1 de novembro de 2021

3 Igrejas uma religião: Católica - Ortodoxa(S) - Protestante(S)

Muitas são as razões pelas quais a Igreja que Cristo fundou se dividiu em três confissões diferentes. Há razões históricas, políticas, culturais e até geográficas. Na Europa, onde todas elas nasceram, podemos distribuir estas diferentes confissões segundo os quatro pontos cardeais. O Norte da Europa é protestante, o Sul é católico; o Oriente é ortodoxo, o Ocidente é católico. O parâmetro continua a ser verdadeiro no continente americano. O Norte é tradicionalmente protestante, tal como os Estados Unidos e Canadá, à exceção do Quebeque, o Sul é católico, desde o México até à Terra de Fogo.

No título deste texto coloco a Igreja católica no singular, a ortodoxa e protestante no plural, para sublinhar o facto de que não existe uma só Igreja ortodoxa ou protestante, mas muitas. No caso das ortodoxas, onde existem, é uma por cada país com muito pouca comunhão entre elas, se acaso existir alguma.

A palavra ortodoxa não deixa de ser um anacronismo que, quando surgiu, queria significar que era verdadeira; se tivesse permanecido unida, ou seja, se só tivéssemos uma Igreja ortodoxa, poderia ainda usar o nome, mas como existem várias, nenhuma delas pode dizer que é a verdadeira, pois uma das caraterísticas da verdade é ser singular.

No caso das protestantes, faz sentido que sejam muitas pois muitos podem ser os protestos; algumas das de tradição anglicana seguem a linha nacionalista; quanto às restantes, são muitas em cada país, bem como as seitas derivadas destas. Não existe qualquer tipo de comunhão entre as Igrejas e seitas protestantes; a única coisa que têm em comum é o velado “ódio” pela Igreja católica.

Em contraposição com a pluralidade das Igrejas ortodoxas e protestantes, a Igreja católica é singular: tem-se mantido como uma só ao longo do tempo e do espaço cultural e geográfico. Existe apenas um catolicismo que se mantém idêntico e inalterável, fiel a si mesmo, em todos os tempos, em todos os lugares e espaços geográficos e culturais, em todas as línguas, povos e nações.

Embora designe hoje uma Igreja que existe em contraposição com as ortodoxas e as protestantes, o termo “católica” não nasceu do confronto com as outras confissões cristãs. Antes da divisão, a Igreja já se chamava católica.

Onde o bispo está presente, aí está também a Igreja católica (Carta aos cristãos de Esmirna 8, 2, AD 150)

Portanto, a Igreja não se fez chamar católica para se diferenciar das Igrejas protestantes e ortodoxas. A designação “católica” foi atribuída à Igreja no ano 150 pelo Bispo Santo Inácio de Antioquia, devido à sua vocação de universalidade. Assim, ainda mal tinha começado o século II, numa época em que ainda não existiam divisões, já o nome da Igreja católica estava em uso, para designar o nome da única Igreja que existia naquele tempo, a que Cristo tinha fundado.

O nome vulgarizou-se depressa por corresponder à verdade. O termo católico significa universal, e quando era empregado naqueles primeiros tempos por Santo Inácio de Antioquia e S. Policarpo de Esmirna, referia-se à Igreja que já estava presente em toda a parte.

O termo “católica”, além de significar que era universal e internacional, significava, já naquele tempo, que era para todos e não para uma etnia, uma casta ou elite de pessoas especialmente iniciadas, como acontecia por exemplo com o judaísmo.

Católica porque possui a plenitude dos meios de salvação, destinada a ser universal no tempo e no espaço, tal como o seu fundador, Cristo, nos prometeu: “(…) sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos…” (Mateus 28, 20).

Antes de descrevermos a história da cisão e identidade de cada uma das confissões, convém dizer uma palavra sobre a génese e identidade do Cristianismo como religião entre outras religiões, em especial relativamente à que historicamente se lhe contrapôs, a religião muçulmana e, ainda antes disto, uma palavra sobre a noção de religião e para que serve.

Para que serve a religião?
Há cada vez menos pessoas religiosas. Será que a religião não serve para nada? Aparentemente, não tem uma utilidade prática no dia a dia do homem moderno atual. Porém, as estatísticas revelam que as pessoas crentes e com alguma prática religiosa, são em geral mais felizes e estão animicamente melhor preparadas para o infortúnio.

A religião é uma chamada à autotranscendência
Os antigos à noite olhavam para as estrelas e isso elevava o seu pensamento para além dos afazeres e preocupações do dia-a-dia; um olhar mais além de si mesmos e do mundo, para a transcendência, levava naturalmente a uma maior autotranscendência, o que fazia com que os homens fossem mais espirituais e menos materialistas.

Esta autotranscendência incluía uma metanoia, uma mudança, uma conversão, o ver a vida como progresso espiritual e não só material. Para muitos que vivem na pura mundanidade, o progresso é ser cada vez mais ricos. Para o homem religioso, o progresso é ser cada vez melhor, mais humano mais generoso, conquistar terreno aos defeitos, transformando-os em virtudes à luz do evangelho.

Desafortunadamente, nestes tempos modernos, os homens olham à noite para a televisão em vez de olharem para as estrelas. Esta, nas horas de maior audiência, o chamado horário nobre, apresenta os programas menos nobres. Olhar para a TV nestes tempos tem o efeito contrário do de olhar para as estrelas, porque nos imiscui mais e mais no materialismo consumista.

