1 de março de 2020

3 Valores humanos básicos - Liberdade - Igualdade - Fraternidade

É quase impossível ler este título e não pensar imediatamente na Revolução Francesa. Estes três valores, por esta ordem, são geralmente associados à dita revolução e apresentados como a sua marca com direitos de autor, como se não pudéssemos falar deles sem falar dela. A verdade é que se estes são valores humanos básicos da natureza humana, então necessariamente antecedem a Revolução. Não foram, portanto, os revolucionários de 1789 que os criaram ou descobriram; na verdade, podemos dizer que eles reinventaram a roda.

Evolução – involução – revolução
A própria Revolução Francesa, associada ao fim da sociedade medieval dividida entre clero, nobreza e povo, foi muito mais que uma revolução e muita mais que francesa, pois alastrou ao resto da Europa e do mundo. Foi designada como revolução talvez porque, como todas a revoluções, fez correr muito sangue. Mas, em termos culturais e civilizacionais, a Revolução Francesa não foi mais que um renascimento social e político, ou seja, um regresso à antiguidade clássica greco-romana.

Como explicámos no texto anterior, as culturas e civilizações do Crescente Fértil que deram origem à civilização ocidental, (Suméria, Creta, Egito, Mesopotâmia, Síria, Babilónia, Pérsia, Grécia e Roma) foram-se sucedendo umas às outras de uma forma linear e sem grandes tumultos, quase como uma corrida de estafetas onde um atleta, depois de receber o testemunho do atleta precedente, corre e dá tudo por tudo para entregar o testemunho recebido ao atleta seguinte, com um valor acrescido fruto do seu esforço pessoal, ou seja, com vantagem sobre os demais participantes rivais.

A invasão do Império romano por povos germânicos, como os hunos, os vândalos, os visigodos, os ostrogodos, os francos, os lombardos e os anglo-saxões do nordeste da Europa, todos eles mais primitivos e menos desenvolvidos e por isso mesmo chamados bárbaros tanto pelos gregos como pelos romanos, foi para a civilização ocidental o equivalente do meteorito que chocou com a Terra e levantou tal poeira que escureceu o sol durante anos e mergulhou o planeta na escuridão e num longo inverno, originando a extinção dos dinossauros e de muitas outras espécies animais.

Depois da escuridão invernal da Idade Média, o Renascimento é entendido com a primavera da Europa. Os renascentistas entenderam a Idade Média com um acidente, um parêntesis, um período em que a corrida cultural e civilizacional de estafetas tinha sido abruptamente detida ou congelada. Entendendo que pouco ou nada tinham a aprender com a Idade Média, os renascentistas evitaram-na por completo e ligaram-se diretamente à Antiguidade Clássica greco-romana como por um bypass.

Curiosamente, tal como o mito da ave Fénix que renasce das próprias cinzas, o Renascimento começou precisamente onde o “meteorito” tinha caído, na Península Itálica. Comummente associada a um regresso à filosofia, à arte, à ciência e à arquitetura do mundo clássico, esta revolução pacífica foi bem mais profunda e duradoira, sendo a Revolução Francesa a sua última manifestação no campo da estrutura da sociedade e do governo político.

Ao fim e ao cabo, os revolucionários franceses não inventaram a república nem a democracia, estas já vinham de trás: a democracia dos gregos, a república dos romanos. Os três ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, também vêm de trás; a nossa tese é que foram decalcados do Evangelho.

Até ao fim do Império Romano, o mundo tinha evoluído linearmente, com a queda deste nas mãos de povos primitivos, o mundo involuiu durante a Idade Média. Para deter este movimento de involução, foi necessária uma revolução.

A Revolução Francesa e o fim do sangue azul
A civilização e a cultura não pertencem ao mundo rural, mas sim ao mundo urbano. Polis para a Grécia, Urbe para Roma, o lugar por excelência da cultura é a cidade, porque é aí que acontece o maior número de interações e intercâmbios entre diferentes tribos e a todos os níveis, do comércio às ideias. Os povos invasores da última expressão da civilização ocidental - o Império Romano - eram povos rurais rudes que odiavam a cidade. Por isso estas foram morrendo à medida que a sociedade rural feudal se foi estabelecendo.

