15 de outubro de 2024

Cosmovisão Medieval

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Em termos históricos, a Idade Média tem esse nome  porque se situa a meio do percurso entre a Idade Antiga e a Idade Moderna. Começa no século V, com a queda do Império Romano do Ocidente e termina no século XV, com a transição renascentista para a Idade Moderna. Estes dez séculos de História da civilização ocidental costumam dividir-se em dois períodos: a alta Idade Média que vai do século V ao século X e a baixa Idade Média, do século X ao XV.

Causas do retrocesso cultural medieval
Há quem, de forma tendenciosa, culpe a Igreja pelo facto de a Idade Média ter sido um retrocesso cultural. É certo que a Igreja filtrou da cultura greco-romana só o que lhe interessava, mas também manteve muito desta cultura; se não tivesse sido assim, não teria preservado os manuscritos antigos, o que impossibilitaria o Renascimento.  

Para quem não é tendencioso, é claro que o fator principal para que a Europa mergulhasse num limbo ou num sonho de mil anos foi a tomada do poder pelos bárbaros, que levavam um atraso de mais de 2 000 anos em relação à cultura greco-romana. Este é decerto o fator principal, mas há outros que contribuíram ou acentuaram a Idade das Trevas.

 A Europa viveu durante a Idade Média num clima de instabilidade constante. A cultura não cresce em tempo de guerra. A Pax Romana tinha proporcionado o desenvolvimento cultural; o isolamento, a falta de comércio e de comunicações que o feudalismo causou transformou o mundo urbano e a sua cultura num mundo rural e fechado onde a agricultura era a única atividade para além das constantes guerras entre pequenos reinos e, dentro desses reinos, entre os senhores feudais o que não proporcionava um desenvolvimento cultural.

Enquanto dentro da Europa a Igreja se dedicava a educar os bárbaros, fora via-se constantemente ameaçada por outros bárbaros. Pelo lado ocidental, os muçulmanos, que tinham ocupado todo o norte de África, invadido a Península Ibérica e chegado até ao coração de França, até Poitiers, onde foram derrotados por Carlos Martel. O Império Otomano ameaçava pelo oriente estender-se pela Europa fora. A norte, surgiram os vikings, outra tribo germânica da Escandinávia que fazia rápidas incursões nas costas de Inglaterra e de França, com o único intuito de roubar, pilhar e matar.

Estes são todos os fatores que fizeram da Europa, unida pelo Império Romano, um monte de ilhas ou feudos desconectados entre si, com a única preocupação de sobreviver. A Igreja ou o cristianismo estava presente em todos estes estados e em todos eles foi o único fator de união. Por isso, foram possíveis empreendimentos como as cruzadas, porque não havia nenhum outro fator que conseguisse unir os povos e os fizesse sair dos seus feudos.

Alta Idade Média
A alta Idade Média é aquela que está mais longe de nós e mais perto da queda do Império Romano do ocidente. Durante este período de ocupação bárbara do Império Romano, os centros urbanos foram destruídos, o povo voltou ao mundo rural. Os bárbaros formaram pequenos reinos usando as estruturas do Império Romano. No século VII, tanto o Norte de África como o Médio Oriente se tornaram muçulmanos; este último tinha feito parte do Império Bizantino ou Império Romano do Oriente (o mais longo da história). Este Império continuou a existir por mais algum tempo, até 1453, já na baixa Idade Média, quando sucumbiu ao Império Otomano que durou mais 600 anos e acabou já depois da I Guerra Mundial, em 1922.

Durante a alta Idade Média, o cristianismo, que se constituiu a si mesmo como o herdeiro da cultura greco-romana, disseminou-se por toda a Europa e, como vimos no texto anterior, as tribos germânicas foram cedendo a esta narrativa religiosa muito superior à sua. Ao converter-se o chefe da tribo convertia-se toda a tribo por uma questão de lealdade, valor muito importante entre os bárbaros.

Ainda nesta alta Idade Média se dá uma tentativa, por parte dos francos durante a dinastia carolíngia, de restauração do antigo Império Romano. O Império Carolíngio surge nos séculos VIII e IX pela unificação dos reinos francos e germânicos durante a dinástica carolíngia, que se inicia com Carlos Magno. Mais tarde, este Império separou-se desta divisão; a parte oriental da França com o resto da Germânia formam o Império Romano Germânico durante o reinado da dinastia saxónia, com Oton I como imperador. Este foi nomeado como sagrado Imperador pelo Papa, facto que deu origem ao nome Sacro Império Romano Germânico.

Os imperadores germânicos consideravam-se sucessores diretos dos romanos. Estes imperadores eram eleitos por um conselho de quatro duques dos reinos mais importantes: Saxónia, Francónia, Suévia e Baviera. O imperador representava todo o Império, mas cada um dos reinos confederados tinha autonomia sobre o seu território que era governado segundo o sistema feudal. Este Império durou 900 anos: a partir da alta Idade Média, atravessou a baixa Idade Média e a Idade Moderna e entrou na Idade Contemporânea; terminou no ano de 1806, com as guerras napoleónicas.

Baixa Idade Média
A baixa Idade Média teve início no ano 1000; neste período dá-se um grande crescimento demográfico, o feudalismo é o sistema que impera por toda a Europa; o rei de cada estado era só uma figura simbólica, não tinha grande poder executivo. Durante este tempo, a Igreja estabelece-se não só como poder espiritual, mas também temporal, pois consegue incitar os nobres feudais a embarcar numa cruzada de reconquista da Terra Santa que o Império Bizantino tinha perdido para o Império Otomano.