Ciência versus religião
Os que vivem instalados na pura mundanidade, argumentam que a religião, como teoria geral da vida e do universo, explica cada vez menos, ao passo que a ciência explica cada vez mais. Muitos até fizeram da ciência a nova religião, na fé de que ela explicará um dia tudo e erradicará a religião por completo.

Tal dia nunca acontecerá. O mistério não só envolve a identidade de Deus, mas também a do Homem, do Universo e de tudo o que nele está contido. No campo de cada ciência, o que sabemos continua a ser bem pouco do que falta saber. Não sabemos tudo acerca da biologia, da astronomia, da física, da mineralogia, ou de qualquer outra ciência positiva ou humana. Acredito que, por mais que saibamos, nunca saberemos tudo. Só Deus sabe tudo acerca de tudo. 


A ciência de facto explica muitas coisas, mas não explica o mais importante: diz-nos que, o mundo começou com um “Big Bang” mas não nos diz quem provocou essa grande explosão, ou o que havia antes dela; diz-nos que, desde essa grande explosão, o mundo continua em expansão e vai expandir-se até gastar toda a sua energia e acabar, mas não nos diz o que há para além do fim do mundo. Por fim, acima de tudo, não nos diz que sentido tem a vida, para que existimos, ou por que existimos entre o “Big Bang” e o fim do mundo.

Técnica versus espiritualidade e ética
A ciência é a teoria geral de como as coisas funcionam, a tecnologia é a sua aplicação prática em máquinas, eletrodomésticos e outras aplicações que fazem com que a vida humana no plano material seja mais fácil, confortável e aprazível.

Tal como a ciência, a religião é também a teoria geral que explica o porquê das coisas, a espiritualidade é a sua aplicação prática em técnicas de meditação e oração, exercícios psicológicos de autoconsciência, rituais, liturgias, sacramentos que contribuem para o bem espiritual da pessoa como indivíduo. A ética visa o bem-estar da mesma pessoa como ser social e parte integrante de uma comunidade.

A ciência diz-nos o como, a técnica o para quê; só a religião nos diz o porquê e só a espiritualidade nos faz mais humanos e nos descobre a felicidade, pois esta é feita mais de alegrias que de prazeres físicos.

O Cristianismo como plenitude da verdade
Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo. Hebreus 1, 1-2

Está hoje muito disseminada a ideia de que todas as religiões são iguais e valem o mesmo; para os não crentes todas são más; para os crentes todas são boas e levam à salvação; a palavra de ordem é que cada um escolha a que mais lhe convém.

É certo que todas as religiões adoram o mesmo Deus e visam humanizar o Homem. Por isso, a Igreja que já não se apresenta ao mundo como única tábua de salvação e reconhece em todas as religiões “semina verbum” pedaços fragmentados de verdade. Há, portanto, salvação sem Igreja, mas não pode haver salvação sem Cristo porque Ele, sendo Deus feito homem, é a verdade plena e, portanto, válida para todo o tempo e lugar.

À semelhança dos profetas do Antigo Testamento, os fundadores de todas as religiões, foram descortinadores da vontade de Deus e dos anseios do povo num determinado momento da sua história, liderando-o pelo caminho certo.

Cristo, mais que um profeta, ou seja, o Homem certo para um momento concreto, é o Homem certo para todo o tempo e lugar. Porque Ele, fundamentalmente, não veio fundar uma nova religião, mas sim ensinar o homem a ser homem.

Se, como observadores imparciais, compararmos as narrativas das distintas religiões, não podemos deixar de concordar que o Novo Testamento da Bíblia é a narrativa mais bonita, mais profunda e mais plena de humanidade de todos os tempos. Quer o mundo agnóstico reconheça ou não, o Evangelho é a singular narrativa do dever ser do ser humano. É o imperativo moral que melhor se adapta à natureza humana. Não existe em nenhuma outra narrativa religiosa mais humanidade que aquela que existe no Evangelho. O Evangelho contém o paradigma, o padrão da humanidade.

Como Cristo não é um profeta mais, em relação às outras religiões, o cristianismo representa um salto qualitativo e, desta forma, todas as religiões são para o cristianismo o que o Antigo Testamento da Bíblia é para o Novo Testamento.

Como Cristo, Deus feito homem, encarnou em vida o modelo mais perfeito de humanidade, Ele é a referência do ser humano; todo o que busca e se esforça por ser um homem autêntico, seja qual for o seu credo ou a sua religião, sem ter que professar a fé cristã, é com Cristo que tem de se comparar e com mais ninguém; é com Cristo que se tem de medir pois ele é o metro padrão, o paradigma o modelo, pois em ninguém mais se encontra tanta humanidade; o único caminho, verdade e vida.

Cristianismo e Islão
Tomemos como exemplo o Islão que é a religião com mais seguidores depois da cristã e com a qual chegou a vias de facto quando se viu atacado na Europa e nos lugares santos cristãos. Do ponto de vista do cristianismo, o Islão enquanto religião abraâmica, é uma versão do judaísmo ao trocar o messianismo hebraico por um último profeta, Maomé, que já veio. Há inconsistências na religião muçulmana que a faz adversa à razão; quero assinalar apenas três:

O último profeta - Se a humanidade viver mais 10 000 ou 20 000 anos, que sentido faz que o último tenha vindo no ano 524? Mais mudanças sofreu o mundo e a humanidade desde o ano 524 que em todos os milhões de anos anteriores; por que motivo então anteriormente os profetas se sucediam uns aos outros com frequência e depois do ano 524 já não são precisos mais?

