1 de dezembro de 2021

3 Instâncias depois da morte: Céu - Purgatório - Inferno

(…) não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a futura. Hebreus 13, 14

Já quase no fim destes três anos em que tratamos realidades tridimensionais criadas por um Deus Uno e Trino, eis que chegamos ao tratado das coisas últimas, matéria que em teologia se chama escatologia. Esta palavra provém do grego eschatom que significa as coisas últimas; fezes excrementos, para não usar a palavra mais popular é verdadeiramente o significado primigénio da palavra eschatom. E eu já sabia isto à idade de 4 anos, quando estando eu no alto de uma parede olhando para baixo para ver o meu pai, este me diz “Sai daí que podes cair e morrer”, e eu respondi, “Morrer é enterrar as fezes”. Foi esta a minha primeira observação filosófica.

Para além da nossa morte, deparamo-nos com duas realidades diametralmente contrárias e derradeiras, o Céu e o Inferno e uma passageira ou processual, o Purgatório. Caronte, o barqueiro de Hades, que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos e a quem se paga com uma moeda que nos colocam no olho (a Jesus também lha colocaram), leva-nos a uma destas três realidades.

A bofetada da morte
Sono io la morte e porto Corona,
io Son di tutti voi signora e padrona,
e così sono crudele, così forte sono e dura
che non mi fermeranno le tue mura.
(…) e davanti alla mia falce
il capo tu dovrai chinare
e dell 'oscura morte al passo andare.

https://www.youtube.com/watch?v=YOBYzpzBxvc

Eu sou a morte e carrego Corona,
Sou de todos vós senhora e patroa
tão forte tão dura e cruel que
nenhum dos teus muros me vai parar.
Ante a minha foice inclinarás a cabeça
E inexoravelmente caminharás
rumo à morte escura.

O cantautor italiano Angelo Branduardi reformula nesta canção uma dança macabra medieval. Por causa da peste negra e porque a esperança de vida na Idade Média era muito curta, a morte era um tema muito popular, o horizonte inexorável e escuro que paira sobre a criança que vem a este mundo.

Num conceito do tempo linear judaico-cristão, a vida desenvolve-se historicamente em linha reta. A morte, que sempre se representou como uma foice, é agora uma ceifeira mecânica que corta e destrói tudo o que lhe aparece pelo caminho, nada nem ninguém lhe pode fazer frente. Tal como qualquer produto no mercado, temos prazo de validade.

Já não é o sexo o tabu dos nossos tempos; nestes tempos modernos, o tabu é a morte, porque esta é a recordação incómoda da nossa indigência e limitação. Para uma sociedade tão orgulhosa dos seus progressos em todas as matérias, a morte é como uma humilhante bofetada em plena cara. Ri-se de nós e das nossas invenções com todos os dentes da sua caveira.

Desde que se colou a nós como uma carraça quando fomos expulsos do Éden, nunca mais conseguimos desenvencilhar-nos dela. Ilusoriamente, vingamo-nos dela expulsando-a, tanto quando podemos, da nossa mente e da vida pública e social, fazendo dela um tabu. Porém, de tempos a tempos esta reaparece, para nos avisar que a melhor maneira de lhe fazer frente não é ignorando-a. É preciso apanhar o touro pelos cornos.

O valor da morte
É difícil imaginar e tentar conceptualizar o que seria a vida na terra se fossemos eternos. Suponho que não haveria valores, não amaríamos, nem odiaríamos, nada do que faz sentido faria sentido. Morreríamos, valha a redundância de pasmo, ficaríamos deprimidos. Em todos os filmes que vi e que tratam deste assunto, aquele que tem o dom da eternidade quer morrer, prefere viver intensamente e depois morrer que viver eternamente sem sentido.

A morte, a nossa finitude, é a verdadeira mãe e génese de todos os valores humanos. Só os seres humanos possuem autoconsciência e sabem que vão morrer; porque sabemos que vamos morrer, temos a vida nas nossas mãos, enquanto que os animais estão inconscientemente nas mãos da vida. Os animais são possuídos pela vida por isso não a têm nem a programam. Ao contrário, nós possuímos uma vida e como temos consciência de que a possuímos por um tempo e que depois deixaremos de a possuir, procuramos vivê-la com sentido; daí nascem todos os valores humanos.

Por exemplo, a dignidade humana, as igualdades, nascem da morte; a morte é o grande raseiro. Nós nunca somos iguais nem perante os outros, nem perante a lei. Só perante Deus e perante a morte é que somos todos iguais, porque esta é o destino comum de pobres e ricos, brancos e pretos, famosos e infames, ilustres e envergonhados, vitoriosos e derrotados.

Na natureza a morte não existe
“Sei l’ospite d’onore
del ballo che per te suoniamo
Posa la falce e danza tondo a tondo
Il giro di una danza e poi un altro ancora
E tu del tempo non sei più signora.”    

É a convidada de honra
da dança cuja música te tocamos
Atira com a foice e entra na roda
Roda que roda e volta a rodar
Por agora não és senhora do tempo."

No refrão da canção de Branduardi a morte é a convidada de honra numa dança de roda. Ao contrário da reta, que tem princípio e fim, a roda é símbolo de eternidade, alude ao mito do eterno retorno. Uma vez entrada na dança de roda, a morte perde a sua foice e deixa de ser senhora do tempo.