Chegam de facto a conquistá-la, mas por pouco tempo, para logo a perderem, uma vez que o Império Otomano estava no seu apogeu. Não voltará a ser conquistada, nem por Ricardo, Coração de Leão, mas pelos ingleses na I Guerra Mundial. Nas cruzadas, as tribos germânicas mostram o seu lado bárbaro, pelo que fizeram mais mal que bem. Não conseguindo derrotar os muçulmanos, em 1204 na quarta cruzada voltaram-se contra os cristãos do Oriente, saqueando, aterrorizando e vandalizando Bizâncio que, enfraquecida, foi depois presa fácil para o poder otomano.

Os dois últimos séculos da baixa Idade Média ficaram marcados por várias guerras, adversidades e catástrofes. A população foi dizimada por sucessivas fomes e pestes; só a Peste Negra foi responsável pela morte de um terço da população europeia entre 1347 e 1350. Acontece também a Peste Negra Espiritual, com o Grande Cisma da Igreja no Ocidente que teve consequências profundas na sociedade e foi um dos fatores que estiveram na origem de inúmeras guerras entre estados.

A vida cultural foi dominada pela escolástica, uma filosofia que procurou unir a fé à razão, e pela fundação das primeiras universidades. A obra de Tomás de Aquino, a pintura de Giotto, a poesia de Dante e Chaucer, as viagens de Marco Polo e a edificação das imponentes catedrais góticas estão entre as mais destacadas façanhas deste período.

Feudalismo
A invasão bárbara provocou a fuga da cidade em direção ao campo. A Europa ocidental ruralizava-se, e a riqueza era a terra. A agricultura tornou-se na principal atividade económica, e a produção dos feudos era para o próprio sustento. Carlos Magno promoveu a distribuição de terras aos senhores feudais, exigindo em troca a sua fidelidade e auxílio em caso de guerra.

O feudalismo é o termo que usamos para toda organização social, política, cultural, ideológica e económica que existiu na Europa durante a Idade Média. O feudalismo é a ruralização da Europa urbana romana; as cidades só voltam a existir com a abertura do comércio na Idade Moderna, por altura do Renascentismo.

O símbolo do feudalismo é o castelo do senhor feudal, rodeado por terras de cultivo onde trabalham de sol a sol os servos da gleba, o povo, que prestam homenagem e vassalagem ao Senhor feudal ou Suserano, membro da Nobreza. Entre castelo e castelo encontram-se aqui e ali mosteiros onde vivem os monges que constituem a outra classe social, o clero.

Os nobres defendem o feudo pois são eles os proprietários das terras que o povo trabalha; o clérigo mantém a cultura e ensina tanto a religião como técnicas agrícolas ao povo, orando por ele; o povo sustenta com o seu trabalho tanto os nobres como o clero, se bem que este último era em grande medida autossuficiente. A Nobreza (bellatores) defende, o Clero (oratores) reza e o Povo (laboratores) trabalha: assim se resume a vida rural durante o feudalismo.

O ideal da cavalaria
O cavaleiro medieval encarna valores como a coragem, a proeza, a infalível lealdade, a fidelidade à palavra dada, a dignidade e a honra. Tem por norma defender os mais pobres e lutar pela justiça e pela paz. Leva uma vida errante de solidão, pelas batalhas e escaramuças que vai enfrentando. Está apaixonado por uma donzela com quem tem uma relação de amor platónico à distância.

Tem que dar provas de temperança em batalha, de generosidade, tanto em relação aos amigos como aos inimigos, e de cortesia para com as mulheres. A liberalidade do cavaleiro que redistribui todos os seus bens às pessoas e aos pobres faz parte da sua fama. Os valores celebrados pela cavalaria são o fruto de uma longa educação.

O aspirante a cavaleiro, deve fazer a sua aprendizagem junto de um senhor de quem passa a ser o criado e depois o escudeiro. Aprende então tanto o manejo das armas como a ética da cavalaria. Uma vez investido, deverá demonstrar o seu valor atuando nos torneios ou participando das aventuras que lhe surgem pela frente. Na procura de glória e reconhecimento, estes cavaleiros errantes vão realizar igualmente múltiplas buscas, das quais a mais prestigiosa é a do Santo Graal, ou seja, o cálice da Última Ceia de Jesus e tambéma da arca da aliança.

Os Templários
Assim chamados porque nasceram no templo de Jerusalém onde buscavam precisamente o Santo Graal; foram uma ordem religiosa militar. Estes e outros membros de ordens religiosas militares eram quem melhor encarnava o espírito do cavaleiro, pois, ao não casar, dedica toda a sua vida à guerra santa ou justa. Eram os mais temidos pelos muçulmanos pois eram mártires da causa; de facto, quando os muçulmanos aprisionavam um templário não se contentavam em matá-lo como faziam com qualquer cruzado, mas torturavam-no durante muito tempo antes de o matar.

Os Templários cresceram em poder e em riqueza e chegaram a ter em França mais terras, mais poder e riqueza que o próprio rei de França, pelo que este, juntamente com o Papa, combinou a sua dissolução. Antes que isto acontecesse, a armada dos templários zarpou de França e diz-se que veio para Portugal, onde o rei D. Dinis, numa atitude inteligente, em vez de dissolver uma Ordem poderosa em Portugal desde D. Afonso Henriques, mudou-lhe o nome para cavaleiros da Ordem de Cristo. Os Descobrimentos portugueses foram feitos pelos templários, financiados pelos judeus. De facto, as caravelas portuguesas levavam nas suas velas a cruz quadrada dos templários.

