15 de abril de 2018

CNV - Os quatro cavaleiros da Não-Violência


(…) vi que apareceu um cavalo branco; o cavaleiro levava um arco e foi-lhe dada uma coroa. Depois, partiu vencedor para novas vitórias. (…) saiu outro cavalo, que era vermelho; e ao cavaleiro foi dado o poder de retirar a paz da terra e de fazer com que os homens se matassem uns aos outros. (…)  Na visão apareceu um cavalo negro. (…). Na visão apareceu um cavalo esverdeado. O cavaleiro chamava-se «Morte»; e o «Abismo» seguia atrás dele…Apocalipse 6, 1-8

Fome peste guerra morte, são os quatro cavaleiros do Apocalipse e todos os quatro são causas e consequências de si mesmos e uns dos outros. A fome causa a peste, a peste causa a fome, ambos provocam guerras, ambos causam a morte. O mundo já conheceu estes cavaleiros e está sempre em perigo de os conhecer outra vez e de chegar à autodestruição.

Marshall Rosenberg propõe a linguagem não violenta, ou compassiva como alternativa, uma alternativa à matriz da violência sobre a qual está montada a nossa forma de viver, de pensar e as relações que estabelecemos entre nós.

Fome, peste, guerra e morte são os quatro cavaleiros da violência que leva ao apocalipse. A observação, o sentimento, a necessidade e o pedido são os quatro cavaleiros que vão tornar obsoleta a violência e comandar o mundo rumo a um futuro de harmonia e paz entre todos os seres humanos.

Observação
Trata-se de descrever a realidade o mais objetivamente possível, tal como os meus cinco sentidos a captam: o que vejo, o que ouço, o que cheiro e provo com o paladar, o que toco sem julgar, criticar, avaliar ou interpretar. Por exemplo, em vez de dizer a alguém “és rude”, o que nos colocaria em rota de colisão com a pessoa e dificultaria o relacionamento posterior, podemos dizer: “quando chegaste não te ouvi dizer bom dia”. Se tivéssemos dito “Quando chegaste não disseste bom dia” estaríamos a julgar também, porque a pessoa poderia ter dito sem que a ouvíssemos.

Porque alguém matou um cão, a nossa tendência é chamá-lo mata-cães para o resto da sua vida - julgamos uma pessoa por um único ato. A crítica, a avaliação, o julgamento e a interpretação bloqueiam a comunicação, porque são quase sempre injustos e fazem a pessoa sentir-se coagida, arquivada, aprisionada pelo rótulo que lhe colocámos. Não a deixamos ser ela mesma, nem progredir, não nos relacionamos com ela mas com a imagem que fizemos dela, uma imagem que pode até servir o nosso objetivo mesquinho mas não serve a comunicação genuína e saudável. Esta é a forma de fazer um inimigo, não um amigo.

Torna-se muito difícil fazermos uma observação objetiva, nua e crua porque, na maior parte das vezes, projetamos nas nossas observações, os nossos interesses, a nossa inveja, o nosso ódio ou, pelo contrário, o nosso louvor sobre o ato que observamos. É assim que tem funcionado o mundo; por isso, falar de uma outra forma é verdadeiramente uma revolução coperniciana.

A observação desprovida de crítica, avaliação, julgamento, interpretação é dinâmica, pois permanece aberta; ao misturamos uma avaliação ou interpretação, o observado, ou seja, uma pessoa em ação, perde dinamismo e fica fechada, imóvel, estática, como se fosse fotografada. Por isso a CNV evita o verbo “Ser” e usa verbos de ação no seu lugar.

Sentimento
Depois de observar sem analisar e declarar certo ou errado, bom ou mau, o ato seguinte é fazer a  ligação com os nossos sentimentos, fugindo do pensamento que é quase sempre tendencioso e viciado no avaliar e interpretar, para depois criticar e julgar. Os sentimentos dizem mais de nós mesmos que os pensamentos. Se não consigo ligar-me a mim mesmo, dificilmente conseguirei ligar-me ao outro.

Os sentimentos representam a nossa experiência emocional e as sensações físicas associadas às nossas necessidades satisfeitas ou insatisfeitas. Como adiante veremos ao falar de necessidades, os sentimentos estão para as necessidades como o fumo está para o fogo. Qualquer sentimento ou emoção sentida fala-nos de uma necessidade satisfeita ou insatisfeita.

Nesta etapa o nosso objetivo é identificar, nomear e ligarmo-nos aos nossos sentimentos. O pensamento deve, portanto, ser autorreflexivo, desviado do outro e ser colocado ao serviço dos nossos sentimentos, ajudando-nos a interpretá-los e a identificá-los.