Lavoisier dizia que na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. A Natureza observa o mito do eterno retorno, nela não há morte no sentido de ausência de vida; na Natureza a morte e a vida são fases do mesmo processo, sendo a morte só a passagem de uma forma de vida para outra forma de vida. Se não há vida que não leve à morte, também não há morte que não leve a uma outra vida.

É este o princípio da cadeia alimentar, na qual toda a forma de vida é alimento para outra forma de vida, pois só da vida sai vida, só a vida dá vida. A erva, que é uma forma de vida, cresce livremente até que a gazela uma dia a come, a erva morre mas a sua vida é integrada e absorvida e passa a fazer parte do corpo da gazela, que um dia também ela morre nos dentes do leão; este, já velho e doente, expulso do seu harém por outro mais jovem, vai ser alimento dos abutres e das hienas que, por sua vez, morrem e são alimento de uma infinidade de pequenos seres que decompõem os cadáveres e que, à sua morte fertilizam a terra onde volta a crescer a erva.

Nesta roda viva, a constante é a vida absoluta que se alimenta de vida. A morte é só uma passagem, de uma forma de vida para outra forma de vida. A vida dura mais tempo que a morte que é só um breve instante, sendo a vida a contínua e ilimitada constante.

O que acontece na natureza acontece também com o nosso corpo físico. Também este é um processo vital onde a morte é passagem e a vida, neste caso crescimento, é a constante. Hoje possuímos triliões de células, porém quando começou a nossa vida fomos uma única célula que resultou da união de outras duas células, o óvulo por parte da nossa mãe e o espermatozoide por parte do nosso pai.

Unidas ou fundidas as duas partes, nascemos nós, uma célula humana com um código genético único na história da humanidade; em pouco tempo, esta célula subdivide-se em outras células para formar um corpo humano adulto, constituído por 37 triliões de células.

Cada uma das nossas células segue a lei geral que rege a vida neste planeta: nascer, crescer, reproduzir-se e morrer; as únicas células que se recusam a morrer são as células cancerígenas. Assim se explica o crescimento e envelhecimento do nosso corpo. De facto, à exceção das células do nosso cérebro, os neurónios, todas as outras seguem a regra geral. Podemos dizer que a cada 5 anos mudamos de corpo, cada 5 anos temos um corpo biologicamente diferente.

Numa vida média de 85 anos, temos 17 corpos diferentes. Com qual dos 17 ressuscitaríamos? Com nenhum deles pois não é o corpo físico que ressuscita, mas sim o corpo espiritual que é uma síntese de todos eles, mas não é nenhum deles em particular.

Princípio da realidade, princípio do prazer
Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa, há de encontrá-la. Mateus 16, 24-25

O negar-se a si mesmo de Jesus é, na linguagem psicológica de Freud, a aquisição da maturidade humana que acontece quando o indivíduo deixa de se guiar pelo princípio do prazer para se deixar guiar pelo princípio da realidade. As coisas não são como gostaríamos que fossem, mas são como são. A busca desenfreada do prazer é a vida infantil enquanto o indivíduo não sabe onde o prazer o levará: à própria aniquilação, pois, como disse Erich Fromm, a satisfação ilimitada dos nossos desejos não produz bem-estar, não é o caminho da felicidade nem tão pouco um meio para atingir o prazer máximo.

Uma vez que conhecemos a realidade, devemos abraçar-nos a ela, ela é a nossa cruz, a ela devemos obedecer negando-nos a nós mesmos, ou seja, ao princípio do prazer. Só assim somos discípulos de Jesus que também obedeceu até à morte e morte de cruz, ou seja, abraçado à sua cruz, à vida que escolheu para si, à qual depois foi fiel até ao fim.

Negar-se a si mesmo é dizer não a nós próprios para dizer sim a Deus. É recusar fazer a nossa vontade para fazer a vontade de Deus. É repetir em todos os momentos da nossa vida as palavras de Jesus no Jardim das Oliveiras (Mateus 26, 43). É submeter a nossa vontade a Deus e deixar de ter vontade própria. É pôr em prática o que repetimos na oração do Pai Nosso que contém o mais importante do evangelho: “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu” (Mateus 6, 10).

Se não nos negamos a nós mesmos, é difícil não negar a Cristo. Foi precisamente o que fez Pedro, negou o mestre porque não se negou a si mesmo, e fugiu da própria cruz. Ele que tinha sido chamado a pedra angular da Igreja, num momento se transformou em pedra de tropeço, quando antepôs a sua vontade à vontade do mestre em ir a Jerusalém.

A morte como passagem
Muitas pessoas que já estiveram entre a vida e a morte, falam de um túnel e de uma luz para além do túnel. Se estas experiências são verdadeiras, é interessante como o processo da morte guarda semelhanças com o processo do nascimento. Vivemos durante 9 meses num lugar, num paraíso, depois passamos por um túnel apertado, a vagina da nossa mãe, num processo doloroso para o bebé e para a mãe.

Ao fim desse túnel, vemos a luz do dia; de facto, nascer em português diz-se “ser dado à luz”. A nossa mãe deu-nos à luz. Por isso, quando morrermos, já não é a primeira vez que o fazemos é a segunda, a primeira morte foi o nosso nascimento. O crescimento psicológico e espiritual, à imagem do físico, também integra a morte ou deixa para trás coisas e realidades às quais estávamos apegados. Se o nosso nascimento foi uma morte à vida intrauterina, e um nascer para esta vida, a nossa morte é uma morte para a vida na Terra e um nascimento para a vida eterna no Céu.

