Quando falamos da cosmovisão cristã referimo-nos mais ao contributo do cristianismo para a humanidade e de como esta lhe fica devedora em muitos aspetos na qualidade de religião global. Como tínhamos falado da cosmovisão bíblica, referindo-nos ao povo hebreu e, portanto, ao Antigo Testamento, ao falarmos da cosmovisão cristã, centramo-nos mais no conteúdo da narrativa cristã ou, se quisermos, no judaico-cristianismo. A cosmovisão espiritualista é uma cosmovisão cristã, porém com uma forte influência grega.
Durante o tempo de Cristo nada foi escrito em nenhuma língua; os escritos do Novo Testamento relatam em grego o que aconteceu em hebreu e aramaico. Ou seja, os autores do Novo Testamento ao mesmo tempo que escreviam, traduziam. “Traductor, traditor” diz o sábio provérbio latino que significa o tradutor ´um traidor. O facto histórico que foi Jesus de Nazaré ocorreu num contexto pura e exclusivamente hebreu; no entanto, os que o relataram para o mundo, sabendo que o faziam para comunidades cristãs da diáspora e sabendo que a nova fé tinha pouco futuro em Israel, fizeram-no numa língua estrangeira: em grego.
Da Península Itálica para ocidente, os romanos impuseram a sua língua porque as populações por eles conquistadas eram primitivas e não conheciam a escrita; mas para oriente da Península Itálica prevaleceu o grego, pois era a língua de alma da rica cultura helénica, em muitos pontos superior à romana. Por isso e porque todos os autores do Novo Testamento a começar por S. Paulo sabiam o grego, foi nessa língua que verteram o verbo de Deus feito Homem.
Cosmovisão cristã antibíblica
Porquanto fixou o dia em que há de julgar o mundo com justiça, pelo ministério de um homem que para isso destinou. Para todos deu como garantia disso o fato de tê-lo ressuscitado dentre os mortos”. Quando o ouviram falar de ressurreição dos mortos, uns zombavam e outros diziam: “A respeito disso te ouviremos outra vez”. Assim saiu Paulo do meio deles. Atos dos Apóstolos, 17, 31 - 33
O discurso de Paulo no areópago é o embate de duas culturas diferentes, com base em duas antropologias ou maneiras diferentes de conceber o ser humano: a dualista grega do corpo mortal e alma imortal e a holística bíblica de que tanto o corpo como a alma podem ser mortais e imortais, dependendo de aderirem ou não ao Deus da vida.
A cosmovisão espiritualista não é de revelação bíblica, mas sim uma adaptação ou inculturação do cristianismo à cultura helénica, dominante naquele tempo e lugar. Esta cosmovisão não revelada foi-se impondo à Igreja e governou-a durante toda a Idade Média. Governa ainda muitas consciências no dia de hoje. Como muitas vezes acontece na vida, vais aos outros com a intenção de os converter e acabam por ser eles que te convertem a ti. Isto foi o que aconteceu quando a nova fé começou a caminhar nos caminhos da Grécia antiga.
Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia. Génesis, 1, 31
Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a criação é uma obra de amor. Deus gostou do que fez, nunca desistiu da sua obra, sobretudo da criação do ser humano que, ao contrário das outras criaturas, criou à Sua imagem e semelhança.
No século II surgiu uma nova visão de mundo que desafiou esta crença judaico-cristã de que a criação era basicamente boa. Nesta nova visão do mundo, a criação não é boa, mas sim má. Representa a queda quando o espírito ou a alma que vivia com Deus foi exilada no corpo, na matéria. A alma ou o espírito é intrinsecamente bom, a matéria é intrinsecamente má. O mundo é uma prisão e, como tal, um “vale de lágrimas”.
Se o ser humano é composto por dois elementos contrários um ao outro, vive uma vida esquizofrénica como se tivesse duas personalidades. Se assim é, como podemos ver com bons olhos a encarnação do verbo de Deus, Jesus Cristo?
Tendo ficado presos em corpos, os espíritos ficaram sujeitos aos poderes deformados e ignorantes que governam o mundo da matéria. Consequentemente, o sexo e a vida terrena em geral eram considerados maus. A tarefa da religião era resgatar o espírito da carne, recuperar o céu espiritual do qual a alma tinha caído.
