1 de janeiro de 2024

Cosmovisão, a matriz do nosso pensamento

No princípio era o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus.

Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência. Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens. João 1, 1-4

Quase toda a humanidade subscreve e está de acordo com estas primeiras palavras do prólogo do evangelho de S. João, que afirmam a crença num Deus criador de tudo o que existe e de todos quantos existem.

Procurando situar Jesus no contexto do tempo e do espaço, notamos como o horizonte e o significado da sua entrada na história da humanidade se vai amplificando com cada evangelho escrito. Marcos, o primeiro a ser escrito, em Roma e para romanos, o mais pequeno e o mais incisivo e direto, começa com o Batismo de Jesus e procura provar que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus.

Mateus, o segundo a ser escrito, para judeus, estabelece uma genealogia de Jesus na qual se diz que Jesus é filho de David, filho de Abraão. Lucas, o terceiro a ser escrito, por um grego para gregos, também estabelece uma genealogia, mas que vai mais além dos antepassados de Israel até ao primeiro homem e primeira mulher, Adão e Eva. Por fim, João, como diz o texto acima citado, começa a história de Jesus de Nazaré muito antes de Adão e Eva, fora do nosso planeta, no cosmos, no universo e no começo da criação.

Uma cosmovisão procura integrar todos os elementos de uma cultura ou religião de uma forma harmoniosa, que faça sentido. Cada um dos evangelhos situou Jesus no contexto cada vez maior e, por fim, João concluiu que Jesus não só tem que ver com o movimento do Batista, mas também que é descendente de David, Abraão, Adão e Eva e que ao estar lá no início da criação, é a segunda pessoa da Santíssima Trindade.

Olhar o mundo como Deus o vê
A melhor forma de olhar o mundo é certamente fazendo-o com os olhos do seu Criador. Quem está dentro de uma floresta, não consegue vê-la, apenas vê árvores. Para ter uma visão de conjunto da floresta é preciso sair dela, situar-se como observador fora dela, mas ao mesmo tempo dentro dela. Ninguém melhor que Deus conhece e tem uma visão de conjunto do mundo, da sua natureza e do seu sentido.

Não só porque foi Ele quem o criou, mas também porque só Ele pode transcender o mundo completamente por ser, ao mesmo tempo, imanente e transcendente. Ou seja, só Ele pode verdadeiramente sair da floresta para olhá-la a partir de fora; nós os humanos nunca conseguiremos ter totalmente essa perspetiva. Por isso, olhar o mundo a partir da perspetiva do seu Criador, como os olhos de Deus, é sempre a melhor maneira. Sem Deus, o mundo carece de sentido porque nada do que existe se explica por si mesmo.

Abstração e transcendência
O ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus, é também em menor grau imanente e transcendente em relação ao mundo; imanente porque vive nele, está sujeito às suas leis e sem o mundo não pode viver; transcendente porque tem uma certa capacidade de se abstrair dele, uma capacidade que lhe vem do facto de ser diferente das demais criaturas ao possuir autoconsciência.

A autoconsciência é uma divisão do nosso psiquismo que nos dá a capacidade de sermos imanentes e transcendentes em relação a nós mesmos, ao mundo e a tudo o que nos rodeia. Por sermos autoconscientes podemos estar dentro da floresta e fora dela, pois podemos ser observadores e observados em relação a nós próprios e ao mundo que nos rodeia. Ao ser capazes de nos observarmos a nós proprios, somos ao mesmo tempo o sujeito e o objeto da nossa observação.

A autoconsciência dá-nos a possibilidade de olhar o nosso mundo interior e exterior, tudo o que está à nossa volta, com alguma objetividade. A autoconsciência é uma determinada objetividade dentro da subjetividade, porque nos permite observar, julgar, sermos objetivos e justos. Embora se diga que ninguém é justo juiz em causa própria, também é verdade que se tivermos uma boa autocrítica e reconhecermos os nossos erros, fomos honestos, sinceros e genuínos, poderemos ser justos juízes mesmo em causa própria.

A autoconsciência dá-nos a possibilidade de observar o mundo e de o interpretar, ou seja, de o metermos dentro de nós mesmos, de o assimilarmos e fazermos dele um mapa que conservamos no nosso interior e que nos ajuda na nossa relação como o mundo que nos rodeia, com os outros e até connosco próprios. Este mapa interior, esta interpretação, a nossa forma de conceptualizar o mundo é a nossa cosmovisão.

“Contra factos não há argumentos”
É bem conhecido este provérbio que fundamentalmente quer dizer que não vale a pena discutir o que é óbvio, o que é objetivo, o que está diante dos nossos olhos. É perda de tempo argumentar contra o que ocorre debaixo do nosso nariz, não adianta querer explicar, pois o facto fala por si e já diz tudo. Também se diz malvadamente que só “fala quem não tem falo”.  

Os factos pertencem ao campo do objetivo, do que é comum a todos, pelo que sem um mínimo de objetividade, vista como senso comum, opinião pública, denominador comum, a vida em sociedade não seria possível. Porém à objetividade contrapõe-se a subjetividade; um mesmo facto pode ter tantas interpretações como o número de pessoas que o interpreta. Cada cabeça sua sentença, diz também o povo.

