosse um relógio não seria tão preciso como o suíço, pois seria relativo, ou seja, não marcaria sempre as mesmas horas.

A nova física quântica e a mecânica quântica
A mecânica quântica troca-nos as voltas, modifica-nos os paradigmas, atenta contra a lógica que tem governado a ciência e a nossa vida, pois pulveriza fronteiras que antes nos pareciam intransponíveis e acaba com os dualismos que opunham realidades que antes pensávamos bem diferentes e até contrárias, como a matéria/energia, estático/móvel, visível/invisível, tangível/intangível, previsível/imprevisível, material/espiritual, científico/filosófico.

Matéria/energia – O coração da matéria é intangível como a energia; o coração da matéria, o mundo dos átomos e partículas subatómicas é, de facto, energia.

Os átomos podem ser matéria, na medida em que tentamos pesá-los e medi-los; mas as partículas que os compõem têm cargas elétricas e movimentam-se, ou seja, exibem as propriedades da energia. Podemos concluir que são matéria na sua essência, descritíveis, qualificáveis e quantificáveis, mas que são energia na sua existência, porque exibem uma potência voltaica, reagem, criam ondas.

A matéria é energia em potência, a energia é matéria em potência. A combustão transforma matéria em energia: é o que acontece no centro do sol, onde átomos de hidrogénio se fundem, criando hélio e energia.

A matéria visível e sólida é composta por elementos invisíveis e, quanto mais viajamos ao centro da matéria, menos matéria (massa) e mais espaço vazio encontramos, pelo que a matéria parece reduzir-se a pequenas fibras vibratórias de energia. As partículas subatómicas são de facto manifestações de energia. Por isso, o que parecia tão visível e sólido, reduz-se agora a ondas eletromagnéticas. Assim sendo, podemos concluir que o nosso corpo e tudo o que materialmente existe se reduz a energia vibratória.

A matéria em si não existe, pois é somente o armazém de energia, não é mais que energia condensada, acumulada. Por exemplo, as plantas, por intermédio da fotossíntese, convertem a energia radiante do sol em energia química que é armazenada em moléculas orgânicas, como se uma planta fosse uma bateria, um armazém de energia.

Matéria/espírito – O materialismo não tem razão de ser, pois a matéria é formada por elementos invisíveis, quase espirituais e certamente não podemos compreender a matéria sem conhecer a sua alma. O átomo é a alma da matéria, por isso, não só os seres humanos têm alma, a matéria também a tem. A alma da matéria é tão invisível como a nossa no interior do nosso corpo.

Inerte/vivo – Já não é claro que só haja vida na matéria orgânica; já não existe uma tão grande diferença entre matéria orgânica e inorgânica ou inerte. As partículas subatómicas revelam-nos que a vida não existe só a nível das células, mas também a nível subatómico dos quarks. Claro que se trata de uma forma diferente de vida.

Visível/invisível – “Se a mecânica quântica não te chocou profundamente, é porque ainda não a entendeste. Tudo o que chamamos real é formado por coisas que verdadeiramente não podem entender-se como reais”. Niels Bohr

Rompe-se, também na matéria, a fronteira entre o visível e o invisível. A massa de um átomo é menos de 1% do seu tamanho, o resto é vazio, ou seja, o espaço entre o núcleo e o eletrão. Como acima foi dito, se o núcleo de um átomo fosse do tamanho de uma bola de basquetebol, os eletrões estariam a vários quilómetros de distância do núcleo.

Estático/móvel – A matéria que forma os objetos parece estática, parece parada, mas de facto, é uma ilusão: na realidade, tudo se move. Como se afirmou anteriormente, o eletrão orbita à volta do núcleo do átomo a uma velocidade de 2 200 quilómetros por segundo. A matéria não é, portanto, estática como parece, mas sim dinâmica.

Em mecânica quântica tudo é ilusão: a matéria visível é composta por elementos invisíveis, é aparentemente estática, quando na realidade está em movimento, é aparentemente muito diferente da energia, mas é de facto uma forma de energia.

Puro/Impuro – Nada há de material que faça o homem impuro (Marcos 7, 5). Não declares impuro nada do que Deus criou (Atos 10, 15).

Houve um tempo em que o ato sexual era visto com algo sujo, feio, pecaminoso e impuro; só era visto como um mal menor quando era realizado no contexto do matrimónio com a única finalidade de procriar. Mas, mesmo nesse caso, os casais cristãos eram aconselhados a não desfrutar do prazer do sexo e a abster-se por completo de relações sexuais durante a Quaresma. De resto, era visto como um “remedium concupiscência”, paliativo para a voluptuosidade, não como um ato de amor.

O amor é a alma do ato sexual, este é uma das expressões do amor na sua função de unir as pessoas num só corpo e numa só alma. E, sendo o ato pelo qual os dois serão uma só carne (Marcos 10, 1-12), resultando depois em três, não pode de maneira nenhuma ser um ato impuro a génese de um ser humano fruto do amor unitivo entre dois.

Sagrado/profano – Quando S. Paulo nos diz em 1 Coríntios que somos templo do Espírito Santo, e quando Jesus nos diz que em vez de rezarmos para seremos vistos pelos outros devemos fazê-lo no nosso quarto (Mateus 6, 5), devemos rezar dentro de nós em espírito e verdade, não no monte Gerasim ou no templo de Jerusalém (João 4, 23-54), onde está o profano? Não foi tudo criado por Deus? Se tudo e todos foram criados por Deus, não há nada de profano, tudo é sagrado.

Bem/mal – O amor como necessidade humana (amar e ser amado) não parece, à primeira vista, estar ligado com a moral, mas realmente está. Quando julgamos não amamos, quando amamos não julgamos; o amor universal, sobretudo o amor aos inimigos, supera o pensamento dualista do bem contraposto ao mal, o que nos leva para a eternidade que é Deus que faz chover sobre justos e injustos e ama a todos incondicionalmente. Somos chamados a ser como Ele.

Diz-se também que o amor é cego; que os amantes tendem a não ver os defeitos e deficiências um do outro e que se abstêm naturalmente de se julgar um ao outro. E também parece que quando o amor desaparece só se vêm defeitos e deficiências. Isto leva-nos a concluir que só o amor nos pode livrar de ser hipercríticos uns com os outros, levando-nos de volta ao Jardim do Éden.

Deus/Diabo - Só existe Deus, o diabo não existe, o seu mito foi criado para ilibar a Deus da criação do mal. O mal, ou os males individuais foram criados pelo homem quando usou mal a sua liberdade. A possibilidade de que isto acontecesse, ou seja, a possibilidade de que os homens pudessem pecar, escolher o mal, foi criada por Deus ao fazer o homem livre. Não existe uma alternativa igualmente viável ao bem, a Deus; quem não recolhe comigo, diz Jesus, dispersa, pois não há um diabo com quem possa recolher….

A mecânica quântica prova o poder da fé
Então, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe em particular: «Porque é que nós não fomos capazes de expulsar o demónio?» Disse-lhes Ele: «Pela vossa pouca fé. Em verdade vos digo: Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: “Muda-te daqui para acolá” e ele há de mudar-se; e nada vos será impossível. Mateus 17, 19-20

Na mecânica determinista clássica, sabendo a posição inicial e o momento (massa e velocidade) de todas as partículas pertencentes a um sistema, podemos calcular as suas interações e prever como elas vão comportar-se.

Tal não acontece em mecânica quântica; o princípio de Heisenberg coloca em evidência que é impossível saber ao mesmo tempo a posição exata que um eletrão ocupa na eletrosfera de um átomo e a velocidade com que anda à volta do núcleo; quanto mais soubermos da sua velocidade, menos saberemos da sua posição e vice-versa.

Segundo Niels Bohr quando se mede uma partícula subatómica, o ato de medição, força a partícula a renunciar a todos os lugares possíveis onde poderia estar e (princípio da incerteza) seleciona a localização onde podes encontrá-la; é o ato de medição que força a partícula a fazer aquela escolha.

