1 de setembro de 2024

Cosmovisão Cristã


O poder divino deu-nos tudo o que contribui para a vida e a piedade, fazendo-nos conhecer aquele que nos chamou por sua glória e sua virtude
. 2 São Pedro 1, 3

O cristianismo, como herdeiro do judaísmo, assumiu, assimilou e implementou tudo o que de bom os judeus trouxeram ao mundo. Jesus de Nazaré é fundamentalmente um judeu que veio, não abolir o judaísmo e as suas leis (Mateus 5,17), mas sim purificá-lo; o importante não é a letra da lei e o seu cumprimento formal, mas o espírito da lei e a sua vivência na vida real.

Como Jesus se apresentou ao Homem como o único modelo de humanidade, medida de referência, paradigma, único caminho, única verdade e única forma de viver a vida, (João 14, 6), ser cristão e ser autêntica e genuinamente humano são uma e a mesma coisa. Não há uma moral cristã e uma moral ou ética humana, porque Cristo é o único padrão de referência para nos medirmos e avaliarmos até que ponto somos humanos.

Para além de um programa de salvação individual, caminho, verdade e vida para a saúde mental, espiritual, moral e física do ser humano de acordo com a sua natureza, Cristo apresentou também um programa de salvação da sociedade, do ser humano enquanto ser social: o Reino de Deus que é, como diz São Paulo (Romanos 14.17), justiça e paz.

A cosmovisão cristã é enxergar o mundo, é ver e entender o mundo com os olhos de Cristo, a partir da sua perspetiva, da sua ótica. Partindo desta perspetiva, a cosmovisão tem que ver também com a forma como atuamos com o mundo e no mundo, o lugar que nele ocupamos. Enquanto a cosmovisão materialista responde com NADA à pergunta sobre a nossa origem, o nosso destino e o sentido da nossa vida, a cosmovisão cristã responde a estas mesmas perguntas da seguinte forma:

De onde vimos? – Vimos de Deus, criador do Universo, de tudo e de todos, do tempo, do espaço e da matéria ou energia. Tudo fez bem feito e criou por amor. A nós, humanos, criou-nos à sua imagem e semelhança. Ou seja, para além de sermos, como tudo o resto, seres espácio-temporais que ocupam um espaço durante um tempo, ao contrário das outras criaturas, temos em nós uma semente de eternidade, uma vertente espiritual que está em nós para que a façamos crescer, para entrarmos na eternidade com Deus.

Para onde vamos? – Vamos para Deus que sustém a nossa vida para além da morte, pelo que esta não é o nosso destino final, mas uma passagem para a eternidade. Como o nascimento foi uma passagem do seio da nossa mãe para o seio do mundo, a morte será o nascimento para o Céu, ou seja, a passagem do seio deste mundo para o Seio de Deus, o regresso à casa Paterna parafraseando a parábola do filho pródigo, ou o fim da nossa peregrinação.

Que sentido tem a vida? – “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (João 10, 10). O sentido, o objetivo da nossa vida é dar glória a Deus. Dar glória a Deus que nos criou é a melhor forma de usarmos os talentos recebidos e de nos autorrealizarmos, atingindo a felicidade que é a vida em abundância que Deus quer para nós.

Fomos tirados do nada para fazermos alguma coisa com as nossas vidas, para que, usando o nosso corpo físico, recursos, matérias e talentos de que dispomos, como andaimes do corpo espiritual, façamos germinar a tal semente de eternidade que está em nós.

Todo o bem material pode ser espiritualizado no alambique da nossa vida, tal como de toda a fruta ou vegetal se pode destilar álcool ou extrair um perfume de flores que sobe a Deus. Criados do nada à imagem e semelhança de Deus, está em nós fazer alguma coisa com a nossa vida, ou voltar ao nada que seria a morte eterna.

Vivendo como Cristo e medindo-nos constantemente em relação a Ele, como modelo e paradigma de humanidade para a humanidade, adquirimos a filiação divina, transformamo-nos em filhos adotivos de Deus, segundo o direito romano com os mesmos direitos que o Filho Unigénito de Deus, Cristo. (Romanos 8,14-16)

Por outro lado, como somos um ser não só individual e cultivador de liberdade, mas também um ser social cultivador de igualdade, lutamos como Cristo por um mundo melhor, de mais justiça, paz e fraternidade, buscamos alargar o reino de Deus, projeto que Cristo trouxe à Terra.