Tanto o nascimento como a morte são passagens de uma forma de vida para outra forma de vida. Se a vida intrauterina era diferente da vida que temos na Terra, a vida eterna também será diferente da vida terrestre. Também aqui a constante é a vida e a morte só uma passagem entre uma forma de vida e outra forma de vida.

A crença na Ressurreição
No ventre de uma mãe havia dois bebés. Um perguntou ao outro: "Acreditas na vida após o parto?" O outro respondeu: "É claro. Tem que haver algo após o parto. Talvez nós estejamos aqui para nos prepararmos para o que virá mais tarde." "Disparate", disse o primeiro. "Que tipo de vida seria essa?" O segundo disse: "Eu não sei, mas haverá mais luz do que aqui. Talvez nós possamos andar com as nossas próprias pernas e comer com as nossas bocas. Talvez tenhamos outros sentidos que não conseguimos entender agora." O primeiro retrucou: "Isso é um absurdo. O cordão umbilical fornece-nos nutrição e tudo o mais de que precisamos. O cordão umbilical é muito curto. A vida após o parto está fora de cogitação."

O segundo insistiu: "Bem, eu acho que há alguma coisa e talvez seja diferente do que é aqui. Talvez a gente não vá precisar deste tubo físico." O outro contestou: "Além disso, se há realmente vida após o parto, então, por que ninguém jamais voltou de lá?" "Bem, não sei", disse o segundo, " mas certamente vamos encontrar a Mamã e ela vai cuidar de nós." O primeiro respondeu: " Mamã? Acreditas mesmo na Mamã? Isso é ridículo. Se a Mamã existe, então, onde está ela agora?" "Ela está ao nosso redor. Estamos cercados por ela. Nós somos dela. É nela que vivemos. Sem ela este mundo não poderia existir." Disse o primeiro:" Bem, eu não consigo vê-la, então, é lógico que ela não existe." Ao que o segundo respondeu: "Às vezes, quando estás em silêncio, se te concentrares e realmente ouvires, vais perceber a presença dela e ouvir a sua voz amorosa”.

Este foi o modo pelo qual um escritor húngaro explicou a existência de Deus.

No início, o crente israelita não professava a fé na ressurreição. Estava alheio à possibilidade de uma existência depois da morte. A vida é relação com Deus e com os outros membros do povo, termina nesta vida e todos vão parar ao Sheol.

Isto, é claro, levanta algumas questões. Será a morte mais forte que Deus? Será verdade que o amor é dizer àqueles que amam, "não podes morrer"? Não é isto que Deus nos quer dizer quando nos ama? E, ao dizê-lo, não significa que consegue "impor-se" à morte? De que serve ser fiel a Deus se, no final de tudo, ser fiel a Ele ou não, é a mesma coisa? Eis um problema de carácter teológico, ou seja, é uma questão de responder à pergunta: em que Deus acreditamos? Num Deus fiel aos seus fiéis ou num Deus impotente ante a morte?

Há de facto, na Bíblia, três salmos (16, 49 e 73) que, à sua maneira, expressam a esperança do salmista num amor e fidelidade de Deus mais forte que a morte. Não há neles ainda uma afirmação clara e inequívoca na ressurreição, mas já estão presentes os elementos incipientes que levarão o povo hebreu a afirmá-la ainda antes do nascimento de Jesus.

Argumento de Pascal
Segundo o famoso argumento ou aposta de Pascal, suponhamos que dois amigos - um ateu e outro religioso - apostam uma quantia de dinheiro na hipótese da existência ou não existência de Deus e da vida para além da morte. O ateu aposta que Deus não existe, o religioso que sim, existe. À morte dos dois se o ateu ganhar a aposta, ou seja, se não houver nada para além da morte, não vai poder receber o prémio, não vai sequer saber que ganhou, e o que a perdeu o religioso também não vai saber que perdeu.

Ao contrário, se houver vida para além da morte e Deus que a sustenta, o religioso ganhou essa vida eterna e o ateu perdeu-a. Concluímos que quem acredita tem tudo a ganhar e nada a perder; quem não acredita, tem tudo a perder e nada a ganhar.

Não há forma de saber o que está para além da morte. A existência de Deus e de que Ele sustenta a nossa vida para além da morte é matéria de fé. É de facto uma aposta onde não temos nada a perder e muito a ganhar. A crença no Além será sempre matéria de fé. Só quando passarmos para lá saberemos se tínhamos ou não razão, se estávamos ou não corretos. Mas se não estávamos corretos, ainda assim, a vida cristã é sempre a melhor forma de autorrealizar-se e ser feliz, pelo que nada perdemos se de facto não houver nada. Ao contrário de provar que Deus não existe como alguns pensavam que um dia a ciência conseguiria, nos últimos anos a ciência tem feito com que seja mais fácil e mais lógico o acreditar que o não acreditar; é claro que nunca a ciência chegará a provar a existência ou não existência de Deus. Sempre necessitaremos da fé.

INFERNO
Toda a esperança abandonai ó vos que aqui entrais
Canto III O Inferno, A Divina Comédia, Dante Alighieri

Existe ou não existe?
Já são raros os pregadores que fazem sermões sobre o inferno; ninguém deseja abordar a questão. Parece que, também aqui, se aplica a lei do uso-abuso-fora de uso. De facto, outrora era tema obrigatório de um bom sermão… Naqueles tempos, o temor de Deus interpretado como medo levava mais gente à Igreja do que agora o consegue o amor de Deus.