Eclesia mater ed magistra
“Em terra de cego quem tem um olho é rei” diz o povo; a Igreja tornou-se uma instituição poderosa e influente não apenas na religião, mas também na sociedade medieval. Os povos germânicos não estavam minimamente interessados na cultura, não sabiam ler nem escrever, mas sabiam que a formação e a informação representam poder, por isso reconheciam na Igreja não só um poder religioso, como também cultural, como herdeira da cultura greco-romana. Consequentemente, era respeitada, apesar de, como mais tarde Hitler afirmou, não ter exércitos para submeter os povos.

O poder da Igreja era só espiritual. No entanto, como o ser humano é um ser espiritual, quando submetes a alma de uma pessoa, submetes o seu corpo uma vez que o corpo obedece aos ditames da alma. Podemos ver uma imagem dessa submissão no seguinte episódio que é iconográfico e representativo da Idade Média e das relações entre a Igreja e os povos germânicos:

quando o feroz chefe e rei dos hunos estava para invadir e saquear Roma, cobiçada por todas as tribos germânicas, o papa S. Leão Magno saiu ao seu encontro e, por meios pacíficos certamente, conseguiu dissuadi-lo desta invasão.

Os reinos germânicos adaptaram os seus costumes aos dos romanos. A Igreja aliou-se aos reis e tornou-se na grande ponte entre o mundo germânico e o mundo romano. Os povos bárbaros abandonaram as suas antigas práticas religiosas e aderiram ao cristianismo. A fé cristã expandiu-se pela Europa ocidental, reforçando o poder do Papa. Foi no Império Carolíngio, no século VII, que a Igreja conseguiu consolidar o seu domínio, continuando depois no Sacrossanto Império Romano Germânico.

Nos séculos IV e V, com uma pregação intensa e geral, em pouco tempo a Igreja converteu ao cristianismo os povos conquistadores do Império Romano. Numa época de guerras, desagregação e fragmentação do poder, como foi o feudalismo, a religião era o único fator de união entre os povos. Era também a única instituição do mundo antigo capaz de fazer frente à hegemonia dos novos dominadores bárbaros.

Era a Igreja que garantia a paz e defendia os povos dos excessos dos invasores bárbaros, opondo-se às injustiças, não pela força das armas que não as tinha, mas pela força da razão, da decência e da ética. Os bárbaros respeitavam a Igreja pelo ascendente que esta tinha perante o povo e por ser a herdeira do grande Império Romano que, de facto, ainda existia no oriente. Com a subjugação das populações nas zonas mais rurais, o único poder era o do bispo; por outro lado, a nível de Roma, o Papa era o único representante do ocidente romano. Desta forma, a Igreja tornou-se num poder político e, como tal, também cometeu alguns erros.

Monaquismo
Os monges e os frades eram os cavaleiros espirituais da Idade Média. A cultura da Idade Média estava concentrada nos mosteiros. A produção da Antiguidade Clássica foi guardada e os monges copistas tinham a missão de copiar os textos antigos para que não se perdessem com o tempo. O acesso às bibliotecas dos mosteiros era restrito e o trabalho era manual.

Na Europa da alta Idade Média, dividida em tantos reinos instáveis, a Igreja era a única instituição forte e eficiente, instruída, rica e presente em todo o lado. Nas cidades, o bispo era frequentemente a única autoridade existente. No mundo rural, afirma-se a presença dos mosteiros com a regra Beneditina de “Orat ed labora”: o monge não deve apenas rezar, mas também trabalhar para se sustentar a si mesmo e a quem necessita.

Em toda Europa, nasceram mosteiros beneditinos e cistercienses que se transformaram em centros económicos e que, através da agricultura e da criação de animais, produziam alimento para as populações.

Estes mosteiros foram oásis de cultura e celeiros da mesma, pois era aqui que se copiavam os antigos textos latinos e gregos. Sem estas cópias, estes textos ter-se-iam perdido. A invasão bárbara do império romano parece ter feito a cultura andar para trás, mas a Igreja preservou essa cultura, pois era a única herdeira das últimas civilizações ilustradas: a da Grécia e a de Roma.

Os americanos chamam a esta idade a Idade das Trevas e de alguma forma o foi. No entanto, custa a acreditar que precisamente nesta época se tenham construído os edifícios mais belos que o mundo já construiu: as catedrais góticas. Cada pedra foi talhada para ocupar um lugar exato, sem cimento e sem ferro, arcos, colunas, ogivas, abóbadas, um conjunto harmonioso e elegante, iluminado pelos vitrais multicolores, um autêntico céu na terra.

A catedral gótica como ex libris da cosmovisão medieval
Foram necessários os templos gregos e as basílicas romanas para que houvesse catedrais góticas; no entanto, qualquer que seja a dívida dos arquitetos medievais para com seus predecessores, a verdade é que os superaram mil vezes. A catedral gótica representa um avanço exponencial em relação à arquitetura grega e romana.

A vertiginosa verticalidade de tais edificações revela plenamente as transformações do gosto, do pensamento filosófico escolástico, dos ideais estéticos, traduzidas, para o plano arquitetónico, por uma renovação das técnicas mediante a introdução de uma série de elementos originais típicos do estilo gótico: a abóbada sustentada por uma cruzaria ogival, a utilização do arco quebrado em vez do arco de volta inteira, ou arco românico, o emprego do arcobotante e dos contrafortes para sustentar o teto de pedra formado por um conjunto de abóbadas.

É a cosmovisão cristã que explica a unidade de espírito que caracterizou a civilização medieval, e daí a razão de existir uma íntima relação entre a escolástica e as catedrais góticas, uma vez que a plena aceitação da conceção católica da vida gerou, não somente um autêntico e inconfundível estilo de vida, como também uma filosofia e um estilo arquitetónico próprios.