É nesta luta que nos realizamos individualmente, pelo que não há autorrealização individual sem dimensão social. Quem não é útil para os outros é um inútil para si mesmo. Quem não vive para servir não serve para viver, não serve para nada e o que não serve para nada é lixo.

O evangelho, a melhor narrativa humana de todos os tempos

O cristianismo no Novo Testamento, em especial nos evangelhos que relatam a vida, o talante e os ditos de Jesus de Nazaré, possui a narrativa mais fascinante de todos os tempos. A cosmovisão, a ética, a filosofia de vida, os direitos humanos, o que é verdadeiramente humano, está exposto no evangelho.

O cristianismo é uma religião histórica porque os evangelhos não são relatos mitológicos, como os livros sagrados de outras religiões. Os evangelhos falam de uma personagem histórica, Jesus de Nazaré, da sua vida, do seu comportamento em situações do dia a dia, dos seus milagres e curas, dos seus feitos e das suas pregações e ensinamentos.

Desde que foram escritos por quatro autores diferentes, têm sido objeto de estudo e pesquisa. Nunca nenhuma obra literária foi tão submetida à critica literária, histórica, hermenêutica, gramatical, minuciosamente palavra por palavra.

A parábola do Filho Pródigo talvez seja o conto mais pequeno e mais significativo que a humanidade criou. Inspirou poetas, pintores, músicos, a literatura e formatou a ideia universal do perdão incondicional. É difícil falar de perdão sem mencionar esta parábola.

A parábola do Bom Samaritano entrou na mente e no imaginário de todos os homens como sinónimo de solidariedade com o que sofre ou com o que pontualmente precisa da nossa ajuda. Samaritano hoje, mais que habitante de Samaria, significa pessoa empática que chora com quem chora e sofre com quem sofre.  

O evangelho é a magna carta da vida humana, o padrão de referência, o critério máximo de humanidade que serve de genuína e autêntica referência a cada indivíduo. Não há no mundo qualquer narrativa que supere os evangelhos em humanidade. Os evangelhos têm sido o texto inspirador da civilização ocidental, o farol que a ilumina.

A carta dos direitos humanos das Nações Unidas, que quase todos os países assinaram, está clarissimamente decalcada do evangelho. O cristianismo desempenhou um importante papel na extinção de práticas como o sacrifício humano, a escravidão, o infanticídio e a poligamia. De forma geral, afetou o estatuto das mulheres, condenando o infanticídio (bebés do sexo feminino tinham maior probabilidade de serem mortos), o divórcio, o incesto, a infidelidade, o controlo de natalidade, o aborto e defendendo o casamento e a família como célula da vida social.

O cristianismo é a religião mais praticada no planeta, mãe e mentora da civilização ocidental, que é a mais desenvolvida e mais estendida no mundo. Por isso, o cristianismo formatou não só a mente dos cristãos, mas também a mente de quase todos os seres humanos habitantes deste planeta, mesmo até de muitos que se recusam a reconhecê-l’O, como as sociedades muçulmanas.

As festas da Páscoa e do Natal são marcadas universalmente como feriados; o calendário gregoriano (do Papa Gregório XIII) foi adotado internacionalmente como o calendário civil; e o próprio tempo é medido pelo Ocidente a partir da data calculada do nascimento de Jesus de Nazaré: a AD (Anno Domini). Na lista das 100 pessoas mais influentes na história humana, 65% são figuras cristãs de diversas áreas.

Libertação das mulheres

O direito das minorias em relação às maiorias, o respeito pela orientação sexual de cada um, a libertação das mulheres, os valores próprios da civilização ocidental que a colocam na vanguarda dos direitos humanos, não se explicam sem o evangelho.

Jesus foi a pessoa mais feminista que o mundo conheceu; o único fundador de uma religião que nunca fez uma afirmação contra as mulheres, que as tratou como iguais aos varões, que teve discípulas - coisa nunca vista antes ou depois dele (ainda hoje os rabinos não têm discípulas). É certo que os seus discípulos seguiam a mentalidade patriarcal do mundo circundante mais que o comportamento do mestre. Porém, não podemos negar a importância do evangelho na conversão das mentes e dos corações para a igualdade de género, que começou na civilização ocidental e, pouco a pouco, vai sendo assumida pelas outras civilizações, sendo a muçulmana a mais reticente na matéria.

