15 de novembro de 2024

Cosmovisão Materialista

Sem comentários:


A visão materialista da realidade contrapõe-se à visão espiritualista que reinou em toda a Idade Média, parte da antiga e que ainda existe. Ambas têm raízes históricas, mas não estão ligadas a uma só época da História, como a cosmovisão medieval e renascentista, nem a uma cultura particular, ocidental ou chinesa. Tanto a cosmovisão espiritualista como a materialista são passadas e contemporâneas, transversais a muitas culturas.

São mais próprias de um tempo que de outro, assim como mais agarradas a uma cultura particular que a outra. São cosmovisões no sentido mais amplo do termo, pois são mais abrangentes tanto no tempo histórico como no espaço cultural. Historicamente, a Idade Média é toda ela espiritualista, enquanto que a partir do renascentismo, em toda a Idade Moderna e Contemporânea, é mais materialista.

Assumindo um caráter teórico, em forma de filosofia, como o ateísmo ou o agnosticismo, ou prático, como o consumismo capitalista, a auto gratificação e a ausência de valores, o materialismo é hoje a filosofia de vida ou a cosmovisão que governa a maior parte das pessoas. Governa claramente o mundo da política, da economia, porque o dinheiro sempre foi em si mesmo uma religião, além do mundo da ciência, das universidades, dos meios de comunicação e da cultura em geral.

Perguntei certa vez a alguém se era religioso; respondeu-me com um tom de voz de quem ficou ofendido, “como posso ser religioso? Eu sou cientista”. Ser materialista, agnóstico ou ateu, está na moda. Ser religioso está fora de moda e é hoje conotado com ser ignorante. Por isso, até os poucos que o são, não se manifestam como tal para não perder amigos, empregos ou posição social.

Aos materialistas, que vivem sem sentido porque a matéria não dá sentido à vida, pode aplicar-se aquela famosa frase do Dalai Lama: “Vivem como se nunca tivessem que morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”. De facto, o expoente máximo do ateísmo dialético e histórico, Karl Marx, enfrentou a questão da morte da mesma forma cínica dizendo que a morte não deve preocupar-nos, pois enquanto nós existirmos, ela não existirá; quando eventualmente se tornar realidade, não existiremos nós.

Ou seja, a morte não deve ser motivo de preocupação porque nunca coexistiremos com ela, nem nós existimos com ela nem ela existe connosco. O facto é que por muito que a escondamos na sociedade, ela vai aparecendo, quando ao nosso lado caem primeiro os nossos pais e os nossos tios, depois os nossos irmãos mais velhos.

Relativamente à sociedade medieval que vivia reconciliada com a morte, em harmonia com ela, e numa quase amizade, chegando a dar-lhe uma forma feminina, vestindo-a de branco, convidando-a para uma dança de roda e até para jogar xadrez a ver se a vencia ou enganava ou distraía, a sociedade moderna e contemporânea tem medo da morte que lhe vai roubar tudo, porque é eterna, reprimindo por isso tal pensamento, como o sexo era reprimido na sociedade puritana vitoriana.

Do animismo ao ateísmo
Do animismo ao materialismo há uma gradual materialização da matéria e simbioticamente do ser pensante que a analisa e com ela se relaciona, o Homem. Ao princípio, tudo tinha alma, até a própria matéria mais material tinha alma. Num mundo materialista como é o de hoje, custa-nos pensar que assim era no passado; porém, sem irmos mais longe, todos nós vivemos uma etapa de animismo na nossa infância quando, ao magoar-nos com qualquer coisa, batíamos e culpávamos e chamávamos má a essa mesma coisa, como se fosse uma entidade viva.

Ao nível dos adultos, a superstição é um resquício de animismo, ou seja, quando se concede valor ou poder espiritual a algo que é puramente material, como uma chave ou uma ferradura, isso é animismo, hoje chamado de superstição.