Durante a Idade Média, a sociedade europeia, estava estruturada em três classes sociais que, de alguma forma, imitavam o sistema de castas da Índia: clero, nobreza e povo. Porém, mais tarde, com a maior abertura da Europa ao comércio, foram-se criando pequenos núcleos populacionais chamados burgos que não viviam diretamente da agricultura.

Assim nasceu uma nova classe social - os burgueses - que eram fundamentalmente comerciantes e artesãos e que tinham um poder económico superior ao dos nobres ou do clero. No entanto, ao contrário destes, não tinham poder social nem político e muito menos estatuto, ou seja, não tinham lugar na sociedade das três classes.

Para além do nascimento da burguesia, a Revolução Francesa representou a eclosão de muitos outros fatores: as filosofias de Descartes, Espinosa e Locke, além das ideias sociopolíticas de Montesquieu, Voltaire e Rousseau. Os factos históricos das guerras do século XVIII criaram a necessidade de aumentar os impostos, o que levou o rei a convocar uma reunião dos Estados Gerais, clero, nobreza e povo, para o dia 5 de maio de 1789.

O povo, mais numeroso e dinamizado pelos burgueses, exigiu que as deliberações fossem votadas por cabeça e não por classes sociais. Desta forma, a vontade popular foi-se impondo sobre as outras duas classes sociais ou estados. Como é sabido, o acontecimento que desencadeou a Revolução Francesa foi a tomada da Bastilha no dia 14 de julho de 1789; a Bastilha era um castelo inexpugnável que na altura servia de prisão, tal como a Torre de Londres.

É curioso que o castelo, símbolo do mundo feudal medieval e do poderio da nobreza, tenha caído nesse dia. E com ele caiu o estatuto da nobreza e desapareceu o sangue azul. Um sangue que nunca tinha existido, um mito criado pelos mesmos nobres a partir do facto de terem a pele mais branca por não trabalharem como o povo de sol a sol, sobretudo as donzelas; por baixo da pele branca podiam observar-se as veias azuis, coisa que não era observável no povo, com a pele queimada do sol.

Na Idade Média, o estatuto social e influência política dependiam do nascimento, do título hereditário e da posse de terras. Depois da Revolução Francesa, foi-se impondo a ideia de que nascemos todos iguais e de que os méritos e as honras se conquistam a pulso, com o esforço individual. Ainda existem algumas monarquias na Europa, porém os reis não têm verdadeiro poder, reinam anacronicamente, mas não governam. Existem ainda alguns nobres, ou seja, gente que herdou títulos de condes e duques; mas a nobreza em si esvaziou-se de significado: vale mais uma pessoa do povo rica que um nobre pobre. Atualmente, é o dinheiro que confere o estatuto social às pessoas.

Para quando a "Revolução Francesa" na Igreja católica?
A Revolução Francesa conseguiu acabar com a nobreza, mas não acabou com o clero. Na Igreja, a distinção clara entre o leigo e o clero faz lembrar a Idade Média e o sistema de castas da Índia. A Igreja católica mais parece uma monarquia absoluta, com o Papa como um rei Sol com um séquito de Duques (ou Cardeais) e de Condes (ou Bispos). Não é por acaso que os Cardeais se designam por príncipes da Igreja.

O concílio Vaticano II pretendeu suavizar esta distinção entre clero e leigos, assim como democratizar mais a Igreja ao nível do seu governo, através de uma maior colegialidade ou participação. Assim, entre o Papa e os Bispos, instituíram-se os Sínodos; entre o Bispo e os sacerdotes criaram-se os conselhos presbiterais; e entre o sacerdote e o leigo, nas paróquias, criaram-se os conselhos pastorais.

Porém, como todos estes conselhos são apenas consultivos, facilmente são ignorados pela autoridade que os convoca e que muitas vezes escolhe a dedo os seus membros para que concordem com tudo o que a autoridade eclesiástica decide. O Vaticano II vaticinava uma igreja de círculos concêntricos, onde o sucessor de Pedro ocuparia o centro, sendo verdadeiramente o “servo servorum Dei”. No entanto, embora a teoria esteja correta na prática continua a prevalecer a mesma Igreja piramidal, governada por um monarca absoluto, mais ou menos iluminado, acreditamos, pelo Espírito Santo.