É certo que nem no Ocidente a mulher goza ainda de plena igualdade, mas é certamente no Ocidente cristão que a mulher goza de mais direitos. O que faz variar o grau de igualdade de género não é a riqueza ou pobreza; ou seja, não é necessariamente nos países mais ricos que a mulher é tratada de igual para igual. A Arábia Saudita é rica e, no entanto, as mulheres ali são tratadas como cidadãs de segunda classe. O fator determinante é a cultura, não a riqueza.

O Japão e as Filipinas são dois países asiáticos não muito distantes um do outro; o primeiro é bem mais rico que o segundo e, no entanto, há muito mais igualdade de género nas Filipinas que no Japão. Como países asiáticos que são, há elementos culturais que são comuns. A grande diferença é que as Filipinas são um país cristão desde há 500 anos, enquanto que no Japão o cristianismo nunca conseguiu penetrar de forma a influenciar a cultura. Os restaurantes onde a comida é servida no corpo nu de um adolescente não existem nas Filipinas e é de todo impensável que alguma vez possam existir.  

Consciência moral e objeção de consciência
Num dia de sábado, o Senhor caminhava pelos campos e seus discípulos, andando, começaram a colher espigas. Os fariseus observaram-lhe: “Vede! Por que fazem eles no sábado o que não é permitido?”. Jesus respondeu-lhes: “Nunca lestes o que fez Davi, quando se achou em necessidade e teve fome, ele e os seus companheiros?

Ele entrou na casa de Deus, sendo Abiatar príncipe dos sacerdotes, e comeu os pães da proposição, dos quais só aos sacerdotes era permitido comer, e os deu aos seus companheiros”. E dizia-lhes: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado; e, para dizer tudo, o Filho do Homem é senhor também do sábado. Marcos, 2, 22-28

Num dos seus discursos inflamados, com o intuito de guiar o povo alemão para a II Guerra Mundial, Hitler reconheceu que a consciência moral foi invenção judaica. A lei aplicada, sei epiqueia, transforma-se em injustiça, pelo que os antigos romanos diziam “sumum jus summa injuria”: uma coisa é ser justo, outra é ser justiceiro. A consciência moral como a objeção de consciência, são criações do cristianismo.

Sobre a nossa consciência moral não há nenhum poder, é na nossa consciência moral que somos livres, pessoas de direitos e deveres, de responsabilidade e de opções livres. Posso objetar em pegar em armas e ir para a guerra matar irmãos meus; posso objetar praticar um aborto ou auxiliar alguém a morrer. O Estado não pode obrigar-me a nada a que a minha consciência moral não me obrigue.

Outros valores mais altos se levantam, como diria Camões. A nossa consciência moral, bem formada e informada pelo evangelho, doutrina e tradição da Igreja, numa hierarquia de valores discerne em cada situação com a ajuda do Espírito Santo o que fazer ou não fazer. Se eu estiver a caminho de uma Igreja num domingo para participar na Eucaristia e alguém me pedir a ajuda urgente, eu devo deixar o valor da eucaristia para assistir o meu irmão.

O texto acima cita Jesus que diz que é Senhor do Sábado, todos somos senhores do Sábado, da lei, da regra, da norma; aí está a dignidade e liberdade da pessoa humana. Jesus cita a exceção de David que, pelos vistos, também já usava a sua consciência moral para discernir o que fazer em cada momento. Roubar é pecado, mas roubar para comer não é pecado, diz o povo.

Pecado está naquele que tem em demasia e não compartilha com o que não tem. “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. A lei existe em função da vida, da autorrealização e da felicidade humana e não ao contrário.

Liberdade e igualdade
O valor humano da dimensão individual do ser humano é a liberdade; o valor humano da dimensão comunitária do ser humano é a igualdade. Liberdade e igualdade são os valores sobre os quais assenta a vida humana e sobre os quais assentam os sistemas políticos e económicos da sociedade.

O capitalismo exacerba a liberdade, o socialismo exacerba a igualdade. O equilíbrio ou harmonia da liberdade e da igualdade são tão difíceis de interiorizar para o indivíduo como para a sociedade. O mundo mundano não tem uma fórmula ideal para harmonizar as duas dimensões; mas o cristianismo tem: o mandamento do amor.

