Pe. Jorge em Etiópia com crianças e jovens doentes de poliomielite |
Quero terminar esta reflexão sobre a vida consagrada com o meu próprio testemunho de sacerdote religioso consagrado para a Missão.
Sou natural de Loriga, uma vila do concelho de Seia, na Serra da Estrela. Há 30 anos que vivo ao serviço da Missão em vários países, Etiópia, Espanha, Inglaterra, Canadá, Estados Unidos e agora em Portugal.
Porque aos 6 anos de idade eu quis ser o que hoje sou, resulta-me difícil ajudar jovens adultos de 20 e mais anos no discernimento da sua vocação; e também me custa entender como tantos sacerdotes abandonam os Institutos Missionários Ad Gentes para serem padres diocesanos. Deixam de ser pescadores de homens, como Jesus queria que fossem os seus discípulos, para serem pastores de um rebanho cada vez mais diminuto.
É certo que a razão que me levou a escolher esta vida não é a mesma pela qual me mantenho nela. A minha vocação surgiu num dia em que um missionário visitou a minha escola e falou das suas aventuras em Africa com tanto entusiasmo que logo despertou, no meu coração de criança, a ânsia de vir um dia a ser aventureiro como ele. Mais tarde, é claro, descobri que o gosto pela aventura foi somente a isca que Deus usou para pescar, para Ele, o meu coração de menino. Fui pescado por Deus como um peixe para mais tarde me transformar, tal como os apóstolos, em pescador de homens.
Os sonhos de criança são incontornáveis; de tal forma estava eu irremovível desta minha resolução que cheguei a bater o pé ao meu pároco, que me queria mandar para o seminário diocesano. Não era o sacerdócio o que mais me atraia na altura, nem agora, mas sim a vida missionária. Depois de fracassadas tentativas de entrar nos Missionários do Verbo Divino em Tortosendo e nos Combonianos de Viseu, entrei para os Missionários da Consolata, em Vila Nova de Poiares, por sugestão do meu mesmo pároco que ante a minha insistência deu o braço a torcer.
“Deixar a vida pelo mundo em pedaços repartida”
Dentro da mesma Igreja existe uma igreja orante e uma militante, seguindo estas linhas, a Vida Consagrada na Igreja divide-se em duas grandes vertentes activa e contemplativa. Variando os carismas a vida contemplativa baseada fundamentalmente na regra de São Bento, “Ora et Labora” é uma vida completamente dedicada à oração e contemplação do mistério de Deus.
Hoje esta maneira de viver é muito contestada pelo frenesi dos tempos modernos, nos quais a vida humana parece justificar-se pelas obras, por aquilo que uma pessoa faz. Ante este cenário activista, a vida contemplativa vem nos recordar que mais importante é o ser que o ter e o fazer. Por mais anos que vivamos neste mundo, a fazer coisas, mais serão os anos em que viveremos contemplando a Deus no seu reino; e se assim é porque não começar já agora?
Dentro da vida activa os religiosos dedicam-se segundo o seu carisma a mil e uma actividades no campo da educação, da saúde física e mental, da promoção humana etc. O meu carisma, digo com orgulho citando o meu fundador o Beato José Allamano, é a vocação mais perfeita da Igreja, a Missão; é de facto a razão mesma pela qual e para a qual a Igreja existe: levar o evangelho a toda a criatura; levar Cristo a todos os povos e ou trazer todos os povos ao Seu conhecimento.
Há quem viva toda a sua vida no mesmo lugar, convivendo com as mesmas pessoas, fazendo sempre a mesma coisa. Há em Portugal párocos, que estão ao serviço da mesma comunidade há mais de 50 anos. Quanto a mim, cedo me dei conta de que a minha vida não seria vivida desta maneira. De facto desde os 10 anos, quando entrei para o Instituto, nunca estive mais de 3 ou 4 anos no mesmo sítio.
