1 de julho de 2018

CNV - Um mundo de girafas e chacais

Marshall Rosenberg conducting a workshop
Tomei o livro das mãos do anjo e comi-o: na minha boca era doce como mel; mas, depois de o comer, as minhas entranhas encheram-se de amargura. Depois, disseram-me: «É necessário que continues a profetizar contra muitos povos, nações, línguas e reinos.» Apocalipse 10, 10-11

Marshall Rosenberg (1934-2015)
O fundador da Comunicação Não-violenta, ao dar-se conta do potencial desta nova língua, para mudar a mente o coração das pessoas com vista a estabelecer novas relações e definitivamente construir uma sociedade nova de harmonia e paz, decidiu que este deveria ser o seu contributo para a humanidade, a sua missão, a sua luta pessoal. Por isso, abandonou o seu consultório de psicoterapeuta para se lançar na aventura e missão de espalhar a boa nova da comunicação não violenta. Dentro dos Estados Unidos, conduziu milhares de quilómetros para fazer workshops nas principais cidades, acampando fora da cidade e dormindo no carro a fim de tornar os workshops disponíveis e acessíveis para todos.

O sucesso destes workshops fez com que rapidamente Rosenberg trocasse o seu velho carro pelo avião, levando esta nova linguagem de paz a mais de 50 países, dando o seu contributo para a resolução de conflitos crónicos como o da Irlanda do Norte, de Israel e da Nigéria, entre outros. Estabeleceu escolas Girafa, como ele lhes chamava, para que as crianças do futuro fossem educadas nesta nova língua e filosofia de vida. A clarividência das suas ideias, o dom da palavra e o seu sentido de humor arrebatavam multidões. Facilmente conquistava mentes e corações para a sua causa.

Parafraseando o livro do Apocalipse no texto acima citado, o sabor da CNV na boca é doce como o mel; ou seja, facilmente nos delicia, entusiasma e nos dá esperança de com ela nos podermos transformar interiormente, de transformar o nosso pequeno mundo e, eventualmente, o mundo em geral. Porém, quando a ruminamos ou digerimos, damo-nos conta que não é fácil substituir, de um momento para o outro, uma língua que já cá anda há milhares de anos e na qual fomos educados, formados e até formatados.

A digestão desta língua é difícil porque os nossos estômagos não têm os ácidos necessários para a decompor e assimilar. Requer tempo e quando eventualmente começamos a usá-la, não sai automaticamente como a linguagem violenta reativa provinda do nosso cérebro reptílico. Leva tempo e, frequentemente, temos de parar o jogo e pedir um intervalo, como os treinadores num jogo de basquete, tempo para nos ligarmos ao neocórtex, ao cérebro que é autenticamente humano e produto da evolução. Desta forma, é uma linguagem que parece artificial, como se estivéssemos a ler o texto de um livro, seguindo normas precisas.

Mas assim tem de ser até se transformar numa segunda natureza. Aprender CNV é como aprender uma língua estrangeira: precisamos de pensar para falar e precisamos de aprender a nova gramática que é bem diferente da gramática da linguagem violenta. A CNV é de facto simples de aprender, mas não é fácil de integrar na vida diária, não é fácil de encarnar e usar na vida do dia a dia, requer tempo e paciência.

Para simplificar a aprendizagem desta nova língua e mostrar as diferenças entre duas línguas ou dois estilos diferentes de comunicação e filosofia de vida, Rosenberg usava dois animais como mascotes. A comunicação violenta foi representada pelo carnívoro Chacal, símbolo de agressão, domínio e autocracia; a não violenta pela herbívora Girafa, por ser pacífica e ter o maior coração de todos os animais terrestres.

O Chacal
A célula da sociedade Chacal é composta por um casal monogâmico, que defende o seu território de potenciais agressores. Estes territórios são defendidos vigorosamente, perseguindo e expulsando rivais intrusos, delimitando o seu território com urina e fezes.

Representa a linguagem que o mundo tem usado desde o mito babilónico da criação. Desde a infância, a nossa cultura ensina-nos a falar "Chacal", uma linguagem autocrática coerciva, agressiva que provoca submissão ou resistência e contra-ataque.

Por ser uma linguagem estática, combina vai bem com a antiga física mecanicista de Newton, para quem a natureza com as suas leis era de facto estática e funcionava com a precisão de um relógio suíço; para a nova física, a física quântica, as leis da natureza têm exceções; aliás o princípio de incerteza de Heisenberg demonstra que são tantas as exceções quanto as regras. Até a nova medicina demonstra que o mesmo medicamento não tem o mesmo efeito em pessoas diferentes e até já se pensa em criar medicamentos para homens e medicamentos para mulheres.

Para os chacais, as pessoas têm uma identidade fixa que não está em evolução nem pode converter-se. Mas a verdade é que somos um ser em construção, pelo que não somos classificáveis nem rotuláveis.