No caso do Cristianismo, mesmo que a humanidade viva até ao ano 20 000, faz sentido que a revelação tenha acontecido no ano zero. Como explica o autor da carta aos Hebreus, no texto acima citado, o enviado não é, quantitativamente mais um profeta, mas sim qualitativamente o próprio Deus que vem viver entre nós.

Há aqui um salto qualitativo. Os profetas trazem mensagens para um tempo, a palavra de Deus é eterna para todos os tempos e lugares, porque Deus não precisa de falar duas vezes. Por outro lado, Cristo não é só uma palavra proferida, é uma palavra vivida e só se vive uma vez. Deus só pode encarnar uma vez, profetas houve muitos antes de Cristo e muitos tem havido e haverá depois d’Ele.

Maria, mãe e virgem - Muitos muçulmanos podem convenientemente querer esquecer que quando Maomé voltou para Meca, deu ordens para que todas as estátuas de ídolos fossem destruídas, mas ele mesmo correu para abraçar e proteger com o próprio corpo a estátua da Virgem Maria com o seu filho Jesus ao colo. O Islão atual, para marcar as diferenças com o cristianismo, ignora estes factos, mas o certo é que, até para a fé muçulmana, é o profeta Isa, Jesus, o filho da Virgem Maria, que vai voltar no último dia para julgar os vivos e os mortos.

Se para a fé muçulmana, como para nós, Maria, a mãe de Jesus é virgem, quem é o pai de Jesus? É óbvio que não pode ser José, o carpinteiro, pois se é ele, Maria não seria virgem. Por outro lado, se não é ele o pai, a Conceção de Jesus não pode ter sido natural e o pai não pode ter sido humano; se não é humano, então tem de ser obra de Deus e se é obra de Deus então Deus tem um Filho e não é como o judaísmo o concebe, um Deus solitário, mas sim como o concebe o cristianismo e como nos revelou Jesus Cristo, um Deus de amor, família, comunidade.

O monoteísmo absoluto – O Islão herdou o monoteísmo simples dos hebreus. Por isso, tanto judeus como muçulmanos, não têm forma de fundamentar teologicamente que o homem é feito à imagem e semelhança de Deus. Se Deus é amor e o amor que não sai fora de si mesmo é egocentrismo, Deus é mais que um, Deus é uma família – Pai, Filho e Espírito Santo, que em si mesmo aponta para a natureza da família humana: pai, mãe e filho(a).

Deus é uno e trino, tal como uma família humana está chamada a ser uma unidade de três pessoas, onde a existência de uma só não é possível sem a existência das outras duas; um homem não é pai sem ter uma mulher e um filho(a); uma mulher não é mãe sem ter um filho(a) e um marido; e um filho(a) não existe por si mesmo sem ter um pai e uma mãe.

Como Cristo é o modelo para a vida humana individual, a Santíssima Trindade é o modelo para a vida humana social: um modelo de paz, harmonia e amor. O judaísmo e Islão carecem de modelos ou pontos de referência teológicos para a vida em família e em sociedade, concebendo a Deus como um grande solitário.

Génese e essência do cristianismo
O cristianismo como religião tem a sua origem no ministério de Jesus de Nazaré, no primeiro século, nas províncias romanas da Galileia e da Judeia. Jesus foi visto pelos seus contemporâneos como um profeta poderoso em palavras e em obras (Lucas 24, 19); profeta porque era considerado com vindo de parte de Deus, em palavras porque era um grande orador, um rabino que por todos era tratado por mestre, em obras porque era um famoso taumaturgo que restaurou a saúde a muita gente que sofria de toda a classe de enfermidades físicas, psicológicas e morais.

No plano religioso – Jesus com a frase tantas vezes repetida, “Ouvistes o que foi dito aos antigos na lei de Moisés… mas eu digo-vos…” (Mateus 5, 21-48) Jesus contrapôs-se a Moisés, apresentando-se como o novo legislador com uma lei moralmente superior à anterior.

Substituiu os sacrifícios no templo como meio de obter de Deus o perdão dos pecados, por uma simples declaração, “os teus pecados são-te perdoados”, (Lucas 7 48). E provou em frente de todos que tinha o poder de perdoar os pecados (Mateus 9, 5).

Também afirmou que Ele e Deus Pai são um, (João 10, 30) que Ele é o representante de Deus na terra, quem o vê a Ele vê o Pai (João 14, 9). Ele é o único intercessor entre Deus e os homens e que ninguém vai ao Pai senão por Ele (João 14, 6). Assim se conclui que não há salvação fora de Cristo.

No plano escatológico – Jesus apresenta-se como filho de David, o messias que estava para vir e que os judeus esperavam. Porém, Ele é muito mais um Messias universalista à maneira de Isaías e não nacionalista como Elias, que não só reúne todas as tribos de Israel num Reino Davídico, como reúne todos os povos num só banquete, como sonhava Isaías 25, 6.

No plano individual - Jesus apresentou-se aos seus contemporâneos como paradigma de humanidade, como o único Caminho, Verdade e Vida (João 14, 6). Jesus é uma referência de humanidade, Ele é o melhor conhecedor da natureza humana e o seu caminho, a sua verdade, a sua maneira de viver a vida são os únicos que levam à felicidade e à autorrealização de todas as potencialidades que existem em nós. Não existe, no entender de Jesus, uma alternativa igualmente válida a si mesmo. Como Ele mesmo diz, “Quem não recolhe comigo dispersa” (Mateus 12, 30).