Gnosticismo, maniqueísmo, neoplatonismo e as atitudes sexuais associadas ao puritanismo, continuam a ser fatores poderosos hoje em dia no espiritualismo, além dos distúrbios sexuais, distúrbios alimentares, autoimagens negativas e a rejeição do próprio corpo que levava à autoflagelação muito praticada por santos e não santos, por frades, monges e freiras, assim como por leigos.
Esta visão espiritualista e negativista reflete-se na espiritualidade de muitos até aos dias de hoje, colocando muito ênfase em ganhar e não perder o Céu. Como ensinava o catecismo, três são os inimigos da alma, o mundo, o demónio e a carne, referindo-se é claro ao corpo, sobretudo ao corpo sexualizado.
Espiritualismo na Bíblia
Esta cosmovisão negativa do corpo e do mundo, da matéria em geral, infetou os últimos escritos do Novo Testamento, pois já foram redigidos no final do século I, início do II. É certo que não encontramos isto nos primeiros escritos onde o helenismo ainda não era dominante na Igreja.
Visão negativa do mundo em S. João
Sabemos que somos de Deus e que o mundo todo está sob o poder do Maligno. João, 5, 19
A palavra “mundo” aparece 185 vezes no Novo Testamento, 78 no evangelho de João, 8 em Mateus, 3 em Marcos e Lucas. Nas três cartas de S. João aparece 24 vezes. Comparativamente com os outros evangelhos e comparativamente com os outros escritos do Novo Testamento, João usa e abusa da palavra “Cosmos” ou mundo, porquê?
Para os gregos o mundo não é criação divina. Nisto, João difere deles, pois no prólogo fica claro que o mundo é de Deus. Porém, a descrição que João dá do mundo caído tem muitas conotações com a conceção helenista do mundo, completamente oposto a Deus. O dualismo em João mais que filosófico é ético, ou seja, a tal luta entre o bem de Deus e o mal deste mundo.
Quase sempre aparece em sentido negativo, como sendo o habitat do pecado. Os cristãos estão no mundo, mas não são do mundo – isto faz-nos recordar a caverna de Platão e de como neste mundo vivemos como exilados. O mundo era bom na sua essência pois foi criado por Deus, mas, uma vez caído, é existencialmente mau. Como repete, muitas vezes S. João este mundo, ou o príncipe deste mundo, é uma síntese de todas as forças inimigas de Deus.
Concluímos que o uso exagerado do termo “mundo”, assim como a negatividade a ele associada, em comparação com outros autores bíblicos, denota uma aproximação de S. João à conceção helénica do mundo como algo caído. Depois, por um lado, diz que Deus quer salvar o mundo, o que representa um pensamento cristão, pois para os gregos o mundo não tem salvação porque não foi criado nem querido por Deus. Por outro lado, diz que os discípulos, apesar de estarem neste mundo, não são deste mundo, pensamento muito querido aos gregos.
Visão negativa do corpo em S. Paulo
Digo, pois: deixai-vos conduzir pelo Espírito, e não satisfareis os apetites da carne. Porque os desejos da carne se opõem aos do Espírito, (…) Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus!
Ao contrário, o fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança. Contra estas coisas não há Lei. Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências. Se vivemos pelo Espírito, andemos também de acordo com o Espírito. Gálatas, 5, 16-25
Este texto clássico de S. Paulo, escrito pelo próprio punho, deixa antever uma crença fundamentalmente grega e não bíblica de que a alma ou Espírito é essencial e intrinsecamente bom e, parafraseando o evangelho, se conhece pelos seus frutos acima graficamente descritos. O corpo, ou a carne como lhe chama Paulo, ao contrário da alma, é existencial e intrinsecamente mau. Ou seja, nem o corpo pode fazer obras boas nem a alma pode fazer obras más.
No entender bíblico e segundo a antropologia bíblica, tanto o corpo como a alma podem ser maus, tanto um como o outro podem ser bons; não há corpo sem alma nem alma sem corpo, muitas das obras acima escritas não têm origem no corpo, mas sim num espírito pervertido, como a inveja por exemplo, pouco ou nada têm a ver com o corpo.