O conhecer certas realidades materiais e o saber como e para que funcionavam, roubou-lhes a alma, pelo que se desanimaram e voltaram a ser apenas matéria. Porém, não era possível conhecer cientificamente certas realidades ou estas não eram fáceis de conhecer ou não era possível conhecê-las e dominá-las totalmente. A essas realidades deu-se-lhes o nome de deuses e assim nasceu o deus da guerra, a deusa do amor, o deus do tempo o deus do vinho, o deus do mar, etc. e, consequentemente, surgiu o politeísmo.

Por uma questão de simplificação ou com o fim de unir vários povos e evitar as desavenças de “o meu deus é maior que o teu”, o que podia causar guerras santas ou outras desavenças, o Homem descobriu que Deus seria um só Senhor e criador de tudo e de todos. Nasceu assim o monoteísmo na sua versão absoluta, com o judaísmo e o islamismo e na sua versão trinitária, com o cristianismo.

Por fim, quando o progresso científico permitiu ao homem dominar grande parte da realidade, este decidiu matar a Deus (conceito psicanalítico) para se colocar no seu lugar como super-homem (Nietzsche). Nesta dialética de ir roubando a alma ao conhecido, o ser humano acabou por roubar a alma ao próprio Deus, afirmando, como o fez Feuerbach, que não foi Deus que criou o Homem à sua imagem e semelhança, mas sim, ao contrário, foi o Homem que criou Deus à sua imagem e semelhança.

Nasceu assim o materialismo dialético ou filosófico, depois o materialismo histórico e a revolução comunista com Karl Marx, a psicanálise ateia de Sigmund Freud. Nietzsche declarou “Deus está morto, viva o super-homem” e, depois do enterro de Deus, surgiu o niilismo do próprio Nietzsche, seguido pela náusea ou vómito de Sartre.

Ideologia materialista
Esta visão de mundo tornou-se proeminente no Iluminismo, mas é tão antiga como Demócrito (370 a.C.). A visão materialista do mundo afirma que não há espírito, nem deus, nem alma. Nada que não possa ser conhecido através dos cinco sentidos e da razão.

Nada existe além da Natureza que tenha influência causal ou aja sobre a mesma Natureza. Não existe, portanto, nenhum ser superior que tenha criado a Natureza e que exerça algum poder sobre ela. Só existe a natureza material e nada para além dela. A vida na Terra surgiu por si mesma, quando se reuniram as condições para que surgisse, a partir de substâncias naturais, por seleção natural para fins naturais.

O sobrenatural ou espiritual é uma quimera, não existe, não é observável. Se algo não tem explicação não é por ser sobrenatural, mas simplesmente porque o ser humano ainda não sabe tudo; no futuro, a ciência poderá explicar. Assim foi e assim tem sido: realidades que antes eram vistas como deuses, hoje são completamente explicáveis.

O mundo espiritual é, portanto, uma ilusão, (um consolo infantil, como diz Freud). Não há ser superior, somos meros complexos da matéria e, quando morremos, deixamos de existir e os elementos simples que compõem o nosso corpo voltam à sua simplicidade à medida que o nosso corpo se desintegra.

Como não há nenhum significado intrínseco para o universo, as pessoas têm de criar valores para si mesmas. Não há certo e errado, exceto o que a sociedade estabelece, com propósitos de sobrevivência e tranquilidade.

Muitos não chegam a criar valores pelos quais pautar a sua vida, pois é difícil fundamentar uma ética sem religião. Os materialistas têm a sorte de mais de 90% da humanidade acreditar na existência de um ser superior, fundamento e garante da estrutura social que temos; se assim não fosse, 1% da humanidade não poderia ter mais riqueza do que 99% da mesma humanidade, como hoje acontece. 

Se os seres humanos não acreditassem na vida para além da morte, fundamento último da ética, não haveria exército nem polícia para conter a raiva humana contra a injustiça.  Razão tinha Napoleão Bonaparte quando disse que a religião é o que faz os pobres não matarem os ricos.

