1 de junho de 2024

Cosmovisão do Rio Amarelo

Também chamado “Rio de tristeza”, o Rio Amarelo (Huang He) é um dos mais perigosos rios do mundo. Desde que há memória, já mudou de curso 26 vezes, produziu mais de 1 500 inundações e matou milhões de pessoas. Chama-se Amarelo porque as suas águas são sempre barrentas; ainda hoje, quando os chineses querem dizer nunca, dizem, “Quando as águas do Rio Amarelo correrem cristalinas”, coisa que nunca acontecerá.

O Rio Amarelo nasce no planalto do Tibete e atravessa o norte da China, de oeste a este, desaguando no Mar da China, no Oceano Pacífico. O potencial de destruição deste rio deve-se à imprevisibilidade das suas cheias, ao contrário do que acontecia com os rios Indo, Tigre, Eufrates e Nilo cujas inundações eram periodicamente esperadas e onde se desenvolveram as outras civilizações que estudámos.

Apesar da destruição que causou, a bacia hidrográfica deste rio foi o berço da civilização chinesa, a quarta civilização depois da Mesopotâmia, do Egito e do Vale do Indo. Pela arqueologia sabemos que o Homo Sapiens habitou esta zona desde o ano 6 000 a.C., no Neolítico, mas só começou a constituir civilização depois da criação da escrita, já na Idade do Bronze (1 600 a.C.–1 046 a.C.).

Os primeiros chineses, estabeleceram-se nas terras férteis do Rio Amarelo, compostas por um sedimento trazido e depositado pelas águas ao longo de milénios dos planaltos da China central e pelos ventos que vinham dos desertos a oeste. Nesta terra irrigada, os chineses cultivaram painço, hortaliças e frutas nativas, sobretudo ao longo do alto e médio curso do rio.

No setor baixo do Rio Amarelo, cultivavam arroz. Durante o terceiro milénio a.C., o excedente de produção favoreceu o estabelecimento de vilarejos permanentes e, em meados daquele milénio, havia quase uma sucessão contínua de povoados e vilas ao longo do rio, dando forma a um princípio de civilização.

Génese da civilização
A teoria clássica é de que a civilização chinesa do Rio Amarelo apareceu como que por geração espontânea, uma vez criadas as circunstâncias ideais, da mesma forma que surgiram a civilização suméria do Tigre e Eufrates, a egípcia do Nilo e a indiana do vale do Indo.

Embora esta seja uma perspetiva aceite de forma geral, tanto arqueólogos chineses como europeus e americanos defendem, por mais atualizados estudos feitos, que a civilização do Rio Amarelo foi importada tanto da Mesopotâmia como do Egito.

Era de esperar que China se defendesse ideologicamente afirmando que isto não é verdade, da mesma forma que certos arqueólogos contrapõem se calhar também ideologicamente com provas de que houve muitas influências do Crescente Fértil. A melhor forma de apurar a verdade seria descobrir a verdadeira idade da Rota da Seda, a famosa rota comercial que unia a Europa com a Asia..

Longe destas polémicas, com influências ou sem elas, a civilização do Rio Amarelo que deu lugar à cultura chinesa cresceu em total ou parcial isolamento relativamente às outras civilizações e a prova está não só no tipo de escrita, mas também em outras descobertas mais tardias que são autêntica e genuinamente chinesas.

Lenda da criação do mundo
Todas as culturas têm um mito de criação para explicar as suas origens. Na China, é a lenda de Pan Gu que, entre muitas outras, relata a seguinte história: no início, o cosmos era um gás que se solidificou numa colossal pedra. Desse ovo cósmico, nasceu uma criatura chamada Pan Gu, que viveu 18 mil anos, crescendo 3 metros por dia, e que ocupava o seu tempo picando a pedra até que se dividisse em duas partes:  uma tornou-se no céu (yang) e a outra tornou-se na terra (yin).

Quando Pan Gu completou o seu trabalho e morreu, a sua cabeça transformou-se em montanhas; a sua respiração tornou-se no vento e nas nuvens; a sua voz, no trovão; o seu olho esquerdo, no sol, e o seu olho direito, na lua. Os seus músculos e veias tornaram-se na matriz da terra, e a sua carne, no solo. O seu cabelo e barba viraram constelações, e a sua pele e pelos do corpo transformaram-se em plantas e árvores. Os seus dentes e ossos tornaram-se em metais, e o seu tutano tornou-se em pérolas e pedras preciosas. O seu corpo formou a chuva, e os piolhos sobre ele foram impregnados pelo éter e tornaram-se em seres humanos (Wong e Wu, 1936).

Os antigos chineses acreditavam que tudo no mundo tinha duas forças aparentemente opostas que existiam em relação uma com a outra. Chamaram a estas forças Yin e Yang. A qualidade das nossas vidas e o bem-estar geral do nosso mundo dependem de tendências opostas estarem em equilíbrio uma com a outra. Poderíamos estabelecer um paralelo entre o Yin/Yang da civilização chinesa com o Eros/Thanatos Instinto de vida, e Instinto de morte, agressão e afeição freudiano.