Em geral, a linguagem do chacal é caracterizada por tentativas de forçar a realidade a caber em caixas estáticas: “do que deveria ser” e “o que não deveria ser”, “o que é errado”, “o que é certo”, “o que as pessoas são” ou “o que não são”. Vive no mundo das ideias e análises de casualidades passadas ou do que deveria ser o futuro, raramente vive o momento presente.

A Girafa
É o símbolo ou mascote dos que usam esta nova linguagem não violenta, o idioma do mundo do futuro. Do ponto de vista do cristianismo, que é na sua génese uma religião não-violenta, porque o seu fundador foi quem desafiou a violência do sistema dominante, acreditamos ser o idioma que se fala no Reino de Deus, que se define como justiça, paz e integridade da criação.

A girafa é o animal terreste que tem o maior coração – representa a compaixão que é o fundo e a forma da CNV. A compaixão é algo natural que todos os seres humanos têm; por isso, quando somos compassivos com o violento, desarmamo-lo da sua violência e ajudamo-lo a ligar-se à sua compaixão natural, que reside lá bem no fundo do seu coração e da qual vive desligado. A personagem Scrooge do conto de Natal de Charles Dickens demonstra esta verdade.

O seu pescoço longo dá-lhe uma visão mais ampla e lúcida – a Girafa tem de facto um coração grande, pois este tem de bombear o sangue até à sua cabeça, lá bem no alto. Uma cabeça tão alta, dá-lhe a possibilidade de ver tudo desde cima, com um ângulo de visão mais amplo que qualquer outro animal. Os que falam a linguagem não violenta são objetivos nas suas observações, que conseguem colocar num contexto maior; se há algo que a girafa não tem é uma visão de túnel, pois esta é mais própria do Chacal.

Consegue comer e digerir espinhos -  a girafa tem uma língua forte, dura, com uma textura semelhante a borracha ou plástico. Isso significa que ela consegue mastigar espinhos sem se magoar. Traduzido em termos humanos, isto significa que, quando somos girafas, somos capazes de “mastigar” as palavras agressivas dos Chacais, as críticas destrutivas e os insultos, transformando-as em alimento inofensivo que não nos faz mal. Mais propriamente em necessidades insatisfeitas e na frustração pela sua insatisfação.

Girafa versus Chacal: ganha a Girafa
 Como podemos ver na foto que ilustra este texto, nas suas conferências e workshops, Rosenberg usava os dois símbolos - da Girafa e do Chacal -  como fantoches, demonstrando assim de uma forma prática os dois estilos de comunicação em confronto.

Como este tem sido até agora um mundo de chacais, todos nascemos chacais, mas todos estamos chamados a ser girafas. Todas as girafas foram chacais, pelo que todos os chacais podem ser girafas. Toda a girafa tem um passado de chacal, todo o chacal tem ou pode ter um futuro de girafa.

Ante um ataque externo em forma de insulto, avaliação negativa ou crítica destrutiva, o chacal só tem duas alternativas, que fundamentalmente são as que nos dá o nosso cérebro reptílico: luta -rebela-se - vinga-se ou foge -  esconde-se - submete-se. O chacal devolve a acusação, acusando o outro ou aceita a acusação, acusando-se a si mesmo e sentindo-se culpado.

A girafa usa compaixão e empatia, tanto para consigo mesma como para com o outro; para consigo mesma fazendo-se eco e tendo consciência dos sentimentos e das necessidades que a invetiva negativa do outro lhe provocou, expressando-os honestamente; para com o outro, procura entender os sentimentos e as necessidades por trás da acusação, entrando em diálogo com o outro, fazendo pedidos de esclarecimento e de conexão.

Quando ouvimos com ouvidos de girafa, escutamos os sentimentos e as necessidades de quem fala, independentemente das palavras que ele usa. Procuramos não esquecer que satisfazer as próprias necessidades que são universais, é o único objetivo de tudo o que qualquer ser humano diz ou faz.

Usar orelhas de girafa externamente torna a vida muito mais fácil: onde antes ouvíamos críticas e ataques pessoais, agora ouvimos alguém expressando as suas necessidades. Usando as mesmas orelhas internamente connosco mesmos, onde antes ouvíamos dúvidas, autocrítica, autoacusação e culpabilização, agora ouvimos sentimentos e necessidades.



CHACAL - aliena a vida
GIRAFA - serve a vida
Objetivo
Estar certo. Obrigar os outros a fazer o que eu quero.
Ligar-se com os outros empaticamente, compreendê-los.
Avaliações
Juízos morais (bom/mau, certo/errado). Pensamento dualístico (ou… ou…).
Juízos que servem a vida (necessidades satisfeitas ou insatisfeitas).
Motivações
Extrínsecas (prémios e castigos).
Intrínsecas (sentimentos necessidades, valores).
Génese dos sentimentos
Causados por ações externas, pessoas e acontecimentos.
Necessidades insatisfeitas, as nossas ou as dos outros.
Modo de buscar segurança
Pela obediência hierárquica.
Ligação afetiva aos outros; o afetivo é eficaz.
Relações com os outros
Hierárquicas, sistema de castas, poder sobre homo homini lupus, classes sociais, perder – ganhar.
Igualdade, fraternidade, poder com “todos a ganhar” win-win. Satisfazer as necessidades de todos.
Génese da autoridade
Externa, governo, igreja, patrão, pais, professores.
Interna, de origem divina.
Cede por
Sentimento de culpa, vergonha ou ira.
Compaixão ou alegria.
Quer que os outros sintam a sua dor…
Causando dor aos outros.
Pedindo empatia aos outros.
Imagem dos outros
Vilão que merece castigo ou herói que merece um prémio; como
um objeto ou meio para um fim.
Autenticamente humano.
O que necessita, o que nele está vivo, pessoa como fim em si mesma.
Focado
Comportamentos e atos passados, acontecimentos futuros.
No momento presente.

