15 de abril de 2024

A Cosmovisão Pré-Histórica

É comummente aceite pela antropologia e arqueologia que o ser humano atual é Homo Sapiens que descende de outras espécies de primatas já extintas. De há 4 a 6 milhões de anos, existiram outros hominídeos, ainda pertencentes ao reino animal: o Ardipithecus Ramidus na Etiópia; depois deste, veio o Australopitecus Afarensis, nome técnico da Lucy, que também habitou a Etiópia na região chamada Afar.

Sucederam-se o Homo Habilis e o Homo Erectus que habitaram o Leste da África. Deste descende o Homo Heidelbergensis que é o antepassado comum dos completamente humanos Neanderthal e Homo Sapiens. Temos antepassados comuns com os chimpanzés, macacos e gorilas. No entanto, evoluímos até ao que hoje somos, enquanto o mesmo não aconteceu com eles. Porquê?

A ciência nunca chegará a descobrir, porque o ser humano foi a única espécie de ser vivo que evoluiu. Nunca vai descobrir porque a resposta está em Deus que pensou em nós como expoente máximo da evolução das espécies, desde que a vida surgiu no Oceano em forma de um organismo unicelular chamado Arqueia.

Cosmovisão e autoconsciência
Sabemos que o Homo Sapiens adquiriu a mesma estrutura anatómica que hoje temos há 130 000 anos. Mas quando começou este a ser autenticamente humano, ou seja, a ter consciência de si mesmo? A maior parte dos paleontólogos pensa que isto começou a acontecer há cerca de 40 000 anos quando se deu o ponto de viragem na criatividade humana, quando o Homo Sapiens deixou África e chegou à Europa, desenvolvendo as ferramentas, primeiro de pedra, depois de metal, para agir sobre a realidade à sua volta. Num processo de conhecer e dominar a natureza à sua volta, o Homem foi-se conhecendo a si mesmo como diferente da realidade que o rodeava.

Para além das ferramentas, o pensamento abstrato e simbólico, próprio do homem moderno, pode ver-se também na decoração das paredes das suas cavernas com pinturas rupestres, que nos contam um pouco das suas vidas e mentes em esplêndidas pinturas de veados, cavalos e touros selvagens, assim como dos seus rituais funerários. O mesmo expressam os objetos de ornamentação corporais que usavam e as estatuetas modeladas em barro, exaltando a feminidade e fertilidade da mulher.

Tanto na Idade da Pedra (Paleolítico, Mesolítico, Neolítico) como na idade dos Metais (Calcolítico ou Cobre – Bronze – Ferro), o Homem não tinha ainda uma cosmovisão definida, pois para ter uma cosmovisão ou uma visão do cosmos ou mundo que o rodeava, era preciso, de alguma forma, ter a capacidade de se abstrair de si próprio. O homem pré-histórico ainda se encontrava, como todos os animais, vivendo maioritariamente em simbiose com a natureza. Dado que não se via como separado dela, não podia ter uma ideia dela.

Como o bebé que ao nascer corta o cordão umbilical com a natureza, assim o homem primitivo experimentou uma rutura através do processo de ganhar gradualmente consciência de si mesmo. Ao ganhar autoconsciência, o ser humano ainda se via na natureza, mas em oposição a esta que já não era tanto uma pródiga Mãe, mas mais madrasta, pois agora tinha de lhe arrancar o sustento, como o bebé tem de chorar se quiser mamar.

Cosmovisão e ciência
O Homem procurou emancipar-se, libertar-se das amarras e tutela da Natureza, ganhando independência e autonomia em relação a esta. Ainda hoje são estes os valores sobre os quais se fundamenta a vida do ser humano como ser individual. Nesta luta pela liberdade, criou instrumentos cada vez mais potentes para modificar a natureza e adaptá-la às suas necessidades. Com a descoberta do fogo pode combinar diferentes elementos criando outros novos.

Substituiu a caça pela domesticação dos animais, de modo a ter carne quando quisesse e não quando a Natureza permitia; substituiu a recoleção de frutos pela agricultura, para poder armazenar comida quando esta escasseava e poder ter tempo para outras coisas como inventar, descobrir, criar.

A cosmovisão como visão ou conceptualização do mundo à nossa volta, como mentalidade ou padrão em relação ao qual medimos e julgamos todas as coisas, vê-se afetada e confrontada por cada descoberta científica. Cada nova conclusão científica obriga a nossa mente a conceptualizar a realidade de outra forma, a olhar para o mundo de outra maneira. Por outras palavras, opera na nossa mente uma autêntica metanoia, ou seja, mudança de paradigma mental.

A descoberta do fogo
Esta descoberta modificou de tal maneira a vida das pessoas que o fogo passou a ser entendido mitologicamente como tendo sido roubado aos deuses. O fogo era para os nossos antepassados como a lâmpada de Aladino que, através de fricção, apareceria como que por magia, fazendo os homens com ele o que quisessem.

