1 de junho de 2018

CNV - Necessitar sem planear


Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um. Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração. Atos dos Apóstolos 2, 44-46

Sentimentos versus necessidades
As necessidades são a principal motivação do comportamento, tanto humano como animal. Se os sentimentos são o fumo, as necessidades são o fogo; onde há fumo há fogo e vice-versa.

Os sentimentos são como um termómetro que mede a temperatura do corpo e acusa ou não febre. Se sinto que a temperatura do meu corpo subiu, é porque algo de mau se passa com o meu corpo. Pode ser uma infeção, que precisa de ser tratada.

Tanto o sentimento de dor como o do prazer são sintomas ou reações do corpo; a condição que as causa, encontra-se no interior do mesmo corpo. Por exemplo, sinto fome, necessito de alimento; sinto frio, necessito de abrigo. Da mesma forma, os sentimentos de alergia ou tristeza, medo ou coragem são reações do espírito; a condição que causa estas reações encontra-se no interior da nossa alma. Por exemplo, sinto-me só, necessito de companhia, sinto-me nervoso, necessito de relaxar, etc.

Os sentimentos são quase sempre causados por necessidades (valores) que são percebidas como sendo satisfeitas ou insatisfeitas. Estes são geralmente “provocados” pela perceção interna e externa de eventos. Porém, os sentimentos de raiva, culpa e vergonha são exceções, porque são causados por avaliações e interpretações internas de acontecimentos externos. Por exemplo, a raiva é causada quando entendo que algo ou alguém está errado.

Assumir a responsabilidade pelos nossos sentimentos
Depois de identificar os nossos sentimentos, separando-os dos pensamentos, o passo seguinte é assumir a responsabilidade pelos mesmos. Podemos fazer isto à priori, quando estamos convencidos de que os outros não podem fazer-nos sentir desta ou daquela maneira, podem espoletar um sentimento, mas não podem produzi-lo. Os sentimentos são nossos, bem nossos e não nos cabe outra alternativa senão assumir a paternidade dos mesmos. O que os outros fazem pode estimular os nossos sentimentos ou emoções, mas não são eles a causa desses mesmos sentimentos ou emoções.

Assumir os nossos sentimentos à priori não chega, não nos convence plenamente; só ficamos verdadeiramente convencidos quando os assumimos à posteriori, ou seja, quando descobrimos a necessidade pessoal que está a produzi-los, só assim evitamos a tentação de culpar os outros pelos nossos sentimentos.

Desafortunadamente, temos tendência a seguir um processo errado: em vez de fazermos um exercício de introspeção e investigar de onde vem o fumo para descobrir o fogo, em vez de indagar qual é a necessidade que está a produzir este sentimento, fazemos o contrário, um exercício de extroversão, saímos fora de nós e culpamos os outros pelos nossos sentimentos, buscando um bode expiatório.

Negar a nossa responsabilidade usando pronomes impessoais
Às vezes usamos expressões nas quais sacudimos a água do capote, mas não responsabilizamos ninguém em concreto pelos nossos sentimentos. Por exemplo:  "Fico furioso quando vejo que os nossos catálogos contêm erros ortográficos.”. Quando estamos conscientes de que a causa dos nossos sentimentos é uma necessidade insatisfeita então podemos transformar esta afirmação na afirmação seguinte: "Fico furioso quando vejo que os nossos catálogos contêm erros ortográficos porque necessito que a nossa empresa projete para fora uma imagem de profissionalismo.”

Negar a nossa responsabilidade mencionando só as ações dos outros
Uma outra forma de sacudir o capote quanto aos nossos sentimentos é mencionar as ações dos outros como sendo as causadoras deles, na esperança de que os outros se sintam culpados e façam o que nós queremos. Isto é chantagem afetiva que pode levar o outro a atuar movido pela culpa. Vejamos como isto acontece no seguinte exemplo: “a mamã fica desiludida contigo por tu não acabares a comida do prato.”