Num sistema onde a chave e o motor de tudo o que acontece na Igreja é o clero, o protestantismo vai ganhando terreno porque os leigos católicos, ao contrário dos protestantes, não têm consciência de serem evangelizadores. Tal acontece porque na Igreja católica, a evangelização é feita pelos clérigos. Por outro lado, como os clérigos são muito poucos ou se dedicam ao sacramentalismo ou às burocracias próprias de uma paróquia, também não evangelizam. Como prova disto, vejamos as estatísticas dos cristãos na Etiópia onde fui missionário. Os católicos que estão no país desde os Descobrimentos portugueses, são 0,5% da população; os protestantes, que apenas chegaram à Etiópia no século XX, são mais de 2% da população.

Liberdade
A ideia que aflora à nossa mente quando se fala de liberdade é a de viver de forma independente e autónoma, sem constrangimentos. A liberdade, no sentido de autonomia, é inerente a todo o tipo de vida ou matéria orgânica; é fazer coisas por si mesmo, como a árvore que com o processo da fotossíntese produz o seu próprio alimento, como vimos em texto anterior.

Muito mais que para os animais, a liberdade é condictio sine qua non para a vida humana. Os animais ou plantas fazem o que a natureza tem predestinado para eles, não saem fora desses moldes, pelo que não têm poder sobre a própria vida, não têm poder de opção. O ser humano, pelo contrário, não está predestinado pela natureza nem esta exerce poder sobre ele. Os animais estão vivos; o ser humano não só está vivo, como vive porque pode fazer da sua vida e com a sua vida o que quiser, orientá-la como quiser e até acabar com ela se assim o decidir.

“Dai-me a liberdade ou dai-me a morte” foram palavras pronunciadas num discurso por Patrick Henry durante a guerra da independência dos Estados Unidos. A liberdade é, portanto, um valor inerente à vida. Que entendiam por liberdade os teóricos da Revolução Francesa?

O conceito de liberdade na Revolução Francesa
O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto eles. Jean-Jacques Rousseau

O conceito de liberdade nascido da Revolução Francesa era mais político que outra coisa. Era sobretudo liberdade da opressão que o Estado exercia sobre os cidadãos; uma opressão que se traduzia em prender e executar pessoas sem o devido julgamento, o que aconteceu a Voltaire em virtude do seu uso da liberdade de expressão nos seus escritos.

A Revolução Francesa produziu a 16 de agosto de 1789 um documento chamado “Declaração dos direitos humanos” que influenciou não só a sociedade francesa daquele tempo, mas também a do resto do mundo naquela época e nos tempos que se seguiram.

O conceito de liberdade no evangelho
Se perguntarmos a um adolescente o que significa liberdade, imediatamente e sem pensar muito dirá “Poder fazer o que quero”. Porém esta não é a parte mais importante da liberdade. Para poder fazer o que quero, devo ser livre; poder fazer o que quero é o livre arbítrio e é a liberdade que me dá a capacidade de escolha. Sem liberdade não há livre arbítrio, é uma ilusão, uma quimera. A verdadeira liberdade é a liberdade de… o livre arbítrio é a liberdade para…

LIBERDADE DE… E LIBERDADE PARA…
A “liberdade de…” é sinónimo de emancipação, de conquista. Neste sentido, eu não sou livre à nascença, a liberdade deve ser adquirida como tudo o que a vida tem de bom, com esforço e com trabalho. A epopeia do povo hebreu ao libertar-se da escravidão do Egito, a passagem pelo deserto de purificação para entrar na Terra Prometida da liberdade onde corre leite e mel, é um paradigma da conquista da liberdade, da longa caminhada para a liberdade.

Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres. João 8, 31-32

A mensagem de Cristo é composta por três partes: pela sua pregação ou doutrina, ou seja, por tudo o que Ele disse, por tudo o que fez, pelos seus milagres e obras pois, como Ele próprio disse, as pessoas conhecem-se pelas suas obras como as árvores pelos seus frutos (Cf. Mateus 7, 16) e, por fim, pela forma como ele se comportou em todas as situações da sua vida. Tudo isto é normativo para nós, tudo isto é “Caminho, verdade e vida” (João 14, 6), tudo isto é natureza humana.