Vejo a minha vida com um puzzle de peças dispersas em sítios tão longe como dispares; com pessoas de varias etnias, línguas, povos e nações; quando esta chegar ao fim e todas as peças estiveram reunidas e colocadas no seu lugar, espero que, no seu conjunto, formem uma imagem que agrade a Deus. O missionário é uma pessoa sem eira nem beira, um peregrino sempre em caminho a quem o entardecer não o encontra onde o deixou o amanhecer, como diz Kalil Gibran no seu livro o Profeta.
Ser consagrado significa ser posto de parte, reservado para um serviço extraordinário que requer, da parte do candidato, colocar de lado o que configura e dá forma à vida da maior parte das pessoas. Os votos de pobreza, castidade e obediência são comuns a todos os consagrados; o consagrado, não possui bens materiais para dedicar-se exclusivamente ao cultivo de bens espirituais; ama universalmente com um amor que não exclui ninguém, pelo que o seu abraço é aberto; não busca poder, nem poleiro, nem fama nem nome; submete-se ao plano que Deus tem para ele, obedecendo-lhe através dos superiores e dos sinais dos tempos.
O consagrado para a missão, ecoa ainda hoje no seu interior aquelas palavras do mestre “ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda a criatura". Como as torres de TV o missionário aumenta o sinal, neste caso, o sinal da fé que vai passando de geração em geração, de povo em povo, de terra em terra.
Missionário, ontem, hoje e amanhã
Se soubesse aos 6 anos o que hoje sei, passados 30 anos da minha ordenação, voltaria a escolher a vida missionaria. Vejo-me de tal forma identificado com ela que aquela intuição que eu tive aos 6 anos, e a opção que fiz aos 10, não pode ter sido só humana; foi um autêntico chamamento de Deus. Nunca me senti galinha de capoeira mas águia, que voa bem alto sem limites de fronteiras, línguas, sem preconceitos contra outros povos e sem apego desmesurado e paralisante pela minha família, a minha terra, o meu pais e a minha cultura.
Recordo um dia, estando eu de férias e em vésperas de voltar para a Etiópia, o meu pai estava a tentar convencer-me que não devia regressar, que os anos que tinha estado na Etiópia eram suficientes que aqui também fazia missão etc etc. A minha mãe ouviu-o e disse-lhe em tom severo: “Cala-te homem que Deus pode-te castigar”, e o meu pai logo se calou. Deus, que já tem a minha mãe consigo, deve estar muito contente com ela pois não foi uma mãe galinha; foi uma mãe que soube superar o instinto materno, coisa que muitos pais de hoje não conseguem.
Quantas vocações se têm perdido para a vida religiosa e para o sacerdócio por causa de pais que se agarram aos seus filhos, privando-os da “liberdade dos filhos de Deus” e muitos destes pais até são católicos e praticantes; eu sempre me perguntei com que cara, vão aparecer diante de Deus, quando tudo fizeram para destruir a vocação à vida consagrada dos seus filhos e filhas.
A missão está no seu começo
Nunca ficarei no desemprego; foi o papa João Paulo II que o disse, a missão está no seu começo. O maior dos continentes está ainda sob-evangelizado pelo que trabalho não faltará. Por outro lado muitos dos países, que outrora eram cristãos, abandonaram a fé e vivem numa espécie de paganismo moderno adorando a vários deuses: já não baptizam os seus filhos, nem os mandam à catequese, pelo que um eventual contacto com o evangelho pode ser considerado tão primeira evangelização como aquela pessoa, que na distante Mongólia, onde praticamente não há cristãos, ouve falar de Cristo pela primeira vez.
Pe. Jorge Amaro, IMC
Li tudo até ao fim, é um lindo testemunho de vida, que pesque homens durante muitos anos e com muito sucesso. Pois a vocação está em si. ��
ResponderEliminarÉ um testemunho formidável, entregar a vida ao serviço das pessoas como fez Jesus e com a mesma fé que tiverem os discípulos e os Apóstolos. Desejo que a fé se mantenha sempre viva e que o coração seja sempre assim bondoso e compassivo. As maiores felicidades.
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