As forças "masculinas" foram definidas como Yang, simbolizadas pelo sol, e as forças "femininas" foram consideradas Yin e simbolizadas pela lua. Para manter o céu a funcionar sem problemas, o Rei na China antiga tinha o trabalho de manter o equilíbrio entre o sol e a lua; da sua saúde dependia também a saúde do povo.

Céu e Terra são o reflexo um do outro
O que acontece na Terra acontece no céu e vice-versa: é a ideia típica da cosmovisão de todos os povos antigos e também da cultura greco-romana. Os reis chineses e os seus astrónomos mediram, rastrearam e previram o comportamento dos corpos celestes porque acreditavam que o que acontecia nos céus estava intimamente ligado com o que acontecia na Terra.

Como todos os opostos de Yin-Yang, o Céu (masculino) e a Terra (feminino) refletiam-se mutuamente. Se houvesse uma perturbação nos Céus, a causa provavelmente estava na Terra. Da mesma forma, se algum dos corpos celestes se desviasse de lugar, o desequilíbrio de forças resultante causaria problemas na Terra.

Pensamento e medicina chinesa
O pensamento chinês baseia-se no princípio do conhecimento da natureza como caminho para atingir o estado de harmonia. A conceção de harmonia é inerente a diversas culturas antigas, traz em si a ideia do equilíbrio entre os diferentes aspetos do cosmos. Dentro desta visão holística, o homem é visto como parte integrante e inseparável deste todo e, além disso, como um microcosmo que contém em si processos semelhantes aos que ocorrem na natureza.

Citada no Livro das Mutações, em aproximadamente 700 a.C., a teoria do Yin Yang é a base da medicina chinesa. A energia Qi é considerada vital, a principal que dá origem ao céu, à terra e ao Yin-Yang, ou seja, a dualidade energética. O Yin é a energia que está relacionada com a insuficiência enquanto o Yang se relaciona com os excessos.

Acredita-se que as doenças são resultado do desequilíbrio entre Yin e Yang. Assim, as que se caracterizam como Yin são calmas, fracas, frias, húmidas, hipofuncionantes e crónicas. Já as que possuem características Yang são agitadas, fortes, quentes, secas, hiperfuncionantes e agudas. Após determinar se a pessoa é Yin ou Yang, é possível escolher os componentes que irão funcionar melhor na terapia que terá como principal objetivo ajustar a circulação do Qi pelo corpo.

Embora opostos, Yin e Yang são interdependentes, não podendo existir de forma isolada um do outro e estão em estado de constante mudança, de modo que, quando um é consumido, o outro aumenta. O consumo de Yin leva a um ganho de Yang e o consumo de Yang leva a um ganho de Yin.

Yin e Yang podem transformar-se um no outro. Essa transformação ocorre quando as condições adequadas se reúnem. Por exemplo, ao final do dia começa a noite e, do mesmo modo, uma estação sucede a outra, no ciclo das estações. No limite da fase Yin de um ciclo começa a fase Yang do mesmo.

Neste ponto, fica claro como o conhecimento se torna num instrumento de prevenção, e também como a medicina chinesa é, acima de tudo, uma medicina preventiva ao ajudar-nos a estar em conformidade não apenas com o nosso próprio ritmo, mas também com o ritmo do que nos cerca. A perceção dos padrões específicos de cada situação torna possível identificar tanto a origem quanto o provável desenvolvimento de uma patologia.

Sociedade patriarcal chinesa
Ao princípio masculino Yang eram atribuídas qualidades frequentemente interpretadas como superiores, ao passo que ao princípio feminino Yin eram atribuídas qualidades consideradas como inferiores. É fácil ver como esta cosmovisão antiga chinesa levou a uma sociedade patriarcal, com base nesta justificação antiga do baixo estatuto das mulheres na sociedade.

A preferência por rapazes refletia-se na família, que era uma instituição venerada na antiga sociedade chinesa. Esta preferência nos tempos modernos da política do filho único tem levado ao mascare de milhares de milhões de meninas, a tal ponto que hoje há mais homens que mulheres na China.

Os laços familiares eram sagrados e hierárquicos. Numa sociedade agrária, era o trabalho dos filhos que daria aos pais segurança na velhice. Como a propriedade da família passava para o filho mais velho, eram os meninos que asseguravam a continuidade familiar ao longo de gerações.

As filhas, por outro lado, eram consideradas meramente como bocas para alimentar que acabariam noutras famílias, normalmente à custa de um precioso dote. As raparigas eram tratadas como propriedade, compradas e vendidas entre famílias, ou mesmo intermediadas através de casamenteiras. Se uma esposa não conseguisse produzir um filho, era muitas vezes substituída ou despromovida pelo marido, que se casava com outras esposas até que a família tivesse o seu filho.