O fogo teve uma importância grande para a coesão de famílias e comunidades, pois todos se reuniam à volta da fogueira para se aquecerem. Como ninguém queria ficar de fora, ao frio, o fogo atuava como fator dissuasor de atitudes antissociais.

Permitiu estender a luz do dia pela noite adentro e, como de noite não se podia trabalhar, as duas ou três horas extra de luz ténue serviam para manifestações culturais, para o partilhar de experiências e para a transmissão da cultura de pais para filhos. A luz à noite aumentou a segurança dos seres humanos em relação aos animais que caçavam de noite, uma vez que servia para os afugentar.

No entanto, a utilização mais importante do fogo, nesta altura, foi a preparação dos alimentos. O alimento cozido ou assado melhorou a dieta do ser humano. Certos alimentos são mais nutritivos cozidos que crus. Ao fogo e ao cozinhar dos alimentos se deve o aumento populacional e a sobrevivência dos seres humanos. Por fim, foi precisamente o fogo que permitiu aos humanos passarem da Idade da Pedra à Idade dos Metais.

Sociedade igualitária da velha Europa
Num espaço de tempo que vai do Paleolítico superior, há 50 000 anos até ao princípio do Calcolítico (Idade do Cobre), o Homo Sapiens deixou-nos não só as famosas pinturas rupestres, mas também inúmeras estatuetas femininas onde os atributos sexuais da mulher são acentuados e até exagerados.

A arqueóloga Marija Gimbutas crê que estas estatuetas são a prova da existência de uma sociedade não matriarcal, mas sim mais igualitária na velha Europa, depois de o Homo Sapiens deixar África. Nestas sociedades antigas, as mulheres e os homens viviam como iguais em praticamente todos os aspetos da vida diária. Para além disso, às mulheres era-lhes atribuído um estatuto superior devido às suas capacidades reprodutivas. Na verdade, a identidade das mulheres como dadoras de vida ficou intimamente ligada à deusa mãe que dá vida e que serviu como o ponto focal da velha religião europeia.

O papel do pai na antiguidade pré-histórica era inexistente, como o é nos animais mais próximos de nós na evolução das espécies. Isto aconteceu porque o corpo feminino, pela sua fisionomia, dava provas de maternidade, enquanto que o corpo masculino não dava provas de paternidade. No Neolítico, assim como no Paleolítico superior, a religião estava centrada no poder da mulher em gerar vida.

Podemos concluir que a primeira divindade venerada pelos seres humanos era uma deusa, não um deus. A reverência era dada à deusa Mãe de tudo quanto vive, identificada tanto como Natureza ou solo. A Terra, como planeta ou como solo, a Natureza, assim como os nomes de todos os continentes são nomes femininos.

O varão observa com fascínio como do seio da terra vem a vida das plantas que são a vida dos animais, e ao seio da terra volta essa vida quando plantas e animais morrem. Observa também que à imagem da terra também a mulher e só ela, gera vida. Dada a inteligência rudimentar do ser humano naquele tempo, a conexão entre as relações sexuais e o parto ainda não tinha sido estabelecida, isto porque a causa e o efeito estavam separados por nove meses.

Num tempo em que os humanos não teriam mais inteligência que a que tem um rato de hoje, pensemos que se um rato comer um veneno e morrer, de imediato os outros ratos nunca mais tocam nesse veneno, pois estabelecem uma conexão entre a morte do seu congénere e o pó que comeu. Porém, se o veneno for um anticoagulante pelo qual o rato não morre, mas se perder todo o sangue no caso de ter um acidente ou brigar com um congénere, a conexão entre a morte e o anticoagulante não é estabelecida, o que faz do anticoagulante o melhor veneno.

Enquanto a paternidade não foi estabelecida, as mulheres da tribo detinham um certo poder e alta estima, sendo respeitadas pelos varões, apesar de estes, como é natural, possuírem maior força física. Por outro lado, basta olhar para os seres vivos mais perto de nós na evolução das espécies, para vermos situações semelhantes.

Olhemos para os cães, como reverenciam as cadelas, sobretudo quando acabaram de parir (dadoras de vida): não se chegam a elas e, embora fisicamente sejam mais fortes, não usam de violência física contra as mesmas, mostrando até uma certa “reverência”. Em caso de conflito, a fêmea prevalece, não só porque se torna muito agressiva, tirando forças da fraqueza, mas também porque o macho se afasta em sinal de respeito e não confronta a fêmea, embora o pudesse fazer por ter mais força física.

Em todas as culturas, a divindade é geradora de vida. Por outro lado, também, no entender de Rudolf Otto, a divindade é identificada em todas as culturas como sendo um “misterium tremedum et fascinans”, o qual podemos traduzir pelo amor e temor de Deus. Quando se representa Deus como sendo mulher, imediatamente todas as mulheres são uma imagem desse Deus, pelo que serão tão respeitadas quanto Deus o é.