O Criador fez-se criatura para ensinar os homens a ser homens. Na sua vida, Jesus revela a natureza humana e a forma de a viver; Ele é o padrão da natureza humana: quem quer ser autêntico e genuinamente humano mede-se por Ele. É neste sentido que devemos interpretar “a verdade vos fará livres”. Conhecer é poder e controlo, conhecer a verdade das coisas significa poder controlá-las, ter poder e exercer esse poder sobre elas.

Em psicologia dizemos “o que sabes sobre ti, em especial sobre o teu inconsciente ou vida passada, tu consegues controlar; o que não sabes, controla-te a ti”. O conhecimento da natureza que te rodeia, da própria natureza humana ao nível físico, espiritual e psicológico, dá-te liberdade, pois podes dominá-la e assim saber o que pode acontecer; conheces também os limites e dentro desses limites és livre, pois a liberdade absoluta não existe; sabes até onde podes correr, o que podes ou não podes comer, a quantidade de álcool que podes beber, etc. O conhecimento da verdade das coisas emancipa-te delas, deixando de estar à sua mercê; passas a não ser dominado por elas, és livre, independente e autónomo.

As coisas foram feitas para ser usadas e as pessoas para ser amadas. Esta é a verdade da natureza das coisas e das pessoas. Considerando esta verdade, és livre porque sabes o que fazer, ou seja, como relacionar-te com as pessoas e com as coisas de forma a seres feliz. O não conhecimento desta verdade far-te-ia andar às apalpadelas como um cego que não vê o caminho e por isso não é livre: a qualquer momento a falta de conhecimento pode ser fatal.

Portanto, a “liberdade de…” refere-se a duas realidades que podem escravizar-nos às coisas, ou aos bens materiais e às pessoas. Para conquistar a minha liberdade em relação às coisas e às pessoas, devo prestar vassalagem ao Criador das coisas e das pessoas, Senhor de tudo e de todos. Quando amo a Deus acima de tudo e de todos, conquisto a minha liberdade em relação a tudo e a todos.

Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. Marcos 12, 29-30

Liberdade em relação às coisas
(…) se as vossas riquezas crescerem, não lhes entregueis o coração. Salmo 62, 11

O autor do Salmo deixa bem claro que o problema não é ser rico ou ser pobre, mas antes a relação que estabelecemos com as coisas. Um pobre agarrado ao pouco que tem, para o evangelho, é rico. Um rico desprendido do que tem, para o evangelho, é pobre. O amor é devido às pessoas não às coisas. Quem tem uma relação amorosa com as coisas, perverte a sua natureza humana, pois toda a relação amorosa pressupõe um intercâmbio simbiótico; eu dou-me a ti e tu dás-te a mim, pelo que parte de mim vai para ti e parte de ti vem para mim.

Assim é entre pessoas. Porém, se a mesma relação amorosa é estabelecida com coisas materiais, estas coisas ganham valor espiritual, ou seja, espiritualizam-se como se fossem pessoas, ganham alma. Do mesmo modo, a pessoa que se enamora das coisas materiais ganha valor material, ou seja, materializa-se, coisifica-se. É isto que queremos dizer quando definimos uma pessoa como materialista.

No amor verdadeiro entre pessoas, uma vez que te dás, te entregas, já não te possuis. Porém, como a pessoa a quem te deste partilha a tua natureza e também se deu a ti, podes estar seguro. O mesmo já não acontece quando dás o teu coração a algo não a alguém, a algo que não tem a mesma natureza; esse algo te domina e tu transformas-te em seu escravo. É neste sentido que se diz que o dinheiro é um bom escravo, pois podes fazer com ele muitas coisas; mas é um mau senhor, pois exige uma rendição completa ante a sua majestade.

Isto mesmo é o que verificamos no episódio do jovem rico que foi ter com o Senhor para inquirir se, depois de ter observado todos os mandamentos que apenas dizem o que não fazer, havia alguma coisa que ainda lhe faltava para adquirir a vida eterna. O Senhor gostou dele, como diz o evangelho, mas enganou-se a seu respeito pois este homem não era livre.

Contabilisticamente possuía muitas riquezas, mas do ponto de vista psicológico, como atrás explicámos, era possuído por elas. Por isso não era livre e, embora gostasse de ter seguido o Mestre, não conseguiu, pois, estava casado com a sua riqueza e esta nunca lhe concedeu o divórcio, não o deixou ir. (Cf. Mateus 19, 16-25).