(…) tudo o que entra pela boca passa para o ventre e é expelido para uma fossa? Mas o que provém da boca sai do coração e é isso que torna o homem impuro. Pois é do coração que saem os maus pensamentos, homicídios, adultérios, promiscuidades, roubos, difamações, blasfémias. São estas coisas que tornam o homem impuro; comer sem lavar as mãos não torna o homem impuro» Mateus 15,17-20
O texto de São Paulo sobre as obras da carne está diametralmente oposto ao pensamento de Jesus no evangelho. O mal não vem de fora do mundo, e quando entra no corpo infeta e corrompe a alma; ao contrário, o mal reside na alma, vem de dentro, não vem de fora. O mal não tem origem na matéria ou na carne como diz São Paulo, que influencia e corrompe o espírito, mas sim ao contrário, o mal vem do espírito que corrompe a matéria ou a carne.
Quando vemos uma maçã com um buraquinho, o buraquinho não foi feito pela larva para entrara na maçã, mas sim foi feito pela larva para sair da maçã. Somos maças com bicho. Assim como a maçã foi concebida com o bicho, ou seja quando ainda era uma flor um inseto depositou um ovo nela que depois nasceu em larva, assim também nós fomos concebidos com o pecado original, pelo que o mal reside em nós no nosso espirito não na matéria ou corpo intrinsecamente maus segundo a filosofia e antropologia gregas.
Antropologia hebraica
Que o Deus da paz vos santifique totalmente, e todo o vosso ser - espírito, alma e corpo - se conserve irrepreensível para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. 1 Tessalonicenses 5, 23
A antropologia hebraica, subjacente à antropologia bíblica, é fundamentalmente unitária. Isto significa que pretende contemplar toda a realidade pessoal de uma determinada perspetiva. E assim a pessoa humana é, toda ela “basal”, isto é, carne. Em segundo lugar, a pessoa humana é “nefes” isto é, possui uma personalidade que podemos abordar do ponto de vista psicológico (psique).
E, finalmente, a pessoa humana é também toda ela, “ruah”, isto é, espírito, na medida em que nos entendemos como um ser aberto ao transcendente. Desta antropologia do Antigo Testamento que é, em última análise, unitária pois contempla toda a realidade humana de uma determinada perspetiva, encontramos um testemunho claro em 1 Tes. 5.23.
Dualismo grego
Os gregos são dualistas dos quatro costados; para eles há dois reinos, o deste mundo, existencial, visível, transitório, sensual, sensível e enganoso, e o Reino do essencial, eterno, Deus, imutável. O ser humano tem um pé neste mundo e outro pé no outro mundo. A sua alma pertence ao reino do essencial, imutável e eterno, a Deus, o seu corpo pertence ao reino deste mundo, da existência.
O corpo não é mau em si mesmo, mas é um empecilho para a alma, um fardo pesado. O corpo é a prisão da alma. A salvação, para Platão, está na razão que, iluminada, pode chegar a dominar as paixões do corpo, governando ela a vida. Com a morte, a alma liberta-se de uma vez por todas da prisão do corpo para gozar finalmente da imortalidade que lhe está reservada, precisamente por ser de natureza imortal.
O filósofo francês Descartes (1596–1650) , um exponente deste tipo de dualismo, chega a afirmar, sobre a relação entre a alma e o corpo, que é semelhante à do cavalo e do cavaleiro; a alma é o cavaleiro, o corpo é o cavalo que deve ser esporado e guiado pelo cavaleiro. São de natureza diferente e a ligação entre um e o outro é muito exígua.
Problemas teológicos que levanta o dualismo grego
“Isto é tudo muito confuso, explique-me lá senhor padre”, inquiria um paroquiano irlandês, “quando morremos o nosso corpo vai para a terra, a nossa alma vai para o Céu e nós, para onde vamos nós?”
De acordo com a antropologia judaica, o ser humano salva-se todo ou condena-se todo. Ressuscitamos com um corpo espiritual que é a imagem do nosso corpo físico e composto por tudo o que o corpo físico fez de bem. Não se faz o bem sem o corpo, sem a cabeça que pensa e projeta, o coração que sente e as mãos que fazem; por isso, o corpo espiritual é a glorificação da nossa cabeça pensante, do nosso coração amoroso e das nossas mãos executantes.
Se a alma é imortal, se não é biodegradável, então o inferno é a tortura eterna; se a alma é mortal, como afirma a antropologia bíblica, o inferno é morte eterna, pois à vida eterna não se contrapõe tortura eterna, mas sim morte eterna. Alguns teólogos católicos chegam a dizer que o inferno é o nada, mas não uma nada niilista pós-moderno, algo assim como um analgésico que nos pouparia ao sofrimento de não ter vivido a vida que Deus nos tinha reservado; será um nada, mas um nada que dói como o fogo. Acho esta posição pouco diferente da clássica católica: o nada não pode doer e, se dói, não é nada, mas sim um eterno sofrimento.
