1 de março de 2014

Carnaval sem Quaresma

Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-me. Lucas 9, 23

Toda a gente sabe que o Carnaval nasceu em função da Quaresma. Antigamente a Quaresma era um longo tempo, mais de quarenta dias de jejum, abstinências, penitencia e sacrifícios. Algo assim como um tempo de luto; propositadamente não havia festas nem celebrações de efusão e alegria; como podia ser um casamento; durante a Quaresma não se celebram casamentos.

Neste tempo os cristãos eram exortados a fazer exercícios de introspecção que levassem a uma maior auto consciência, ou seja, ser conhecedor da sua vida e responsável pelo comportamento do dia a dia numa atitude de autocrítica com vistas a uma metanóia ou seja mudança de mente e de vida, conversão.

Os dias de Carnaval, que antecediam a Quaresma de penitência e disciplina, eram todo o contrário da Quaresma. Se na Quaresma não se come carne, no Carnaval carne-vale. O dia de Carnaval, ou seja a terça-feira de Carnaval, precede quarta-feira de cinzas, o início da Quaresma. Na tradição italiana e francesa é chamado mardi grass, terça-feira gorda, por ser o dia em que se abusava da carne a modo de despedida deste alimento até ao dia de Páscoa.

Se a Quaresma é tempo de melancolia, dolência e introspeção, o Carnaval é tempo de alegria, extroversão e folia; se a Quaresma é tempo de disciplina, o Carnaval é tempo de indisciplina; no Carnaval tu vale; “È Carnaval, ninguém leva a mal”.

Quebrando um dia muitas das regras, jejuns e dietas, dizia um monge ao seu discípulo escandalizado e boquiaberto, um arco de flechas para funcionar bem não pode estar sempre tenso. O nosso povo diz sabiamente, “um dia não são dias”.

O mal do nosso tempo é que o Carnaval já não antecede a Quaresma. Voltamos ao “pão e circo” dos romanos como único modus vivendi. Há Carnaval sim, e cada vez mais refinado, mas não há Quaresma; o Carnavale ficou a Quaresma desapareceu até mesmo na Igreja na qual hoje se vive de uma forma “light” ou descafeinada.

O diabo a que foge da cruz
O mundo habitou-se ao tabaco sem nicotina, ao café sem cafeína, à coca-cola light sem calorias, à cerveja sem álcool; este paradigma de rosas sem espinhos facilmente extrapolou para outras realidades e áreas da vida individual e social, de modo que hoje temos também o Natal, do pai Natal consumista, sem nascimento de Jesus; a Páscoa, do coelhinho e da amêndoa, sem morte e ressurreição de Jesus; Halloween, (all hallows eve) ou seja véspera de todos os santos, sem festa de todos os santos.

Extrapolando ainda mais, temos sexo sem amor (one night stand), viver juntos sem compromisso, existindo a crença de que é possível viver sem inconvenientes, e incomodidades, sofrimento, desconforto, sacrifício, trabalho, esforço em definitiva sem cruz.

Num mundo onde se contraria a realidade e a verdade das coisas; onde se quer ao mesmo tempo ter o sol na eira e a chuva no prado, onde se quer comer o bolo e tê-lo, as palavras de Jesus, que nos convida a abraçar a cruz, soam contracultura, contra corrente.

Sabemos, pelos exorcismos, que o diabo foge da cruz; como o diabo somos nós quando fugimos da cruz porque esta faz parte da vida. Não é possível a vida sem sofrimento, sem sacrifício e sem esforço. Apesar de que a maturidade humana, como diz Freud, implica abandonar o princípio do prazer para abraçar o princípio da realidade, o mundo teima em assentar arraiais no princípio do prazer. Ao contrário do mundo nós, os cristãos, somos chamados a não “fugir com o rabo à seringa” e como dizem os espanhóis, “enfrentar el toro por los cuernos”. Abraçar a cruz e o sofrimento que a vida nos depara como meios para um bem maior e um futuro melhor.

Abraçar a cruz sem ser masoquista
A cruz é o deserto que os judeus atravessaram para chegar à terra prometida; e apesar da tentação em rejeitar tal cruz, inspirada pela fome, e voltar para às panelas cheias de carne da escravidão do Egipto, os judeus entenderam que a liberdade tinha um preço e eles dispuseram-se a paga-lo seguindo em frente abraçando a cruz.

Esta história tornou-se paradigmática para o abandono de todos os vícios e comportamentos repetitivos obsessivos e aditivos. O Egipto é a substancia ou comportamento ao qual estou adito e me priva da liberdade; a terra prometida é a plena liberdade e recuperação do controle da minha vida; no meio está o deserto ou seja o preço a pagar a purga, a purificação; a tentação de arrepiar caminho e voltar à adição é causada pelo síndrome de abstinência. Sem dor nem sacrifício não se deixa a droga ou o álcool, nem se começa uma dieta e se é fiel até ao fim.

Tudo o que há de bom na vida custa e tem um preço, ou dinheiro, ou esforço ou as duas coisas. A alegria da vitória não se sente sem o ardor e o sacrifício da batalha, e quanto mais difícil foi a batalha mais intensa é a alegria da vitória e a sua celebração. Mas não há alegria de vitória sem ardor da batalha. A cruz é sempre o meio para se chegar ao fim desejado. A cruz do estudante é obrigar-se a estudar em vez de ir de farra em farra; a cruz dos que querem emagrecer é a sua dieta; a cruz do atleta é a dieta rigorosa, a forma de vida e o treino no qual investe horas para ganhar segundos ao próprio recorde

O ginásio e a ginástica da cruz
Os cristãos não andam à procura da cruz, apenas a aceitam quando se a encontram no caminho. Neste sentido, a uma primeira vista, as práticas quaresmais do jejum, abstinência, e sacrifício, podem parecer artificiais e masoquistas, mas se pensarmos bem elas servem para fortalecer a nossa força de vontade, o espírito, a liberdade e a independência com relação às coisas do mundo. Da mesma forma que o que fazemos num ginásio, exercícios sem sentido, correr e nadar sem meta, têm como objectivo fortalecer o corpo e potenciar a saúde.
Pe. Jorge Amaro, IMC







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