O que dissemos em relação aos bens materiais “mutatis mutandis”, vale para a relação que muitas pessoas estabelecem com substâncias aditivas, como o tabaco, o álcool, a droga, etc. e com comportamentos aditivos, como a ira, a gula e a luxúria.

Liberdade em relação às pessoas
Quem amar o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem amar o filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim. Mateus 10, 37

O mandamento do amor a Deus tal como está descrito tanto no livro do Deuteronómio como no capítulo 12 de Marcos que acima citámos, estabelece prioridades e hierarquias. Se amamos a Deus, Ele deve vir em primeiro lugar: a Ele, o Criador, devemos amar acima de todas as criaturas, sejam coisas ou pessoas.

Custa-nos amar a Deus como um ser pessoal e espiritual, precisamos de coisas concretas, palpáveis e visíveis; por isso, a tentação de abandonar a Deus para idolatrar alguma realidade física ou pessoa é constante. O povo de Israel via em Moisés um sacramento palpável de Deus. Quando este subiu ao monte Sinai e por lá ficou muito tempo, ficaram sem essa presença sacramental de Deus no meio deles, uma vez que era Moisés que O representava de forma mais imediata. Sentiram-se sós e procuraram construir um bezerro de ouro para substituir a Deus e a Moisés. (Cf. Êxodo 32,21-24).

O mesmo aconteceu a Abraão depois de ter obtido de Deus o dom de Isaac e o princípio do cumprimento da promessa de Deus de uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu… Abraão agarrou-se a Isaac e de alguma forma esqueceu Deus que lhe tinha dado Isaac. Deus, vendo isto, pediu-lhe Isaac de volta, e este foi o teste de Abraão, o teste para verificar se amava mais a Deus ou a Isaac a quem de alguma forma tinha idolatrado. Abraão passou o teste pois sacrificou Isac, só não o matou porque Deus não o permitiu, mas a intenção era essa e a intenção é o que conta. Abraão provou que amava mais a Deus que a Isac. Se não tivesse cedido Isac, este não seria o filho da promessa e Abraão não seria o nosso Pai na fé.

Depois de me emancipar, ou seja, de conquistar a minha liberdade, autonomia e independência em relação às coisas e às pessoas ou afetos desordenados, então sou “livre para…” me dedicar, para me entregar de alma e coração às pessoas ou a uma causa humana. Só damos o que temos; por isso só me posso dar se me possuo e para possuir-me devo conquistar a minha liberdade a minha soberania. Controlar os outros é fácil, controlar-se a si mesmo é o maior dos impérios. Frequentemente buscamos controlar os outros porque não conseguimos controlar-nos, não somos senhores do nosso nariz, não nos possuímos.

Igualdade
Como o primeiro valor da Revolução Francesa dizia respeito à relação entre indivíduo e sociedade, o segundo dizia respeito à relação entre os indivíduos no interior da sociedade. O ser humano é um ser pessoal individual, mas não é uma ilha, sempre faz parte de uma família, de um clã, de uma tribo, de uma nação. Como já refletimos num texto anterior, o ser humano é uno e trino, tal como Deus e a sua criação. São precisos dois seres humanos para dar origem a um, pelo que um não existe, mas coexiste com outros dois.

O valor base de um ser humano como ser pessoal e individual é a liberdade; o valor onde assenta o ser humano como ser social é a igualdade. Vejamos o que dizia a Revolução Francesa a este respeito.

O conceito de igualdade na Revolução Francesa
No contexto da Revolução, a igualdade era bem menos idealista do que se pensa. A nova classe social, a burguesia, que por não possuir estatuto se confundia em grande medida com o povo, buscava igualdade com o primeiro e segundo estratos sociais, ou seja, com o clero e a nobreza.

Os burgueses favoreciam a meritocracia, ou seja, uma sociedade onde o estatuto e os privilégios fossem definidos e atribuídos consoante o mérito, os talentos e as obras realizadas pelo indivíduo e não em virtude de direitos inerentes ao berço onde nasceu. Neste ponto, os revolucionários franceses inspiravam-se no país que acabava de formar-se os Estados Unidos da América - onde a revolução tinha transferido o poder de governo para homens de talento e habilidade: uma imitação do governo dos sábios da antiga Grécia.