Se o fim dos justos e dos injustos é o mesmo, é difícil distinguir a justiça da injustiça, se ambas têm o mesmo fim: o nada. Por isso, a maior parte dos materialistas afogam as suas mágoas no consumismo. A vida é pão e circo, como diziam os romanos, Fugit Tempus, Carpe diem, o tempo escapa-se-nos, aproveitemos o dia que temos pela frente, ou seja, “Morra Marta, morra farta”.

Os processos de evolução ou mudança são essencialmente aleatórios, não têm um objetivo predefinido, pois não existe nenhum desígnio inteligente, como creem os crentes religiosos. Reina o aleatório: os dinossauros não estavam predestinados a desaparecer, se aquele meteorito que destruiu o seu habitat não tivesse caído, poderiam ainda estar vivos e o ser humano nunca ter surgido. Para além do aleatório, o que existe é uma seleção natural governada pela lei do mais forte ou do que melhor se adapta às circunstâncias de um meio ambiente em constante mudança.

É isto e só isto que determina que alguns seres vivos sobrevivam e outros pereçam. Os materialistas creem que este processo de “seleção” inconsciente, não dirigida, juntamente com as flutuações genéticas aleatórias (ou seja, mutações), sejam as chaves que explicam a origem do mundo e dos seres vivos como os conhecemos hoje, nós próprios incluídos.

Ao não haver nenhum desígnio inteligente nem nenhum objetivo que a natureza tenha que cumprir, a própria inteligência e o que nós chamamos espiritual são o resultado de complexos processos naturais e materiais que é possível conhecer e explicar. Não precisamos de Deus para explicar nada na Natureza físico-química. Não existe nada no Universo que seja pessoal, tudo é impessoal. A pessoa humana é uma outra quimera criada pelos espiritualistas, não há nada na pessoa humana para além de complicados processos físico-químicos.

Análise "científica" do materialismo, ateísmo ou agnosticismo
É certo que não podemos provar a existência de Deus nem a sua não existência, pelo que tanto teísmo como ateísmo ou agnosticismo são crenças. Ou seja, uma é fé a outra é anti fé, mas ambas envolvem fé.

Os ateus ou agnósticos gostam de se fazer passar por cientistas, amigos da ciência, racionais e iluminados. A ciência é logico-dedutiva, como a matemática, ou intuitiva, como a teoria da relatividade de Einstein.

O ateísmo ou o agnosticismo não é lógico - O ateísmo ou agnosticismo não é lógico. Não faz sentido que o ser humano seja, como diz Karl Marx, o momento em que a Natureza ganhou pensamento ou autoconsciência, só para nos darmos conta da nossa miséria, ou seja, de que vimos do nada como tudo e ao nada regressaremos com a pulga, o piolho e o percevejo.

Se para isso somos os únicos seres vivos conscientes da nossa miséria, era preferível não sermos conscientes como o resto dos seres vivos. É como saber o dia e as circunstâncias da nossa morte: não creio que haja uma única pessoa que esteja interessada nessa informação.

Ao contrário do resto dos seres vivos, a consciência de que existimos por um tempo e depois deixamos de existir, em vez de ser uma grandeza da evolução é antes ir de cavalo para burro. Que grandeza é essa de termos consciência da própria miséria, sem solução para a remediar?

Ao contrário do resto dos seres vivos que, vivendo em simbiose com a natureza não têm liberdade nem autonomia nem independência em relação a ela, o ser humano tem a vida nas suas mãos, tem uma certa liberdade para fazer com a sua vida o que quiser. Para quê essa liberdade, se independentemente do que fizermos, o fim será o mesmo? Por outro lado, o ter liberdade é também um risco, no sentido em que posso fazer más escolhas e transformar a minha vida num inferno, coisa que os outros seres vivos não podem.