Ao contrário de Einstein, Bohr aceitou que a natureza da realidade era inerentemente confusa; Einstein preferia acreditar na certeza das coisas em si e em todo o tempo e não só quando são medidas ou observadas. Bohr chegou a dizer que “gostaria que a lua permanecesse no seu lugar mesmo quando não estou a olhar para ela”. Quando Einstein, já bastante aborrecido, disse que “Deus não jogava aos dados”, Bohr impassivelmente respondeu, “Para de dizer a Deus o que tem de fazer.”

“Considero a consciência como fundamental. Entendo a matéria como sendo um produto derivado da consciência. Não podemos estar por detrás da consciência. Tudo o que falamos, tudo o que consideramos como existente, requer a consciência.” Max Planck (1858-1947) Prémio Nobel, fundador da teoria quântica.

Cosmovisão integral
"Ninguém prega retalho de pano novo em roupa velha; do contrário, o remendo arranca novo pedaço da veste usada e torna-se pior o rasgão." Ninguém põe vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho os arrebentará e se perderá juntamente com os odres; mas para vinho novo, odres novos. Marcos, 2, 21-22

Quem ainda tem a sua mente formatada nos princípios determinísticos e na precisão da física mecanicista, não pode entender a física e a mecânica quânticas. O seu odre materialista não pode entender uma matéria impregnada de espírito, bizarra, ilógica, criteriosa, mística; o dinamarquês Niels Bohr, um dos criadores da nova ciência, chegou a afirmar certa vez que só não se escandalizou com a Física Quântica quem não a entendeu.

A visão integral da realidade vê tudo como tendo um aspeto exterior e interior. O céu e a terra são vistos assim como os aspetos interno e externo de uma única realidade. O espírito está no centro de cada coisa criada. Esta realidade espiritual interior está indissociavelmente relacionada com uma forma exterior ou manifestação física.

O céu ou o espírito não é para cima e a matéria para baixo, mas dentro. É de certa forma a imanência de Deus que está no centro de tudo. Tudo está em Deus e Deus está em tudo. Isto não é panteísmo que tudo é Deus, mas panenteísmo: tudo está em Deus e Deus está em tudo. Esta visão de mundo é partilhada por religiões nativas americanas, que falam do pai céu e da mãe terra.

A alma ou espírito, tal como o descreve S. João, é também governada pelo mesmo princípio de incerteza que governa o interior da matéria nas partículas subatómicas de que é formada: "O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito". João, 3, 8.

A cosmovisão integral reconcilia a ciência com a religião, a matéria com o espírito, o mundo interior com o mundo exterior. O mundo encantado das partículas subatómicas provou ao cientista que afinal não pode apreender tudo com a sua razão e ser o senhor da realidade que pensava que era no tempo da física mecanicista de Newton. A nova física diz ao homem de hoje “cresce e aparece”! Grow up!

Conclusão: os materialistas agnósticos, desfasados da realidade da física quântica de hoje, continuam formatados segundo a física mecanicista de Newton; ao roubar o espírito à matéria, comem um pão que alimenta, mas não sabe a nada. Os espiritualistas, negando a corporeidade da matéria, vivem como almas penadas num mundo que, sendo em si um vale de prazeres e alegrias, se tornou num vale de lágrimas. Ao roubarem a matéria ao espírito, comem um pão que pode até saber bem, mas não alimenta. A cosmovisão integral é como um pão integral, que alimenta e sabe bem; dá saúde ao corpo e alegria à alma.

Pe. Jorge Amaro, IMC


1 de dezembro de 2024

Cosmovisão Espiritualista

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Quando falamos da cosmovisão cristã referimo-nos mais ao contributo do cristianismo para a humanidade e de como esta lhe fica devedora em muitos aspetos na qualidade de religião global. Como tínhamos falado da cosmovisão bíblica, referindo-nos ao povo hebreu e, portanto, ao Antigo Testamento, ao falarmos da cosmovisão cristã, centramo-nos mais no conteúdo da narrativa cristã ou, se quisermos, no judaico-cristianismo. A cosmovisão espiritualista é uma cosmovisão cristã, porém com uma forte influência grega.

Durante o tempo de Cristo nada foi escrito em nenhuma língua; os escritos do Novo Testamento relatam em grego o que aconteceu em hebreu e aramaico. Ou seja, os autores do Novo Testamento ao mesmo tempo que escreviam, traduziam. “Traductor, traditor” diz o sábio provérbio latino que significa o tradutor ´um traidor. O facto histórico que foi Jesus de Nazaré ocorreu num contexto pura e exclusivamente hebreu; no entanto, os que o relataram para o mundo, sabendo que o faziam para comunidades cristãs da diáspora e sabendo que a nova fé tinha pouco futuro em Israel, fizeram-no numa língua estrangeira: em grego.

Da Península Itálica para ocidente, os romanos impuseram a sua língua porque as populações por eles conquistadas eram primitivas e não conheciam a escrita; mas para oriente da Península Itálica prevaleceu o grego, pois era a língua de alma da rica cultura helénica, em muitos pontos superior à romana. Por isso e porque todos os autores do Novo Testamento a começar por S. Paulo sabiam o grego, foi nessa língua que verteram o verbo de Deus feito Homem.

Cosmovisão cristã antibíblica
Porquanto fixou o dia em que há de julgar o mundo com justiça, pelo ministério de um homem que para isso destinou. Para todos deu como garantia disso o fato de tê-lo ressuscitado dentre os mortos”. Quando o ouviram falar de ressurreição dos mortos, uns zombavam e outros diziam: “A respeito disso te ouviremos outra vez”. Assim saiu Paulo do meio deles. Atos dos Apóstolos, 17, 31 - 33

O discurso de Paulo no areópago é o embate de duas culturas diferentes, com base em duas antropologias ou maneiras diferentes de conceber o ser humano: a dualista grega do corpo mortal e alma imortal e a holística bíblica de que tanto o corpo como a alma podem ser mortais e imortais, dependendo de aderirem ou não ao Deus da vida.

A cosmovisão espiritualista não é de revelação bíblica, mas sim uma adaptação ou inculturação do cristianismo à cultura helénica, dominante naquele tempo e lugar. Esta cosmovisão não revelada foi-se impondo à Igreja e governou-a durante toda a Idade Média. Governa ainda muitas consciências no dia de hoje. Como muitas vezes acontece na vida, vais  aos outros com a intenção de os converter e acabam por ser eles que te convertem a ti. Isto foi o que aconteceu quando a nova fé começou a caminhar nos caminhos da Grécia antiga.

Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia.  Génesis, 1, 31

Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a criação é uma obra de amor. Deus gostou do que fez, nunca desistiu da sua obra, sobretudo da criação do ser humano que, ao contrário das outras criaturas, criou à Sua imagem e semelhança.

No século II surgiu uma nova visão de mundo que desafiou esta crença judaico-cristã de que a criação era basicamente boa. Nesta nova visão do mundo, a criação não é boa, mas sim má. Representa a queda quando o espírito ou a alma que vivia com Deus foi exilada no corpo, na matéria. A alma ou o espírito é intrinsecamente bom, a matéria é intrinsecamente má. O mundo é uma prisão e, como tal, um “vale de lágrimas”.

Se o ser humano é composto por dois elementos contrários um ao outro, vive uma vida esquizofrénica como se tivesse duas personalidades. Se assim é, como podemos ver com bons olhos a encarnação do verbo de Deus, Jesus Cristo?

Tendo ficado presos em corpos, os espíritos ficaram sujeitos aos poderes deformados e ignorantes que governam o mundo da matéria. Consequentemente, o sexo e a vida terrena em geral eram considerados maus. A tarefa da religião era resgatar o espírito da carne, recuperar o céu espiritual do qual a alma tinha caído.

Gnosticismo, maniqueísmo, neoplatonismo e as atitudes sexuais associadas ao puritanismo, continuam a ser fatores poderosos hoje em dia no espiritualismo, além dos distúrbios sexuais, distúrbios alimentares, autoimagens negativas e a rejeição do próprio corpo que levava à autoflagelação muito praticada por santos e não santos, por frades, monges e freiras, assim como por leigos.

