1 de dezembro de 2022

A Razão como refém da irracionalidade

Este é o destino dos que estultamente em si confiam, tal é o fim dos que só vivem em delícias. Como um rebanho serão postos no lugar dos mortos; a morte é seu pastor e os justos dominarão sobre eles. Depressa desaparecerão as suas figuras, a região dos mortos será sua morada. Salmo 48, 14-15

Depois de 5 milhões de anos de evolução, desde que os nossos antepassados em África começaram a perder o pelo e a ganhar inteligência, acredito hoje que ainda somos mais “animais” que humanos. É triste ter de constatar que não é a inteligência ou a razão que governa as nossas vidas, mas sim o instinto que temos em comum com o resto dos seres vivos.

Tal como acontece com todos os animais neste planeta, é o instinto que motiva o nosso comportamento e a maior parte dos nossos atos, tanto a nível individual como a nível social. A única diferença que existe em relação aos outros seres vivos é que somos mais espertos. Seríamos superiores se a inteligência fosse motivada e estivesse ao serviço do bem. Mas como é esperteza, motivada e posta ao serviço dos instintos mais baixos, acabamos por ser piores que os animais. A animalidade dirige e motiva a nossa inteligência e não como deveria ser, a inteligência a dirigir a animalidade.

A ciência diz que a vida humana começa quando a meia célula masculina chamada espermatozoide se une com a meia célula feminina chamada óvulo, formando uma célula humana com um código genético novo. Esta célula germinal imediatamente se subdivide e multiplica ao longo de noves meses até formar um ser humano completo, só necessita que a deixem em paz para que isso aconteça. Mesmo sabendo isto, somos os únicos animais que matam as próprias crias ainda no ventre materno e fazemo-lo aos milhões. Os mesmos que dizem que a ciência é a verdade e que deve ter a última palavra em tudo, vão contra a ciência para justificar este ato abominável.

Os animais não matam os seus congéneres, não matam os da própria espécie. Nós, desde Caim e Abel, chegamos a matar os nossos próprios irmãos e até aqueles que nos deram à luz. Se o nosso comportamento fosse dominado pela razão, há muito que se tinham resolvido conflitos como o Israelo-árabe e outros que se já arrastam há muitos anos.

Os alemães que se têm como pátria de filósofos e pessoas muito racionais, têm Hitler, expoente máximo da razão ao serviço da irracionalidade. Ao assassinar 5 milhões de judeus, levou a inteligência humana ao serviço da raiva “a mares nunca dantes navegados”.

E o irónico é que ele pensava que estava a livrar e a purificar a humanidade de uma raça maléfica. Ao contrário desta ideologia antissemita, os judeus têm mais prémios Nobel que qualquer outro povo incluindo o alemão. A Hitler junta-se Estaline, Mao Tse Tung, Pol Pot e todos os ditadores e tiranos ao longo da história da humanidade.

Não há muito que o autointitulado Estado Islâmico viola impunemente mulheres e crianças, degola cabeças até de cidadãos dos nossos países diante das câmaras de televisão com uma frieza que arrepia os cabelos. Fazem-no na total impunidade, porque não chegam a ferir os nossos interesses.

Anacronismo individual
O que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é que faço.
Romanos 7, 15

Já S. Paulo notava que somos um ser anacrónico: fazemos o que de antemão sabemos que é errado. E como é a irracionalidade que dirige a nossa vida, para justificar perante nós mesmos e os outros, que somos seres racionais, usamos o que em psicologia se chama mecanismos de racionalização. Justificamos o mal que fazemos para nos doer menos ou para calar a nossa consciência que nos acusa. Fazemos o que a raposa fez com as uvas: em vez de aceitar a sua incapacidade de chegar até às uvas, declarou-as verdes.

Sabemos que certos alimentos fazem mal à nossa saúde e, no entanto, consumimo-los. Como nos vemos nus, como Adão e Eva depois de terem comido a maçã, defendemos a nossa gula dizendo, “perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe”, ou “morra Marta morra farta” ou ainda “de algo temos de morrer”. Se um animal fosse autoconsciente e soubesse falar diria exatamente a mesma coisa.

Anacronismo social
Alguém disse: “Deixem de se questionar sobre que mundo deixaremos aos nossos filhos para se questionarem sobre que tipo de filhos deixaremos ao nosso mundo?”.

Em sociedade, em vez de individualmente, confrontarmos as nossas irracionalidades, somamo-las. Como são os baixos instintos que inspiram a nossa inteligência, grande parte dos inventos que tornaram a nossa vida mais confortável não nasceram para a paz, mas sim para a guerra. Primeiro nasceu a bomba atómica só depois se lhe viu a aplicação pacífica de produzir eletricidade. O microondas que usamos para aquecer o nosso jantar nasceu como telefone entre bases militares; o GPS não nasceu para nos guiar nas estradas, mas sim para guiar mísseis ao seu destino.

A história tem provado repetidamente que somos muito mais criativos em fazer o mal do que em fazer o bem. O orçamento de quase todos os países tem mais dinheiro disponível para promover a guerra do que para promover a paz.

O país tão brilhante dos Estados Unidos da América está refém de uma lei antiga que dá à sua população o direito de possuir qualquer tipo de armas, mesmo aquelas que são usadas por soldados. Esta lei sangrenta já matou milhares de alunos e professores nas escolas e, no entanto, dizem que não pode ser alterada.