Na vida, os seres vivos são felizes, não precisam de trabalhar, nem de estudar, nem de sofrer. Nós, seres vivos humanos, podemos ser felizes ou infelizes em vida, mas, mesmo os que são felizes, possuem sempre uma felicidade relativa, pois o pensamento de que um dia deixarão de existir, envenena qualquer alegria ou prazer, transformando-a em tristeza e depressão.

O ateísmo ou agnosticismo não é dedutivo – Se o universo não estivesse em expansão, se fosse estático e não dinâmico e em constante devir, como as águas do rio de Heráclito, se sempre tivesse sido o mesmo, se não houvesse nenhuma mudança, nem evolução, nem revolução, poderíamos deduzir que sempre existira, que o universo era deus de si mesmo.

Isto é o que pensava a ciência antes de o telescópio Hubble que se encontra bem longe no espaço, mostrar que as galáxias estão a afastar-se umas das outras, o que nos levou a deduzir que o Universo está em expansão. A teoria dedutiva do Big Bang que afirma que as galáxias estão a afastar-se umas das outras foi criada pelo padre católico belga Georges Lemaître. Segundo ele, o universo começou com uma grande explosão; nessa grande explosão foram criados o tempo/espaço e a matéria/energia.

Na Natureza, as ignições ou explosões não acontecem espontaneamente. Tudo se passa num regime de causa/efeito: não há causa sem efeito, nem efeito sem causa, não há água sem sede, nem sede sem água. Ou, como diz o povo, “quando nasce a panela, nasce o testo para ela”. Por outro lado, não observamos na Natureza nada que se crie a si mesmo; é, portanto, mais lógico deduzir um criador que não o deduzir.

Se o universo nem sempre existiu e depois começou a existir, houve um “tempo” em que não existia. E haverá um tempo em que deixará de existir. Apenas a Bíblia falava do fim do mundo e os tais cientistas riam-se dela e dos cristãos. Como quem ri por último, ri melhor, agora somos nós que nos rimos. A ciência teve de dar o braço a torcer e afirmar que o mundo deixará de existir um dia.

Os ateus reagiram à teoria do Big Bang deduzindo o Big Crunch, ou seja, que o universo estaria em expansão, como se fosse um elástico, até não poder expandir-se mais, iniciando em seguida o processo inverso de contração até colapsar sobre si mesmo, chegando a matéria a concentrar-se toda outra vez e a causar um novo Big Bang. Assim sendo, o universo seria uma sucessão de Big Bangs e Big Crunches.

Porém, a segunda lei da termodinâmica veio desmentir esta teoria, pois a matéria não se transforma em energia sem se desgastar. Se assim fosse, seria possível ter uma máquina que fabricasse a energia de que precisa para se manter em andamento. O sol vai gastar todo o seu hidrogénio e hélio, assim como o universo vai gastar toda a sua energia até desparecer e a pouca matéria existente nesse universo futuro não terá a força da gravidade suficiente para se aglutinar. O universo transformar-se-á num buraco negro.

O ateísmo ou agnosticismo não é intuitivo – A intuição é o contrário da lógica e da dedução, pela intuição e dedução nunca Einstein chegaria à teoria da relatividade, pois não é lógica nem se deduz de nenhuma observação. A intuição é, ao mesmo tempo, um salto qualitativo e quantitativo. Se eu partir da observação da realidade, sou catapultado pela intuição para uma realidade não observável nem experimentável, mas que tem relação com o que observo e dá sentido a tudo o que observo.

Neste sentido, a fé é uma intuição; a Deus chega-se pela intuição, mas não só a Deus: muita da física quântica dos nossos dias, herdeira da teoria da relatividade, é intuitiva. Muita da astronomia de hoje é intuitiva, pois não temos forma de observar certas realidades.

O ateísmo ou agnosticismo é indutivo – O ateísmo ou agnosticismo é instigado, é forçado e supõe a repressão do sentimento religioso que é conatural ao ser humano e que podemos observar em todos os tempos e em todas as épocas e na maior parte dos seres humanos que habitam hoje o nosso planeta.