É claro que os burgueses da época procuravam equiparar-se ao clero e à nobreza, mas não se julgavam iguais ao povo e certamente não desejavam partilhar o poder com o povo. Prova disso é que não lutavam pela igualdade universal de direitos nem pelo princípio democrático “um individuo, um voto”; entendiam que votar era privilégio das classes mais abastadas.

O conceito de igualdade no evangelho
Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor. - Levítico 19, 18

O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes. Mateus 12, 31

Não há em todo o mundo uma definição melhor de igualdade. O outro é um alter ego, ou seja, é um outro eu; não um tu, uma entidade, externa, estranha, estrangeira, distante, mas sim o meu próximo, tão próximo que é um outro eu, um alter-ego, de onde provém a palavra altruísmo.

O que me é devido a mim, é-lhe devido a ele, pois é um ser humano como eu e todos viemos do mesmo tronco comum nascido no Vale do Rift há 5 milhões de anos. A igualdade e a convivência na sociedade assentam no princípio de que os meus direitos são os deveres do meu próximo e os meus deveres são os direitos do meu próximo.

– Um missionário canadiano descobriu que existe em todas as religiões uma versão desta máxima e por isso lhe chamou a “regra de outro” - e verificou que enquanto nas demais religiões, incluindo o judaísmo, a regra era formulada negativamente: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”, disse o Rabino Hilel, “no cristianismo esta mesma regra como vemos pela citação do evangelho, é formulada positivamente”: “ Portanto, o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas.» Mateus 7, 12

O evangelho não nos exorta a não ser pacíficos, mas a ser pacificadores, não nos exorta a evitar o mal, mas a fazer o bem, e a ser os primeiros a tomar a iniciativa.

Não julgueis, para não serdes julgados; pois, conforme o juízo com que julgardes, assim sereis julgados; e, com a medida com que medirdes, assim sereis medidos. Mateus 7, 1

- É uma exortação divina à igualdade não nos colocarmos acima dos outros, julgando-os, pois somos todos iguais. Ninguém nos constituiu juízes, e só o seríamos, só poderíamos atirar uma pedra, se não tivéssemos pecado. Mas pecámos e frequentemente julgamos os outros pelos mesmos pecados e defeitos que nós temos, pelo que o nosso julgamento é hipócrita.

Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. Gálatas 3, 28

- Jesus curou estrangeiros e frequentemente exaltou a sua fé. Tratava o homem e a mulher de igual para igual, foi o único Rabino que teve discípulas. Nas parábolas que contava procurava um equilíbrio entre os homens e mulheres como protagonistas. Combateu o cliché de que a mulher devia dedicar-se exclusivamente ao trabalho doméstico, tendo como única vocação ser mãe. Desta forma, 2000 anos antes, já Jesus era a favor da integração da mulher no mundo do trabalho ao lado do homem. (Cf.  Lucas 10, 38-42, Lucas 11, 17)

Fraternidade
Este terceiro valor da Revolução Francesa parece qualitativamente distinto dos outros dois. Enquanto que liberdade e igualdade são princípios do Direito, regras normais que apelam à razão, a fraternidade parece apelar mais ao sentimento, à emoção que à razão. Neste sentido, enquanto que os outros têm um certo grau de obrigatoriedade e apelam a regras concretas e verificáveis, a fraternidade é menos normativa e mais deixada ao livre arbítrio de cada um, por ser matéria mais dos sentimentos que da razão. E os sentimentos não se podem obrigar nem comandar. Que entendia a Revolução Francesa por fraternidade?

O conceito de fraternidade na Revolução Francesa
No contexto da Revolução Francesa, este é o conceito mais idealista e utópico dos três. Difícil de definir, pois é mais abstrato, e de concretizar, pois é mais idealizado. Por aquele tempo, significava irmandade, união e solidariedade entre todas as classes sociais e cidadãos em torno do valor da pátria, França. Este ideal, com o decorrer da Revolução esfumou-se por não ter tido grandes concretizações históricas. Ficou apenas como o terceiro valor do ex libris ou lema da Revolução: liberdade – igualdade – fraternidade.