Esta visão espiritualista e negativista reflete-se na espiritualidade de muitos até aos dias de hoje, colocando muito ênfase em ganhar e não perder o Céu. Como ensinava o catecismo, três são os inimigos da alma, o mundo, o demónio e a carne, referindo-se é claro ao corpo, sobretudo ao corpo sexualizado.

Espiritualismo na Bíblia

Esta cosmovisão negativa do corpo e do mundo, da matéria em geral, infetou os últimos escritos do Novo Testamento, pois já foram redigidos no final do século I, início do II. É certo que não encontramos isto nos primeiros escritos onde o helenismo ainda não era dominante na Igreja.

Visão negativa do mundo em S. João
Sabemos que somos de Deus e que o mundo todo está sob o poder do Maligno. João, 5, 19

A palavra “mundo” aparece 185 vezes no Novo Testamento, 78 no evangelho de João, 8 em Mateus, 3 em Marcos e Lucas. Nas três cartas de S. João aparece 24 vezes. Comparativamente com os outros evangelhos e comparativamente com os outros escritos do Novo Testamento, João usa e abusa da palavra “Cosmos” ou mundo, porquê?

Para os gregos o mundo não é criação divina. Nisto, João difere deles, pois no prólogo fica claro que o mundo é de Deus. Porém, a descrição que João dá do mundo caído tem muitas conotações com a conceção helenista do mundo, completamente oposto a Deus. O dualismo em João mais que filosófico é ético, ou seja, a tal luta entre o bem de Deus e o mal deste mundo.

Quase sempre aparece em sentido negativo, como sendo o habitat do pecado. Os cristãos estão no mundo, mas não são do mundo – isto faz-nos recordar a caverna de Platão e de como neste mundo vivemos como exilados. O mundo era bom na sua essência pois foi criado por Deus, mas, uma vez caído, é existencialmente mau. Como repete, muitas vezes S. João este mundo, ou o príncipe deste mundo, é uma síntese de todas as forças inimigas de Deus.

Concluímos que o uso exagerado do termo “mundo”, assim como a negatividade a ele associada, em comparação com outros autores bíblicos, denota uma aproximação de S. João à conceção helénica do mundo como algo caído. Depois, por um lado, diz que Deus quer salvar o mundo, o que representa um pensamento cristão, pois para os gregos o mundo não tem salvação porque não foi criado nem querido por Deus. Por outro lado, diz que os discípulos, apesar de estarem neste mundo, não são deste mundo, pensamento muito querido aos gregos.

Visão negativa do corpo em S. Paulo
Digo, pois: deixai-vos conduzir pelo Espírito, e não satisfareis os apetites da carne. Porque os desejos da carne se opõem aos do Espírito, (…) Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus!

Ao contrário, o fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança. Contra estas coisas não há Lei. Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências. Se vivemos pelo Espírito, andemos também de acordo com o Espírito.
Gálatas, 5, 16-25   

Este texto clássico de S. Paulo, escrito pelo próprio punho, deixa antever uma crença fundamentalmente grega e não bíblica de que a alma ou Espírito é essencial e intrinsecamente bom e, parafraseando o evangelho, se conhece pelos seus frutos acima graficamente descritos. O corpo, ou a carne como lhe chama Paulo, ao contrário da alma, é existencial e intrinsecamente mau. Ou seja, nem o corpo pode fazer obras boas nem a alma pode fazer obras más.

No entender bíblico e segundo a antropologia bíblica, tanto o corpo como a alma podem ser maus, tanto um como o outro podem ser bons; não há corpo sem alma nem alma sem corpo, muitas das obras acima escritas não têm origem no corpo, mas sim num espírito pervertido, como a inveja por exemplo, pouco ou nada têm a ver com o corpo.

(…) tudo o que entra pela boca passa para o ventre e é expelido para uma fossa? Mas o que provém da boca sai do coração e é isso que torna o homem impuro. Pois é do coração que saem os maus pensamentos, homicídios, adultérios, promiscuidades, roubos, difamações, blasfémias. São estas coisas que tornam o homem impuro; comer sem lavar as mãos não torna o homem impuro» Mateus 15,17-20

O texto de São Paulo sobre as obras da carne está diametralmente oposto ao pensamento de Jesus no evangelho. O mal não vem de fora do mundo, e quando entra no corpo infeta e corrompe a alma; ao contrário, o mal reside na alma, vem de dentro, não vem de fora. O mal não tem origem na matéria ou na carne como diz São Paulo, que influencia e corrompe o espírito, mas sim ao contrário, o mal vem do espírito que corrompe a matéria ou a carne.

Quando vemos uma maçã com um buraquinho, o buraquinho não foi feito pela larva para entrara na maçã, mas sim foi feito pela larva para sair da maçã. Somos maças com bicho. Assim como a maçã foi concebida com o bicho, ou seja quando ainda era uma flor um inseto depositou um ovo nela que depois nasceu em larva, assim também nós fomos concebidos com o pecado original, pelo que o mal reside em nós no nosso espirito não na matéria ou corpo intrinsecamente maus segundo a filosofia e antropologia gregas.

Antropologia hebraica
Que o Deus da paz vos santifique totalmente, e todo o vosso ser - espírito, alma e corpo - se conserve irrepreensível para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. 1 Tessalonicenses 5, 23

A antropologia hebraica, subjacente à antropologia bíblica, é fundamentalmente unitária. Isto significa que pretende contemplar toda a realidade pessoal de uma determinada perspetiva. E assim a pessoa humana é, toda ela “basal”, isto é, carne. Em segundo lugar, a pessoa humana é “nefes” isto é, possui uma personalidade que podemos abordar do ponto de vista psicológico (psique).

E, finalmente, a pessoa humana é também toda ela, “ruah”, isto é, espírito, na medida em que nos entendemos como um ser aberto ao transcendente. Desta antropologia do Antigo Testamento que é, em última análise, unitária pois contempla toda a realidade humana de uma determinada perspetiva, encontramos um testemunho claro em 1 Tes. 5.23.

Dualismo grego
Os gregos são dualistas dos quatro costados; para eles há dois reinos, o deste mundo, existencial, visível, transitório, sensual, sensível e enganoso, e o Reino do essencial, eterno, Deus, imutável. O ser humano tem um pé neste mundo e outro pé no outro mundo. A sua alma pertence ao reino do essencial, imutável e eterno, a Deus, o seu corpo pertence ao reino deste mundo, da existência.

O corpo não é mau em si mesmo, mas é um empecilho para a alma, um fardo pesado. O corpo é a prisão da alma. A salvação, para Platão, está na razão que, iluminada, pode chegar a dominar as paixões do corpo, governando ela a vida. Com a morte, a alma liberta-se de uma vez por todas da prisão do corpo para gozar finalmente da imortalidade que lhe está reservada, precisamente por ser de natureza imortal.

O filósofo francês Descartes (1596–1650) , um exponente deste tipo de dualismo, chega a afirmar, sobre a relação entre a alma e o corpo, que é semelhante à do cavalo e do cavaleiro; a alma é o cavaleiro, o corpo é o cavalo que deve ser esporado e guiado pelo cavaleiro. São de natureza diferente e a ligação entre um e o outro é muito exígua.

Problemas teológicos que levanta o dualismo grego
“Isto é tudo muito confuso, explique-me lá senhor padre”, inquiria um paroquiano irlandês, “quando morremos o nosso corpo vai para a terra, a nossa alma vai para o Céu e nós, para onde vamos nós?”

De acordo com a antropologia judaica, o ser humano salva-se todo ou condena-se todo. Ressuscitamos com um corpo espiritual que é a imagem do nosso corpo físico e composto por tudo o que o corpo físico fez de bem. Não se faz o bem sem o corpo, sem a cabeça que pensa e projeta, o coração que sente e as mãos que fazem; por isso, o corpo espiritual é a glorificação da nossa cabeça pensante, do nosso coração amoroso e das nossas mãos executantes.