No plano social – Jesus apresenta uma alternativa a esta sociedade: o Reino de Deus. E disse que este já está no meio de nós com a sua vinda; prova disso são as obras que realiza (Mateus 12, 28). Definido na oração que Jesus ensinou como o lugar onde a vontade de Deus se faz na terra como se faz no céu, o Reino de Deus é uma sociedade onde reina a justiça, pois não há pobres nem ricos, e a paz, pois ao serem amados os inimigos tanto como os amigos, não há razão para violência nem agressividade.

Excetuando os seus discípulos, Jesus encontrou uma forte oposição, sobretudo por parte dos líderes religiosos de Israel. Estes encarregaram-se de aliciar o povo e enganar as autoridades romanas para que Jesus fosse condenado como um agitador político, o que aconteceu por volta do ano 30-33 AD.

Se depois da sua morte nada tivesse acontecido, o seu nome ficaria inscrito tanto na lista de profetas, como na dos falsos messias e agitadores políticos contrários à colonização de Roma. Tal não aconteceu: os seus discípulos testemunharam que O viram vivo depois da sua morte. O seu testemunho era tão veemente que estavam dispostos a selá-lo com a própria morte como o mestre.

Como base na Ressurreição de Jesus, os apóstolos começaram um longo trabalho de reinterpretação das escrituras, do Antigo Testamento, assim como de toda a vida, palavras e obras do mestre, tal como Ele próprio tinha feito com os discípulos de Emaús. Parte desta reinterpretação já se encontra nos evangelhos sobretudo nos mais tardios. A outra é reflexão da Igreja sobre a identidade de Jesus de Nazaré, o que levou 5 séculos e vários concílios a ser definida.

A Igreja, ou o cristianismo nos primeiros séculos da sua existência
Antes do Concílio de Niceia, à era apostólica seguiu-se a era dos padres da Igreja: Inácio de Antioquia, Policarpo, Justino, Ireneu, Tertuliano, Clemente de Alexandria e Orígenes, helenistas cultos que trataram de divisar a verdadeira natureza de Jesus, assim como do mistério da Santíssima Trindade.

Como é natural, “cada cabeça, sua sentença”, surgiram várias teorias sobre estes dois temas, a mais importante das quais foi o Arianismo que negava a divindade de Jesus. Esta heresia foi condenada pelo primeiro Concílio de Niceia (325) e pelo primeiro de Constantinopla (381) e assim se produziu o credo de Niceia. No ano 380, com o Édito de Tessalónica, o cristianismo trinitário transformou-se na religião oficial do império romano.

Quando a identidade de Jesus já estava mais ou menos clara, ao buscar-se a clarificação da identidade de Maria, sua mãe, reabriu-se o tema da identidade de Jesus outra vez. Antes do Concílio de Éfeso, alguns já afirmavam que Maria era mãe de Deus; porém, Nestório, o patriarca de Constantinopla achava que Maria só podia ser mãe da parte humana de Jesus.

Convocou-se o Concílio de Éfeso que define Maria como mãe do todo e indivisível Jesus nas suas duas naturezas; Nestório foi apelidado de herege e deixou a Igreja. Porém, pelo lugar que ocupava, muitas igrejas do Oriente separaram-se de Roma.

Depois da morte de Cirilo de Alexandria, o forte oponente de Nestório que entendia que as duas naturezas de Cristo não estavam unidas na mesma pessoa, surgiu um monge chamado Eutíquio que ao combater o nestorianismo nas suas fileiras, acabou por afirmar uma doutrina contrária ao arianismo, o docetismo. Segunda esta corrente, se pelo arianismo Cristo não possuía natureza divina, no docetismo não possuía natureza humana: era humano só na aparência.

Foi convocado o Concílio de Calcedónia, no ano 451 para dirimir a questão e este definiu mais uma vez as duas naturezas humana e divina unidas na mesma pessoa de Jesus, pelo que a Igreja de Alexandria, que se transformou na Igreja Copta do Egito, Etiópia e Eritreia se separou do resto da Igreja.

Por fim, em julho de 1054 dá-se o grande cisma da Igreja coincidente com a divisão do império romano entre o oriente, com sede em Constantinopla, e o ocidente, com sede em Roma. A última gota nesta polémica deu-se quando, em 1053, as Igrejas gregas do sul da Itália foram obrigadas a latinizar-se. Em retaliação, as Igrejas latinas de Constantinopla foram fechadas. Outras disputas surgiram, como a celebração da eucaristia com pão levedado ou não levedado, e o primado do Papa sobre todas as Igrejas.

IGREJAS ORTODOXAS
A Igreja Ortodoxa é considerada a herdeira de todas as comunidades cristãs na metade oriental do Mediterrâneo. Posteriormente, foi-se espalhando por toda a Europa oriental graças ao prestígio do império bizantino e ao trabalho dos missionários.

Hoje há cerca de 300 milhões de cristãos ortodoxos membros de 14 Igrejas nacionais autocéfalas. A Igreja ortodoxa inclui Igrejas ortodoxas da Rússia, Roménia, Grécia, Sérvia, Bulgária, Bielorrússia, Moldávia, Geórgia, Macedónia e Chipre, entre outras. Vale a pena referir que, para a maioria dos cristãos, os ortodoxos residem na Europa oriental, na Rússia, no Médio Oriente e nos Balcãs.