Como indicam as teses de S. Tomás de Aquino, fundador da filosofia escolástica, a Deus chega-se não só pela fé, mas também pela razão, ou seja, por um esforço do pensamento complexo mas requintado, rigidamente formal mas rico de subtilezas. Esses mesmos conceitos inspiraram na arquitetura as catedrais góticas, a sua ascensão para Deus, através de construções complexas, mas requintadas, formalmente rigorosas, mas de igual modo ricas de pormenores. Deste modo, pode afirmar-se que o pensamento escolástico se vê perfeitamente expresso na arquitetura das catedrais góticas.

Conclusão: É certo que a constante instabilidade interna provocada pelas invasões bárbaras e pelo fim da Pax Romana, assim como a instabilidade externa causada pela constante ameaça dos vikings a norte e dos muçulmanos a oriente, sul e ocidente, fizeram a Europa mergulhar num limbo de paralisia e retrocesso cultural. No entanto, também foi esta Idade que produziu um alto paradigma de humanidade no ideal de cavalaria, e na catedral gótica com o exponente mais lato da arquitetura mundial.

Pe. Jorge Amaro, IMC






11 de outubro de 2024

Celebrar e viver a fé

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Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem algo contra ti, deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois volta para apresentar a tua oferta. Mateus 5:23-24

Alguém dizia que a vida do cristão decorre entre a Igreja e o mercado. "Ite missa est", dizia o sacerdote em latim ao despedir os cristãos após a celebração eucarística dominical. Esta expressão não só significa que a missa terminou, mas também que estamos em missão. O cristão ou está em missa, celebrando a sua fé, ou em missão, vivendo a sua fé. A celebração e a vida são inseparáveis. Celebramos o que vivemos e vivemos o que celebramos.

Não é possível ser cristão sem ter uma relação pessoal com Cristo, que se expressa na oração, e sem celebrar esse mesmo Cristo na Eucaristia, em comunhão com os outros que partilham a mesma fé. Se a oração e a penitência são a celebração individual de Cristo, a Eucaristia é a celebração comunitária de Cristo com a comunidade à qual pertencemos, pois não se pode ser cristão sozinho.

Celebra-se o que se vive, vive-se o que se celebra
Iludimo-nos ao pensar que, mesmo sem qualquer manifestação pública ou privada da nossa fé, continuamos a ser católicos. Mas isso não é verdade. Quem não consegue viver conforme aquilo em que acredita, tarde ou cedo começa a acreditar conforme vive.

Tudo o que é valioso na vida só se alcança com esforço; a passividade, o “dolce fare niente”, não nos leva a lado nenhum, pois na vida o que é bom ou custa dinheiro, ou custa esforço, ou ambas as coisas.

Os motores de um avião não só o impulsionam para a frente, como também o mantêm no ar. De facto, quando o piloto quer fazer o avião descer, o primeiro que faz é reduzir a potência dos motores, e assim o avião vai descendo gradualmente. Porém, se reduzir a potência para menos de 200 km/h, o avião cai. Neste mundo, pela lei da gravidade, o que não tem força para subir, desce.

A nossa natureza caída e os nossos instintos já exercem sobre nós uma força gravitacional para o mal; para vencermos o mal e crescermos como pessoas, temos de nos esforçar e contrariar essa força. A oração, o confronto com a Palavra de Deus e todas as práticas religiosas são uma ajuda essencial. Sem elas, estamos à mercê dos nossos instintos e dos valores que a sociedade promove. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação.”

“O espírito está pronto, mas a carne é débil.” (Mateus 26:41). O próprio Jesus experimentou que a fraqueza da natureza humana requer a ajuda da oração como exercício de autoconsciência, para nos mantermos em estado constante de alerta, e como solicitação da assistência divina, pois, como disse Jesus: “Sem mim, nada podeis fazer” (João 15:5).

Dizer que alguém é "católico não praticante" é um contrassenso, uma falácia. Não há pianistas, cantores ou futebolistas "não praticantes". Os dons, talentos ou aptidões que temos, se não os utilizarmos, perdemo-los. A fé é um desses dons que só se mantêm na medida em que são vividos e exercitados. “O que não se usa, atrofia-se”, diz o provérbio.

“O amor é como a lua: quando não cresce, mingua.” A fé também é assim: ou está a crescer e a fortificar-se, ou está a minguar e a enfraquecer. A liturgia da fé são os sacramentos, sobretudo a Eucaristia, a oração e a escuta da Palavra de Deus.

O amor também tem as suas liturgias: se não se expressa em palavras, poesia, canções, carícias e intimidade, começa a decrescer. A fé leva à prática das boas obras, e estas fazem a fé crescer. O amor é a mesma coisa; amar é querer o bem do outro e colocar-se ao serviço desse bem.

Eucaristia e Caridade
O pão eucarístico repartido é uma imagem ou um ato simbólico que nos recorda que, para sermos cristãos, outros Cristos, devemos repartir o nosso pão com os necessitados. Neste sentido, a Eucaristia, além de ser a celebração da paixão, morte e ressurreição do Senhor, é também um sacramento da memória.

Não apenas dos factos históricos, mas um ato simbólico que nos lembra outros gestos de Cristo (como montar num jumento em Jerusalém, lavar os pés aos discípulos ou expulsar os vendilhões do templo). Tudo isso nos mostra que a celebração da Eucaristia ritual só tem valor para quem celebra também a Eucaristia existencial, ou seja, quem reparte o pão com os pobres.