Depois de interpretar o que nos vai no coração, podemos e devemos expressar os nossos sentimentos, evitando cair na armadilha e autoengano de responsabilizar os outros por eles. A expressão “sinto-me só” é uma genuína expressão do sentimento interior de solidão. Porém, se digo “sinto que não me amas” é uma ilegítima tentativa de descrever e interpretar os sentimentos do outro, acompanhada por uma acusação implícita.

Devemos expressar os nossos sentimentos assumindo por completo a responsabilidade pela nossa experiência; isto ajuda os outros a ouvir o que é importante para nós, sem se sentirem criticados ou acusados, aumentando a probabilidade de que a sua resposta seja empática e satisfaça assim as necessidades de ambos.

Necessidade
O terceiro elemento da comunicação não violenta é a necessidade que está intrinsecamente ligada ao elemento anterior. Quando um sentimento aflora à nossa consciência devemos saber que é apenas um mensageiro, enviado pela nossa natureza humana, para nos alertar de uma necessidade que está ou não está a ser satisfeita. Por isso, o que deve ser feito imediatamente é descobrir qual é essa necessidade e assumir responsabilidade por ela.

Uma vez mais ao estarmos conscientes dos nossos sentimentos, a nossa tendência é não assumir a responsabilidade por eles, acusando os outros de nos sentirmos desta ou daquela forma. As ações dos outros podem ter despoletado os nossos sentimentos, mas cometemos um grave erro, em termos de comunicação não violenta, se pensarmos que foram os outros que causaram esses sentimentos. A única causa dos nossos sentimentos é a satisfação ou insatisfação das nossas necessidades.

Quando conseguimos ligar os nossos sentimentos às nossas necessidades perfeitamente identificadas, damos um passo importante na comunicação não violenta, ao evitar culpabilizar os outros ou a nós mesmos. A expressão genuína das nossas necessidades, cria uma oportunidade muito provável para que o nosso interlocutor possa sentir empatia e contribuir para a sua satisfação.

As necessidades são universais; todos os seres humanos têm as mesmas necessidades, pois elas provêm de algo que é transversal a todos independentemente de tempo e lugar: a natureza humana permanece invariável ao longo dos tempos e nas diferentes culturas dos povos que habitam este planeta.

No contexto da comunicação não violenta, como Rosenberg gosta de dizer, elas referem-se ao que há demais vivo em nós, ao que é mais central e importante para nós, aos nossos desejos mais profundos.

A compreensão, identificação e ligação com as nossas necessidades ajudam-nos a melhorar a nossa relação connosco mesmos, promovendo um maior entendimento com os outros, aumentando exponencialmente o grau de probabilidade de que as devidas ações sejam levadas a cabo para que as necessidades de todos sejam satisfeitas.

A comunicação não violenta leva sempre ao que em inglês se chama “a win  win situation”, ou seja, um resultado final benéfico para todas as partes envolvidas; todos ganham, ninguém perde.

Pedido
Os seres humanos não são ilhas; temos uma dimensão individual, somos únicos, irrepetíveis e indivisíveis, livres e independentes, mas também temos uma dimensão social pela qual sempre somos parte de uma família, de um grupo, de uma instituição, de um país. Porque esta é a nossa natureza, o processo de satisfação de muitas, se não de todas, as necessidades individuais que envolve de alguma forma, os outros.

Cientes e conscientes das nossas necessidades, o passo seguinte é pensar numa estratégia ou, ação que leve à satisfação dessas necessidades, no nosso entender, e certificarmo-nos de que as pessoas que podem estar envolvidas estão disponíveis, para participar na estratégia que delineámos. Como todos os seres humanos, vivemos num plano de igualdade com os outros e, antes de chegar à formulação de um pedido, devemos certificar-nos também da existência ou não existência de empatia. O afetivo é eficaz e o não afetivo é ineficaz.

O que fazemos são pedidos, solicitações, e não exigências, ordens ou requisições. Entre estes dois conjuntos há uma linha divisória muito fina. Muito depende das palavras que escolhemos ao formular o pedido, além do tom de voz usado, das palavras adequadas poderem ser expressas num tom de voz inadequado que aos ouvidos da outra pessoa soe a exigência ou ordem: muitas vezes só sabemos se demos uma ordem ou fizemos um pedido depois da resposta do outro.

 Devemos estar preparados para um “não”. Um “não” a uma ordem tem consequências punitivas; um “não” a um pedido não deveria intimidar-nos, desequilibrar-nos ou desencorajar-nos, mas sim ser motivo para um maior diálogo com a pessoa.  Devemos ser capazes de reconhecer que um “não" é uma expressão de uma necessidade que impede a outra pessoa de dizer "sim".