As primeiras dioceses ou patriarcados da Igreja
O cristianismo difundiu-se rapidamente por todo o império romano, graças à facilidade de viajar nas estradas romanas e à Pax Romana que o império estabeleceu e garantiu. Como os primeiros cristãos eram judeus, fora de Israel, as primeiras comunidades cristãs também se formaram onde havia muitos judeus.

Até o próprio Paulo nas suas viagens vai onde há judeus e prega nas suas sinagogas. Estes primeiros núcleos de cristãos foram mais tarde chamados de dioceses e, ainda mais posteriormente, patriarcados. Por serem cinco, estes patriarcados ou dioceses foram também apelidados de pentarquia. Por ordem de importância e estrato no mundo antigo são estas: Roma, Alexandria, Antioquia, Constantinopla, Jerusalém.

Roma – A importância desta cidade no mundo antigo advém primeiro do facto de ser a capital do império romano. No seio da Igreja, era a sede de Pedro e Paulo, pois foi ali que foram martirizados e sepultados. Por estas razões, no universo cristão antigo, antes de qualquer cisma, Roma era considerada pelas outras dioceses ou patriarcados como “primus inter pares”. Convém dizer que nos primeiros séculos da Igreja não existia a ideia do primado de Pedro, no sentido de ter um poder jurídico e executivo sobre as demais Igrejas.

O poder supremo da Igreja não era o sucessor de Pedro, mas sim os concílios ecuménicos que se iam realizando. Do concílio de Constantinopla, no ano 381, surge a ideia de Pentarquia, as cinco sedes mais importantes do cristianismo; nesta lista, Roma aparece em primeiro lugar, sendo-lhe reconhecida a tarefa de ser o centro de comunhão entre as igrejas.  

Alexandria – Juntamente com Roma e Antioquia é uma das sedes mais importantes do cristianismo antigo. Corresponde hoje à Igreja Copta que nasceu do cisma depois do concílio de Calcedónia. Segundo a tradição, foi fundada no ano 42 pelo evangelista S. Marcos. Até ao cisma posterior ao concílio de Calcedónia, era a diocese mais importante a seguir a Roma.

Antioquia – Era a quarta cidade do império romano, a capital do oriente. Foi também provavelmente a primeira comunidade cristã fora de Israel. Aqui nasceu o nome de Igreja católica e aqui os seguidores de Cristo foram pela primeira vez chamados de cristãos. A autoridade eclesiástica desta diocese estendia-se à Cilícia, Mesopotâmia, Síria, Palestina e Chipre, Palestina e Arábia. Pensa-se que foi em Antioquia que nasceu o evangelho de S. Mateus.

Constantinopla – É o quarto patriarcado por ordem de importância no mundo antigo; o patriarca era eleito pelo patriarca de Antioquia. O poder de Constantinopla cresceu depois de Constantino designar aquela cidade como a capital do império do Oriente. Assim, enquanto os outros patriarcados do Oriente foram definhando pelo assolamento dos muçulmanos, Constantinopla cresceu enquanto durou o império de Bizâncio.

Jerusalém – Nascida diretamente da sala de cima onde tinha sido celebrada a primeira Eucaristia, Jerusalém é certamente a primeira comunidade cristã. Teve como líder Tiago, o Menor, irmão do Senhor. Dali partiram os apóstolos para levar a boa nova a outras partes. E ali voltaram para celebrar o primeiro Concílio da Igreja quando ainda eram vivos os apóstolos. Depois aconteceu a revolta dos judeus e a destruição de Jerusalém pelas legiões de Tito. Jerusalém como patriarcado nasceu apenas depois do Concílio de Calcedónia, no ano 451. Jerusalém é a primeira comunidade cristã, mas não o primeiro patriarcado.

Separação lenta e progressiva
A separação da Igreja oriental e ocidental em 1054 foi o sancionamento de uma separação que já existia e que ia crescendo com a passagem dos séculos. Vejamos alguns dos fatores, culturais, políticos e teológicos que foram as causas remotas da separação da igreja oriental da ocidental.

Fatores culturais – A língua é a alma de uma cultura; no oriente mais culto, falava-se o grego; todo o Novo Testamento foi originalmente escrito em grego. No ocidente mais ignorante, falava-se o latim, a língua-mãe dos romanos.

Fatores políticos – A transferência da capital do império da cidade de Roma para Constantinopla, no século IV.

Fatores teológicos – O ocidente modificou o credo de Niceia, dizendo que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, não só do Pai como dizia originalmente o credo de Niceia. Roma acusa os ortodoxos de serem monofisistas, tanto arianos como docetistas.

Os Patriarcados ortodoxos
A Igreja ortodoxa, está dividida em patriarcados entre os quais há igualdade. O patriarcado de Constantinopla, que Bartolomeu ocupa atualmente, é considerado "primus inter pares", o primeiro entre iguais. Por razões históricas, Bartolomeu tem uma certa preeminência sobre todas as igrejas ortodoxas, mas não tem jurisdição sobre elas. Além disso, o seu patriarcado, sediado em Istambul e com cerca de 10 000 fiéis, não tem o peso do de Moscovo que, com Kiril ao leme, conta com cerca de 120 dos 300 milhões de crentes ortodoxos.

