1 de março de 2018

CNV: Jesus de Nazaré e a redenção pela Não-Violência

Um dos que estavam com Jesus levou a mão à espada, desembainhou-a e feriu um servo do Sumo Sacerdote, cortando-lhe uma orelha. Jesus disse-lhe: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada morrerão à espada. Mateus 26,51-52

“Quem com ferro mata, com ferro morre” – É o provérbio ou expressão popular que tem provavelmente as suas raízes no texto citado acima. A violência não só resolve qualquer conflito ou problema, como cria outros problemas. Fala-se da espiral de violência, pois facilmente esta se alastra, envolvendo cada vez mais gente. Através da violência a única paz que se pode atingir é a paz do cemitério, da morte, da destruição.

Jesus de Nazaré desafiou o sistema de dominação e a sua ideia basilar do valor redentor da violência. E não permaneceu muito tempo com vida. A Igreja com a responsabilidade de proclamar os seus ensinamentos; não o fez em grande medida, porque não os entendeu verdadeiramente, ou porque para sobreviver, teve de adaptar-se à cultura e aliar-se ao poder dominante.

O Cristo que a comunidade passou para a História foi um Cristo aguado, diluído, menos radical, menos revolucionário. No entanto, providencialmente, este Jesus de Nazaré que não singrou na comunidade cristã nem fez História, está contido nos evangelhos, e é através deles que nos damos conta da dimensão revolucionária dos seus ensinamentos.

Jesus rejeitou o poder autocrático, (Mateus 20, 25-28), apelou à equidade económica, (Marcos 12, 30-31), rejeitou a violência, (Mateus 5, 38-41), quebrou costumes que tratavam as mulheres como inferiores, (Lucas 10, 38-42), quebrou as regras da pureza ritual por separar as pessoas umas das outras, (Marcos 1, 40-45), desafiou a visão patriarcal da família (Lucas 11, 27), e rejeitou a crença de que Deus requer sacrifícios de sangue, (Mateus 9, 9-13).

Poder como serviço e não como domínio
«Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão.» Mateus 20, 25-28

Quanto a vós, não vos deixeis tratar por “mestres”, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso “Pai”': aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por 'doutores', porque um só é o vosso 'Doutor': Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado. Mateus, 23, 8-12

Jesus é anarquista não no sentido de defender que a sociedade não deva estar organizada e disciplinada, mas no sentido de afirmar que ninguém tem o direito de exercer poder sobre ninguém; o poder ou é serviço ou é malévolo.

Para Jesus todo o governo autocrático é naturalmente violento e opressivo. Jesus entende o poder como serviço e não como domínio sobre as pessoas. Jesus substitui o amor pelo poder, pelo poder do amor e do serviço aos outros. É este o caminho da grandeza e da popularidade que tanto buscam os poderosos.

Os que exercem o poder autocraticamente são temidos, e não amados; os líderes amados pelo povo são os que exercem o poder servindo; estes são os grandes na História da humanidade. Os grandes na nossa história pessoal são também aqueles que nos serviram e não aqueles que nos dominaram. Os nossos pais, professores, catequistas etc…

Igualdade e Equidade económica
Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes.» Marcos 12, 30-31

Num só mandamento Jesus une os dois valores onde assentam a vida humana. Em “amar a Deus sobre todas as coisas” significa não reconhecer nenhuma autoridade além de Deus, não se submeter a nada, nem a ninguém. Este é o garante da liberdade como valor onde assenta a dignidade da pessoa humana.

Por outro lado, como o ser humano não é uma ilha, a dimensão social assenta na igualdade; abaixo de Deus ninguém é mais que ninguém. A combinação destas duas dimensões vertical - do amor a Deus e liberdade, - e horizontal, no amor ao próximo como a nós mesmos, - forma a cruz símbolo do cristianismo.

Jesus alerta para o perigo das riquezas que fazem o homem insolidário e lhe barram a salvação (Marcos 10,25). Por isso, convida o jovem rico ao desprendimento e a repartir pelos pobres, para alcançar uma riqueza maior (Mateus 19,21). Louva Zaqueu pelo seu gesto de devolver e repartir o que lhe valeu a salvação (Lucas 19, 1-10). A partilha de bens materiais faz parte do critério de entada no Reino dos Céus (Mateus 25, 31-46).

Olho por olho dente por dente versus ama os teus inimigos
«Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, Mateus 5, 43-45

Ouvistes o que foi ditoEu, porém, digo-vos – Várias vezes no Sermão da Montanha Jesus utiliza esta construção gramatical para, ao mesmo tempo, expor cada um dos enunciados da ideologia antiga ou sistema de domínio, rebatendo-os um a um com a sua doutrina.