Apesar de ser palavra recorrente em toda a Bíblia há já muitos cristãos e até teólogos e sacerdotes que não acreditam na existência do Inferno. O inferno é aqui, dizem alguns. E é verdade, nós humanos temos a capacidade de fazer da nossa vida e da dos outros um céu ou um inferno. Mas nem este Céu nem este inferno são os últimos. “Não há mal que sempre dure nem bem que sempre ature”.

A misericórdia de Deus é infinita o seu amor não tem medida; de Deus, é muitíssimo mais o que não sabemos que o que sabemos. Condenar-se-á alguém? Em que termos? Nem sequer podemos dizer que Hitler está no Inferno. O inferno não é algo querido por Deus neste sentido, nem o purgatório o é; o que Deus quer é o Céu para todos. Estaríamos a pôr em causa a misericórdia divina. Seria bem pior que a misericórdia humana, se os atos temporais tivessem castigos eternos; há aqui uma desproporção entre o ato e o castigo.

No entanto, temos que admitir que existe uma possibilidade real de condenação. Se Cristo veio para nos salvar, veio para nos salvar de algo. Senão a sua vinda não teria sentido; se há salvação então tem de haver condenação, a existência de um dos conceitos supõe a existência do outro. Se não existisse a possibilidade de condenação, não seriamos verdadeiramente livres; não seria possível rejeitar a Deus, não haveria alternativa; seríamos umas marionetas condenadas a fazer o que Deus quisesse de nós.

Se não existisse a possibilidade de condenação, não haveria prémios nem castigos nem existiria diferença entre o bem e o mal. É óbvio que uma ação sem objetivo é fútil e não faz sentido; se uma coisa não é boa para alguma coisa não vale nada. A bondade não pode ter só valor por si mesma, tem que valer além de si própria.

Banir a ideia de recompensa e castigo da religião equivale a dizer que a injustiça tem a última palavra. Não é lógico que o fim do homem que se esforçou toda a sua vida por ser bom, tenha o mesmo fim do que não só não se esforçou, como foi deliberadamente mau. Significaria que Deus não se importa se os homens são bons ou maus. Digamo-lo de uma forma grosseira e sem rodeios: não adianta ser bom se olharmos para o mundo à nossa volta e concluirmos que talvez seja mais proveitoso ser mau, corrupto, desonesto, mentiroso, irresponsável, ladrão, criminoso e cruel.

A ideia de inferno existe em todas as culturas e religiões deste planeta. Por mais simplista que pareça, sem um juízo final no fim desta vida e a existência da eternidade do Céu para os bons e da eternidade do Inferno para os maus, cairia por terra a ideia do bem e do mal, do justo e do injusto. E se esta ideia desaparecesse do nosso coeficiente mental, não haveria neste mundo polícia nem exércitos suficientes para manter a ordem e a organização vigentes na nossa sociedade e conter os baixos instintos do ser humano. Reinaria a barbárie, a lei da selva, ou seja, do mais forte.

Sorte têm os ateus e agnósticos que vivem num mundo onde a maior parte das pessoas são religiosas e acreditam na existência de um Deus que é justo e bom e que os recompensará dos muitos esforços, sofrimentos, de não terem tomado a justiça nas próprias mãos apesar das injustiças sofridas. O Inferno existe, mas pode não ser, a fornalha ardente que todos pensam, mas sim, como o ilustramos neste artigo, o nada um buraco negro.

O que é o inferno
… Lançado à Geena, onde o verme não morre e o fogo não se apaga. Marcos 9,48

A ideia de um inferno que arde eternamente, onde as almas se queimam sem nunca se queimarem totalmente. Onde sofrem os tormentos da morte sem nunca morrer, tem aterrorizado incontáveis gerações de pessoas ao longo da História da humanidade.

Sabemos que não é Deus que condena, mas sim o homem que se autocondena, quando livremente escolhe o mal. Mesmo assim, como pode um Deus, descrito na Bíblia, como pai misericordioso e amoroso presenciar, impávido e sereno, um espetáculo de eterna tortura? As pessoas que estão a ser torturadas pedem a morte ao seu algoz para acabar o sofrimento; recusaria Deus dar um golpe de misericórdia se Lho pedissem?

Quando nenhum tribunal na terra condena à tortura o mais criminoso dos criminosos; quando a tortura mais leve e pelo mais curto espaço de tempo está totalmente proibida no mundo, como pode um Deus que é amor criar uma câmara de tortura eterna? Nos tribunais humanos a punição é proporcional ao crime. Uma eternidade de tortura como punição não é proporcional nem sequer a uma vida de 100 anos toda votada ao crime. Como pode o tribunal divino ser infinitamente mais injusto que os tribunais humanos?

Na Bíblia o Inferno não vem descrito só como sofrimento eterno, mas também como morte eterna. De facto, das 54 vezes que a palavra inferno é nomeada, só em 12 significa lugar de fogo e tormento, nas restantes significa sepulcro, ou seja, morte eterna. Como o homem teme mais o sofrimento que a morte, não é descartável um intuito pedagógico no apresentar o Inferno como sofrimento eterno, sabendo que, mais que a morte, o que o homem verdadeiramente teme é o sofrimento. Isto é claro na parábola do rico epulão e do pobre Lázaro, Lucas 16,19-31.