Enquanto o resto dos países alteram a sua constituição para a adaptar aos tempos modernos, os Estado Unidos tratam a sua constituição como se do Evangelho se tratasse, não pode ser redigida nem reeditada. O engraçado é que a palavra “amendment” vem do latin e significa "emenda" vem ou seja, correção, edição ou algo adicionado. Então, a segunda emenda é algo que já foi editado corrigido, mas não pode mais ser corrigido. Muito estranho...

Sabemos que a carne criada com hormonas de crescimento em metade do tempo, as verduras legumes e frutas tratadas com fertilizantes químicos e pesticidas são uma causa do aumento de cancro nas sociedades ocidentais. No entanto, nada fazemos de racional para resolver o problema. Criamos uma agricultura biológica paralela, não com o intuito de velar pela saúde pública, mas sim como outra forma de fazer dinheiro.

Surgiram e foram tirados do mercado modelos de carros que usavam fontes de energia alternativas ao petróleo, mas que desapareceram imediatamente porque feriam os interesses das petrolíferas. Dizem que existe cura para várias doenças e que esta não se faz pública porque há farmacêuticas a fazer rios de dinheiro com essas doenças e, para essas empresas, a saúde pouco interessa.

Não sabemos ainda o impacto ecológico e na saúde humana dos transgénicos, mas já os usamos em larga escala porque dão muito lucro. Na vanguarda dos transgénicos está a empresa de sementes Monsanto que, para criar dependência nos pobres do terceiro mundo, modificou as sementes para que produzam só uma colheita, obrigando os pobres a comprar sementes no ano seguinte. Com o tempo, desaparecem as sementes que Deus criou, ou seja, aquelas que resultam da colheita anterior e germinam para uma nova colheita.

Insustentabilidade do nosso modelo de desenvolvimento
O sr. Adam Smith, no seu livro a Riqueza das Nações, disse que todos deveriam buscar o seu próprio interesse que uma mão invisível se encarregaria de buscar o interesse e o bem comum. Deve ter ficado muito contente com a sua esperteza quando descobriu esta teoria, mas se pensarmos bem, não é outra coisa senão a versão intelectual da lei da selva.

O capitalismo nunca buscou nem quis o bem comum. De facto, se hoje o sr. Smith fosse vivo e soubesse que já em 2016 1% da humanidade possuía mais riqueza que os outros 99%, que um punhado de pessoas possuía exatamente 54%, ou seja, mais de metade da riqueza mundial, ficaria envergonhado com a sua teoria. Onde está então essa mão invisível que traria a igualdade?

Do ponto de vista político, económico e até ecológico, o nosso modelo de desenvolvimento é insustentável, e inviável. O nosso planeta vai morrer muito antes de termos a capacidade de nos transportarmos para outro. Há quem viva numa atitude de negação e defenda que as mudanças climatéricas se devem a ciclos normais do nosso planeta. Negam que a poluição galopante do ar e do mar tenha qualquer efeito sobre a saúde do nosso planeta.

Há antecedentes e estes devem fazer-nos pensar. A civilização Maia é um exemplo de modelo de desenvolvimento que era insustentável e que, como tal, acabou. As pirâmides, palácios e monumentos que os Maias chegaram a construir, já tinham sido engolidos pela selva quando os espanhóis chegaram lá. Os Maias, dispersos, tinham regressado à agricultura de sobrevivência.

Perante esta tragédia que está para se abater sobre nós mais uma vez, o nosso comportamento é animal. Uns dizem como os burros, depois de mim que não cresça mais erva, já estarei morto não vou precisar dela, os que vierem depois que se arranjem; outros preferem não ver, como a avestruz que esconde a cabeça debaixo da areia para não ver o perigo: “olhos que não vêm, coração que não sente”.

Não queria que este panorama parecesse tão negro, há aqui e além ao longo da história da humanidade pessoas que subjugaram o instinto ao serviço da inteligência e foram capazes de grandes obras. Mas são poucas andorinhas, insuficientes para fazer verão.

Só Cristo nos pode salvar de nós próprios
No nosso carneirismo, como um rebanho de ovelhas, caminhamos inexoravelmente para a morte e a própria morte é o nosso pastor, diz o salmo acima citado. Somos suicidas e não nos damos conta. Só Deus pode salvar-nos de nós mesmos.

É obedecendo à vontade de Deus e não à própria que podemos livrar-nos de nós mesmos. Deus gosta mais de nós que nós próprios, defende melhor os nossos interesses que nós próprios; é o amor a Deus que nos salva de nós mesmos. O amor doentio que temos por nós mesmos leva-nos à própria aniquilação tal como aconteceu com Narciso.

Na sua totalidade, a humanidade ainda não atingiu a idade adulta; continua a comportar-se como uma criança frívola, irresponsável, fazendo o que lhe dá mais prazer, completamente alheia às consequências no futuro das orgias do presente.

Para Freud, maturidade humana é a passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade; ou seja, abandonar comportamentos que nos produzem um prazer imediato (princípio do prazer) pelo conhecimento que temos dos efeitos nocivos que esses comportamentos vão causar a longo prazo (princípio de realidade).

Fundamentalmente, Jesus já tinha dito isto mesmo quando afirmou: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-me”. Lucas 9, 23

Conclusão – Se, sabendo o que nos convém, fazemos o que nos apetece, a razão está ao serviço do instinto. Só quando conseguimos adiar a satisfação imediata dos nossos impulsos e fazemos o que nos convém é que pomos o instinto ao serviço da razão e somos genuinamente humanos.

Pe. Jorge Amaro, IMC


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