Tomando responsabilidade pelos nossos sentimentos, neste caso, leva-nos a reconhecer perante o outro a necessidade que os causa, livrando-o de toda culpa: “a mamã fica desiludida contigo por tu não acabares a comida do prato, porque quero que cresças forte e com saúde”

Negar a nossa responsabilidade culpando os outros
Quando estou desconectado das minhas necessidades tendo a responsabilizar os outros pelos meus sentimentos, usando a seguinte expressão: “Sinto… porque TU…” Exemplo: "Sinto-me irritado porque tu não compareceste ao encontro que tínhamos marcado".

Pelo contrário, quando nos conectamos com as nossas necessidades, descobrimos que é a sua insatisfação que é a verdadeira causa dos nossos sentimentos: “Sinto … porque EU” – “Senti-me irritado quando não compareceste ao nosso encontro porque eu tinha necessidade de desabafar contigo”.

Expressamos os nossos sentimentos de forma que denota que assumimos plena responsabilidade pelos mesmos; isto ajuda os outros a dar-se conta do que é importante para nós; por outro lado, ao não ouvirem críticas nem serem responsabilizados pelos nossos sentimentos, aumenta a probabilidade de que as necessidades de ambos sejam satisfeitas.

Quatro opções ante a receção de uma mensagem negativa
Experimentamos sentimentos positivos quando as nossas necessidades são atendidas e satisfeitas e sentimentos negativos quando as mesmas não são atendidas nem satisfeitas.

"Nunca queres passar tempo comigo... por que és tão egoísta?"
Quando alguém, verbalmente ou não verbalmente expressa uma mensagem negativa, temos quatro opções quanto à forma como a recebemos:

Culpabilizamo-nos a nós mesmos – Aceitamos a apreciação da outra pessoa como verídica e deixamos que esta afete a nossa autoestima; o sentimento de culpa, vergonha ou depressão podem minar a forma como nos conceptualizamos. O que quer que façamos pelo outro, no sentido de compensar o nosso egoísmo, não vai ajudar-nos nem a nós nem ao outro, pois acontece a partir do sentimento de culpabilidade.

Culpabilizar os outros - Quando culpamos os outros pelos nossos sentimentos... tendemos a estimular sentimentos de culpa nas outras pessoas. Estas podem até fazer um esforço para satisfazer essas nossas necessidades, mas fazem-no movidas por esse sentimento de culpa e não voluntariamente, pelo que, no fim, o necessitado e o que satisfaz as necessidades vão pagar um alto preço.

Detetar os nossos próprios sentimentos e necessidades – “Quando te ouço dizer que sou egoísta, sinto-me magoado porque preciso de algum reconhecimento pelo que tenho feito por ti.” Quando nos voltamos para dentro e concentramos a nossa atenção nos nossos próprios sentimentos e necessidades, tornamo-nos conscientes de que o nosso sentimento atual de dor deriva da necessidade de reconhecimento dos nossos esforços e não da crítica que nos foi feita.

Detetar os sentimentos e necessidades dos outros – Uma quarta opção é perscrutar com empatia os sentimentos e necessidades que estão por detrás da crítica negativa que nos dirigiu. Aqui somos chamados a ler nas entre linhas, a voltar a nossa atenção não tanto para o que a pessoa diz mas para o que quer dizer.

Somos chamados a psicanalisar o discurso dos outros; a comunicação não violenta dá-nos uns olhos raio X para ver numa crítica, ou até num insulto, uma expressão trágica dos sentimentos e necessidades de quem a faz.

Neste caso concreto, ao ouvirmos empaticamente a crítica negativa, sem a tomar pessoalmente, podemos perguntar, “Sentes-te magoado porque não te tem sido dada a atenção devida ou precisas de mais consideração pelos teus gostos ou preferências?"