Logicamente, à vida eterna contrapõe-se a morte eterna, não o sofrimento eterno. Tanto amou Deus o mundo que enviou o seu próprio Filho para que todo o que crê não pereça, mas tenha a vida eterna. O texto diz não pereça ou morra, não diz não sofra João 3,16. Tudo o que arde é combustível e o combustível não pode arder eternamente sem de extinguir ou queimar.

A Geena era a lixeira de Jerusalém; o fogo nunca se acabava porque sempre estava a chegar outro lixo; o verme nunca morria porque o lixo se decompõe dando origem aos vermes. Ezequiel 18,4 Malaquias 4,1-3 e os Salmos 37,10 68,2; Mateus 13,40 sugerem que o fogo acaba com a existência, não os tortura indefinidamente.

Antropologia hebraica
Que o Deus da paz vos santifique totalmente, e todo o vosso ser - espírito, alma e corpo - se conserve irrepreensível para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. 1 Tessalonicenses 5, 23

A antropologia hebraica, subjacente à antropologia bíblica, é fundamentalmente unitária. Isto significa que pretende contemplar toda a realidade pessoal de uma determinada perspetiva. E assim a pessoa humana é, toda ela basal, isto é, carne. Em segundo lugar, a pessoa humana é nefes isto é, possui uma personalidade que podemos abordar do ponto de vista psicológico (psique). E, finalmente, a pessoa humana é também toda ela, ruah, isto é, espírito, na medida em que nos entendemos com um ser aberto ao transcendente. Desta antropologia do Antigo Testamento e, em última análise, unitária pois contempla toda a realidade humana de uma determinada perspetiva, encontramos um testemunho claro em 1 Thes 5.23.

A única objeção ao Inferno entendido como morte eterna é a crença grega da eternidade da alma que infetou o cristianismo até aos dias de hoje e que não tem nada a ver com a antropologia judaica na base da qual está escrita a Bíblia. Na antropologia judaica o homem não tem um corpo mortal e uma alma imortal; o homem é todo ele mortal se está fora de Deus e imortal se está com Deus.

Se a alma é imortal, então o inferno é tortura eterna, se a alma é mortal o inferno é morte eterna, pois à vida eterna não se contrapõe tortura eterna, mas sim morte eterna. Alguns teólogos católicos chegam a dizer que o inferno é o nada, mas não uma nada nihilista pós-moderno, algo assim como um analgésico que nos pouparia ao sofrimento de não ter vivido a vida que Deus nos tinha reservado, será um nada, mas um nada que dói como o fogo. Acho esta posição pouco diferente da clássica católica: o nada não pode doer e se dói não é nada, mas sim um eterno sofredor.

O Inferno como anti-génese ou morte eterna
Todas as vidas me pertencem, tanto a vida do pai como a do filho, todas me pertencem. O que pecou é que morrerá. Ezequiel 18, 4

Mas agora, que estais libertos do pecado e vos tornastes servos de Deus, produzis frutos que levam à santificação, e o resultado é a vida eterna. É que o salário do pecado é a morte; ao passo que o dom gratuito que vem de Deus é a vida eterna, em Cristo Jesus, Senhor nosso. Romanos 6, 22-23

O homem que se converteu numa alma vivente pelo sopro divino, Génesis 2,7 é advertido pelo mesmo Deus que se comer do fruto proibido morrerá Génesis 2,16-17; S. Paulo corroborando tantos outros textos bíblicos, afirma perentoriamente que o salário do pecado é a morte Romanos 6,23. Jesus diz-nos para não temermos os que só podem matar o corpo e nada podem fazer à alma. O que devemos temer é o que pode matar tanto o corpo como a alma. Mateus 10,28

O Inferno entendido como morte eterna preserva tanto a bondade de Deus como a liberdade do homem. Mas o que é a morte eterna? É regressar ao nada de onde tudo foi criado. Regressa livremente ao nada quem responde “Nada” às 3 perguntas que todo ser humano se faz quando atinge a idade de autoconsciência: De onde vimos? Para onde vamos? Que sentido tem a vida?

Quem nega a existência de Deus na sua mente e no seu coração dizendo que vimos do nada e vamos para o nada e depois o nega também no decorrer da sua vida, cultivando valores temporais caducos em vez de valores eternos, a morte eterna como regresso ao nada é o resultado lógico da sua vida. É difícil encontrar alguém que negue a Deus de uma forma tão radical na sua mente, no seu coração e nas suas obras e só estes se condenariam.

O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus; por isso todos os valores humanos (amor, paz, justiça, música, arte, etc.) são atributos de Deus. Com o pecado reteve a imagem, mas perdeu a semelhança. Mas, à medida que cultiva, ou seja, que dá aos valores eternos a sua temporalidade, estes dão-lhe a sua eternidade e a semelhança com Deus.

Quem cultiva valores caducos como o poder, a riqueza, o prazer, está a viver só para si mesmo, e em vida, já está a cultivar a morte; está a investir na sua vida, comprando ações que não valem nada no mercado de valores do Céu; cultiva o nada e, quando eventualmente morrer, que pode esperar?

Quem vai para o inferno
Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no Filho Unigénito de Deus. E a condenação está nisto: a Luz veio ao mundo, e os homens preferiram as trevas à Luz, porque as suas obras eram más. João 3, 18-19

Com a nossa morte, a fase espácio-temporal da nossa vida termina e começa a eternidade. Por isso tanto o Céu como o Purgatório e o Inferno não são lugares, mas sim estados. Assim como a água se encontra na Natureza em estado sólido, líquido e gasoso, assim a pessoa pode encontrar-se em estado de Céu, Purgatório ou Inferno.