A cruz, símbolo do cristianismo, é onde a verticalidade do amor a Deus sobre todas as coisas e a horizontalidade do amor ao próximo como a si mesmo se encontram e harmonizam. Sem liberdade não há vida humana, sem igualdade não há vida social, sem fraternidade não há uma nem outra.

Estado social

O Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que saiu ao romper da manhã, a fim de contratar operários para a sua vinha. Ajustou com eles um denário por dia e enviou-os para sua vinha. (…) pela undécima hora, encontrou ainda outros na praça e perguntou-lhes: “Por que estais todo o dia sem fazer nada?” Eles responderam: 

“É porque ninguém nos contratou”. Disse-lhes ele, então: – Ide vós também para minha vinha. Ao cair da tarde, o senhor da vinha disse a seu feitor: “Chama os operários e paga-lhes, começando pelos últimos até os primeiros”. Vieram aqueles da undécima hora e receberam cada qual um denário. Mateus 20, 1-2, 6-9

O Estado Social não foi inventado por Karl Marx quando disse que o Estado deveria exigir de cada um segundo as suas possibilidades e dar a cada um segundo as suas necessidades. O Estado Social, como tantas coisas que hoje assumimos como parte da nossa cultura, foi criado por Jesus e já aplicado pelos apóstolos na primeira comunidade cristã de Jerusalém, onde tinham tudo em comum e a cada um se lhe dava segundo as suas necessidades (Atos dos Apóstolos 2 44- 47).

Quando, como diz a parábola acima descrita, o patrão pagou aos que trabalharam uma única hora o mesmo que os que trabalharam o dia todo, o patrão não pagou segundo o trabalho feito, mas segundo as suas necessidades.

Os trabalhadores que estiveram na praça o dia inteiro porque ninguém os contratou tinham as mesmas necessidades que os que trabalharam o dia todo, uma mulher e filhos para sustentar. O patrão, consciente disso, pagou-lhes o mesmo que aos que suportaram o peso do dia e o calor. Nisto Jesus inventou o Estado Social onde a cada um é exigido segundo as suas possibilidades e dado segundo as suas necessidades.

O cristianismo é uma religião não religiosa, mas civil
Os justos lhe perguntarão: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar?”. 

Responderá o Rei: “Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes. (…) todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer”. “E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna”. Mateus, 25, 37- 40, 45, 46

Quando Jesus aparece a Paulo, não lhe pergunta “Porque persegues os meus discípulos?”, mas sim “Porque me persegues?”. Jesus, o irmão maior, o irmão universal, está do lado do injuriado contra o injuriador, do lado do pobre contra o rico, do lado do oprimido contra o opressor, é Ele que faz com que a injustiça não tenha última palavra.

Se uma adolescente regressasse a casa de noite sozinha e fosse alcançada por um grupo de delinquentes com o intuito de a violar, decerto essa violação seria consumada, pois a menina não teria como defender-se. Porém, se um desses delinquentes reconhecesse a moça como sendo a irmã de um polícia temido e destemido, o grupo pensaria duas vezes antes de consumar a violação e muito provavelmente buscaria outro alvo. Cristo é o nosso irmão maior, o nosso irmão temido e destemido, com Ele a nosso lado nada temos a temer.

O verdadeiramente revolucionário no texto de Mateus é que Jesus converte a religião numa questão civil; já o tinha feito ao dizer que os únicos dois mandamentos que valem são o do amor a Deus, garantia de liberdade, e o do amor ao próximo, garantia de igualdade. Neste último texto, não há nenhuma pergunta religiosa, as perguntas do Juízo Final não são acerca da religião que praticaste, a que igreja ias ou mesmo se eras ou não ateu; todos serão julgados pelo grau de humanidade e não pela sua prática religiosa.

Cristo, de facto, veio ao mundo para ensinar o Homem a ser homem; os que, com Cristo ou sem Cristo, mostraram na vida do dia a dia um alto grau de humanidade, entram na vida eterna; os que ao contrário viveram para si mesmos cultivando valores temporais, reduziram a nada a sua vida e ao NADA voltarão, morrendo eternamente.

Conclusão: O cristianismo revela a natureza humana e mostra o caminho como esta pode ser vivida, de modo a alcançar a plenitude da vida neste mundo e no próximo. Ser autêntica e genuinamente humano e ser cristão são uma e a mesma coisa. 

Pe. Jorge Amaro, IMC


 

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