Bem diferentes são as coisas quando aceitamos responsabilidade pelos nossos sentimentos e expressamos a necessidade que os provoca em vez de culpabilizar os outros pelo que nos vai na alma, como é o caso no seguinte exemplo:

"Dececionaste-me porque não apareceste ontem à noite” – Neste caso reportamos um facto, o nosso sentimento e culpamos e responsabilizamos uma pessoa pelo nosso sentimento. Frequentemente o nosso intuito é que se sinta culpado e que nos recompense para se redimir da culpa. Se não o faz, o nosso ressentimento aumenta e podemos entrar em conflito. Por outro lado, se o faz ambos pagaremos, tarde ou cedo, um alto preço porque o faz a partir da energia negativa do sentimento de culpa e não da energia positiva do dar gratuitamente do coração, simplesmente porque se sente bem contribuindo para o bem do outro.

Fiquei dececionado quando não te vi ontem à noite pois necessitava de partilhar algo importante contigo” – Quando, pelo contrário, eu expresso genuinamente os meus sentimentos juntamente com as necessidades que lhes estão subjacentes sem culpar o outro, tenho mais probabilidade de encontrar aceitação e empatia junto da outra pessoa e de esta atender a qualquer solicitação que eu faça depois.

É preciso entender que o sentimento de deceção não provém do facto de que o outro não compareceu, mas sim da necessidade que ficou insatisfeita. Com os meus olhos e ouvidos não violentos eu não vejo ou ouço um “NÃO” do outro à satisfação da minha necessidade, mas um “SIM” à satisfação das suas necessidades (que também são minhas porque o amo como a mim mesmo) que fizeram com que não pudesse comparecer.

Faz-te responsável apropriares-te de qualquer sentimento que surge em ti. Se ele surge em ti, é teu; os sentimentos não são aéreos, não viajam pelo ar, não vêm de fora de ti: são terrestres, procura no teu interior a sua causa e origem. Ao fazê-lo, e ao encontrares uma necessidade que não está a ser satisfeita, dá-te conta que exatamente a mesma coisa - uma necessidade não satisfeita - foi o que fez o outro fazer o que fez e dizer o que disse.

Em CNV, nunca devemos esquecer e devemos ter sempre presente nas nossas mentes que todas as análises, avaliações, críticas e comportamentos negativos – nossos ou dos outros – percecionados por nós são simplesmente trágicas expressões alienadas e alienantes de necessidades não satisfeitas e inconscientes. Se os outros e nós mesmos nos dermos ao trabalho de descobrir as necessidades subjacentes aos nossos sentimentos, não precisamos de expressar os nossos sentimentos de forma tão trágica ou violenta como habitualmente fazemos.

O que são necessidades?
As nossas necessidades são a expressão da nossa mais profunda humanidade. Todos os seres humanos partilham necessidades fundamentais para a sobrevivência: hidratação, nutrição, descanso, abrigo e conexão, entre outras. Também partilhamos muitas outras necessidades, embora possamos experimentá-las em diferentes graus, com maior ou menor intensamente em vários momentos.

No contexto da CNV, as nossas necessidades são o que há de mais vivo em nós: os nossos valores centrais e os nossos mais profundos desejos humanos. A identificação, compreensão e conexão com as nossas necessidades ajudam-nos a melhorar a nossa relação connosco mesmos e com os outros, ficando todos mais propensos a empreender ações que atendam às necessidades de todos.

Sentimentos e necessidades são a linguagem da vida. Porém temos sido educados em culturas de dominação desde há 10.000 anos, de tal maneira que nos desligámos das nossas necessidades. As pessoas não são bons escravos, obedientes à autoridade, quando estão vivas e plenamente conscientes de seus sentimentos e necessidades.

Os poderes instituídos querem que neguemos as nossas necessidades, que não estejamos conectados com elas porque elas são um peso; fazem-nos dependentes dos outros. Por que é que as estruturas do poder nos induzem a fazer esta associação? Porque isso faz com que outro grupo de pessoas sacrifique as suas necessidades. Ou seja, somos induzidos a pensar que as nossas necessidades sempre serão satisfeitas à custa das necessidades dos outros; alguém tem de sacrificar as suas necessidades para que as nossas sejam feitas.