Se a alma é imortal, se não é biodegradável, então o inferno é a tortura eterna; se a alma é mortal, como afirma a antropologia bíblica, o inferno é morte eterna, pois à vida eterna não se contrapõe tortura eterna, mas sim morte eterna. Alguns teólogos católicos chegam a dizer que o inferno é o nada, mas não uma nada niilista pós-moderno, algo assim como um analgésico que nos pouparia ao sofrimento de não ter vivido a vida que Deus nos tinha reservado; será um nada, mas um nada que dói como o fogo. Acho esta posição pouco diferente da clássica católica: o nada não pode doer e, se dói, não é nada, mas sim um eterno sofrimento.  

Na antropologia judaica, o homem não tem um corpo mortal e uma alma imortal; o homem é todo ele mortal se está fora da Graça de Deus e imortal se está com Deus. Jesus diz-nos para não temermos os que só podem matar o corpo e nada podem fazer à alma. O que devemos temer é aquele que pode matar tanto o corpo como a alma. (Mateus 10,28)

O Inferno, entendido como morte eterna, preserva tanto a bondade de Deus como a liberdade do homem. Mas o que é a morte eterna? É regressar ao nada de onde tudo foi criado. Regressa livremente ao nada quem responde “Nada” às 3 perguntas que todo o ser humano se coloca quando atinge a idade de autoconsciência: de onde vimos? Para onde vamos? Que sentido tem a vida?

Como acima ficou enunciado, a cosmovisão espiritualista manifesta-se em sub cosmovisões, como o gnosticismo, o maniqueísmo, o puritanismo e o que eu chamo dualismo esquizofrénico desintegrado. Vejamos o que é cada uma destas pequenas cosmovisões.

Gnosticismo e docetismo
É uma ideologia anterior ao cristianismo que se infiltrou no cristianismo quando este surgiu. Fundamentalmente, o gnosticismo repete a ideia grega de que o que em nós é humano é a nossa alma que é eterna e de origem divina, enquanto que o corpo físico, prisão da alma, e o seu habitat, tudo o que o rodeia, o cosmos, ou seja, o mundo, foram criados não por Deus, mas por um demiurgo, um espírito imperfeito.

A libertação final e definitiva só advém com a morte, mas enquanto esta não ocorre, podemos obter uma liberdade relativa pela aquisição de “gnosis”, de conhecimento, para poder dominar o corpo e os seus baixos instintos e desejos. Como o cristianismo é a libertação do pecado e o gnosticismo a libertação da ignorância, alguns gnósticos assimilaram o cristianismo, assim como alguns cristãos se deixaram levar pelo gnosticismo. Porém, há uma radical diferença entre os dois. O cristianismo é público, não só para uma elite oculta de iniciados, mas sim para todos, enquanto que o gnosticismo é privado e elitista, para uns quantos iluminados.

O docetismo, é um filho legítimo do gnosticismo, vem da palavra grega “dokesis”, que significa aparência. Nos séculos I e II d.C., os docetistas afirmaram que Jesus Cristo só parecia ser humano. Consideraram o mundo material, incluindo o corpo humano, tão mau e corrupto que Deus, que é todo bom, não poderia ter assumido um verdadeiro corpo humano e natureza humana. A natureza humana de Jesus é, portanto, fingida.

O antagonismo gnóstico entre os mundos espiritual e material levou os docetistas a negar que Jesus era um homem verdadeiro. Os docetistas não tinham problemas com a divindade de Jesus, só não acreditavam na sua verdadeira humanidade. Se a humanidade de Jesus é uma ilusão, a sua paixão e morte na cruz com o sofrimento que isso envolveu foram também uma ilusão, não aconteceram realmente.

O cristianismo de Alexandria, que abandonou a Igreja com o concílio de Calcedónia em 451 d.C. mais tarde chamado Copto, assim como o da Etiópia, são docetistas monofisitas, só acreditam na natureza divina de Cristo. Não é coincidência que o docetismo tenha surgido no Egito, precisamente onde anos antes do cristianismo tinha surgido o gnosticismo. Quando estive na Etiópia, lembro-me de ver um canto copto no qual se dizia que Jesus na cruz não sofria estava contente e feliz.

Maniqueísmo
Foi uma religião muito antiga do Crescente Fértil, que desapareceu com o surgir das grandes religiões como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. O que sabemos do maniqueísmo é-nos apresentado por alguns que foram maniqueus antes de serem cristãos, como Sto. Agostinho (430 d. C.). Mani (277 d. C.), o fundador, pertencia a um grupo judaico-cristão antes de fundar a sua própria religião. Sentiu-se como herdeiro dos grandes profetas Buda, Jesus, Zaratustra e Maomé e procurou fazer uma síntese dos seus ensinamentos. Autoproclamou-se apóstolo de Jesus, pois de entre todas as religiões, encontrava-se mais próximo do cristianismo.

O maniqueísmo é uma forma de gnosticismo cristão, tão dualista que a própria palavra maniqueísmo, historicamente, se tornou sinónimo de absoluto dualismo. No mundo há duas forças que se contrapõem e guerreiam: a luz/bem e as trevas/mal. A alma, é claro, pertence à luz e o corpo às trevas, por isso, o objetivo da vida do ser humano é que a luz prevaleça sobre as trevas. Mani aconselhava aos seus fiéis uma vida ascética, não matar nenhum ser vivo, não comer carne, não beber álcool e viver uma vida celibatária.

Puritanismo
Historicamente, o puritanismo foi um movimento dos séculos XVI e XVII que procurava "purificar" a Igreja de Inglaterra dos resquícios do catolicismo.

O êxito não foi total em Inglaterra, mas no novo mundo da América o movimento floresceu e transformou-se numa forma de vida, muito patente até na forma de vestir.

Hoje o uso moderno da palavra puritano nada tem a ver com as suas raízes históricas, tem mais a ver com uma visão negativa do sexo e do prazer a ele associado. O sexo restringia-se ao matrimónio, que neste sentido era visto como um remédio para a concupiscência, e como meio para a procriação. Melhor casar-se que abrasar-se, como dizia S. Paulo (1 Coríntios 7,8-9).

O excessivo valor da virgindade, sobretudo da virgindade física feminina, ou seja, do hímen intacto, levou à declaração de que Maria foi virgem antes, durante e depois do parto. Posso entender que foi virgem antes do parto e depois do parto e aceito e acredito que o foi, mas não vejo por que tenha que ser virgem durante o parto, algo antinatural e desnecessário que só posso entender no âmbito de uma visão negativa do sexo e de uma extrapolada valorização da virgindade física, em detrimento da maternidade.

A virgindade não tem nenhum valor em si mesma, mas está orientada para a maternidade, seja ela uma maternidade física de uma mulher que é mãe de um bebé e o nutre e alimenta para fazer dele um autêntico ser humano, ou de uma mulher que coloca o casamento de lado para ser mãe de mais filhos num sentido espiritual e educacional, como madre Teresa de Calcutá. A virgindade assim entendida nada tem a ver com o rompimento ou não do hímen, porque é um valor tanto para homens como para mulheres.

Dualismo esquizofrénico desintegrado
É uma sub cosmovisão à qual pertencem muitos intelectuais e homens da ciência, das artes, da política, das altas finanças que, ao mesmo tempo, são profundamente cristãos, ou seja, não seguem a cosmovisão materialista que é dominante nestes círculos.  

Estes bons profissionais no seu ramo – cientistas, médicos, professores universitários, políticos e jornalistas – ao não conseguirem conciliar a sua fé com a ciência, fizeram dentro de si mesmos um acordo de cavalheiros, ou seja, colocaram as duas dimensões em quartos separados da mesma casa que é a sua mente. Estes são quartos fechados que não comunicam entre si, ou seja, vivem na mente um dualismo e uma esquizofrenia mental e existencial em simultâneo.