Não basta ver o que vemos, é preciso entender o que vemos. Os discípulos de Emaús (Lucas 24, 13-35) fugiam de Jerusalém, deixavam para trás o serem discípulos de Jesus de Nazaré, porque os factos da sua morte os tinham desconcertado, desmoralizado, escandalizado, confundido, desesperado. Uma coisa é ver, outra é saber interpretar o que vemos, encontrar o sentido do que vemos. As aparências iludem e as coisas nem sempre são o que parecem.

Jesus ajudou os discípulos a interpretar o facto aparentemente escandaloso da sua morte à luz da História de Salvação descrita na Bíblia. Muitas vezes, para sabermos o sentido de um facto pontual temos de o demarcar no contexto de um desígnio maior. Sempre é verdade que quem está na floresta não vê a floresta, só vê árvores; para ver a floresta tem de sair dela.

Definição e sinónimos
“Toda a forma de conceber o mundo e o lugar da humanidade no mesmo, a perspetiva mais ampla possível que a mente consegue ter das coisas. James Orr

“Um sistema de vida, enraizado num princípio fundamental, a partir do qual foi derivado todo um complexo de ideias e conceções de regras acerca da realidade. Abraham Kuyper

 “A Uma perspetiva da vida, um sistema inteiro de pensamento que responde às perguntas apresentadas pela realidade da existência.) Francis Schaeffer

“Um conjunto de pressupostos ou suposições presentes de forma consciente ou inconsciente, consciente ou inconsciente, em relação à constituição básica da realidade. James Sire

“Uma estrutura abrangente das crenças básicas de cada um em relação às coisas.) — Albert Wolters

“É… uma estrutura interpretativa… através da qual damos sentido… à vida e ao mundo. Norman Geisler

Cosmovisão, visão do cosmos, do universo, do mundo, do nosso pequeno mundo, mundividência, visão geral, visão de conjunto, perceção geral do mundo, perspetiva, ótica – todos estes termos são sinónimos que traduzem o conceito alemão de “Weltanschauung” que significa “modo de olhar o mundo” (“welt” – mundo, “schauen” – olhar), ponto de vista, perspetiva ou conceção de mundo.

Parece haver um consenso de que o termo cosmovisão deriva do uso que Emanuel Kant faz do termo “Weltanschauung” no seu livro “Crítica da razão pura”. O conceito que Kant procurou definir sempre existiu; os seres humanos, desde os mais primitivos, consciente ou inconscientemente, sempre tiveram uma visão do mundo que dava sentido à sua vida, pela qual orientavam os seus passos e tomavam as suas decisões.

Uma cosmovisão é um conjunto ordenado e estruturado de crenças, ideias, valores, conceitos e opiniões que configuram a imagem que uma pessoa, uma coletividade, uma cultura, uma época, tem do mundo e a partir da qual a pessoa interpreta a sua natureza, o sentido da sua vida e tudo o que existe.

A cosmovisão é uma representação mental que uma pessoa ou cultura faz do mundo ou realidade; uma forma de interpretar e conceptualizar tudo o que existe e de lhe dar um sentido. Esta conceptualização ou representação mental transforma-se num marco de referência do nosso ser e estar no mundo, ou seja, constituiu-se como uma abstração ou mapa interno ao qual nos referimos consciente e inconscientemente para nos situarmos e guiarmos na realidade externa.

É a bússola que nos indica o Norte para não andarmos desnorteados, o oriente para andarmos orientados, é o nosso Sistema de Posicionamento Global (ou GPS) que nos diz em cada momento onde estamos, o lugar que ocupamos no mundo, o lugar onde queremos chegar, isto é, os nossos propósitos, os nossos objetivos, os nossos sonhos e a estrada para lá chegarmos.

A cosmovisão é o conceito que faço do mundo e da vida que nele existe, é o alicerce, a pedra angular da minha vida. Tem a ver com a minha filosofia de vida, com a minha ótica ou com as lentes pelas quais vejo e interpreto a realidade. A cosmovisão é a matriz de uma cultura, semelhante à placa-mãe de um computador, que é aquela grande placa verde que encontramos ao abrir um computador, que tem impressos todos os circuitos e à qual se fixam todos os chips, a memória, o disco e os demais componentes de um computador.  

A cosmovisão é o sistema operativo de um computador. É o Windows, o sistema Macintosh ou Linux que fazem o computador funcionar. Um computador sem sistema operativo não faz nada, entra em funcionamento e apresenta um ecrã sem nada. Os computadores de hoje em dia fazem tudo, são usados em todas as instituições e células da vida individual e social. Há programas para tratar texto, imagem, música, cálculos matemáticos, etc. Cada programa, porém, está alicerçado no sistema operativo.

Usando esta metáfora, a cosmovisão é o sistema operativo de uma determinada cultura. Essa cultura pode ser constituída por muitas e variadas coisas, como os programas de um computador, mas todas estão assentes num único alicerce comum: o sistema operativo do computador, a cosmovisão da cultura. Parafraseando o livro dos Atos dos Apóstolos (17, 28), é nela realmente que vivemos, nos movemos e existimos…

Conclusão – Representação mental ou mapa do mundo, a cosmovisão é a nossa forma pessoal e coletiva de conceptualizar e interpretar o mundo, assim como a identidade e o sentido da nossa existência nele. 

Pe. Jorge Amaro, IMC



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