A minha mãe pode ter sacrificado as suas necessidades para que 10% das minhas fossem satisfeitas; acredito que 90% de tudo o que fez por mim foi por amor. Isto faz com seja difícil confiar nas pessoas: quando me dão, nunca sei ao certo se é por amor ou por qualquer outra razão que me faça devedor perante quem me dá.

Esta ideologia parece supor que o nosso mundo tem recursos escassos e que não há outra forma de satisfazer as nossas necessidades sem que alguém sacrifique as suas, o que não é verdade. A CNV diz-nos precisamente o contrário: não somos co dependentes, mas interdependentes. O nosso mundo tem suficientes recursos para que as necessidades de todos sejam satisfeitas e ninguém tenha de sacrificar as suas.

Temos tido uma formação cultural segundo a qual é vergonhoso ter necessidades; o que as tem e tenta satisfazê-las é tido como egoísta. O sistema de dominação educa-nos, malvadamente, para nos esquecermos de nós mesmos, dos nosso sentimentos e necessidades e para sermos “robôs altruístas” ao serviço do sistema. Por exemplo, as mulheres não devem ter necessidades, devem sacrificá-las em beneficio das suas famílias... Os homens fortes não têm necessidades, estão dispostos a sacrificar as suas vidas ao serviço do seu país, do seu rei, da sua bandeira.

Apesar de todas as tentativas para negar a sua existência, as necessidades fazem referência aos recursos necessários para sustentar e enriquecer a vida. Mais uma vez, referimos que a natureza humana é imutável, não muda ao longo do tempo nem do espaço. Por isso, tal como os sentimentos, as necessidades humanas são universais, transcendem os costumes culturais, as latitudes e longitudes assim como os condicionamentos históricos ao longo do tempo.

Frequentemente as necessidades são expressadas em forma de valores éticos ou morais, havendo de facto uma verdadeira equivalência entre os dois conceitos: uma necessidade existe com referência a um valor, assim como um valor moral existe com referência a uma necessidade.

Em CNV, as necessidades ou valores são salientadas como sendo a componente mais importante para uma conexão compassiva com o outro. A qualidade da conexão pretendida na comunicação não violenta é improvável enquanto não nos ligarmos a este nível connosco mesmos e com os outros.

Nove necessidades básicas
Pois, que aproveita ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma? Ou, que daria o homem pelo resgate da sua alma? Marcos 8:36,37

A saúde das chamadas “economias saudáveis” é inversamente proporcional à doença dos trabalhadores que as sustêm. Para que serve ter uma economia saudável se a saúde desta é à custa da saúde física, psíquica, moral e espiritual das pessoas? O que é mais importante a economia ou as pessoas?

Manfred Max-Neef, o pai da economia do “pé descalço”, desenvolveu um sistema económico baseado na satisfação das nove necessidades básicas. Segundo ele, o sucesso económico não está baseado no produto interno bruto, mas sim em como estas nove necessidades básicas são satisfeitas por todos na população. Fundamentalmente, o que interessa numa economia não é a riqueza que se produz, mas a qualidade de vida que proporciona às pessoas abrangidas por essa economia.
  1. Sustento – ar, água, comida, exercício, expressão sexual…?
  2. Segurança – abrigo, proteção, 
  3. Amor - amar e ser amado, confiança, integridade, respeito, honestidade
  4. Empatia - solidariedade, colocar-se no lugar do outro e o outro no nosso lugar
  5. Diversão – jogo, recreação, atividades de tempos livres
  6. Comunidade – interdependência, pertença, afiliação
  7. Criatividade - criar coisas novas, inovação
  8. Autonomia – liberdade, independência, autodeterminação, autoestima
  9. Necessidade de significado - sentido último, contribuir para a vida, é importante para viver as nossas vidas plenamente; sentido da vida
Avaliações - sentimentos - necessidades
Às vezes descrevemos os nossos sentimentos com substantivos ou até verbos, vejamos como podem ser descritos.