Depois destes que são os mais importantes, estão os históricos de Antioquia e Alexandria e tantos outros, como dissemos são 14 as igrejas ortodoxas e cada uma delas tem um patriarca à cabeça. O termo patriarca é usado nas igrejas orientais, mas nem todos os patriarcas são ortodoxos. Há alguns patriarcas latinos no oriente e até no ocidente, como o de Lisboa e o de Veneza.

Os últimos esforços de ecumenismo
Ao sair à varanda da Praça de São Pedro, o Papa recém-eleito em 13 de março de 2013, Francisco, simplesmente se apresentou como "Bispo de Roma". Isto agradou aos ortodoxos que entendem a Igreja como um conjunto de dioceses autónomas, não centralizadas em Roma. Por isso, pela primeira vez na História, o Patriarca de Constantinopla participou na investidura de Francisco como Papa.

O facto não passou desapercebido em Moscovo pelo que, em novembro de 2014, o Papa estendeu a mão a Kiril: "Irei onde quiser, ligue-me e eu vou”. A 12 de fevereiro de 2016, o Papa e o patriarca da Igreja ortodoxa russa encontram-se pela primeira vez em quase mil anos.

No mundo globalizado e em forte intercomunicação, as diferenças culturais e linguísticas já não são importantes; as teológicas ainda podem ser um pouco, mas, com as Igrejas ortodoxas, é muito mais o que nos une que o que nos divide; os diferentes ritos e formas de celebrar a eucaristia também não são um problema pois há católicos de rito bizantino.

O grande problema é o primado de Pedro que, de alguma forma, a Igreja ortodoxa aceita e não pode negar, como querido por Jesus. Na aplicação prática deste primado que não foi especificada por Jesus, reside o problema.

O problema de autoridade existe já no seio das Igrejas ortodoxas, pois não têm uma pessoa que fale pela ortodoxia. A divisão entre as diferentes Igrejas ortodoxas talvez seja o maior problema da união com Roma. Levaram 55 anos a convocar um sínodo (a que na Igreja católica se chama concílio) que finalmente se celebrou na ilha de Creta em junho de 2016. Esta deveria ter sido a maior reunião de líderes ortodoxos desde o ano 787 AD e, no entanto, quatro denominações ortodoxas, entre elas o Patriarcado de Moscovo que tem o maior número em fiéis, não participaram. 


IGREJA CATÓLICA
Depois da partição em duas da Igreja de Cristo, a Igreja católica dedicou-se a evangelizar o ocidente, a Ortodoxa o Oriente, a parte oriental da Europa e a Rússia. Esta última nunca se aventurou no resto da Ásia, Mongólia, China e sul da Ásia, Índia. Todos estes territórios foram mais tarde evangelizados pela Igreja Católica ocidental por via marítima, assim como todo o continente americano e africano. Mais evangelizadora ou mais proselitista, a Igreja católica cresceu até aos atuais 1 200 milhares de milhões, o que, de alguma forma, dificulta o ecumenismo com os ortodoxos.

Temos vindo a falar na Igreja católica no confronto com as ortodoxas e continuaremos a falar dela no confronto com as Igrejas protestantes. Por isso, não me vou demorar muito na descrição desta Igreja que, mesmo na mais radical ortodoxia, goza de um certo primado honorífico, embora não legislativo nem executivo.

Do ponto de vista dos católicos, os ortodoxos abandonaram a Igreja; do ponto de vista dos ortodoxos, foram os católicos que a abandonaram. Esta ideia pode ser válida no caso da cisão protestante, mas não no caso da cisão com a ortodoxia. Como historicamente o Papa Leão IX excomungou o patriarca ortodoxo Miguel Cerulário e este excomungou o Papa, o que se deu foi uma partição em duas da Igreja que Cristo fundou, e não uma que saiu da outra.

A única questão relevante para este artigo é a que divide não só a Igreja católica da ortodoxa, mas também da protestante: o primado de Pedro, o seu significado histórico, a interpretação e aplicação presente e futura do cristianismo como religião universal.

O primado de Pedro nos evangelhos e nos Atos dos Apóstolos
Pretender negar a primazia de Pedro sobre os demais apóstolos é colocar de lado um elevado número de passagens dos evangelhos, dos Atos dos Apóstolos e até das cartas paulinas. As negações dos teólogos, tanto ortodoxos como protestantes, em relação ao primado de Pedro tal como nos é apresentado na Palavra de Deus, não pode não ser ideológica, ou seja, não pode pretender justificar a autocefalia ortodoxa e a acefalia protestante.

Nos Evangelhos, Jesus destaca a Pedro e confere-lhe autoridade
•    É um dos primeiros a ser chamado por Jesus: Marcos 1, 16; João 1, 40-42
•    É sempre o primeiro da lista dos 12: Mateus 10, 2
•    Faz parte do círculo íntimo de Jesus: Marcos 5, 37; 9, 12; 13, 3; 14, 33
•    Hospeda-se na casa de Pedro: Marcos, 1,29
•    A sogra de Pedro é o único familiar de apóstolo que ele cura: Lucas 4, 38-40
•    Sobe à barca de Pedro e a partir dela prega à multidão no lago: Lucas 5, 1-11
•    Caminha sobre a água, embora a falta de fé quase o tenha afundado: Mateus 14,28
•    Foi ele o primeiro a ver em Jesus o Messias: Mateus 16, 16; Lucas 9, 20
•    Sobre a rocha de Pedro é edificada a Igreja: Mateus 16,18
•    A Pedro foram dadas as chaves do reino: Mateus 16, 19
•    Porta-voz do grupo em muitas ocasiões: Mateus 16,22; 17,24; 18, 21; João
•    Negou a Jesus porque foi o único que o seguiu à distância: Marcos14, 54
•    Jesus diz a Pedro que ampare a fé dos seus irmãos: Lucas 22, 31-62
•    Jesus diz às mulheres que deem a notícia da sua Ressurreição a Pedro: Marcos 16,7
•    É um dos que corre ao sepulcro: Lucas 24, 12
•    Jesus aparece a Pedro depois da Ressurreição: Lucas 24, 34
•    Protagonista da pesca milagrosa: João 21, 11
•    Jesus pergunta-lhe se O ama e ordena-lhe que apascente as suas ovelhas: João 21, 15-19