Se o Inferno existe e a possibilidade de condenação é real; podemos deduzir pela famosa lei de Murphy que alguém se condenará. Só que a lei de Murphy não se aplica a Deus; para muitos o Inferno existe, mas não está lá ninguém nem ninguém vai para lá; cumpriria assim só a função que sempre teve de nos meter medo.

É um mistério que não conseguimos explicar nem nunca conseguiremos ter a ciência certa, o alcance da misericórdia divina e a liberdade humana e de como estas se conjugam finalmente. Da Escritura deduzimos que a possibilidade de se condenar é real e desta premissa partimos para responder à pergunta “quem são os que se condenam e vão para o Inferno?”

Nem todo o que me diz: “Senhor, Senhor” entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu. Mateus 7, 21. Não podemos evitar a velha questão da fé e a das obras, que a um tempo dividiu católicos e protestantes. Somos salvos pela fé ou pelas boas obras que fazemos?

Vai para a geena o lixo, vai para o inferno quem não serve, o que não serve vai para o lixo, quem é lixo queima-se, destrói-se. Quem não vive para servir não serve para viver. Cristo mostrou o Caminho, Verdade e Vida quando disse “Eu vim para servir e não para ser servido”, os que na vida só são servidos e não servem ninguém, não servem para nada nem ninguém.

É sem dúvida a Fé que nos salva, mas não uma Fé simples constituída por um mero aceno positivo da nossa cabeça, mas sim uma Fé total ou holística. É um “Meu Deus eu creio adoro, espero e amo-Vos” … É uma Fé professada pela nossa mente, sentida no nosso coração, que se transforma em convicção nas nossas vísceras e se verifica nas nossas mãos, no nosso talante, no nosso comportamento e nas nossas ações.

A Fé que não é holística que é puro pensamento ou sentimento e nunca se concretiza, nem encarna, nem motiva, nem transforma a nossa vida. No nosso dia-a-dia é, como diz S. Tiago, uma Fé morta. Tiago 2, 14-26. O próprio S. João que no texto, acima citado diz no versículo 18 que quem não acredita já está condenado, afirma no versículo seguinte que a causa da condenação tem a ver com as obras más praticadas. As obras de facto podem chegar a substituir as palavras, mas as palavras nunca chegam a substituir as obras e até são desacreditadas por estas.

“De boas intenções está o inferno cheio”. É a posse de uma Fé holística que nos salva “ipso facto”. Só uma descrença holística poderia condenar-nos “ipso facto”. O mais provável é que poucos possuirão uma Fé total, assim como poucos possuirão uma descrença total. Uns afirmam a Deus só no pensamento, outros no pensamento e no sentimento, mas não O colocam nas obras; outros negam-n’O tanto no pensamento como no sentimento, mas afirmam-n’O nas obras.

Se a razão da vinda de Cristo ao mundo era para que o homem fosse autenticamente homem. Quem é verdadeiramente homem é como dizia Karl Rhaner na sua teoria dos cristãos anónimos, verdadeiramente cristão, mesmo não o sendo por batismo e confissão do Seu Nome. Pois ser cristão e ser homem autêntico são uma e a mesma coisa.

PURGATÓRIO
Numa aldeia um dia apresentou-se diante do pároco uma mulher que afirmava ter aparições de Deus. Querendo provas da autenticidade das aparições, o padre disse-lhe, “Da próxima vez que lhe apareça Deus, peça-lhe que lhe conte os meus pecados pois só Ele os conhece. A mulher voltou um mês depois, e o Padre perguntou-lhe se tinha voltado a ver a Deus; ao responder que sim ele continuou “E pediste-lhe o que te mandei?” “Sim disse ela; “E que te respondeu?” Que já se tinha esquecido.

A Bíblia fala do conceito de Purgatório, mas não se refere a ele como um lugar tal como se refere ao inferno. De facto, os nossos irmãos protestantes não acreditam na sua existência. O Purgatório é uma passagem, um processo. É assim que o vê e representa Dante na Divina Comédia. Não é nunca um lugar definitivo, mas um lugar de purificação, de purga. Definitivos são o Céu e o Inferno, mas quem está destinado ao Céu e ainda não está preparado para entrar porque negou a Deus na sua mente, no seu coração ou nas suas obras, deverá completar este processo para chegar à visão beatífica e à vida com Deus.

Deus não quer nem precisa do purgatório
… Perdoou-nos todas as nossas faltas, anulou o documento que, com os seus decretos, era contra nós; aboliu-o inteiramente, e cravou-o na cruz. Colossenses 2 13-14

“Anulou” pode dizer-se de duas maneiras em grego: kiastren que significa colocar um X por cima da fatura para dizer que já não é válida. Colocar um X por cima não me impede de ler a fatura pelo que é possível voltar atrás e considerá-la válida. A palavra que S. Paulo usa é exalaifein que significa apagar; naqueles tempos os documentos eram escritos em pele de cabra com uma tinta que podia apagar-se para voltar a usar a pele. A fatura foi então apagada não é possível lê-la e para que não reste a menor dúvida do perdão, S. Paulo acrescenta que foi destruída: esse é o significado de cravar na cruz.

Se Deus perdoa a quem se arrepende e pede perdão e esquece a ofensa, para que serve o Purgatório? Deus perdoa e esquece, nós, às vezes, perdoamos e esquecemos as ofensas dos outros; mas não perdoamos assim tão facilmente nem esquecemos as nossas ofensas. O Purgatório é o processo pelo qual chegamos a perdoar-nos a nós próprios.