O conceito de fraternidade no evangelho
Quanto a vós, não vos deixeis tratar por “mestres”, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso “Pai”: aquele que está no Céu. Mateus 23, 8-9

“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”, diz George Orwel na sátira da revolução dos animais que pode ser vista com uma crítica à Revolução Francesa. Teoricamente e só mesmo teoricamente, os homens são todos iguais perante a lei. Na prática, uns são mais iguais que outros. Há práticas da justiça para todos os bolsos: frequentemente não ganha uma causa quem mais razão tem, mas quem mais dinheiro tem.

Não é porque não há ninguém acima da lei que nos faz a todos iguais, mas sim pelo facto de que Deus é Pai de todos, dos bons e dos maus, Ele é o único que não distingue entre de pessoas e faz chover sobre justos e injustos.

A igualdade perante a lei é um mito porque, como sarcasticamente diz, sempre haverá alguns que são “mais iguais que outros”.

O amor nasce entre iguais ou faz as pessoas iguais – Como este provérbio, podíamos descartar o valor da fraternidade, pois como nos diz o princípio dos vasos comunicantes, quando dois recipientes com desigual quantidade de água se ligam, o que tem mais cede água ao que tem menos, nivelando a água entre os dois recipientes.

A nível social, isto acontece quando um rico se casa com uma pobre, como no conto popular do príncipe que casa com a Cinderela. O príncipe rico casa com a Gata Borralheira e reparte a sua riqueza com ela e até parte do seu estatuto, já que ela passa a ser princesa. Também Deus, quando enviou o seu Filho para desposar a humanidade, elevou-a à categoria de filha adotiva; com Cristo tornámo-nos seus irmãos e herdeiros do Reino. (Cf. Marcos 2, 18-20 e Efésios 1, 5)

Neste mesmo princípio se baseou Karl Marx, de alguma forma o inspirador da segurança social, com a ideia de cada um segundo as suas capacidades, e a cada um segundo as suas necessidades. Isto é a fraternidade que permite que o que não tem trabalho por culpa do sistema possa, mesmo assim, satisfazer as suas necessidades básicas inerentes à dignidade de toda a pessoa humana. Esta mesma solidariedade é intergeracional, ou seja, existe entre as gerações numa sociedade moderna. Os que agora trabalham, descontam para pagar as reformas dos que já não têm força para trabalhar, mas precisam do seu sustento diário.

(…) Vieram, por seu turno, os primeiros e julgaram que iam receber mais, mas receberam, também eles, um denário cada um. Depois de o terem recebido, começaram a murmurar contra o proprietário, dizendo: “Estes últimos só trabalharam uma hora e deste-lhes a mesma paga que a nós, que suportámos o cansaço do dia e o seu calor. (…) Mateus 20, 1-16

Os trabalhadores desta parábola são jornaleiros que trabalham como trabalhadores temporários durante a época das colheitas, e o empregador percebe que todos precisam do salário de um dia completo para alimentar as suas famílias. Não foi por sua culpa que não trabalharam o dia inteiro. De facto, quando o empregador lhes perguntou porque estiveram inativos todo o dia, eles responderam que ninguém os contratara. No meu entender esta parábola é tão ou mais inspiradora da ideia de segurança social que a máxima de Karl Marx.

Conclusão
O valor humano da dimensão individual do ser humano é a liberdade; o valor humano da dimensão comunitária do ser humano é a igualdade. Liberdade e igualdade são os valores sobre os quais assenta a vida humana e sobre os quais assentam os sistemas políticos e económicos da sociedade.

O capitalismo exacerba a liberdade, o socialismo exacerba a igualdade. O equilíbrio ou harmonia da liberdade e da igualdade são tão difíceis de interiorizar para o indivíduo como para a sociedade. O mundo mundano não tem uma fórmula ideal para harmonizar as duas dimensões; mas o cristianismo tem: o mandamento do amor.

A cruz, símbolo do cristianismo, é onde a verticalidade do amor a Deus sobre todas as coisas e a horizontalidade do amor ao próximo como a sim mesmo se encontram e harmonizam. Sem liberdade não há vida humana, sem igualdade não há vida social, sem fraternidade não há uma nem outra.
Pe. Jorge Amaro, IMC

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