Nos Atos dos Apóstolos, Pedro atua segundo a autoridade que lhe foi conferida por Jesus
•    Pedro fala aos 11 instando-os a elegerem o substituto de Judas: Atos 1,15
•    Prega ao povo como Jesus no dia de Pentecostes e outras ocasiões: Atos 2, 1-36; 3, 12-25; 4,8
•    Cura como Jesus: 3, 1-10
•    Porta-voz dos apóstolos diante do Sinédrio: Atos 4, 19
•    Repreende Ananias, Safira e Simão, o mago: Atos 5, 3-9; 8, 20
•    Recebe do Espírito Santo a inspiração para evangelizar os gentios: Atos 10
•    Preside ao Concílio de Jerusalém onde faz valer a sua inspiração sem a impor: Atos 15, 7

S. Paulo, o maior dos apóstolos, reconhece a autoridade de Pedro
•    Paulo vai a Jerusalém para conhecer a Cefas e fica com ele 15 dias: Gálatas 1, 18-19
•    Paulo confronta Pedro precisamente porque reconhece a sua autoridade: Gálatas 2, 11-13
•    Paulo diz que Jesus primeiro apareceu a Pedro depois aos 12: 1 Coríntios 15, 5
•    Paulo diz que Pedro é evangelizador dos circuncisos e dos incircuncisos: Gálatas 2, 7-8

Até onde pode ser aceite pela Igreja Ortodoxa
Porque Pedro viveu e foi mártir em Roma onde repousam os seus restos mortais, a Igreja ortodoxa aceita que o sucessor de Pedro tenha um primado de honra sobre todas as outras igrejas, mas sem poder jurídico ou executivo. A sua incumbência é ser a cabeça visível da Igreja para manter a sua unidade.

Este seria o valor, tanto para católicos como ortodoxos e protestantes, do sucessor de Pedro como centro visível de unidade, representante de Cristo, cabeça do corpo místico de Cristo que é a Igreja. De alguma forma para o mundo civil, o Papa, mais que outro patriarca ou bispo protestante, é quem verdadeiramente representa a religião cristã, é o seu ex libris.

Como poderia ser vivido?
Se quisermos ser fiéis à tradição da Igreja, teremos de concordar com os ortodoxos que defendem que a autoridade máxima da Igreja desde o princípio é o concílio. Os primeiros dogmas da Igreja nasceram nos Concílios e só um concílio, não um Papa, tem o direito de definir um dogma como verdade intemporal da fé. Se assim é, temo que a infalibilidade hoje conferida ao sucessor de Pedro deveria ser transferida para os concílios ecuménicos.

O poder de monarca absoluto da Igreja vai contra a tradição da Igreja e não é conveniente para ortodoxos, protestantes ou católicos. À luz da divisão dos poderes nas democracias ocidentais em Legislativo – Jurídico – Executivo, entendemos que o poder legislativo deveria pertencer exclusivamente aos Concílios Ecuménicos. O Papa ficaria com os outros dois, num âmbito de uma maior colegialidade e autonomia das dioceses.

IGREJAS PROTESTANTES
Uma união de pessoas, um grupo, uma empresa, uma instituição serão sempre uma unidade na diversidade. A diversidade psicológica dos indivíduos ou a diversidade cultural das sociedades é inegável. Apesar do império romano se ter partido em dois, a Igreja permaneceu unida durante séculos; apesar de o Oriente mais culto falar grego e o Ocidente menos culto falar latim, a Igreja permaneceu unida.

Os fatores políticos e culturais nunca são decisivos nas separações e nos cismas. Como não é possível explicar a II Guerra Mundial sem a pessoa de Hitler, nem a revolução bolchevique sem a pessoa de Lenine, não se pode explicar a partição da Igreja entre o Oriente e o Ocidente sem as personalidades de Leão IX que procurou um poder que não lhe pertencia, segundo a tradição da Igreja, e a retaliação do Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário.

Da mesma forma, o cisma no Ocidente entre o Norte, que se transformou em protestante, e o Sul que permaneceu católico, não se deu nem se daria sem Martinho Lutero. Este era um monge católico que aceitava fundamentalmente toda a doutrina católica, até mesmo os dogmas marianos. As diferenças teológicas não são o móbil do cisma, estas aparecem mais tarde para justificar a existência das novas Igrejas criadas; é o tal narcisismo das pequenas diferenças que muito bem explica Freud psicanaliticamente.