Deus ama-nos mais do que nós nos amamos a nós próprios. Podemos chegar a amar os outros incondicionalmente, mas dificilmente nos amamos a nós próprios incondicionalmente; precisamos de provar a nós próprios o que valemos; deprimimo-nos quando a nossa vida não corre como gostaríamos e emitimos juízos de valor negativos sobre nós mesmos. O Purgatório é um processo pelo qual reconquistamos a nossa autoestima.

Jogando à bola na minha rua, parti o vidro à minha vizinha. A minha vizinha que é muito minha amiga diz-me para eu não me preocupar que não é nada. Eu aceito o perdão da minha vizinha, mas não me sinto bem enquanto não repuser o vidro, enquanto não pagar a despesa. O Purgatório é o processo pelo qual compensamos, contrabalançamos e satisfazemos as nossas dívidas.

Cristo expiou os nossos pecados, pelo que não precisamos já de os expiar; por outro lado, Deus perdoa e esquece: para que existe então o purgatório? Somos nós que não perdoamos e esquecemos os outros ou nós mesmos; o purgatório é uma exigência da nossa natureza. Vemos isso no Evangelho, no episódio da conversão de Zaqueu:

…”de pé, disse ao Senhor: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais.». (Lucas 19,8) Jesus já tinha perdoado a Zaqueu, não lhe exigiu nada como preço desse perdão; o que Zaqueu ofereceu como expiação foi de sua livre vontade, como consequência da sua conversão e de ter obtido perdão, e não como requisito desta.

Habituados desde sempre a viver na escuridão do erro e do pecado, quando pela morte nos apresentamos diante da face de Deus, não aguentamos o seu resplendor; então por um tempo desviamos os olhos para gradualmente nos habituamos. O Purgatório é esse processo de purificação e habituação para chegar a ver a Deus cara a cara.

Salva-nos uma Fé que seja holística, ou seja, que afirme a Deus na nossa mente, amá-l’O no nosso coração, e ser-Lhe fiel no nosso comportamento e obras do dia-a-dia João 14,15. Inversamente, condena-nos um negar a Deus na nossa mente, odiá-l’O ou ser-lhe indiferente com o coração e viver para si, cultivando valores mundanos como o poder, o prazer e a riqueza, sem se importar minimamente com o outro ou até sendo-lhe adverso.

A maior parte de nós, se não todos, encontramo-nos vitalmente numa das mil e uma variações e gradações entre estes dois opostos; afirmamos ou negamos a Deus parcialmente, pelo que o Purgatório vem completar o que em vida deixámos incompleto. Seria injusto que alguém mesmo negando a Deus na sua mente e no seu coração, mas sendo um homem autêntico e filantropo, se condenasse. Como seria injusto que alguém que afirmou a Deus na sua mente e no seu coração, mas constantemente O negou nas suas obras, fosse direito ao Céu.

Homo simul justus et peccator disse Sto. Agostinho e repetiu Lutero muitos anos mais tarde. O homem em processo de aperfeiçoamento, depois de encontrar a Cristo como caminho, verdade e vida, vai sempre progredindo no caminho da santidade sem nunca vencer por completo o pecado. O Purgatório é o completar o que ainda falta para a perfeição.

Deus criou o Céu; o Purgatório e o Inferno foram criados pelos homens. O Purgatório para quem nega a Deus e o próximo parcialmente, e o Inferno para quem nega a Deus e o próximo totalmente; na sua mente, no seu coração e nas suas mãos; ou seja, nos seus pensamentos, nos seus sentimentos e nas suas obras.

Se um é agnóstico ou ateu, mas é um filantropo, ama o seu próximo e os seus semelhantes, então está salvo porque está amando a Deus indiretamente no seu próximo. Como o capítulo 25 de Mateus diz o que fizeste ou não fizeste aos outros, foi a mim que o fizeste ou não fizeste.

CÉU
O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o coração do homem não pressentiu, isso Deus preparou para aqueles que o amam. 1 Coríntios 2, 9

O Céu como visão beatifica
Ver Deus significa, divinizar-se, cristianizar-se ou cristificar-se, revestir-se de Cristo como diz S. Paulo, tornar-se como Ele, ser do seu próprio nível. Por esta razão o que se diz em 1 João 3,2: “seremos como Ele porque vamos vê-lo como ele é”, torna-se realidade, como um presente, o que o homem pretendia "conquistar" no início da história (Génesis 3:5): ser como Deus. Porém, e tal como diz a bem-aventurança, este Deus só pode ser visto pelos puros de coração (Mateus 5, 8).

O Céu como vida eterna
A vida terrena, não é quantidade de anos, mas sim o cessar do tempo e do espaço. Como seres espácio- temporais, torna-se difícil entender o que possa ser uma vida para além do tempo e do espaço. Por isso é mais fácil dizer o que o Céu não é, do que o que o Céu é. A vida eterna, a vida no Céu ou em Céu, é finalmente a vida sem prazo de validade. Aquela vida a que Jesus se referia quando dizia “Eu vim para que tenhais vida e a tenhais em abundância” (João 10, 10).