A Girafa tem dois modos básicos de atuar:
Escuta-se si e aos outros com empatia – “Quando vês/ouves…” (observação) “Sentes-te…?” (sentimentos), “Porque precisas…?” “Gostarias de…?”

Expressa com honestidade - “Quando vejo/ouço…” (observação) “Sinto…?” (sentimentos), “Porque preciso…?” “Estarias disposto a…?”

A girafa faz observações objetivas, expressa e responsabiliza-se pelos próprios sentimentos, reconhece e identifica as suas necessidades e, com base nestas, faz pedidos realistas e viáveis. Ao contrário, o Chacal, não observa, avalia, não sente, pensa, confunde necessidades com estratégias e dá ordens em vez de fazer pedidos.

Traduzir agressividade verbal em necessidades
Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra. Isaías 2, 4

Funcionando em modo Girafa há sempre duas formas de ligação aos outros e a nós próprios. Voltando as orelhas para si mesma, a girafa dá-se conta dos próprios sentimentos e necessidades; voltando as orelhas para os outros, dá-se conta das necessidades e sentimentos dos outros.

Ante um ataque verbal à nossa pessoa, dentro da linguagem violenta que imita o cérebro reptílico, a resposta é simples: ou te revoltas ou te submetes. Para a CNV há uma terceira via: a de nos responsabilizarmos pelo que ouvimos, desligando o nosso cérebro reptílico, respirando fundo, colocando os nossos olhos em visão raio X para podermos ler nas entrelinhas do que foi dito e aí descobrir, as necessidades insatisfeitas, a fim de traduzirmos a mensagem dessas necessidades. Vejamos no seguinte exemplo:

“És a pessoa mais egoísta que já conheci!
  1. O Chacal externo - culpa os outros e contra-ataca – culpa o seu interlocutor dizendo, “Tu não tens o direito de dizer isso, sempre fui atencioso, o egoísta és tu.”
  2. O Chacal interno – culpa-se a si mesmo submete-se: toma para si e aceita o julgamento da outra pessoa, culpando-se a si mesmo (culpa, vergonha, depressão) e afirmando: " Desculpa, eu deveria ter sido mais ponderado!"
  3. A Girafa interna faz-se consciente dos seus próprios sentimentos e necessidades – “Ao ouvir-te chamar-me egoísta, sinto-me magoado pois necessito de algum reconhecimento pelos meus esforços em ser atencioso para com as tuas preferências..."
  4. A Girafa externa deteta os sentimentos e necessidades dos outros - "Sentes-te magoado porque necessitas de mais consideração pelas tuas preferências?"
Em poucas palavras, o Chacal é egoísta, usa e abusa dos pronomes pessoais, “Eu” “…me” “Eu mesmo”. A girafa é altruísta e usa o pronome Nós. A prioridade do chacal é estar certo pelo que o outro está errado, como quer sempre ganhar, o outro tem de aceitar a derrota:

A prioridade da girafa é ligar-se a outro de forma a que ambos ganhem; a girafa aceita o problema como sendo de ambos e busca uma solução válida para ambos. O chacal está mais interessado em ganhar que em genuinamente resolver o problema; em caso de ataque, o chacal sente-se melindrado e intimidado. A girafa sente empatia por si mesma. O chacal julga, acusa e ordena. A girafa observa, expressa honestamente sentimentos e necessidades e pede.

Em conclusão: a girafa observa, o chacal avalia, a girafa sente, o chacal pensa, a girafa está ciente das suas necessidades, o chacal confunde necessidades com estratégias, a girafa pede, o chacal ordena.

No confronto da Girafa e do Chacal, a girafa sai sempre vencedora se se mantiver girafa; ao agir compassiva e empaticamente, mais tarde ou mais cedo, consegue apelar ao coração do chacal, à sua própria compaixão e empatia, acabando por transformá-lo numa girafa também. - Assim sendo, as girafas vão aumentando e os chacais diminuindo, até se extinguir a sua espécie.
Pe. Jorge Amaro, IMC


1 comentário:

  1. Pe. Jorge Amaro, muito obrigado pela sua generosidade em partilhar connosco este magnífico tema!
    Apreciei muito o workshop que deu em Braga sobre a CNV e, para mim ainda é doce como o mel, gostaria de ver esta temática divulgada e abordada nas universidades portuguesas.
    Um grande abraço,
    José Silva

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