Para aumentar a probabilidade de o nosso pedido ser aceite junto do outro, este deve ser claro, concreto, realista e realizável e não genérico no que respeita ao tempo e à ação a executar. Por exemplo, “gostaria que fosses sempre pontual” não é exequível e pode soar a ordem. Por outro lado, “estarias disposto a gastar 15 minutos comigo para falarmos sobre o que poderia ajudar-te a chegar às 09h:00 às nossas reuniões? " é concretizável.

Se alguém aceita o nosso pedido por medo, culpa, vergonha, obrigação ou desejo de recompensa, fica comprometida a qualidade da relação e a confiança entre ambas as partes. Tarde ou cedo, os dois pagarão esta aceitação violenta, pois fundamentalmente cria um credor e um devedor. Em linguagem não violenta ninguém se humilha, ninguém se exalta, ninguém perde, ninguém ganha, ninguém pede favores, ninguém faz favores.

O processo da comunicação não violenta
Boca - A comunicação não violenta processa-se ao nível da boca, no que dizemos e como o dizemos. Neste caso, devemos expressar honestamente e de forma precisa as nossas observações, os nossos sentimentos, as nossas necessidades e, com base nestas, as nossas solicitações. A comunicação não violenta ajuda-me a descobrir e a interpretar o que está vivo em mim, o que se passa comigo, de forma a melhor comunicar comigo mesmo, em gratuidade, compaixão e empatia.

Ouvido – A comunicação não violenta não se processa apenas através do que eu expresso pela minha boca ou linguagem corporal, mas também pela forma como eu ouço as observações, infiro os sentimentos e as necessidades do outro, assim como as suas solicitações. A comunicação não violenta ajuda-me a descobrir e a interpretar o que está vivo no outro e o que se passa com ele, de forma a melhor comunicar com ele, em gratuidade compaixão e empatia.

Portanto, os quatro elementos da comunicação não violenta são usados, tanto na nossa expressão, como ouvindo com empatia a expressão dos outros. Expressar honestamente observações, sentimentos, necessidades e apelos e ouvir empaticamente observações, sentimentos, necessidades e apelos dos outros.

Observação - As ações ou factos concretos que estamos a observar e que potencialmente podem afetar o nosso bem-estar ou fazem referência ao mesmo.
Sentimentos – Como nos sentimos em relação ao que estamos a observar e que sentimentos despoleta em nós.
Necessidades – Descoberta ou tomada de consciência dos valores, desejos e necessidades que são a verdadeira causa dos nossos sentimentos, e não o que estamos a observar ou quem estamos a observar.
Pedidos - As ações concretas ou atos que solicitamos ao outro ou outros, a fim de satisfazer as nossas necessidades e enriquecer as vidas de ambos.

Articulação dos quatro componentes
A CNV é um edifício com três bases e quatro pilares. As três bases são a compaixão, a empatia e a gratuidade que podem resumir-se ao mandamento de amar o próximo como a nós mesmos. Neste sentido, poderíamos dizer que a CNV é uma teoria geral do amor ao próximo como a nós mesmos, ou uma forma de o aplicar no nosso dia a dia.

Uma outra metáfora para explicar como se conjugam na CNV os quatro pilares com a empatia e a gratuidade, seria o funcionamento de um motor. O combustível explosivo, o que o motor gasta e o faz andar, é a gratuidade ou a dádiva do coração. - Observação sentimento necessidade pedido, são os quatro pistões, o que no motor se move; para que estes se movam incessantemente, necessitam de estar lubrificados, envoltos no óleo da empatia ou compaixão.

Na forma como funcionam, os motores de combustão interna, seja a gasóleo a gasolina ou a gás, são também chamados motores de quatro tempos - admissão – compressão – explosão – escape. No primeiro tempo, o pistão desce e permite a admissão de uma mistura de combustível com ar; no segundo, o pistão sobe e comprime a mistura; no terceiro momento, a mistura explode, empurrando o pistão para baixo e provocando o movimento do motor; nesse mesmo impulso, o pistão sobe, expulsando os gases residuais da combustão, e o ciclo recomeça.

Como já estabelecemos uma analogia entre os componentes da comunicação não violenta e os componentes de um motor de combustão interna, podemos agora utilizar o funcionamento de um pistão nos seus quatro momentos numa analogia dos quatro momentos da CNV. Assim, a admissão de combustível corresponde à observação que consta da recolha e admissão de informação do exterior e que vai provocar a nossa reação; à compressão do combustível correspondem os sentimentos que a observação provoca ou estimula, assim como o empurrar para baixo, no sentido das necessidades que são as verdadeiras causas dos sentimentos; a explosão do combustível corresponde à ignição que o sentimento comprimido provoca na necessidade que lhe corresponde.