Avaliações
Sentimentos
Necessidades
Sinto-me abandonado
mágoa, tristeza, solidão
Conexão, companhia, ajuda, pertença
Sinto-me atacado
Medo, desafio, hostilidade
Consideração, segurança
Sinto-me humilhado
Ira, mágoa desilusão
Respeito, apreço
Sinto-me traído
Ira, desilusão
Confiança, honestidade, honra, compromisso
Acusado
Confusão, medo, hostilidade
Justiça, responsabilização
Acossado
Medo, pressão
Autonomia, segurança, consideração
Enganado
Ressentimento, ira, mágoa
Honestidade, justiça, confiança, fé
Criticado

dor, ansiedade, frustração, humilhação
Compreensão, reconhecimento, respeito
Ignorado
solidão, mágoa, tristeza, embaraço
Respeito consideração, reconhecimento
Insultado
Irritação, embaraço
Respeito, consideração, reconhecimento
Intimidado
Medo, ansiedade
Segurança, igualdade, validação
Ignorado
Tristeza, solidão, ansiedade
Inclusão, pertença
Isolado
Solidão, medo
Pertença, comunidade, inclusão, contribuição
Julgado
Ressentimento, medo, mágoa
Justiça, igualdade, consideração
Manipulado
Irritação, impotência, frustração
Confiança, igualdade, autenticidade
Incompreendido
preocupação, frustração
Ser ouvido, clareza, compreensão
Provocado
Irritação, hostilidade, ressentimento
Respeito, consideração


Necessidades e valores
A comunicação não violenta, como sugere a imagem que acompanha este texto, divide as necessidades em grupos: sobrevivência, proteção, sentido, autonomia, interdependência, honestidade, empatia, bem-estar, regeneração, transcendência.

Maslow coloca estas mesmas necessidades numa pirâmide hierárquica na perspetiva do que é mais importante e mais urgente, entendendo que o ser humano não tem, por exemplo, necessidade de realização pessoal enquanto não tiver as necessidades básicas satisfeitas.

A satisfação da necessidade inferior leva a sentir a necessidade posterior ou a que se lhe segue e assim por diante, até ao cimo da pirâmide; e vice-versa, a insatisfação da necessidade imediatamente inferior leva a não sentir a necessidade imediatamente superior.

Assim, na base da pirâmide estão as necessidades fisiológicas, seguidas, num movimento ascendente, pelas necessidades de segurança, necessidades sociais, necessidades de estatuto, autorrealização e espirituais ou de transcendência.

Para a CNV as necessidades e os valores são sinónimos. Quando se referem ao corpo, ou seja, as que estão mais na base da pirâmide de Maslow, a designação “necessidades” é mais comum; pelo contrário, quando se referem mais ao espírito, as que correspondem às partes superiores da pirâmide de Maslow, é mais comum designá-las como valores.

É importante também referir que a CNV pratica ou pressupõe a prática do segundo mandamento do amor, “Ama o próximo como a ti mesmo”. De facto, as necessidades dos outros são vistas e tidas como necessidades minhas e vice-versa. Eu tenho necessidade de que tu te alimentes, que sejas amado e respeitado. Em CNV não queremos Deus para nós e o diabo para os outros, porque sabemos que se o outro perde nós também perdemos.

No nosso próprio interesse, não devemos ser egoístas; o egoísmo não traz vantagens para ninguém, nem mesmo para o egoísta. Nunca ninguém foi ou será verdadeiramente feliz à custa dos outros. Como dizia o teólogo Paul Tillich, “a crueldade para com os outros, é sempre crueldade contra nós mesmos”. Rosenberg chega a dizer que “a nossa sobrevivência como espécie depende de nossa capacidade de reconhecer que o nosso bem-estar e o bem-estar dos outros, na verdade, são uma e a mesma coisa."