O cristão autêntico, o cristão a 100%, é aquele que celebra a memória do Senhor com a comunidade na Igreja, mas também individualmente na sua vida, dando esmola, ajudando e pondo em prática as palavras de Mateus 25: "Tive fome e deste-me de comer…". Quem reparte o pão apenas na Igreja, mas não o faz na vida, é meio cristão, assim como quem reparte o pão na vida, mas não o faz na Igreja.

Cristo está no pão que se dá em alimento; assim também nós devemos transformar-nos em pão para os outros. Devemos repartir o nosso tempo, energias e recursos, até nos darmos a nós mesmos. Cristo é pão, o pão é Cristo, e o pão que repartimos é Cristo dado aos outros. Deste modo, a prática cristã une-se à praxis cristã. A Eucaristia estende-se pela vida. "Ite missa est": termina o ritual e começa o existencial. Quando repartimos o pão físico, após o espiritual, reconhecemos Cristo nos outros.

Conclusão – A fé é uma atitude ante a vida que se celebra nos sacramentos especialmente na eucaristia, e se vive na caridade para com os outros. Não se pode divorciar a vida da celebração nem a celebração da vida. Quem não celebra o que vive não vive o que celebra.

Pe. Jorge Amaro, IMC

6 de outubro de 2024

Fé: A Moeda das relações humanas

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Pois andamos pela fé, e não pela vista
. 2 Coríntios 5:7

O ser humano não é apenas um ser autónomo, livre e independente, mas também um ser profundamente relacional. Nascemos de uma relação de amor, crescemos como seres humanos se formos amados incondicionalmente. Podemos ter tudo na vida, mas sem amor, nada temos. Podemos alcançar o topo da sociedade mas, se não amamos e não somos amados, não seremos felizes. Mais importante do que saber por que vivemos é compreender para quem vivemos.

A vida humana nasce e desenvolve-se no seio das relações com os outros. Estas relações podem ser analisadas pelas ciências, especialmente pelas ciências humanas, mas possuem algo que ultrapassa o âmbito científico. A ciência serve para conhecer as coisas, mas não é suficiente para conhecer as pessoas. A fé e o amor são os alicerces das relações humanas, e nenhum dos dois pode ser objeto de estudo científico.

Conhecer e amar
Conhecer algo implica domínio e controlo. Se sei o princípio que regula a chuva, posso manipulá-la, como fizeram os chineses antes da abertura dos Jogos Olímpicos para garantir que não chovesse durante a cerimónia. No entanto, Deus não se conhece dessa maneira. Conhece-se a Deus como se conhecem as pessoas: através da intimidade e da relação.

Uma pessoa só se revela e se dá a conhecer quando é amada. Pelo contrário, quando um inimigo nos conhece, tornamo-nos vulneráveis. Tal como uma pessoa, Deus só se revela àqueles que O amam. Não podemos conhecer a Deus ou a outra pessoa sem nos envolvermos pessoalmente. Deus e as pessoas humanas não podem ser reduzidos a objetos de laboratório. Amar implica um compromisso; o conhecimento sem amor torna-se manipulação.

A fé: a base da confiança nas relações humanas
A fé é um salto razoável, sustentado pela razão. É como quem caminha por um caminho e, ao chegar a um precipício, precisa saltar para o outro lado. Fé é avançar rumo ao futuro ou ver o presente a partir de uma realidade ainda não concretizada. É como navegar sem uma rota visível ou, como uma criança que se lança para os braços do seu pai ou mãe, confiando que será apanhada.

No âmbito do conhecimento, a fé não se encaixa na análise lógica dedutiva. Relaciona-se mais com a síntese e o conhecimento intuitivo. Ter fé é intuir que algo é correto, mesmo sem garantias absolutas; é como passar um cheque em branco, emprestar dinheiro ou um livro, confiando que será devolvido. Fé é arriscar e apostar no incerto.

A teoria da relatividade geral de Einstein foi, durante muito tempo, um ato de fé, nascido de uma intuição do próprio Einstein e só recentemente conseguimos obter provas da sua veracidade.

Quando aceito um cheque por um serviço prestado, acredito que ele tem cobertura. Seria ofensivo e poderia perder um amigo se o recusasse. Ao entrar num avião, confio que as autoridades fizeram o seu trabalho para evitar qualquer perigo e que os pilotos estão preparados e bem-intencionados. Ao comer num restaurante, confio na qualidade da comida, sem exigir que seja analisada previamente. Em algumas culturas, como na Etiópia, a cozinheira prova a comida à frente dos convidados para garantir segurança, mostrando como a confiança está no centro de todas as interações humanas.

No casamento, acredito que a união será para toda a vida. Mesmo num empréstimo bancário, o banco, após a devida análise, concede crédito baseado na confiança de que o cliente devolverá o montante. Até o cartão de crédito funciona com base na fé. Fala-se em "fé nos mercados" como se fala em "fé em Deus".

Até a autoestima se relaciona com fé em nós mesmos. Podemos acreditar ou não nas nossas capacidades e essa crença influencia como nos lançamos na vida. Muitas vezes, arriscamos sem ter certezas, esperando que o sucesso confirme os nossos talentos.

Se Deus não existe, a vida humana carece de sentido
(...) Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé (...) aqueles que morreram em Cristo perderam-se. E, se esperamos em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.
1 Coríntios 15:17-19

O enigma da existência humana está profundamente ligado à existência de Deus. Se Deus não existe, o ser humano, de certa forma, também deixa de existir como pessoa, e a sua vida perde o sentido. Filósofos que seguiram a ideia da "morte de Deus" — Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Søren Kierkegaard — afirmaram que, sem a existência de um ser superior, a vida se torna absurda. Para que a vida tenha sentido, é necessário que existam critérios que guiem a nossa existência e que não sejam fruto da criação humana — princípios que transcendam a nossa origem e que possuam autoridade sobre nós.