São, ao mesmo tempo, homens de ciência e homens de fé; porém, como não encontraram a fórmula para conciliar as duas e como, de alguma forma, pensam que são irreconciliáveis, então vivem as duas dimensões em separado, como se fosse um estado moderno onde a religião não se mete na política e a política não se mete na religião. A tal separação Igreja – Estado, a César o que é de César, a Deus o que é de Deus.

A título de exemplo, tais cientistas e profissionais durante a semana são evolucionistas, ou seja, acreditam na teoria da evolução das espécies, e ao Domingo, dia do Senhor, são criacionistas, ou seja, acreditam no livro do Genesis como se fosse história; como nunca colocam em diálogo as duas posições, não há problema.

O que acontece no interior destes cientistas e bons profissionais no seu ramo é o que acontece na sociedade em geral: a ciência vive de costas voltadas para a religião e considera-a coisa de ignorantes, ao passo que a religião defensiva se refugia nas suas igrejas e demoniza a ciência.

Conclusão: a cosmovisão materialista ignora a dimensão espiritual da vida humana, da mesma forma que a espiritualista demoniza a dimensão corpórea. A verdade requer que as duas dimensões se integrem e harmonizem: nem espírito sem matéria, nem matéria sem espírito.

Pe. Jorge Amaro, IMC

15 de novembro de 2024

Cosmovisão Materialista

Sem comentários:


A visão materialista da realidade contrapõe-se à visão espiritualista que reinou em toda a Idade Média, parte da antiga e que ainda existe. Ambas têm raízes históricas, mas não estão ligadas a uma só época da História, como a cosmovisão medieval e renascentista, nem a uma cultura particular, ocidental ou chinesa. Tanto a cosmovisão espiritualista como a materialista são passadas e contemporâneas, transversais a muitas culturas.

São mais próprias de um tempo que de outro, assim como mais agarradas a uma cultura particular que a outra. São cosmovisões no sentido mais amplo do termo, pois são mais abrangentes tanto no tempo histórico como no espaço cultural. Historicamente, a Idade Média é toda ela espiritualista, enquanto que a partir do renascentismo, em toda a Idade Moderna e Contemporânea, é mais materialista.

Assumindo um caráter teórico, em forma de filosofia, como o ateísmo ou o agnosticismo, ou prático, como o consumismo capitalista, a auto gratificação e a ausência de valores, o materialismo é hoje a filosofia de vida ou a cosmovisão que governa a maior parte das pessoas. Governa claramente o mundo da política, da economia, porque o dinheiro sempre foi em si mesmo uma religião, além do mundo da ciência, das universidades, dos meios de comunicação e da cultura em geral.

Perguntei certa vez a alguém se era religioso; respondeu-me com um tom de voz de quem ficou ofendido, “como posso ser religioso? Eu sou cientista”. Ser materialista, agnóstico ou ateu, está na moda. Ser religioso está fora de moda e é hoje conotado com ser ignorante. Por isso, até os poucos que o são, não se manifestam como tal para não perder amigos, empregos ou posição social.

Aos materialistas, que vivem sem sentido porque a matéria não dá sentido à vida, pode aplicar-se aquela famosa frase do Dalai Lama: “Vivem como se nunca tivessem que morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”. De facto, o expoente máximo do ateísmo dialético e histórico, Karl Marx, enfrentou a questão da morte da mesma forma cínica dizendo que a morte não deve preocupar-nos, pois enquanto nós existirmos, ela não existirá; quando eventualmente se tornar realidade, não existiremos nós.

Ou seja, a morte não deve ser motivo de preocupação porque nunca coexistiremos com ela, nem nós existimos com ela nem ela existe connosco. O facto é que por muito que a escondamos na sociedade, ela vai aparecendo, quando ao nosso lado caem primeiro os nossos pais e os nossos tios, depois os nossos irmãos mais velhos.

Relativamente à sociedade medieval que vivia reconciliada com a morte, em harmonia com ela, e numa quase amizade, chegando a dar-lhe uma forma feminina, vestindo-a de branco, convidando-a para uma dança de roda e até para jogar xadrez a ver se a vencia ou enganava ou distraía, a sociedade moderna e contemporânea tem medo da morte que lhe vai roubar tudo, porque é eterna, reprimindo por isso tal pensamento, como o sexo era reprimido na sociedade puritana vitoriana.

Do animismo ao ateísmo
Do animismo ao materialismo há uma gradual materialização da matéria e simbioticamente do ser pensante que a analisa e com ela se relaciona, o Homem. Ao princípio, tudo tinha alma, até a própria matéria mais material tinha alma. Num mundo materialista como é o de hoje, custa-nos pensar que assim era no passado; porém, sem irmos mais longe, todos nós vivemos uma etapa de animismo na nossa infância quando, ao magoar-nos com qualquer coisa, batíamos e culpávamos e chamávamos má a essa mesma coisa, como se fosse uma entidade viva.

Ao nível dos adultos, a superstição é um resquício de animismo, ou seja, quando se concede valor ou poder espiritual a algo que é puramente material, como uma chave ou uma ferradura, isso é animismo, hoje chamado de superstição.

O conhecer certas realidades materiais e o saber como e para que funcionavam, roubou-lhes a alma, pelo que se desanimaram e voltaram a ser apenas matéria. Porém, não era possível conhecer cientificamente certas realidades ou estas não eram fáceis de conhecer ou não era possível conhecê-las e dominá-las totalmente. A essas realidades deu-se-lhes o nome de deuses e assim nasceu o deus da guerra, a deusa do amor, o deus do tempo o deus do vinho, o deus do mar, etc. e, consequentemente, surgiu o politeísmo.

Por uma questão de simplificação ou com o fim de unir vários povos e evitar as desavenças de “o meu deus é maior que o teu”, o que podia causar guerras santas ou outras desavenças, o Homem descobriu que Deus seria um só Senhor e criador de tudo e de todos. Nasceu assim o monoteísmo na sua versão absoluta, com o judaísmo e o islamismo e na sua versão trinitária, com o cristianismo.

Por fim, quando o progresso científico permitiu ao homem dominar grande parte da realidade, este decidiu matar a Deus (conceito psicanalítico) para se colocar no seu lugar como super-homem (Nietzsche). Nesta dialética de ir roubando a alma ao conhecido, o ser humano acabou por roubar a alma ao próprio Deus, afirmando, como o fez Feuerbach, que não foi Deus que criou o Homem à sua imagem e semelhança, mas sim, ao contrário, foi o Homem que criou Deus à sua imagem e semelhança.

Nasceu assim o materialismo dialético ou filosófico, depois o materialismo histórico e a revolução comunista com Karl Marx, a psicanálise ateia de Sigmund Freud. Nietzsche declarou “Deus está morto, viva o super-homem” e, depois do enterro de Deus, surgiu o niilismo do próprio Nietzsche, seguido pela náusea ou vómito de Sartre.

Ideologia materialista
Esta visão de mundo tornou-se proeminente no Iluminismo, mas é tão antiga como Demócrito (370 a.C.). A visão materialista do mundo afirma que não há espírito, nem deus, nem alma. Nada que não possa ser conhecido através dos cinco sentidos e da razão.

Nada existe além da Natureza que tenha influência causal ou aja sobre a mesma Natureza. Não existe, portanto, nenhum ser superior que tenha criado a Natureza e que exerça algum poder sobre ela. Só existe a natureza material e nada para além dela. A vida na Terra surgiu por si mesma, quando se reuniram as condições para que surgisse, a partir de substâncias naturais, por seleção natural para fins naturais.

O sobrenatural ou espiritual é uma quimera, não existe, não é observável. Se algo não tem explicação não é por ser sobrenatural, mas simplesmente porque o ser humano ainda não sabe tudo; no futuro, a ciência poderá explicar. Assim foi e assim tem sido: realidades que antes eram vistas como deuses, hoje são completamente explicáveis.

O mundo espiritual é, portanto, uma ilusão, (um consolo infantil, como diz Freud). Não há ser superior, somos meros complexos da matéria e, quando morremos, deixamos de existir e os elementos simples que compõem o nosso corpo voltam à sua simplicidade à medida que o nosso corpo se desintegra.