Na antropologia judaica, o homem não tem um corpo mortal e uma alma imortal; o homem é todo ele mortal se está fora da Graça de Deus e imortal se está com Deus. Jesus diz-nos para não temermos os que só podem matar o corpo e nada podem fazer à alma. O que devemos temer é aquele que pode matar tanto o corpo como a alma. (Mateus 10,28)
O Inferno, entendido como morte eterna, preserva tanto a bondade de Deus como a liberdade do homem. Mas o que é a morte eterna? É regressar ao nada de onde tudo foi criado. Regressa livremente ao nada quem responde “Nada” às 3 perguntas que todo o ser humano se coloca quando atinge a idade de autoconsciência: de onde vimos? Para onde vamos? Que sentido tem a vida?
Como acima ficou enunciado, a cosmovisão espiritualista manifesta-se em sub cosmovisões, como o gnosticismo, o maniqueísmo, o puritanismo e o que eu chamo dualismo esquizofrénico desintegrado. Vejamos o que é cada uma destas pequenas cosmovisões.
Gnosticismo e docetismo
É uma ideologia anterior ao cristianismo que se infiltrou no cristianismo quando este surgiu. Fundamentalmente, o gnosticismo repete a ideia grega de que o que em nós é humano é a nossa alma que é eterna e de origem divina, enquanto que o corpo físico, prisão da alma, e o seu habitat, tudo o que o rodeia, o cosmos, ou seja, o mundo, foram criados não por Deus, mas por um demiurgo, um espírito imperfeito.
A libertação final e definitiva só advém com a morte, mas enquanto esta não ocorre, podemos obter uma liberdade relativa pela aquisição de “gnosis”, de conhecimento, para poder dominar o corpo e os seus baixos instintos e desejos. Como o cristianismo é a libertação do pecado e o gnosticismo a libertação da ignorância, alguns gnósticos assimilaram o cristianismo, assim como alguns cristãos se deixaram levar pelo gnosticismo. Porém, há uma radical diferença entre os dois. O cristianismo é público, não só para uma elite oculta de iniciados, mas sim para todos, enquanto que o gnosticismo é privado e elitista, para uns quantos iluminados.
O docetismo, é um filho legítimo do gnosticismo, vem da palavra grega “dokesis”, que significa aparência. Nos séculos I e II d.C., os docetistas afirmaram que Jesus Cristo só parecia ser humano. Consideraram o mundo material, incluindo o corpo humano, tão mau e corrupto que Deus, que é todo bom, não poderia ter assumido um verdadeiro corpo humano e natureza humana. A natureza humana de Jesus é, portanto, fingida.
O antagonismo gnóstico entre os mundos espiritual e material levou os docetistas a negar que Jesus era um homem verdadeiro. Os docetistas não tinham problemas com a divindade de Jesus, só não acreditavam na sua verdadeira humanidade. Se a humanidade de Jesus é uma ilusão, a sua paixão e morte na cruz com o sofrimento que isso envolveu foram também uma ilusão, não aconteceram realmente.
O cristianismo de Alexandria, que abandonou a Igreja com o concílio de Calcedónia em 451 d.C. mais tarde chamado Copto, assim como o da Etiópia, são docetistas monofisitas, só acreditam na natureza divina de Cristo. Não é coincidência que o docetismo tenha surgido no Egito, precisamente onde anos antes do cristianismo tinha surgido o gnosticismo. Quando estive na Etiópia, lembro-me de ver um canto copto no qual se dizia que Jesus na cruz não sofria estava contente e feliz.
Maniqueísmo
Foi uma religião muito antiga do Crescente Fértil, que desapareceu com o surgir das grandes religiões como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. O que sabemos do maniqueísmo é-nos apresentado por alguns que foram maniqueus antes de serem cristãos, como Sto. Agostinho (430 d. C.). Mani (277 d. C.), o fundador, pertencia a um grupo judaico-cristão antes de fundar a sua própria religião. Sentiu-se como herdeiro dos grandes profetas Buda, Jesus, Zaratustra e Maomé e procurou fazer uma síntese dos seus ensinamentos. Autoproclamou-se apóstolo de Jesus, pois de entre todas as religiões, encontrava-se mais próximo do cristianismo.