Sartre afirmou: "O inferno são os outros". Assim como os soldados do sumo sacerdote prenderam Cristo, Deus foi aprisionado por Feuerbach, julgado por Marx e Freud — que, ironicamente, tal como Anás e Caifás, também eram judeus — e, por fim, condenado à morte e executado pelo "Pilatos" de Nietzsche.

Ironia do destino, com a morte de Deus, morreu também o ser humano, pois a vida perdeu o seu sentido. Após Nietzsche, os filósofos tornaram-se pensadores do absurdo e da náusea, como Sartre, não tanto em resposta ao "cadáver de Deus", que não possui corpo, mas ao do Homem.

Contudo, após reconhecermos que a existência do ser humano está intrinsecamente ligada à existência de Deus, e embora Deus preexista e exista independentemente do homem, o ser humano é a criatura para a qual Deus existe. Apenas uma criatura consciente de si própria pode atingir a consciência da existência de Deus.

Tal como mencionámos ao falar do animismo, foi a constatação da morte do nosso corpo físico que originou o nosso "eu" espiritual; foi o reconhecimento da morte como um fim que moldou a nossa compreensão da existência como um "ser". A existência é temporal, mas o "ser" é eterno. O desejo de eternidade, em contraste com a realidade da nossa temporalidade, fez-nos acreditar na existência de Deus, criador de tudo e de todos, e alimentou a nossa sede de O conhecer.

Outra ironia do destino: agora, o outro, o meu semelhante, com quem vivia em harmonia na sociedade, como afirma Sartre, transformou-se num inferno para mim. E, segundo ele, a única forma de sair deste inferno seria eliminá-lo.

No auge do absurdo, estes pensadores chegam a negar a natureza trinitária do ser humano. Um ser humano não existe isoladamente, mas em coexistência com outros dois — o pai e a mãe. Ou existem três, ou não existe nenhum. Como podem os outros ser o inferno? É o amor ao próximo, como a nós mesmos, que garante a igualdade, um princípio fundamental para a sociedade e para o ser humano como ser social e integrante dela.

Sem o amor ao próximo, a vida em sociedade seria impossível e, sem esta, a própria vida individual cessaria de existir. Se todos pensassem como Sartre, este mundo seria verdadeiramente um inferno.

Por outro lado, é o amor a Deus acima de todas as coisas e pessoas que nos garante a verdadeira liberdade, um princípio essencial para a dignidade da pessoa humana. Sem liberdade, não há vida humana plena, não há indivíduo. Só nos libertamos das coisas e das pessoas quando entregamos o nosso coração a Deus e aceitamos o Seu senhorio.

Se não rendemos vassalagem a Deus, que nos faz livres, acabamos por nos submeter a outras realidades humanas e mundanas — o poder, o prazer, a riqueza, a popularidade, a beleza física — tornando-nos escravos dessas realidades e, consequentemente, idólatras, ou seja, adoradores de ídolos.

Conclusão – Sem Fé, a vida humana não é possível. Para viver como indivíduo livre, autónomo e independente, o ser humano precisa de confiar em si mesmo. Para viver em sociedade, na família, na comunidade, na sociedade em geral, é essencial confiar nos outros.

Pe.Jorge Amaro, IMC

1 de outubro de 2024

Cosmovisão dos Bárbaros

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Para os Gregos, os povos ao norte das suas fronteiras, falavam uma língua que os gregos não entendiam. Para eles balbuciavam algo como um bar-bar, o que deu origem à palavra bárbaro, que passou a designar o estrangeiro. Mais tarde, para os romanos, o termo latino barbarus, era aplicado aos povos estrangeiros que não falavam latim e não seguiam as leis romanas e também não participavam da sua civilização.

Os bárbaros que conquistaram o Império Romano do Ocidente eram tribos germânicas que nunca criaram cultura ou civilização nem estiveram sequer interessados em criá-la. Falamos dos hunos, dos vândalos, de onde vem a palavra vandalismo, dos godos, dos francos, dos lombardos e dos saxões e, mais tarde, já em plena Idade Média, dos vikings. Apelidar estes povos de bárbaros pode parecer depreciativo, mas estes povos eram de facto bárbaros, com uma cultura bem primitiva comparada à greco-romana, poucos valores humanos, dedicavam-se a destruir, matar, roubar, pilhar e violar.

Como ainda não conheciam a escrita, embora ela já existisse há muito tempo, viviam ainda na pré-história, por altura da Idade do Ferro, sendo o ferro o elemento mais importante para as suas guerras. De resto, o seu desenvolvimento cultural ou civilizacional tinha um atraso de mais de 2 000 anos em relação à cultura greco-romana.

A Grécia podia ter considerado a invasão romana como sendo uma invasão bárbara, uma vez que já possuía uma cultura em geral muito mais desenvolvida que a romana, embora os romanos fossem melhores em coisas como a administração do Estado, o Direito e a Arquitetura. A invasão romana da Grécia não foi tida como uma invasão bárbara pelos gregos porque os romanos, apesar de poderosos, eram também mais humildes que os gregos ao não imporem a sua cultura, nem a sua religião nem a sua língua como os gregos tinham feito aos povos dominados.