Os teístas sempre foram mais de 80% dos habitantes deste planeta em todas as épocas e em todas as culturas. Até hoje já houve muitas culturas e civilizações sem ciência e tecnologia, mas nuca houve nenhuma sem religião.

Por isso, o ateísmo ou agnosticismo é induzido pela moda, pela sociedade de consumo, pelo comunismo, ou por qualquer ideologia que pretenda retirar ao ser humano toda a orientação; assim desorientado e desnorteado, é mais fácil de manipular e transformar em consumidor obsessivo e neurótico, muito bom para a economia faz crescer o PIB, mas reduz a saúde dos indivíduos. Quanto mais saudável é a economia, mais doentes são os indivíduos que a alimentam.

E, para tal, o sentimento religioso natural ao ser humano e presente em todas as culturas de todos os tempos tem de ser ignorado num primeiro momento, mas, como sempre ressurge, deve ser reprimido, escondido.

Defendo que não há verdadeiros ateus ou agnósticos, mas sim politeístas, ou seja, negam a existência do Deus verdadeiro para prestarem homenagem, veneração e adoração a muitos e pequenos deuses. O dinheiro seria o Pai desse panteão, tal como Zeus e Júpiter foram os pais dos panteões grego e romano, respetivamente. Depois há deuses que são os patronos de certas realidades com quem o ateu ou materialista se relaciona: o poder, a beleza, o prazer, a fama, a diversão como o futebol etc.

Como seria um mundo governado pela cosmovisão materialista? Seria um mundo sem música, sem arte, sem poesia, sem literatura, sem direitos humanos, sem ética, uma autêntica barbárie, uma autêntica anarquia. Que deixa para a posteridade a sociedade materialista consumista? A quase totalidade dos monumentos e obras mais belas da humanidade, as pirâmides do Egito, as catedrais góticas, as mesquitas, os templos hindus são o reflexo do sentimento religioso. Que nos deixa ou deixou o materialismo para além da náusea de Sarte, dos gulags soviéticos e dos atuais campos de concentração chineses para lavar o cérebro ao povo uigur?

Conclusão: os materialistas sustentam que, na evolução das espécies, o ser humano não é mais que o momento em que a matéria ganha consciência de si mesma. Não faz sentido que a matéria desperte com o único objetivo de se dar conta de que é matéria. A autoconsciência é uma atividade espiritual, por isso a matéria está orientada para o espírito e não vice-versa. Os materialistas, ateus ou agnósticos reprimem o natural sentimento religioso, comum ao ser humano de todos os tempos e culturas, como os puritanos reprimiam o sexo.

Pe. Jorge Amaro,IMC


1 de novembro de 2024

Cosmovisão Renascentista

Sem comentários:


O mundo europeu entende que não há uma continuidade cultural, científica e filosófica entre o mundo antigo e a Idade Média. A Idade Média foi como um trauma que paralisou o mundo, que o colocou a dormir por muito tempo. A cidade é o lugar da cultura, pois é na cidade que se concentra o maior número de pessoas, onde acontece um sem-número de transações, comunicações e onde se pratica um sem-número de profissões.

No bucólico campo só se pratica a agricultura, as pessoas vivem isoladas umas das outras. O mundo medieval era um mundo rural. É certo que é do campo que se vive e se come, mas uma vida que se dedica só à autossubsistência dificilmente se pode chamar humana, os animais são os que se dedicam exclusivamente à autossubsistência.

A agricultura é, portanto, a base da cultura. No entanto, o objetivo da agricultura não deve ser a autossubsistência, mas sim criar excedentes que depois serão a base do comércio, que permitirão adquirir outros bens e promoverão o relacionamento entre pessoas, fazendo surgir outras atividades. Em suma, fomentarão a cultura e o desenvolvimento.