O maniqueísmo é uma forma de gnosticismo cristão, tão dualista que a própria palavra maniqueísmo, historicamente, se tornou sinónimo de absoluto dualismo. No mundo há duas forças que se contrapõem e guerreiam: a luz/bem e as trevas/mal. A alma, é claro, pertence à luz e o corpo às trevas, por isso, o objetivo da vida do ser humano é que a luz prevaleça sobre as trevas. Mani aconselhava aos seus fiéis uma vida ascética, não matar nenhum ser vivo, não comer carne, não beber álcool e viver uma vida celibatária.
Puritanismo
Historicamente, o puritanismo foi um movimento dos séculos XVI e XVII que procurava "purificar" a Igreja de Inglaterra dos resquícios do catolicismo.
O êxito não foi total em Inglaterra, mas no novo mundo da América o movimento floresceu e transformou-se numa forma de vida, muito patente até na forma de vestir.
Hoje o uso moderno da palavra puritano nada tem a ver com as suas raízes históricas, tem mais a ver com uma visão negativa do sexo e do prazer a ele associado. O sexo restringia-se ao matrimónio, que neste sentido era visto como um remédio para a concupiscência, e como meio para a procriação. Melhor casar-se que abrasar-se, como dizia S. Paulo (1 Coríntios 7,8-9).
O excessivo valor da virgindade, sobretudo da virgindade física feminina, ou seja, do hímen intacto, levou à declaração de que Maria foi virgem antes, durante e depois do parto. Posso entender que foi virgem antes do parto e depois do parto e aceito e acredito que o foi, mas não vejo por que tenha que ser virgem durante o parto, algo antinatural e desnecessário que só posso entender no âmbito de uma visão negativa do sexo e de uma extrapolada valorização da virgindade física, em detrimento da maternidade.
A virgindade não tem nenhum valor em si mesma, mas está orientada para a maternidade, seja ela uma maternidade física de uma mulher que é mãe de um bebé e o nutre e alimenta para fazer dele um autêntico ser humano, ou de uma mulher que coloca o casamento de lado para ser mãe de mais filhos num sentido espiritual e educacional, como madre Teresa de Calcutá. A virgindade assim entendida nada tem a ver com o rompimento ou não do hímen, porque é um valor tanto para homens como para mulheres.
Dualismo esquizofrénico desintegrado
É uma sub cosmovisão à qual pertencem muitos intelectuais e homens da ciência, das artes, da política, das altas finanças que, ao mesmo tempo, são profundamente cristãos, ou seja, não seguem a cosmovisão materialista que é dominante nestes círculos.
Estes bons profissionais no seu ramo – cientistas, médicos, professores universitários, políticos e jornalistas – ao não conseguirem conciliar a sua fé com a ciência, fizeram dentro de si mesmos um acordo de cavalheiros, ou seja, colocaram as duas dimensões em quartos separados da mesma casa que é a sua mente. Estes são quartos fechados que não comunicam entre si, ou seja, vivem na mente um dualismo e uma esquizofrenia mental e existencial em simultâneo.
São, ao mesmo tempo, homens de ciência e homens de fé; porém, como não encontraram a fórmula para conciliar as duas e como, de alguma forma, pensam que são irreconciliáveis, então vivem as duas dimensões em separado, como se fosse um estado moderno onde a religião não se mete na política e a política não se mete na religião. A tal separação Igreja – Estado, a César o que é de César, a Deus o que é de Deus.
A título de exemplo, tais cientistas e profissionais durante a semana são evolucionistas, ou seja, acreditam na teoria da evolução das espécies, e ao Domingo, dia do Senhor, são criacionistas, ou seja, acreditam no livro do Genesis como se fosse história; como nunca colocam em diálogo as duas posições, não há problema.
O que acontece no interior destes cientistas e bons profissionais no seu ramo é o que acontece na sociedade em geral: a ciência vive de costas voltadas para a religião e considera-a coisa de ignorantes, ao passo que a religião defensiva se refugia nas suas igrejas e demoniza a ciência.
Conclusão: a cosmovisão materialista ignora a dimensão espiritual da vida humana, da mesma forma que a espiritualista demoniza a dimensão corpórea. A verdade requer que as duas dimensões se integrem e harmonizem: nem espírito sem matéria, nem matéria sem espírito.
Pe. Jorge Amaro, IMC