Os romanos aceitavam a cultura dos outros, respeitavam e eram tolerantes com os seus usos e costumes, e às vezes deixavam, como no caso da Galileia, que fossem governados pelos seus próprios reis, desde que pagassem tributo a Roma. De facto, Roma só fez valer a sua cultura nos povos que a não tinham, ou seja, em todo o Ocidente. Por isso no Ocidente se falam hoje línguas neolatinas; o português, o espanhol, o italiano, o francês, o romeno e 50% da língua inglesa.

No Oriente prevaleceu o grego que foi mais tarde a língua do Império de Bizâncio, o Império Romano do Oriente que durou bastante mais tempo, sendo suplantado por um império político-religioso, o Império Otomano que só acabou depois da I Guerra Mundial.

Com a queda do Império Romano, o mundo ocidental mergulhou naquilo a que os historiadores ingleses chamam a Idade das Trevas. Em relação à Idade Antiga, a Idade Média representou um retrocesso a todos os níveis. Os bárbaros que conquistaram o Império só estavam interessados nas suas riquezas, não em construir uma cultura ou uma civilização. A cultura teve de refugiar-se e esconder-se nos mosteiros, onde foi preservada uma versão cristã do mundo antigo. A Idade Média pode ser vista como um longo período em que a Igreja pacientemente foi educando estes bárbaros que detinham o poder político, com a cultura greco-romana que tinha herdado.

Causas da queda do Império Romano
Dado que o Império tinha crescido desmesuradamente, era imenso e difícil de governar. No século III, o Imperador Diocleciano dividiu-o em dois, entre Ocidente com a capital em Roma e Oriente com capital em Constantinopla ou Bizâncio. A curto prazo esta parecia ser uma boa medida para melhor governar um império tão vasto. No entanto, com o tempo, as partes começaram a divergir; no Ocidente falava-se apenas o latim, no Oriente falava-se apenas o grego. Sem inimigos, o Oriente cresceu em poder e riqueza, enquanto que o Ocidente foi definhando pouco a pouco, tanto a nível económico como militar.

Uma das principais causas da queda do Império Romano do Ocidente foi a invasão dos bárbaros, protagonizada pelos povos germânicos que habitavam a região a leste das fronteiras do Império. Entre outras causas contam-se também a decadência da economia baseada nos escravos que trabalhavam a terra e eram artesãos, a desestruturação militar assim como o gasto militar em guerras fronteiriças que nunca terminavam.

O processo de entrada dos povos germânicos no Império Romano ocorreu inicialmente de forma gradual. A nordeste da Península Itálica, as fronteiras do Império Romano tinham como limite os rios Danúbio e Reno. Os povos e tribos que habitavam para além desses rios eram considerados pelos romanos como germanos.

Desde o tempo de César que os romanos tinham conhecimento da existência desses povos. Estavam organizados em clãs, não possuíam uma instituição estatal como a romana, e as suas leis eram baseadas na tradição, transmitida oralmente, pois não conheciam a escrita. Dedicavam-se à agricultura e ao pastoreio. Pelo clima frio em que viviam eram destemidos e aguerridos. Eram povos guerreiros, o que lhes valeu a fama de serem violentos e cruéis.

Ao princípio no espírito da famosa Pax Romana, os romanos estabeleceram pactos com estas tribos; como dissemos anteriormente, os romanos só estavam interessados no pagamento do tributo a Roma e, quando os povos dominados o faziam, era-lhes concedido um elevado grau de autonomia. Porém, com o enfraquecimento do poder central, estes povos foram adquirindo cada vez mais autonomia e independência, constituindo-se em autênticos reinos que a enfraquecida Roma já não tinha poder para enfrentar.

Por volta do ano 300 d.C., grupos bárbaros como os godos invadiram as fronteiras do Império. Os romanos resistiram a uma revolta germânica no final do século IV, mas em 410 o Rei visigodo Alarico saqueou com sucesso a cidade de Roma. O Império passou as décadas seguintes sob ameaça constante, antes de "a Cidade Eterna" ser invadida novamente em 455, desta vez pelos vândalos.

Finalmente, em 476, o líder germânico Odoacer encenou uma revolta e depôs o Imperador Romulus Augustulus. A partir daí, nenhum imperador romano voltaria a governar a partir de um posto na Itália, levando muitos a citar 476 como o ano em que o Império Ocidental sofreu o seu golpe mortal.

Origem das tribos germânicas
Os povos germânicos são originários das planícies da Dinamarca e do sul da Escandinávia. Existem vestígios de assentamentos humanos nesta zona que datam do Neolítico, quando o homem começou a controlar a Natureza, domesticando a terra e as plantas assim como algumas espécies de animais para o seu sustento.

Quando falamos de tribos germânicas, falamos de muitas tribos das quais as mais importantes são os hunos, os vândalos, os godos, os visigodos e os ostrogodos, os francos, os lombardos, os saxões e os anglo-saxões.

Os vikings eram também fundamentalmente uma tribo germânica que habitava mais a norte, na Escandinávia e que assolou a Europa como piratas durante a Idade Média, quando as tribos germânicas já estavam estabelecidas, formando os primeiros Reinos depois da queda do Império Romano.

Como a população germânica crescia e o Império enfraquecia, os povos germânicos começaram a emigrar em todas as direções, mas mais para o sul e oeste, em busca de melhores terras pois as suas já não chegavam. Ostrogodos, visigodos e lombardos entraram em Itália; vândalos, e francos e visigodos conquistaram grande parte da Gália e dos celtas que ali habitavam, vândalos, suevos e visigodos invadiram a Península Ibérica. Destes, os vândalos chegaram a estabelecer-se no norte de África, em Cartago e os alanos estabeleceram-se no Reno e nos Alpes.