Como não há nenhum significado intrínseco para o universo, as pessoas têm de criar valores para si mesmas. Não há certo e errado, exceto o que a sociedade estabelece, com propósitos de sobrevivência e tranquilidade.

Muitos não chegam a criar valores pelos quais pautar a sua vida, pois é difícil fundamentar uma ética sem religião. Os materialistas têm a sorte de mais de 90% da humanidade acreditar na existência de um ser superior, fundamento e garante da estrutura social que temos; se assim não fosse, 1% da humanidade não poderia ter mais riqueza do que 99% da mesma humanidade, como hoje acontece. 

Se os seres humanos não acreditassem na vida para além da morte, fundamento último da ética, não haveria exército nem polícia para conter a raiva humana contra a injustiça.  Razão tinha Napoleão Bonaparte quando disse que a religião é o que faz os pobres não matarem os ricos.

Se o fim dos justos e dos injustos é o mesmo, é difícil distinguir a justiça da injustiça, se ambas têm o mesmo fim: o nada. Por isso, a maior parte dos materialistas afogam as suas mágoas no consumismo. A vida é pão e circo, como diziam os romanos, Fugit Tempus, Carpe diem, o tempo escapa-se-nos, aproveitemos o dia que temos pela frente, ou seja, “Morra Marta, morra farta”.

Os processos de evolução ou mudança são essencialmente aleatórios, não têm um objetivo predefinido, pois não existe nenhum desígnio inteligente, como creem os crentes religiosos. Reina o aleatório: os dinossauros não estavam predestinados a desaparecer, se aquele meteorito que destruiu o seu habitat não tivesse caído, poderiam ainda estar vivos e o ser humano nunca ter surgido. Para além do aleatório, o que existe é uma seleção natural governada pela lei do mais forte ou do que melhor se adapta às circunstâncias de um meio ambiente em constante mudança.

É isto e só isto que determina que alguns seres vivos sobrevivam e outros pereçam. Os materialistas creem que este processo de “seleção” inconsciente, não dirigida, juntamente com as flutuações genéticas aleatórias (ou seja, mutações), sejam as chaves que explicam a origem do mundo e dos seres vivos como os conhecemos hoje, nós próprios incluídos.

Ao não haver nenhum desígnio inteligente nem nenhum objetivo que a natureza tenha que cumprir, a própria inteligência e o que nós chamamos espiritual são o resultado de complexos processos naturais e materiais que é possível conhecer e explicar. Não precisamos de Deus para explicar nada na Natureza físico-química. Não existe nada no Universo que seja pessoal, tudo é impessoal. A pessoa humana é uma outra quimera criada pelos espiritualistas, não há nada na pessoa humana para além de complicados processos físico-químicos.

Análise "científica" do materialismo, ateísmo ou agnosticismo
É certo que não podemos provar a existência de Deus nem a sua não existência, pelo que tanto teísmo como ateísmo ou agnosticismo são crenças. Ou seja, uma é fé a outra é anti fé, mas ambas envolvem fé.

Os ateus ou agnósticos gostam de se fazer passar por cientistas, amigos da ciência, racionais e iluminados. A ciência é logico-dedutiva, como a matemática, ou intuitiva, como a teoria da relatividade de Einstein.

O ateísmo ou o agnosticismo não é lógico - O ateísmo ou agnosticismo não é lógico. Não faz sentido que o ser humano seja, como diz Karl Marx, o momento em que a Natureza ganhou pensamento ou autoconsciência, só para nos darmos conta da nossa miséria, ou seja, de que vimos do nada como tudo e ao nada regressaremos com a pulga, o piolho e o percevejo.

Se para isso somos os únicos seres vivos conscientes da nossa miséria, era preferível não sermos conscientes como o resto dos seres vivos. É como saber o dia e as circunstâncias da nossa morte: não creio que haja uma única pessoa que esteja interessada nessa informação.

Ao contrário do resto dos seres vivos, a consciência de que existimos por um tempo e depois deixamos de existir, em vez de ser uma grandeza da evolução é antes ir de cavalo para burro. Que grandeza é essa de termos consciência da própria miséria, sem solução para a remediar?

Ao contrário do resto dos seres vivos que, vivendo em simbiose com a natureza não têm liberdade nem autonomia nem independência em relação a ela, o ser humano tem a vida nas suas mãos, tem uma certa liberdade para fazer com a sua vida o que quiser. Para quê essa liberdade, se independentemente do que fizermos, o fim será o mesmo? Por outro lado, o ter liberdade é também um risco, no sentido em que posso fazer más escolhas e transformar a minha vida num inferno, coisa que os outros seres vivos não podem.

Na vida, os seres vivos são felizes, não precisam de trabalhar, nem de estudar, nem de sofrer. Nós, seres vivos humanos, podemos ser felizes ou infelizes em vida, mas, mesmo os que são felizes, possuem sempre uma felicidade relativa, pois o pensamento de que um dia deixarão de existir, envenena qualquer alegria ou prazer, transformando-a em tristeza e depressão.

O ateísmo ou agnosticismo não é dedutivo – Se o universo não estivesse em expansão, se fosse estático e não dinâmico e em constante devir, como as águas do rio de Heráclito, se sempre tivesse sido o mesmo, se não houvesse nenhuma mudança, nem evolução, nem revolução, poderíamos deduzir que sempre existira, que o universo era deus de si mesmo.

Isto é o que pensava a ciência antes de o telescópio Hubble que se encontra bem longe no espaço, mostrar que as galáxias estão a afastar-se umas das outras, o que nos levou a deduzir que o Universo está em expansão. A teoria dedutiva do Big Bang que afirma que as galáxias estão a afastar-se umas das outras foi criada pelo padre católico belga Georges Lemaître. Segundo ele, o universo começou com uma grande explosão; nessa grande explosão foram criados o tempo/espaço e a matéria/energia.

Na Natureza, as ignições ou explosões não acontecem espontaneamente. Tudo se passa num regime de causa/efeito: não há causa sem efeito, nem efeito sem causa, não há água sem sede, nem sede sem água. Ou, como diz o povo, “quando nasce a panela, nasce o testo para ela”. Por outro lado, não observamos na Natureza nada que se crie a si mesmo; é, portanto, mais lógico deduzir um criador que não o deduzir.

Se o universo nem sempre existiu e depois começou a existir, houve um “tempo” em que não existia. E haverá um tempo em que deixará de existir. Apenas a Bíblia falava do fim do mundo e os tais cientistas riam-se dela e dos cristãos. Como quem ri por último, ri melhor, agora somos nós que nos rimos. A ciência teve de dar o braço a torcer e afirmar que o mundo deixará de existir um dia.

Os ateus reagiram à teoria do Big Bang deduzindo o Big Crunch, ou seja, que o universo estaria em expansão, como se fosse um elástico, até não poder expandir-se mais, iniciando em seguida o processo inverso de contração até colapsar sobre si mesmo, chegando a matéria a concentrar-se toda outra vez e a causar um novo Big Bang. Assim sendo, o universo seria uma sucessão de Big Bangs e Big Crunches.

Porém, a segunda lei da termodinâmica veio desmentir esta teoria, pois a matéria não se transforma em energia sem se desgastar. Se assim fosse, seria possível ter uma máquina que fabricasse a energia de que precisa para se manter em andamento. O sol vai gastar todo o seu hidrogénio e hélio, assim como o universo vai gastar toda a sua energia até desparecer e a pouca matéria existente nesse universo futuro não terá a força da gravidade suficiente para se aglutinar. O universo transformar-se-á num buraco negro.

O ateísmo ou agnosticismo não é intuitivo – A intuição é o contrário da lógica e da dedução, pela intuição e dedução nunca Einstein chegaria à teoria da relatividade, pois não é lógica nem se deduz de nenhuma observação. A intuição é, ao mesmo tempo, um salto qualitativo e quantitativo. Se eu partir da observação da realidade, sou catapultado pela intuição para uma realidade não observável nem experimentável, mas que tem relação com o que observo e dá sentido a tudo o que observo.