No Renascentismo começaram a surgir outra vez as cidades. A Europa, ao dar-se conta da descontinuidade cultural entre a Idade Antiga e os 10 séculos de Idade Média, tentou fazer um bypass, passando por cima da Idade Média e indo ao passado do mundo greco-latino para ressuscitar esta cultura sem a mediação ou as lentes da Igreja.

Inspirado nos valores da antiguidade clássica, o homem renascentista tem a ideia de que tudo o que é medieval é mau e tudo o que pertence ao mundo antigo é bom. Esta perspetiva está equivocada em muitos pontos. A filosofia, por exemplo, embora seja de inspiração cristã, avançou na Idade Média; a arquitetura, sobretudo a gótica, representou um enorme avanço. A arquitetura algo tosca da época grega e romana, foi recriada no renascimento com um estilo monumental que perdeu em beleza para o gótico; não é nada bela, é somente monumental, ou seja, grande, enorme. Por exemplo, a basílica de S. Pedro é monumental, é renascentista; mas não é certamente mais bela que a mais singela catedral gótica.

Com o aparecimento do burgo, termo que significa cidade, no fim da Idade Média, nasceu uma outra classe social no seio do povo, o burguês, ou seja, literalmente o habitante da cidade, que não se dedica, é claro, à agricultura, mas sim ao comércio, artes e ofícios que vão surgindo à medida que a vida se vai diversificando e deixa de girar à volta da subsistência. Esta vertente física é confiada ao povo e ao seu trabalho na agricultura, a vertente espiritual e moral é confiada ao clero e a segurança é confiada aos nobres.

Origem do Renascimento
Na península itálica, as cidades nunca desapareceram totalmente e os povos não deixaram de praticar o comércio, nem de usar moeda. Houve, sim, uma diminuição dessas atividades durante a Idade Média. Em virtude da situação geográfica da península itálica no meio do Mar Mediterrâneo, várias cidades ribeirinhas como Veneza, Génova, Florença, Roma, entre outras, beneficiaram do comércio com o Oriente. Marco Polo terá aberto o caminho.

Estas regiões enriqueceram com o desenvolvimento do comércio no Mar Mediterrâneo, dando origem a uma rica burguesia mercantil. A fim de se afirmarem socialmente, estes comerciantes patrocinavam artistas e escritores, que inauguraram uma nova forma de fazer arte. A Igreja e a nobreza também foram mecenas de artistas como Miguel Ângelo, Domenico Ghirlandaio, Pietro della Francesca, entre muitos outros. A nova classe social burguesa que surgiu no Renascimento tinha dinheiro, mas não tinha estatuto, como o clero e a nobreza; por outro lado, como tinha dinheiro, não se enquadrava nos servos da gleba. Assim, procurava investir esse dinheiro patrocinando obras de arte, a fim de serem reconhecidos socialmente.

Renascer
Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus”. Nicodemos perguntou-lhe: “Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez?”. Respondeu Jesus: “Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus.João, 3, 3-5

Em meados do século XIV começou uma transição entre os mundos medieval e moderno. Esta transição é conhecida como o Renascimento ou nascer de novo, como sugere o evangelho.

O movimento começou em Itália que tinha sido o centro da cultura greco-romana e o seu último reduto, o centro do Império Romano. Foi também o lugar mais dominado pela Igreja, pois quase toda a Itália no fim da Idade Média era um Estado Pontifício, formado por terras que Carlos Magno deu à Igreja. Por isso, os que chamam a Igreja de obscurantista esquecem-se que esta foi a maior promotora da Renascença no campo da arquitetura, pintura, escultura e outras artes. E que a cultura greco-romana renasceu precisamente no lugar onde tinha sido extinta pelos bárbaros.

O Renascentismo abrangeu quase todas as facetas da vida, economia, política, filosofia e arte entre tantas e, em especial, da ciência. Os principais contribuintes para o Renascimento (como Petrarca, Leonardo Da Vinci e Dante) classificaram o período medieval como lento e escuro, um tempo de pouca educação ou inovação. Viram o período medieval como uma interrupção da cultura entre o mundo clássico da Grécia e Roma e o Renascimento.