Na Grã-Bretanha, os saxões uniram-se aos anglos e a outras tribos locais, formando os anglo-saxões que dominaram a Inglaterra até à conquista dos normandos, já na Idade Média. No resto das ilhas, Escócia, País de Gales e Irlanda continuaram a ser maioritariamente celtas. Os celtas não eram uma tribo germânica. Tinham cultura própria e habitavam a Europa Central. Eram os famosos habitantes da Gália, os gauleses conquistados por Júlio César. Também tinham invadido a Península Ibérica antes dos romanos, unindo-se aos primeiros povos que a tinham invadido, os iberos, provenientes do norte de África.

Cultura e organização das tribos germânicas
A sociedade germânica primitiva caracterizava-se por um rigoroso código de ética, que valorizava sobretudo a confiança, a lealdade e a coragem. Adquirir honra, fama e reconhecimento era uma ambição primordial. A independência, a autonomia e a individualidade eram valores muito enfatizados.

É provavelmente esta a razão pela qual os povos germânicos nunca constituíram um grande império ou mesmo um Estado germânico unificado. O ambiente em que os povos germânicos emergiram, nomeadamente a sua ligação à floresta e ao mar, desempenhou um papel importante na formação destes valores. A literatura oral germânica está cheia de desprezo por personagens que não conseguiram viver os ideais germânicos.

Na língua germânica, ger-man significa o homem da lança. Para os povos germânicos, a perda da lança ou do escudo era o equivalente à perda da honra. Os germânicos eram guerreiros por natureza, nasciam na guerra e para a guerra; desde pequenos, eram treinados na arte da guerra tal como os espartanos. A lealdade e devoção ao clã a que pertenciam e, por este, à tribo e ao seu líder, era um dos valores mais altos do germânico; este sentido de união conseguiu-lhes muitas vitórias.

A realeza é, portanto, um elemento fundamental que une a sociedade germânica. Como aconteceu com outros povos, a sua origem como instituição é sagrada e, por isso, o rei combina as funções de líder militar, sumo sacerdote, legislador e juiz.

A monarquia germânica era, em parte, eletiva; o rei era eleito pelos homens livres de entre candidatos elegíveis de uma família que pudesse traçar a sua ascendência até ao fundador divino ou semidivino da tribo. Embora a sociedade germânica fosse altamente estratificada entre líderes, homens livres e escravos, a sua cultura também enfatizava a igualdade. Ocasionalmente, os homens livres da tribo chegavam a anular as decisões dos seus próprios líderes.

Por influência do Império Romano, o poder dos reis germânicos sobre o seu próprio povo aumentou ao longo dos séculos, em parte porque as migrações em massa do tempo exigiam uma liderança mais severa.

Literatura
Como os germanos não conheceram a escrita antes do seu encontro com a cultura romana, a literatura germânica passava oralmente de geração em geração. O seu conteúdo estava ligado ao seu objetivo principal que era honrar os deuses ou louvar os antepassados tribais, chefes, guerreiros e seus associados, esposas e outros familiares.

Religião
Segundo o escritor romano Tácito, os povos germânicos adoravam principalmente "Mercúrio", mas também "Hércules" e "Marte". Estes eram geralmente identificados com Odin, Thor e Týr, os deuses da sabedoria, trovão e guerra, respetivamente. Também veneravam as deusas Nerthus e Freya.

As descobertas arqueológicas sugerem que os primeiros povos germânicos praticavam alguns dos mesmos rituais “espirituais” que os celtas, incluindo o sacrifício humano, a adivinhação e a crença na conexão espiritual com o ambiente natural que os rodeava. Como os romanos, havia uma diferença entre o culto doméstico e o culto da comunidade; em casa, o pai de família desempenhava o papel de sacerdote.

As cerimónias religiosas eram executadas em bosques, lagos e ilhas considerados sagrados, e não em templos; os povos germânicos não construíram templos para realizar os seus ritos religiosos. Para os sacrifícios oferecidos aos deuses, todo o tipo de gado era abatido, e até mesmo pessoas, sendo o sangue aspergido sobre o povo que depois fazia brindes aos deuses e comia a carne. As vítimas, tanto humanas como animais eram penduradas nas árvores. Uma das árvores do bosque seria a mais sagrada entre todas as outras e por baixo dela estaria um poço no qual um homem vivo seria sepultado.

Não se conhece nenhuma conceção comum a todas as tribos germânicas sobre a vida após a morte. Alguns acreditavam que os guerreiros heróis caídos iriam para Valhalla para viver felizes com Odin, enquanto que os maus poderiam perseguir os vivos depois de mortos; se isso acontecesse, teriam de ser mortos mais de uma vez para deixarem de perseguir os vivos. Provavelmente foi aqui que a série “Guerra dos Tronos” se inspirou para criar os “Walkers”, mortos-vivos que tinham de ser mortos pelo fogo para permanecerem mortos.

Depois da conquista do Império Romano, os povos germânicos foram-se paulatinamente convertendo ao cristianismo em diferentes períodos: os godos no século IV, os saxões nos séculos VI e VII, por pressão dos francos já convertidos; os dinamarqueses, sob pressão alemã, no decorrer do século X. O paganismo aguentou-se por mais tempo nas terras mais a norte, Islândia, Noruega e Suécia.

Conclusão: Apesar de levarem um atraso significativo de mais de 2000 anos em relação ao desenvolvimento cultural e à civilização greco-romana, os povos germânicos contribuíram para a Europa medieval com os seus valores de autonomia, independência e liberdade, fundamentados no princípio de que todos somos iguais em dignidade.

Pe. Jorge Amaro, IMC