Neste sentido, a fé é uma intuição; a Deus chega-se pela intuição, mas não só a Deus: muita da física quântica dos nossos dias, herdeira da teoria da relatividade, é intuitiva. Muita da astronomia de hoje é intuitiva, pois não temos forma de observar certas realidades.

O ateísmo ou agnosticismo é indutivo – O ateísmo ou agnosticismo é instigado, é forçado e supõe a repressão do sentimento religioso que é conatural ao ser humano e que podemos observar em todos os tempos e em todas as épocas e na maior parte dos seres humanos que habitam hoje o nosso planeta.

Os teístas sempre foram mais de 80% dos habitantes deste planeta em todas as épocas e em todas as culturas. Até hoje já houve muitas culturas e civilizações sem ciência e tecnologia, mas nuca houve nenhuma sem religião.

Por isso, o ateísmo ou agnosticismo é induzido pela moda, pela sociedade de consumo, pelo comunismo, ou por qualquer ideologia que pretenda retirar ao ser humano toda a orientação; assim desorientado e desnorteado, é mais fácil de manipular e transformar em consumidor obsessivo e neurótico, muito bom para a economia faz crescer o PIB, mas reduz a saúde dos indivíduos. Quanto mais saudável é a economia, mais doentes são os indivíduos que a alimentam.

E, para tal, o sentimento religioso natural ao ser humano e presente em todas as culturas de todos os tempos tem de ser ignorado num primeiro momento, mas, como sempre ressurge, deve ser reprimido, escondido.

Defendo que não há verdadeiros ateus ou agnósticos, mas sim politeístas, ou seja, negam a existência do Deus verdadeiro para prestarem homenagem, veneração e adoração a muitos e pequenos deuses. O dinheiro seria o Pai desse panteão, tal como Zeus e Júpiter foram os pais dos panteões grego e romano, respetivamente. Depois há deuses que são os patronos de certas realidades com quem o ateu ou materialista se relaciona: o poder, a beleza, o prazer, a fama, a diversão como o futebol etc.

Como seria um mundo governado pela cosmovisão materialista? Seria um mundo sem música, sem arte, sem poesia, sem literatura, sem direitos humanos, sem ética, uma autêntica barbárie, uma autêntica anarquia. Que deixa para a posteridade a sociedade materialista consumista? A quase totalidade dos monumentos e obras mais belas da humanidade, as pirâmides do Egito, as catedrais góticas, as mesquitas, os templos hindus são o reflexo do sentimento religioso. Que nos deixa ou deixou o materialismo para além da náusea de Sarte, dos gulags soviéticos e dos atuais campos de concentração chineses para lavar o cérebro ao povo uigur?

Conclusão: os materialistas sustentam que, na evolução das espécies, o ser humano não é mais que o momento em que a matéria ganha consciência de si mesma. Não faz sentido que a matéria desperte com o único objetivo de se dar conta de que é matéria. A autoconsciência é uma atividade espiritual, por isso a matéria está orientada para o espírito e não vice-versa. Os materialistas, ateus ou agnósticos reprimem o natural sentimento religioso, comum ao ser humano de todos os tempos e culturas, como os puritanos reprimiam o sexo.

Pe. Jorge Amaro,IMC


1 de novembro de 2024

Cosmovisão Renascentista

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O mundo europeu entende que não há uma continuidade cultural, científica e filosófica entre o mundo antigo e a Idade Média. A Idade Média foi como um trauma que paralisou o mundo, que o colocou a dormir por muito tempo. A cidade é o lugar da cultura, pois é na cidade que se concentra o maior número de pessoas, onde acontece um sem-número de transações, comunicações e onde se pratica um sem-número de profissões.

No bucólico campo só se pratica a agricultura, as pessoas vivem isoladas umas das outras. O mundo medieval era um mundo rural. É certo que é do campo que se vive e se come, mas uma vida que se dedica só à autossubsistência dificilmente se pode chamar humana, os animais são os que se dedicam exclusivamente à autossubsistência.

A agricultura é, portanto, a base da cultura. No entanto, o objetivo da agricultura não deve ser a autossubsistência, mas sim criar excedentes que depois serão a base do comércio, que permitirão adquirir outros bens e promoverão o relacionamento entre pessoas, fazendo surgir outras atividades. Em suma, fomentarão a cultura e o desenvolvimento.

No Renascentismo começaram a surgir outra vez as cidades. A Europa, ao dar-se conta da descontinuidade cultural entre a Idade Antiga e os 10 séculos de Idade Média, tentou fazer um bypass, passando por cima da Idade Média e indo ao passado do mundo greco-latino para ressuscitar esta cultura sem a mediação ou as lentes da Igreja.

Inspirado nos valores da antiguidade clássica, o homem renascentista tem a ideia de que tudo o que é medieval é mau e tudo o que pertence ao mundo antigo é bom. Esta perspetiva está equivocada em muitos pontos. A filosofia, por exemplo, embora seja de inspiração cristã, avançou na Idade Média; a arquitetura, sobretudo a gótica, representou um enorme avanço. A arquitetura algo tosca da época grega e romana, foi recriada no renascimento com um estilo monumental que perdeu em beleza para o gótico; não é nada bela, é somente monumental, ou seja, grande, enorme. Por exemplo, a basílica de S. Pedro é monumental, é renascentista; mas não é certamente mais bela que a mais singela catedral gótica.

Com o aparecimento do burgo, termo que significa cidade, no fim da Idade Média, nasceu uma outra classe social no seio do povo, o burguês, ou seja, literalmente o habitante da cidade, que não se dedica, é claro, à agricultura, mas sim ao comércio, artes e ofícios que vão surgindo à medida que a vida se vai diversificando e deixa de girar à volta da subsistência. Esta vertente física é confiada ao povo e ao seu trabalho na agricultura, a vertente espiritual e moral é confiada ao clero e a segurança é confiada aos nobres.

Origem do Renascimento
Na península itálica, as cidades nunca desapareceram totalmente e os povos não deixaram de praticar o comércio, nem de usar moeda. Houve, sim, uma diminuição dessas atividades durante a Idade Média. Em virtude da situação geográfica da península itálica no meio do Mar Mediterrâneo, várias cidades ribeirinhas como Veneza, Génova, Florença, Roma, entre outras, beneficiaram do comércio com o Oriente. Marco Polo terá aberto o caminho.

Estas regiões enriqueceram com o desenvolvimento do comércio no Mar Mediterrâneo, dando origem a uma rica burguesia mercantil. A fim de se afirmarem socialmente, estes comerciantes patrocinavam artistas e escritores, que inauguraram uma nova forma de fazer arte. A Igreja e a nobreza também foram mecenas de artistas como Miguel Ângelo, Domenico Ghirlandaio, Pietro della Francesca, entre muitos outros. A nova classe social burguesa que surgiu no Renascimento tinha dinheiro, mas não tinha estatuto, como o clero e a nobreza; por outro lado, como tinha dinheiro, não se enquadrava nos servos da gleba. Assim, procurava investir esse dinheiro patrocinando obras de arte, a fim de serem reconhecidos socialmente.

Renascer
Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus”. Nicodemos perguntou-lhe: “Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez?”. Respondeu Jesus: “Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus.João, 3, 3-5

Em meados do século XIV começou uma transição entre os mundos medieval e moderno. Esta transição é conhecida como o Renascimento ou nascer de novo, como sugere o evangelho.

O movimento começou em Itália que tinha sido o centro da cultura greco-romana e o seu último reduto, o centro do Império Romano. Foi também o lugar mais dominado pela Igreja, pois quase toda a Itália no fim da Idade Média era um Estado Pontifício, formado por terras que Carlos Magno deu à Igreja. Por isso, os que chamam a Igreja de obscurantista esquecem-se que esta foi a maior promotora da Renascença no campo da arquitetura, pintura, escultura e outras artes. E que a cultura greco-romana renasceu precisamente no lugar onde tinha sido extinta pelos bárbaros.