Necessidades - estratégias – preferências - desejos
As necessidades são as principais qualidades e valores que todos compartilhamos como seres humanos, elas são o que dirige as nossas ações e comportamentos. Do ponto de vista da CNV, todo o comportamento humano surge de uma tentativa de satisfazer uma necessidade humana. Tudo o que os seres humanos fazem é para satisfazer as suas necessidades.

As necessidades são o fim ou objetivo a conseguir, as estratégias são o meio para atingir esse fim, as preferências são o modo como satisfazer uma necessidade e o desejo é esse mesmo modo projetado no futuro. As necessidades são universais, enquanto que as estratégias não o são, variam de pessoa para pessoa, de geração para geração, de cultura para cultura; de facto, as necessidades não fazem qualquer referência a uma pessoa específica fazer um ato específico, já que isso seria uma estratégia não uma necessidade.

A estratégia ou preferência é um método específico para satisfazer uma necessidade. Quando por exemplo dizemos “necessito do teu amor”, confundimos necessidade com estratégia. Neste caso a necessidade é a de amar e ser amado, o outro é somente a estratégia para satisfazer essa necessidade. É preciso ter em conta que há mil e uma estratégias para a satisfação de cada necessidade.

Confundir necessidade com estratégia, no caso do amor, pode até ser perigoso. “Necessito do teu amor” pode muito bem levar a crimes passionais e ao suicídio. Ninguém é imprescindível, a necessidade de amor pode muito bem ser satisfeita por muitas milhares de pessoas. Confundimos na vida real necessidades com preferências, estratégias e desejos. As necessidades são universais; preferências, estratégias e desejos são individuais ou pessoais e podem variar de cultura para cultura e de geração para geração.

A chave para nos ligarmos, identificarmos e expressarmos as nossas necessidades é concentrarmo-nos em palavras que descrevem a nossa experiência humana comum em vez de palavras que descrevem estratégias específicas para satisfazer essas necessidades. Sempre que incluímos uma pessoa, um local, uma ação, uma vez ou um objeto na expressão do que nós queremos e necessitamos, estamos a descrever uma estratégia, em vez de uma necessidade.  Por exemplo: "Eu quero que venhas à minha festa de aniversário" pode ser uma estratégia particular para satisfazer a necessidade de amor e conexão.

A gramática do amor na CNV
- Amas-me?
- Antes de responder, preciso de saber se estás a usar a palavra amor como sentimento?
- Claro!
- Em CNV é uma necessidade e não um sentimento. Mas uma vez que estamos esclarecidos a respeito disto, pergunta-me outra vez.
- Amas-me?
- Quando?
- Quando?
- Sim porque os sentimentos mudam de minuto para minuto, por isso preciso de saber a que momento te referes
- Hummm…  e se for agora mesmo!
- Não, mas pergunta-me daqui a pouco pode ser que a resposta seja outra
Marshall Rosenberg

Ao longo dos séculos, o amor tem sido apresentado ao mesmo tempo como necessidade, sentimento e ação; por isso, nomeadamente em inglês, a palavra “amor” – (love) pode ser usada simultaneamente como substantivo, verbo ou adjetivo. Em CNV, porém, a mesma realidade não pode ser ao mesmo tempo uma necessidade, um sentimento e uma ação. Os sentimentos são alertas para necessidades satisfeitas quando são positivos e para necessidades insatisfeitas quando são negativos; por outro lado, as ações são requeridas ou motivadas pelas necessidades.

Para a CNV, o amor não é uma ação, porque não é um verbo, mas é uma necessidade que motiva muitos tipos de ações que levam o indivíduo a satisfazer a necessidade de amar e ser amado. Como dizia S. Tomás de Aquino, amar é querer o bem do outro. Neste sentido, o amor traduz-se nas boas obras que os outros nos fazem ou que nós fazemos aos outros.

O amor não é um sentimento porque não é um adjetivo que qualifique um substantivo. Como refere Rosenberg, os sentimentos são voláteis e efémeros; à exceção do luto, não podemos sentir um sentimento por mais de 40 segundos. É claro que o amor envolve sentimentos porque são eles que nos dizem se a necessidade de amar e ser amado está ou não a ser satisfeita. Por exemplo o sentimento de empatia revela que a minha necessidade de amar está a ser satisfeita; pelo contrário, o sentimento de ciúme revela que a minha necessidade de ser amado não está sendo satisfeita.