Não havia aqui nada de novo, o que vemos na sociedade chinesa vemos em todas as culturas e civilizações do globo, onde a mulher é ser humano de segunda categoria para ser explorada e submetida e cuja única função é a reprodutiva e pouco mais.

Cultura - língua - religião
A família tinha um lugar preponderante na antiga sociedade chinesa. O pai controlava a casa e tomava as decisões importantes. O respeito pelos anciãos era muito valorizado, e esperava-se que as crianças honrassem os seus pais. Os chineses também acreditavam na adoração dos seus antepassados: manter contentes o espírito destes membros da família mortos era crucial para obter boa sorte e evitar desastres.

A religião era politeísta. Os sacerdotes também aqui assumiam o papel de intermediários: falavam com estes deuses através do uso de ossos oráculos; escreviam perguntas para os deuses sobre os ossos do oráculo que eram depois queimados. O fogo causaria rachaduras nos ossos que eram então interpretadas pelos sacerdotes como respostas dos deuses às suas perguntas.

A escrita usada era semelhante à dos sumérios e egípcios: os chineses usavam pictogramas, ou desenhos simplificados de objetos ou conceitos.

Dinastias chinesas
Em todas as civilizações deste planeta o poder é sempre delegado: pelo povo nos seus líderes por um período de tempo até novas eleições ou delegado por Deus. A civilização chinesa não foi exceção neste sentido. O que é particular na civilização chinesa é que as dinastias não eram eternas como a Davídica de Israel e tantas outras na Europa e resto do mundo.

A antiga China era governada por uma linhagem de governantes de uma única família a que chamamos de dinastia. Porém, se o povo e os deuses não estivessem satisfeitos com a dinastia no poder, este passaria para outra família nobre, criando-se assim uma nova dinastia.

Este processo é chamado de ciclo dinástico e isso explicou a ascensão, declínio e substituição de muitas dinastias ao longo da história da Antiga China. Se um rei tivesse feito algo de errado, podia perder o mandato do Céu, o que significava perder o direito de governar. Isto porque o povo acreditava que todas as dinastias recebiam o direito de governar através da aprovação dos deuses.

De acordo com a tradicional lenda de nascimento da civilização chinesa, uma enorme inundação que durou meses teria coberto a região do Rio Amarelo. Mas um homem chamado Yu, conhecido também como Yu, o Grande, teria desenvolvido um sistema de drenagem que conseguiu restabelecer as áreas das margens do rio. Seria após esse episódio que Yu teria recebido um “chamado divino” para estabelecer então a Dinastia Xia.

Cronologia das dinastias chinesas
Dinastia Xia (2100 - 1600 a.C.) – Envolta na lenda acima descrita, há quem pense que não existiu.
Dinastia Shang (1600 - 1046 a.C.) – Pensa-se que a mais antiga forma de escrita seja desta geração.
Dinastia Zhou (1046 - 256 a.C.) – A mais longa de todas as dinastias chinesas; é comumente conhecida como o ápice da civilização antiga chinesa; a filosofia confucionista, por exemplo, teria sido desenvolvida durante este período, influenciando a China até hoje.
Dinastia Qin (221 - 207 a.C.) – São desta época os dois ex libris da cultura chinesa, a Grande Muralha e o exército de terracota recentemente descoberto.
Dinastia Han (206 a.C. - 220 d.C.) – Pensa-se ser deste tempo o estabelecimento da Rota da Seda, mas é bem provável que a origem desta rota seja pré-histórica. Ou seja, o caminho que o Homo Sapiens tomou desde o Crescente Fértil até aos confins da Ásia e da China. Seriam também desta dinastia o taoísmo e a chegada do budismo à China.
Período das Seis Dinastias (220 - 589 d.C.) – Expansão do budismo.
Dinastia Sui (581 - 618 d.C.) – De curta duração.
Dinastia Tang (618 - 906 d.C.) – Entre as invenções que surgiram durante a dinastia Tang, estariam o primeiro relógio mecânico do mundo, a bússola e a máquina de imprimir livros.
Período das Cinco Dinastias (907 - 960 d.C.) – Declínio e agitação política e social.
Dinastia Song (960 - 1279 d.C.) – Nova reunificação da China.
Dinastia Yuan (1279 - 1368 d.C.) – Abertura ao ocidente; são deste tempo as viagens de Marco Polo. Invenção da pólvora e da porcelana.
Dinastia Ming (1368 - 1644 d.C.) – Foi durante este período que foi construído o palácio imperial, a Cidade Proibida, em Pequim.
Dinastia Qing (1644 - 1912 d.C.) – Com a queda da dinastia Qing, em 1912, foi oficialmente fundada a República Popular da China.

Conclusão – O poderoso rio Amarelo, nascido da cadeia montanhosa mais alta do planeta, foi a origem de uma cosmovisão marcadamente diferente da ocidental que influenciou a vida e o pensamento do resto do norte asiático, em especial da Coreia e do Japão. 

Pe. Jorge Amaro, IMC


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