O Renascentismo abrangeu quase todas as facetas da vida, economia, política, filosofia e arte entre tantas e, em especial, da ciência. Os principais contribuintes para o Renascimento (como Petrarca, Leonardo Da Vinci e Dante) classificaram o período medieval como lento e escuro, um tempo de pouca educação ou inovação. Viram o período medieval como uma interrupção da cultura entre o mundo clássico da Grécia e Roma e o Renascimento.

A ideia de comunidade distinguiu o período medieval. As pessoas – clero, nobreza e povo – enfrentaram ameaças reais de fome, doenças e guerras que são perigos que fomentam a dependência da comunidade em áreas como o trabalho, a religião e a defesa. Por exemplo, um artesão medieval pertencia a uma associação que ditava todos os aspetos do seu negócio. A ideia era que todos os artesãos ganhassem a vida equitativamente e não que uns ganhassem mais que outros.  A uniformidade era norma; cada profissão tinha a sua forma de vestir, até as prostitutas tinham o seu hábito, uma forma de vestir que as distinguia das outras mulheres.

A Renascença, por outro lado, veio sublinhar a importância dos talentos individuais. Esta ideia, conhecida como individualismo, é visível na filosofia e na arte da época. Além disso, enquanto estudiosos medievais tinham estudado documentos gregos e romanos antigos para aprender sobre Deus e o Cristianismo, os estudiosos renascentistas estudaram-nos para descobrir mais sobre a natureza humana. Esta nova interpretação era conhecida como humanismo.

Nasceu assim um humanismo não diretamente ligado ao cristianismo, ou seja, um humanismo laico que cresceria exponencialmente durante toda a Idade Moderna. Aliás o Renascimento foi a primeira pedra da cosmovisão humanista materialista contraposta a uma cosmovisão espiritualista, que reinou durante toda na Idade Média.

A arte renascentista também reflete o humanismo. Enquanto a arte medieval se destinava a ensinar uma lição, talvez uma história bíblica, como os vitrais das catedrais góticas, a arte renascentista glorificou a humanidade dos indivíduos retratados. As estátuas medievais tendem a ser de santos e numa posição mística não natural. Em contraste, o David de Miguel Ângelo, a Pietá e Moisés parecem ser mais realistas. As estátuas deixaram de ser imagens congeladas de piedade e passaram a revelar emoções humanas, parecendo prontas para a ação.

Valores renascentistas
Racionalismo – A razão era o único caminho para se chegar ao conhecimento. Tudo podia ser explicado pela razão e pela ciência. A escolástica medieval valorizava também a razão, mas não em exclusivo. A fé é uma outra forma de conhecer, que o renascimento ignora, tal como a cultura em geral depois deste.

Cientificismo – Para os renascentistas, todo o conhecimento deveria ser demonstrado através da experiência científica. É deste tempo a expressão “a experiência é a mãe da ciência”. Hoje sabemos que a experiência não é a única mãe de todas as ciências. Não só da lógica e dedução se faz ciência, mas também da intuição, como aconteceu com a teoria da relatividade.

Individualismo – O ser humano procurava afirmar a sua própria personalidade, mostrar os seus talentos, atingir a fama e satisfazer as suas ambições, através do conceito de que o direito individual estava acima do direito coletivo. Assim nasce o liberalismo em todas as suas vertentes. Teremos que esperar pela revolução socialista para voltar a falar de igualdade, pois a igualdade da revolução francesa era uma igualdade onde uns são mais iguais que outros, como diz George Orwell.

Antropocentrismo – Coloca o homem como a suprema criação de Deus e como centro do universo. É deste tempo a frase “o homem é a medida de todas as coisas”. Deus começa a ser posto de lado, até ser completamente substituído pelo super-homem de Nietzsche.

Classicismo – Os artistas procuram a sua inspiração na Antiguidade Clássica greco-romana para realizar as suas obras. Qualquer momento do passado é melhor que este, era a ideia.

O renascimento das letras
São deste tempo grandes escritores ainda hoje mundialmente famosos, porque escreveram obras mundialmente reconhecidas, para todos os tempos, além de se tornarem ex libris ou representativas da cultura onde surgiram.

  • Dante Alighieri: escritor italiano, autor do grande poema "Divina Comédia". Trata das três instâncias depois da morte – Céu, Inferno e Purgatório – e é uma joia da literatura universal e o ex libris da cultura italiana.
  • Maquiavel: autor de "O Príncipe", obra precursora da ciência política onde o autor dá conselhos aos governantes da época.
  • Shakespeare: considerado um dos maiores dramaturgos de todos os tempos. Abordou na sua obra os conflitos humanos nas mais diversas dimensões: pessoais, sociais, políticas. Escreveu comédias e tragédias, como "Romeu e Julieta", "Macbeth", "A Fera Amansada", "Otelo" e várias outras. Ex libris da cultura inglesa.
  • Miguel de Cervantes: autor espanhol da obra "Dom Quixote", uma crítica contundente da cavalaria medieval. Ex libris da cultura espanhola.
  • Luís de Camões: teve destaque na literatura renascentista em Portugal, sendo autor do grande poema épico "Os Lusíadas", ex libris da nacionalidade portuguesa.

O renascimento das artes
Destacamos Leonard da Vinci que é o ex libris, estereótipo ou protótipo do homem renascentista; o homem dos cem ofícios; foi matemático, físico, anatomista, inventor, arquiteto, escultor e pintor, foi o homem renascentista que dominou várias ciências. Por isso, é considerado um génio absoluto. A misteriosa Mona Lisa e a Última Ceia são as suas obras-primas. Quando alguém nos fala da última ceia de Cristo, a imagem que nos vem à mente é sempre a do quadro de Leonado da Vinci.

Renascimento científico
O Renascimento foi marcado por importantes descobertas científicas, nomeadamente nos campos da astronomia, da física, da medicina, da matemática e da geografia. O polaco Nicolau Copérnico negou a teoria geocêntrica defendida pela Igreja, herdada de Aristóteles e Ptolomeu, ao afirmar que "a Terra não é o centro do universo, mas simplesmente um dos tantos planetas que gira em torno do Sol". O novo centro era agora o sol. Hoje sabemos que nem a terra nem o sol são o centro do Universo. O universo talvez não tenha centro…

Galileu Galilei descobriu os anéis de Saturno, as manchas solares, os satélites de Júpiter. Perseguido e ameaçado pela Igreja, Galileu foi obrigado a negar publicamente as suas ideias e descobertas. “E, no entanto, move-se” dizem que disse Galileu ao sair do tribunal onde foi obrigado a mentir. A Igreja estava enganada ao olhar para a Bíblia como um livro de ciência.

Galileu disse que era a Terra que andava à volta do sol, mas nunca conseguiu prova-lo, pois o que vemos é o sol que anda à volta da Terra: a experiência empírica aqui diz-nos o contrário da verdade. Ao pobre Galileu bastava-lhe ter dito que quando cavalgamos ou nos deslocamos numa carruagem de cavalos, sabemos que somos nós que nos movemos; no entanto, os nossos olhos vêm as árvores a moverem-se. Da mesma maneira, vemos que é o sol que se move, apesar de sabermos que está fixo em relação a nós porque nós, habitantes deste planeta, estamos montados no movimento de um astro que se move, como a carruagem.

Na medicina, os conhecimentos avançaram com trabalhos e experiências sobre a circulação sanguínea, métodos de cauterização e princípios gerais de anatomia. São deste tempo as primeiras autópsias para investigar a causa da morte e para aprender sobre o corpo humano e o seu funcionamento.

Conclusão: ao despertar de um sonho que durou mil anos, o renascentista deu-se conta de que a Idade Média, pelo trauma das invasões bárbaras, não era uma continuação lógica da Idade Antiga que tinha sido sepultada viva. O Renascimento foi um bypass do mundo clássico até à atualidade, sem passar pela Idade Média. Foi um ir beber às fontes e lançar raízes na Idade Antiga como modelo de inspiração, pondo de lado a Idade Média como se esta nunca tivesse acontecido. 

Pe. Jorge Amaro, IMC