Um voltar ao paraíso
O Céu é o nosso lar, a nossa casa é o paraíso que perdemos com o pecado que nos obrigou a andar errantes como filhos pródigos; o Céu é um voltar ao paraíso, e um restaurar a nossa dignidade de filhos de Deus, é voltar à casa paterna. É esta a nossa fé, a qual afirmamos milhares de vezes sempre que repetimos a doxologia: Glória ao pai e ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre, pelos séculos dos séculos, Ámen.

O corpo espiritual com que ressuscitamos
Isto é tudo muito confuso, explique-me lá senhor padre: quando morremos o nosso corpo vai prá terra, a nossa alma vai para o Céu e nós, para onde vamos nós?

O corpo que ressuscita é o corpo espiritual que é composto pela nossa vida histórica, a nossa identidade, o que vamos construindo, o que vamos fazendo, o que vamos encarnando e como vamos encarnando a palavra de vida do evangelho. A palavra de Deus é como um sistema operativo da nossa vida, fazendo-se patente em atos e atitudes, espiritualizando a matéria e definitivamente acumulando tesouros no céu.

Depois de Eisntein, que nos diz que a energia é uma forma de matéria, e que a matéria é uma forma de energia, é mais fácil acreditar na nossa existência como corpo espiritual. Na terra somos um corpo físico, somos matéria, no céu somos energia, um corpo energético, um corpo espiritual, virtual, mas real. O corpo espiritual é formado por tudo o que fomos, os valores humanos que cultivamos, o que fizemos e os tesouros acumulados no Céu enquanto vivíamos.

A metáfora da Borboleta - Na natureza há seres vivos que mudam de forma durante a sua vida; a rã é um deles, a borboleta é outro. A mudança de forma obriga também a uma mudança de meio, tanto no caso da rã como no caso da borboleta. A borboleta nasce sendo uma lagartixa que arrasta o seu ventre pela terra, comendo folhas até ao dia em que aparentemente morre.

O que aparentemente é uma morte é só uma mudança de forma que, guardando semelhanças com a anterior, é diferente da anterior. A nossa vida na Terra é como a da lagartixa, a nossa vida no Céu é como a da borboleta; o nosso corpo fisco é como o da lagartixa muito apegado à Terra o nosso corpo espiritual como o da borboleta mais livre, voando de flor em flor.

A metáfora da água – Se o Céu não é um lugar, mas sim um estado, serve-nos para descrever o nosso corpo espiritual os diferentes estados da água. A água, sem perder nenhuma das suas características sem deixar de ser o que é, sem modificar a sua essência, existe em três estados diferentes. Para a água, tal como para nós, uma coisa é a existência, outra é a essência. Sem modificar a sua essência, a água existe em três estados: sólido, líquido e gasoso.

Assim nós existimos no seio da nossa mãe, no seio do mundo e no seio de Deus. Temos formas diferentes nesses três estados como a água. A água é visível e tangível no estado sólido e no estado gasoso; nós somos visíveis e tangíveis no seio da nossa mãe e no seio do mundo, invisíveis no seio de Deus tal como a água em estado gasoso é invisível, permanecendo sempre a mesma água na sua essência.  

Como se cultivar a Vida eterna
Vai cercando qua, vai cercando là,
Ma quando la morte ti coglierà
Che ti resterà delle tue voglie?
Vanità di vanità.

Sei felice, sei, dei piaceri tuoi,
Godendo solo d'argento e d'oro,
Alla fine che ti resterà?
Vanità di vanità.

(…) Tutto vanità, solo vanità,
Vivete con gioia e semplicità,
State buoni se potete...
Tutto il resto è vanità.

Tutto vanità, solo vanità,
Lodate il Signore con umiltà,
A lui date tutto l'amore,
Nulla più vi mancherà.

Vai ver aqui, vai ver ali,
Mas quando a morte te apanha
O que resta dos seus desejos?
Vaidade da vaidade.

Se és feliz nos teus prazeres.
Vivendo apenas de prata e ouro,
No fim com que ficas?
Vaidade da vaidade.

(...) Tudo é a vaidade, e só vaidade,
Vivei com alegria e simplicidade,
Dai o melhor de vós mesmos
Tudo o resto é vaidade.

Toda a vaidade, só vaidade,
Louvando o Senhor com humildade,
Dá-lhe a Ele todo o vosso amor.
Que nunca vos faltará nada.

Angelo Branduardi
https://www.youtube.com/watch?v=BXcXyCeHOCo

“Ars lung vita brevis” (a arte é eterna, a vida é curta)
O amor é uma arte, todos os valores humanos são artes. Cultivando valores caducos temporais cultivamos a própria morte, cultivando valores eternos cultivamos a vida eterna. Dá-se uma simbiose: nós damos ao valor eterno a nossa temporalidade, o nosso tempo, a nossa energia ao nosso amor e dedicação, fazendo-o crescer e frutificar, levando-o a um expoente superior.

Assim fez Beethoven e Mozart fizeram com a música, Gandhi com a não violência, Picasso com a pintura. Esse mesmo valor eterno dá-nos a sua eternidade na memória dos homens e na memória de Deus. Tudo o resto, como diz Branduardi, é vanidade. 

Conclusão: Deus só criou o Céu. O Purgatório e o Inferno foram criados pelo Homem. O Purgatório para quem nega a Deus e o próximo parcialmente. O Inferno, não como tortura eterna pelo fogo, mas como morte eterna e regresso ao nada, para quem nega a Deus e o próximo totalmente, isto é, nos seus pensamentos, nos seus sentimentos e nas suas obras.

Pe. Jorge Amaro, IMC


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