A ideia de comunidade distinguiu o período medieval. As pessoas – clero, nobreza e povo – enfrentaram ameaças reais de fome, doenças e guerras que são perigos que fomentam a dependência da comunidade em áreas como o trabalho, a religião e a defesa. Por exemplo, um artesão medieval pertencia a uma associação que ditava todos os aspetos do seu negócio. A ideia era que todos os artesãos ganhassem a vida equitativamente e não que uns ganhassem mais que outros.  A uniformidade era norma; cada profissão tinha a sua forma de vestir, até as prostitutas tinham o seu hábito, uma forma de vestir que as distinguia das outras mulheres.

A Renascença, por outro lado, veio sublinhar a importância dos talentos individuais. Esta ideia, conhecida como individualismo, é visível na filosofia e na arte da época. Além disso, enquanto estudiosos medievais tinham estudado documentos gregos e romanos antigos para aprender sobre Deus e o Cristianismo, os estudiosos renascentistas estudaram-nos para descobrir mais sobre a natureza humana. Esta nova interpretação era conhecida como humanismo.

Nasceu assim um humanismo não diretamente ligado ao cristianismo, ou seja, um humanismo laico que cresceria exponencialmente durante toda a Idade Moderna. Aliás o Renascimento foi a primeira pedra da cosmovisão humanista materialista contraposta a uma cosmovisão espiritualista, que reinou durante toda na Idade Média.

A arte renascentista também reflete o humanismo. Enquanto a arte medieval se destinava a ensinar uma lição, talvez uma história bíblica, como os vitrais das catedrais góticas, a arte renascentista glorificou a humanidade dos indivíduos retratados. As estátuas medievais tendem a ser de santos e numa posição mística não natural. Em contraste, o David de Miguel Ângelo, a Pietá e Moisés parecem ser mais realistas. As estátuas deixaram de ser imagens congeladas de piedade e passaram a revelar emoções humanas, parecendo prontas para a ação.

Valores renascentistas
Racionalismo – A razão era o único caminho para se chegar ao conhecimento. Tudo podia ser explicado pela razão e pela ciência. A escolástica medieval valorizava também a razão, mas não em exclusivo. A fé é uma outra forma de conhecer, que o renascimento ignora, tal como a cultura em geral depois deste.

Cientificismo – Para os renascentistas, todo o conhecimento deveria ser demonstrado através da experiência científica. É deste tempo a expressão “a experiência é a mãe da ciência”. Hoje sabemos que a experiência não é a única mãe de todas as ciências. Não só da lógica e dedução se faz ciência, mas também da intuição, como aconteceu com a teoria da relatividade.

Individualismo – O ser humano procurava afirmar a sua própria personalidade, mostrar os seus talentos, atingir a fama e satisfazer as suas ambições, através do conceito de que o direito individual estava acima do direito coletivo. Assim nasce o liberalismo em todas as suas vertentes. Teremos que esperar pela revolução socialista para voltar a falar de igualdade, pois a igualdade da revolução francesa era uma igualdade onde uns são mais iguais que outros, como diz George Orwell.

Antropocentrismo – Coloca o homem como a suprema criação de Deus e como centro do universo. É deste tempo a frase “o homem é a medida de todas as coisas”. Deus começa a ser posto de lado, até ser completamente substituído pelo super-homem de Nietzsche.

Classicismo – Os artistas procuram a sua inspiração na Antiguidade Clássica greco-romana para realizar as suas obras. Qualquer momento do passado é melhor que este, era a ideia.

O renascimento das letras
São deste tempo grandes escritores ainda hoje mundialmente famosos, porque escreveram obras mundialmente reconhecidas, para todos os tempos, além de se tornarem ex libris ou representativas da cultura onde surgiram.