Nunca houve e podemos dizer que nunca haverá uma sociedade que seja puramente matriarcal, enquanto o varão tiver uma força física superior à mulher. Sociedades matrilineares ou igualitárias existiram e podem ainda existir.

Quando a conexão entre o coito e o parto foi estabelecida, o estatuto do homem começou a subir. Começou então a ser visto como crucial para o processo reprodutivo que garantia a vida. A deusa original da Terra Mãe passou a ser complementada por um consorte, primeiro pensado como o deus Pai Céu. A chuva vinda do céu era o sémen divino enviado para engravidar a Mãe Terra para que a vida pudesse surgir.

Herbert W. Richardson, no seu livro Nun, Witch and Playmate, escreve que esta compreensão maternal de Deus e da vida humana prevaleceu até ao amanhecer da autoconsciência, quando uma divisão apareceu na vida humana entre o instinto natural e o ego emergente que se atreveu a enfrentar e confrontar-se com esse instinto.

Quando isto aconteceu, deu-se uma reviravolta na cosmovisão humana, ou seja, uma nova definição de todos os aspetos da vida. Quando a vida humana é definida de uma nova forma, o Deus adorado por causa da vida humana também passa a ser definido de uma nova forma. Os antropólogos entendem que isto aconteceu por volta de 7 000 AC.

Génese da cosmovisão andro-cêntrica na Bíblia
O bispo protestante John Shelby Spong no seu livro “Viver no pecado”, descreve muito bem como a Bíblia faz eco do processo de transição da conceptualização feminina (deusa Asherah) para a conceptualização masculina da divindade (Yahweh). Este processo não aconteceu de um dia para o outro, foi um processo demorado e doloroso, com inúmeras recaídas. O primeiro livro dos Reis (18:40) dá-nos um exemplo da perseguição que os seguidores de Yahveh moveram contra os seguidores dos deuses da fertilidade, no episódio do confronto entre os profetas de Baal e Elias, o profeta de Yahveh.

No século VII antes de Cristo, ainda existiam pequenos santuários dedicados à deusa da fertilidade Asherah e ao seu consorte Baal, nos quais se realizavam liturgias explicitamente sexuais que incluíam prostituição sagrada, tanto masculina como feminina. Nem a reforma do Deuteronómio nem a de Ezra, no século V AC, conseguiram extinguir completamente estas práticas.  

Yahweh era um deus masculino, solitário, que tudo criou por intermédio da Palavra pronunciada, sem precisar de uma parceira feminina. O culto a Baal, mais antigo, partiu da observação do poder sexual da reprodução.

John Shelby Spong vê na história de Abraão um eco bíblico do momento em que o ser humano ganhou autoconsciência. Rompeu com a natureza, como Abraão rompeu com a sua terra Natal Ur, na fértil Mesopotâmia, para peregrinar pelo deserto, descobrindo-se a si mesmo. Os deuses da fertilidade exigiam sacrifícios humanos, Abraão rompeu com essa tradição, ao não sacrificar o seu filho por um impulso interior.

Com o surgir da consciência e do pensamento, a sobrevivência do ser humano passou a não depender já tanto da Natureza seguir o seu curso, mas do pensamento humano que conhece, descobre e domina a natureza.

A supressão bem-sucedida do culto da fertilidade, com a sua divindade feminina, faz parte do contexto histórico da criação do Javismo, no qual a deusa Eva, mãe de todos os seres vivos, convive com o mal e é banida para sempre do paraíso pelo deus superior masculino.

Segue-se a insistência bíblica na natureza totalmente masculina de deus e a atribuição correspondente de prerrogativas divinas (ou seja, masculinas) aos homens, que sozinhos, argumenta o mito, foram criados à imagem deste Deus.

Nasceu assim a cosmovisão andro-cêntrica da vida, o domínio do varão sobre a mulher que se estende até aos nossos dias. Com o aparecimento da paternidade, não só se ofuscou o valor da maternidade, como se destituiu a mulher do seu lugar na sociedade. Como a paternidade não é tão patente como a maternidade, o estabelecer da paternidade passou a ser a pedra angular da sociedade patriarcal que insistiu em controlar o comportamento reprodutivo das mulheres. Assim nasceu o valor ou contravalor da virgindade e outras formas de domínio da mulher.

Conclusão – Enquanto Deus foi conceptualizado como Mãe, a mulher era respeitada, admirada e vivia em pé de igualdade com o varão. Com a conceptualização de Deus como Pai, a mulher foi destituída da sua dignidade, dominada, torturada, vituperada, vexada e ultrajada até aos dias de hoje, na sociedade ocidental e em outras sociedades.
Pe. Jorge Amaro, IMC


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