No motor de combustão interna, a explosão é o que provoca o movimento; no motor da CNV também são, de facto, as necessidades ou os valores que constituem a motivação fundamental do comportamento, tanto humano como animal. Quando o sentimento encontra e acende a necessidade dá-se a combustão ou a explosão que vai motivar o quarto momento que é o sair para fora de si; no motor é a exaustão ou escape, em CNV é a formulação de um pedido.

O ser humano é composto por cabeça, tronco e membros; deixando os membros de fora, ou seja, os braços e as mãos para atuar, as pernas e os pés para se deslocar, ficamos com a essência do ser humano: a cabeça e o tronco. Na cabeça colocam-se as funções de observar e inquirir ou pedir; na parte superior do tronco o sentir, na inferior o necessitar. Na CNV o ser humano resume-se a sentimentos e necessidades, sendo os sentimentos um mero detetor ou o termómetro das necessidades, que indica se aquelas, estão ou não satisfeitas.

Para Rosenberg, o que verdadeiramente nos define não são os pensamentos (crenças, ideias, projetos e opiniões), mas os sentimentos e as necessidades; a estes se refere a expressão tantas vezes por ele repetida - “o que em nós está vivo” – “o que se passa connosco neste precioso momento”.

A observação, o primeiro componente da CNV, só serve para eu me dar conta ou ter consciência do que se passa comigo ou com o outro a nível intelectual; só depois de me conectar empaticamente comigo mesmo e com o outro é que estou em condições de formular um pedido. A cabeça é para observar e pedir, não para avaliar nem julgar nem definir, nem a nós mesmos nem aos outros. Esta é a fórmula: “Quando te vejo…” / “Quando te ouço dizer…” (observa: ação ou afirmação) “Sinto…” (partilha, sentimento), “Porque necessito de…” (revela necessidade) “Importas-te de...” (faz um pedido). Vejamos como se articulam os 4 componentes no seguinte diálogo:

Depois do jantar a esposa diz ao marido:
- Querido, hoje durante todo o dia, senti-me um pouco só e desamparada; o único pensamento que me reconfortou foi a lembrança daqueles serões que passávamos no sofá abraçados a ver um filme. Tenho necessidade de reeditar uma dessas noites e voltar a sentir o que sentia. Queres dar-me esse prazer?

- Gostaria de fazer isso, sim, eu também me lembro desses serões com saudade; mas hoje é a final entre o Benfica e o Porto e eu já prometi aos meus amigos que iria ver o jogo com eles; importas-te que deixemos o filme para amanhã?

Se a esposa não usa a CNV dirá que o marido não a ama, que dá mais importância a um jogo que a ela, etc. Se em vez disso usa a CNV, não ouve um “não” às suas necessidades, mas um “sim” às necessidades do marido pelas quais sente empatia; porque o ama e como o ama tanto como a si mesma, a satisfação das necessidades do marido é tão importante quanto a satisfação das suas que, neste caso apenas ficam adiadas por um dia. Se o marido cedesse à esposa reprimindo as suas necessidades e fizesse o que a esposa queria por culpa ou obrigação, os dois acabariam por pagar uma fatura bem pesada.

Aqui entra outra vez a filosofia do amor ao próximo como a nós mesmos. Dentro desta filosofia, as necessidades do outro são tão minhas como as minhas, porque amar, como diz São Tomás de Aquino, é querer o bem do outro. Por outro lado, não se pode ser feliz sozinho nem à custa do outro, mas só com o outro; em CNV não há ganhadores e perdedores: ou ganham todos ou perdem todos.

Conclusão
Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar já não existia. Apocalipse 21, 1

Estes são os quatro cavaleiros da nova ordem internacional, de um novo Céu e de uma nova Terra; a verdadeira Terra Prometida, o Reino de Justiça e Paz onde a violência, como meio para estabelecer a paz, se tornou obsoleta, pois as necessidades de todos estão satisfeitas. No livro do Apocalipse a palavra “mar” representa o mal, pelo que, nessa terra de fartura e felicidade, o mal já não existe. E como os instrumentos de guerra se transformaram em instrumentos de paz, (Isaías 2,4) o lobo pasta agora com o cordeiro; não haverá mais mal nem destruição (Isaías 65, 25)
Pe. Jorge Amaro, IMC.


1 comentário:

  1. Cativante momento caro amigo Jorge ,gostei muito ,desejo-lhe um domingo muito abençoado ,um abraço

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