Concluindo, o amor como necessidade suscita sentimentos, mas não suscita um específico, pois suscita muitos e variados. Leva a pessoa a atuar, mas não a realizar uma única ação específica; os atos de amor são muitos e variados.

Sendo a primeira necessidade humana não física, para a CNV o amor é um substantivo, uma necessidade que, como todas as outras necessidades, busca satisfação. A necessidade de comida, por exemplo, faz-se sentir tanto no nosso psiquismo como no nosso corpo; uma vez sentida, move a pessoa a fazer algo para a satisfazer. Assim é a necessidade de receber amor e a necessidade de dar amor; faz-se sentir no nosso psiquismo de forma a levar a pessoa a fazer obras que satisfaçam tanto uma como a outra; para a criança, o prioritário é ser amado, apesar de já ser capaz de amar, para o adulto o prioritário é amar, apesar de também necessitar que o amem.

O amor é uma necessidade universal e, como tal, não faz referências a uma determinada pessoa fazer uma ação específica. Cada necessidade humana tem mil e uma formas ou estratégias para ser satisfeita. No caso da necessidade de amar e ser amado, em teoria, o mundo tem 7 mil milhões de pessoas que a podem satisfazer. Podendo entrar em colisão com a forma como o amor romântico é conceptualizado, em CNV não confundimos estratégias ou preferências com necessidades.

Portanto as várias formas de satisfazer a necessidade de amar e ser amado, assim como as pessoas por nós escolhidas para satisfazer estas necessidades, pertencem ao âmbito das estratégias ou preferências pelo que, em princípio, nada têm que ver com a necessidade em si.

Expressões como “Estou perdidamente apaixonado por ti”, “Necessito do teu amor”, “Sem ti não sei viver” parecem confundir necessidade com preferência. Mesmo quando estas expressões são genuínas, e mesmo quando, com o passar do tempo, o amor se confunde com a pessoa amada de forma a serem uma única realidade, mesmo aí, e por razões de clareza, o amor é a necessidade, a pessoa amada a preferência; ou seja, em 7 mil milhões de possíveis amantes e destinatários do meu amor, escolho-te a ti, prefiro-te a ti.

Exercícios de reconhecimento de necessidades
Irritas-me quando esqueces documentos da empresa na sala de conferências” – Esta afirmação parece supor que o comportamento do outro é responsável pelos sentimentos de quem a faz; não revela nem os pensamentos nem as necessidades que estão por baixo do sentimento de irritação. Para que tal acontecesse, a pessoa teria de dizer “Fico irritado quando deixas documentos da empresa na sala de conferências porque necessito que os nossos documentos estejam guardados em segurança.”

Sinto-me desapontado porque disseste que o fazias e não o fizeste” – Há aqui uma acusação implícita; para expressar sentimentos e necessidades, o interlocutor teria de dizer, “Quando disseste que o fazias e depois não o fizeste, senti-me desiludido porque tenho necessidade de confiar nas tuas palavras”.

Sinto-me intimidado quando levantas a voz” – Para ser fiel aos seus sentimentos e necessidades, o interlocutor deveria ter dito, “Quando levantas a voz, tenho medo que alguém seja magoado e eu preciso de saber que todos aqui estão em segurança”.

Sinto-me contente por teres recebido aquele prémio - Para expressar os sentimentos e necessidades por trás da afirmação, deveria dizer, “Quando recebeste aquele prémio, senti-me contente porque estava à espera que fosses reconhecido por todo o trabalho que tiveste no projeto”.

Sinto-me agradecido por me teres dado uma boleia pois ontem tinha necessidade de chegar a casa antes dos meus filhos” – Perfeita afirmação de sentimentos e necessidades.
Pe. Jorge Amaro, IMC


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