Solus Christus sola fede sola scritura – Não foi seguida nem pelo próprio autor, Lutero. Se considerarmos que a tradição é a vida e reflexão da Igreja ao longo dos tempos, desde a morte e Ressurreição do Senhor, então a tradição não são só os concílios da Igreja, a definição das duas naturezas de Cristo e da natureza trinitária de Deus, que os protestantes aceitam. A mesmíssima Bíblia é filha da tradição, pois não caiu dos céus como acreditam os muçulmanos que o Alcorão caiu, mas surgiu e reflete a vida das comunidades ondes os textos nasceram.

O Antigo Testamento nasce da vida, história e tradição do povo hebreu; o Novo Testamento nasce da vida das primeiras comunidades cristãs. Sem estas, não haveria evangelhos. S. Paulo e os outros apóstolos escrevem a comunidades concretas e, nas suas cartas, respondem aos problemas destas mesmas comunidades.

Como é mais o que nos une, e como o que nos divide é, de alguma forma, circunstancial, e ainda como as razões teológicas que moveram Lutero a dividir a Igreja foram já assimiladas por esta mesma como a justificação pela fé e não pelas obras, não vou fazer nenhum panegírico do que nos divide, pois é mais o que nos une. Quero apenas centrar-me na personalidade de Lutero e compará-la com outro reformista como Francisco de Assis.

Francisco de Assis e Lutero
A reforma de Francisco de Assis tinha como objetivo a santidade, a reforma de Lutero tinha como objetivo a crítica. Henri De Lubac

Francisco e Lutero foram os dois reformadores da Igreja. A reforma de Francisco, devido à sua humildade e paciência para com o Papa e as estruturas corruptas da Igreja, foi aceite; a de Lutero, devido ao seu orgulho e impaciência para com o Papa e as estruturas corruptas da Igreja, foi inicialmente rejeitada, mas o que nela havia de bom foi aceite mais tarde, já no concílio de Trento.
Tanto o Papa Inocêncio III, na época de Francisco, como o Papa Leão X na época de Lutero viviam sumptuosamente rodeados de luxo e corrupção. A humildade de Francisco levou-o a ser paciente e esperar. O Papa rejeitou Francisco e, com desdém, disse-lhe que se fosse deitar com os porcos. Podendo refutar o Papa apelando ao evangelho, e até mesmo puxar dos galões da sua pobreza evangélica em radical contraste com a extravagância da corte papal, Francisco tomou à letra o desdém papal e foi mesmo deitar-se com os porcos.

Francisco não negou a autoridade do Papa como sucessor de Pedro. Pacientemente, seguiu o caminho de Cristo, deixou-se ser incompreendido e caluniado, sabendo que Deus tarde ou cedo o reivindicaria… coisa que Deus sempre faz. Chamado pelo mesmo Papa depois do famoso sonho em que este viu como Francisco sustinha a Igreja que caía em ruínas, apresentou-se sujo e a cheirar mal. Entendeu o Papa que estava perante um Santo que tinha sido obediente até à humilhação e aprovou a sua obra.

Ao contrário de Francisco, Lutero não visitou Roma para a confirmação da sua causa, nem reconheceu a autoridade do Papa como sucessor de Pedro, ou respeitou as estruturas da igreja. De facto, a sua impaciência levou-o a não confiar na providência divina para orientar a Igreja e efetuar as reformas que ele queria, no tempo de Deus e não de acordo com a sua agenda.

Infelizmente, Lutero mostrou-se inflexível. Rejeitou o diálogo e, como o Papa não concordou com ele, rejeitou o papado. No seu orgulho, Lutero não tolerava nenhuma autoridade que não o apoiasse imediatamente e sem questionar. Consequentemente, quando chegou a bula, Lutero queimou-a publicamente e começou a insultar o Papa como sendo o anticristo.

A História mostra que Deus não usa iracundos para conduzir a sua Igreja pelo caminho da paz e retidão. Deus escolhe aqueles que são pequenos, mansos e humildes – pois desses é o Reino dos Céus. Ironia do destino, a Igreja fundada pelo Cordeiro de Deus, manso e humilde de coração, foi por parte do papado, dilacerada por dois leões: Leão IX em 1054, no cisma entre o Oriente e o Ocidente, e Leão X em 1517, entre os protestantes do Norte e os católicos do Sul.

Conclusão: Todo o cristão de boa vontade deseja que a Igreja que Cristo fundou continue unida como nos tempos apostólicos. Decerto que é o que Cristo quer ainda hoje para a sua Igreja. Com a autocefalia ou acefalia das Igrejas ortodoxas, assim como a anarquia das muitas pequenas e divididas Igrejas protestantes, não damos um bom testemunho perante a sociedade civil, nem prestamos um bom serviço ao evangelho.

Não é possível nenhum tipo de unidade sem uma cabeça visível como ponto de referência de todo o cristão. Essa cabeça visível era Pedro nos tempos apostólicos, deve ser o sucessor de Pedro nos nossos tempos. Uma cabeça visível esvaziada de todo o tipo de autoridade, por pequena que seja, é tão insignificante como a rainha de Inglaterra que reina, mas não governa. Nos textos acima citados, vemos que Pedro exercita uma certa autoridade e chega até a repreender Ananias e Safira.

Como houve na História da Igreja pessoas que buscaram a discórdia e a divisão, haja agora pessoas que, reunidas em comissões ecuménicas, possam encontrar a fórmula do primado de Pedro, onde todos os cristãos se revejam, de acordo com a tradição da Igreja.

Pe. Jorge Amaro, IMC







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