  • Dante Alighieri: escritor italiano, autor do grande poema "Divina Comédia". Trata das três instâncias depois da morte – Céu, Inferno e Purgatório – e é uma joia da literatura universal e o ex libris da cultura italiana.
  • Maquiavel: autor de "O Príncipe", obra precursora da ciência política onde o autor dá conselhos aos governantes da época.
  • Shakespeare: considerado um dos maiores dramaturgos de todos os tempos. Abordou na sua obra os conflitos humanos nas mais diversas dimensões: pessoais, sociais, políticas. Escreveu comédias e tragédias, como "Romeu e Julieta", "Macbeth", "A Fera Amansada", "Otelo" e várias outras. Ex libris da cultura inglesa.
  • Miguel de Cervantes: autor espanhol da obra "Dom Quixote", uma crítica contundente da cavalaria medieval. Ex libris da cultura espanhola.
  • Luís de Camões: teve destaque na literatura renascentista em Portugal, sendo autor do grande poema épico "Os Lusíadas", ex libris da nacionalidade portuguesa.

O renascimento das artes
Destacamos Leonard da Vinci que é o ex libris, estereótipo ou protótipo do homem renascentista; o homem dos cem ofícios; foi matemático, físico, anatomista, inventor, arquiteto, escultor e pintor, foi o homem renascentista que dominou várias ciências. Por isso, é considerado um génio absoluto. A misteriosa Mona Lisa e a Última Ceia são as suas obras-primas. Quando alguém nos fala da última ceia de Cristo, a imagem que nos vem à mente é sempre a do quadro de Leonado da Vinci.

Renascimento científico
O Renascimento foi marcado por importantes descobertas científicas, nomeadamente nos campos da astronomia, da física, da medicina, da matemática e da geografia. O polaco Nicolau Copérnico negou a teoria geocêntrica defendida pela Igreja, herdada de Aristóteles e Ptolomeu, ao afirmar que "a Terra não é o centro do universo, mas simplesmente um dos tantos planetas que gira em torno do Sol". O novo centro era agora o sol. Hoje sabemos que nem a terra nem o sol são o centro do Universo. O universo talvez não tenha centro…

Galileu Galilei descobriu os anéis de Saturno, as manchas solares, os satélites de Júpiter. Perseguido e ameaçado pela Igreja, Galileu foi obrigado a negar publicamente as suas ideias e descobertas. “E, no entanto, move-se” dizem que disse Galileu ao sair do tribunal onde foi obrigado a mentir. A Igreja estava enganada ao olhar para a Bíblia como um livro de ciência.

Galileu disse que era a Terra que andava à volta do sol, mas nunca conseguiu prova-lo, pois o que vemos é o sol que anda à volta da Terra: a experiência empírica aqui diz-nos o contrário da verdade. Ao pobre Galileu bastava-lhe ter dito que quando cavalgamos ou nos deslocamos numa carruagem de cavalos, sabemos que somos nós que nos movemos; no entanto, os nossos olhos vêm as árvores a moverem-se. Da mesma maneira, vemos que é o sol que se move, apesar de sabermos que está fixo em relação a nós porque nós, habitantes deste planeta, estamos montados no movimento de um astro que se move, como a carruagem.

Na medicina, os conhecimentos avançaram com trabalhos e experiências sobre a circulação sanguínea, métodos de cauterização e princípios gerais de anatomia. São deste tempo as primeiras autópsias para investigar a causa da morte e para aprender sobre o corpo humano e o seu funcionamento.

Conclusão: ao despertar de um sonho que durou mil anos, o renascentista deu-se conta de que a Idade Média, pelo trauma das invasões bárbaras, não era uma continuação lógica da Idade Antiga que tinha sido sepultada viva. O Renascimento foi um bypass do mundo clássico até à atualidade, sem passar pela Idade Média. Foi um ir beber às fontes e lançar raízes na Idade Antiga como modelo de inspiração, pondo de lado a Idade Média como se esta nunca tivesse acontecido. 

Pe. Jorge Amaro, IMC