Jesus veio provar que o sistema de domínio não é a única forma de viver em sociedade; O Reino de Deus, que Jesus trouxe com a sua vinda ao mundo, é na verdade a única alternativa ao sistema de domínio, a única de facto. O Reino de Deus iniciado por Jesus é uma “win win situation”, todos ganham, ninguém perde, não há oprimidos nem opressores, nem vencidos nem vencedores.

Para o sistema de domínio, o homem é lobo do homem por isso tem de se convencer a si e os seus congéneres de que os seus inimigos são pérfidos e de que a única forma de viver em paz é destruí-los. Para Jesus, não há inimigos. Mas se os há, estes não se vencem com ódio. O ódio fá-los mais fortes; é como pretender apagar o fogo com gasolina. Só o amor os pode derrotar verdadeiramente.

Para funcionar, a violência redentora requer que algumas pessoas sejam declaradas inimigas, para que a sua eliminação pela violência seja vista como um ato redentor. Ao exortar-nos a amar os nossos inimigos, Jesus deixa a violência redentora sem a sua justificação moral para operar. Neste contexto Rosenberg disse que quando compreendemos as necessidades que motivam o nosso e o comportamento dos outros, deixamos de ter inimigos.

“No estrañeis dulces amigos que tenga mi frente arrugada, yo vivo em paz con los hombres y en guerra con mis entrañas”. António Machado

Inteligentemente, o sistema de domínio buscou limitar a violência entre pessoas colocando-a no interior da consciência de cada um. O superego freudiano é de alguma forma o “Cavalo de Troia” do sistema de domínio dentro de nós. A coerção do sistema de domínio é assim exercida pela própria pessoa sobre si mesma. Como dizia o poeta popular espanhol

Para os que em vez de exercerem a violência sobre si mesmos por vias do superego, escolhem exercê-la sobre os outros, o mito da violência redentora tem a lei do Talião do código Hamurabi, o código de leis mais antigo do mundo, também nascido na Babilónia. Como bem observava Gandhi, olho por olho dente por dente vai-nos deixar a todos desdentados e zarolhos.

A crença é que esta lei restaura o equilíbrio rompido quando alguém comete um crime contra o seu próximo; porém na realidade, apenas consegue uma trégua durante a qual os adversários aproveitam para se armar. Esta trégua parece um tempo de paz, mas na realidade é um tipo de guerra a “Guerra fria”.

Assim sendo o mundo nunca tem paz, pois os tempos de guerra quente alternam-se com períodos de guerra fria. Durante a guerra fria carregam-se as armas, durante a guerra quente disparam-se. A única paz possível dentro do mito da violência redentora é a paz do cemitério.

O amor ao próximo como a ti mesmo, e o amor aos inimigos parecem ser as únicas ideias que superam o mito da violência redentora e estabelecem uma paz verdadeira e duradoira. Jesus veio para fazer deste mundo o Reino de Deus, um Reino de justiça e paz, uma “civilização do amor” como o Papa João Paulo II gostava de repetir. O Sermão da Montanha é a Magna Carta ou Constituição desse Reino. A CNV é o idioma deste Reino.

A não violência redentora
Ouvistes o que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas. Mateus 5, 38-41

O Código Hamurabi, que nasceu na Babilónia na mesma terra onde nasceu o mito da violência redentora, é o primeiro código de leis que a civilização humana conhece. Olho por olho e dente por dente, era uma lei desenhada para conter o escalar natural da violência, permitindo o uso controlado desta pela vingança, dentro do princípio da reciprocidade. Para Jesus esta não é a solução, pois opõe violência com violência.

Não oponhais resistência ao mau - Resistir violentamente, vingar-se ou vencer o mal por intermédio da violência, é deixar-se controlar pela violência e perpetuar o mito de que por ela se chega à salvação. Wink observa que este texto tem sido interpretado tradicionalmente como advogando a submissão passiva à opressão, pelo que, historicamente, o cristianismo rejeitou os ensinamentos de Jesus acerca da não violência como idealismo utópico, idealista e ingénuo.

A verdade, porém, é que o evangelho não ensina a não resistência ao mal; Jesus ensina a resistir, mas sem violência. Wink assegura-nos que se lermos as palavras de Jesus, no contexto histórico e cultural em que foram pronunciadas, fica claro que Jesus está advogando uma forma criativa de oposição não violenta à opressão, e não à submissão. Por outro lado, Wink entende que esta é uma má tradução do original grego que segundo ele, diz: “não reajais violentamente contra o mau”. Os exemplos a seguir são prova adicional disto mesmo.

Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra – A bofetada é dada com a mão direita pois a mão esquerda, segundo a lei dos judeus, só podia ser usada para tarefas impuras. Ora uma bofetada com a mão direita na face direita, só pode ser dada com as costas da mão.  Ainda hoje uma bofetada dada com as costas da mão não tem intenção de magoar fisicamente, mas sim de insultar humilhar e degradar.

Não era dada a uma pessoa de igual estatuto, mas sim a um inferior; era o tipo de bofetada que um mestre daria a um escravo, um marido à sua esposa, um pai a um filho, um romano a um judeu, para o recordar da sua posição de inferioridade e faze-lo regressar a ela. “Sapateiro à tua sovela”, dizemos em português.

Ao oferecera face esquerda, o agressor não pode voltar a agredir com as costas da mão, ou seja, não pode voltar a humilhar; para bater, teria que o fazer, desta vez, com a palma da mão coisa que só poderia acontecer entre pessoas do mesmo estatuto social. Se o agressor o fizesse, estaria a rebaixar-se à mesma condição do agredido.

Portanto, o ato de voltar a cara queria dizer naquele tempo “eu sou igual a ti em dignidade, não aceito ser humilhado”. Também não pode agredir com as costas da mão a face direita, pois esta está escondida, por isso mais que oferecer a esquerda ele está a ocultar a direita para não ser humilhado outra vez; está a rebelar-se e a deixar o mestre sem argumentos, ao não o poder agredir na esquerda sem se rebaixar e o reconhecer como igual.

Se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa – Para entender estas palavras é preciso estar ciente de que o sistema tributário de Roma levava os pobres agricultores a endividar-se, ao ponto de terem que pagar com as suas terras. Ficavam assim sem nenhum meio de sustento, completamente desfalcados e desprotegidos, ou seja, nus.

A parábola dos trabalhadores da vinha em Mateus 20, 1-16 refere-se aos que perderam as suas terras por terem ficado endividados se vêm agora na obrigação de todos os dias virem para a praça, na esperança de serem contratados. Ironicamente, o latifundiário contrata primeiro os que foram donos das terras pois esses conhecem bem o trabalho a fazer e só depois, precisando de mais mão de obra, volta à praça para contratar mais gente.

O endividado não tinha nenhuma hipótese de ganhar a causa pois o sistema favorecia o credor. Como vimos no caso de apresentar a outra face, e como veremos no caso de andar mais de uma milha, uma das regras da não violência é tomar a iniciativa; ao despojar-se da única coisa que lhe restava, a capa, e ficar nu, o endividado protesta e aponta o dedo ao sistema que assim o deixou.

A nudez era um tabu em Israel, mas a culpa não recaía sobre a pessoa que a exibia, e sim sobre os que a contemplavam e a tinham causado (Génesis 9, 20, 27). De facto, ainda hoje, em muitas situações, exibir nudez é uma forma de protesto. Despojar-se da capa e abandonar o tribunal nu equivale a dizer, “roubaste-me tudo, só me resta o meu corpo, que vais fazer agora?” As atenções e os olhares acusatórios voltam-se agora contra aquele que causou aquela nudez, o credor.

Como conclui Wink, o ensinamento de Jesus sobre a não-violência aponta para uma estratégia de confronto do sistema, desmascarando a sua crueldade essencial burlando-se das suas pretensões de justiça. Os que ouvem estes ensinamentos já não vão deixar-se tratar como se fossem esponjas espremidas pelos ricos. Aparentemente aceitam as regras do jogo dos ricos, exacerbando-as até ao absurdo e, expondo assim a sua crueldade. Ao despojar-se ante os seus companheiros, o que deixam a nu é precisamente o sistema e os seus credores.

Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas – Era um costume no tempo de Jesus quem quer que fosse encontrado na estrada ou na rua, podia ser obrigado a servir, como aconteceu ao Cireneu que foi obrigado a carregar a cruz de Cristo (Marcos 15, 21).

No Império Romano, os soldados de alta patente, tinham escravos, burros, cavalos ou carroças para carregar a sua bagagem; o mesmo não acontecia com os de baixa patente por isso podiam obrigar quem quer que fosse a carregar a sua bagagem durante uma milha. Carregar esta bagagem por mais de uma milha era ilegal e punido por lei.

Como nas duas instâncias anteriores, a questão aqui é como os oprimidos podem recuperar a iniciativa e afirmar assertivamente a sua dignidade humana, numa situação que de momento não pode ser alterada, ou seja o domínio dos romanos. Não podia deixar de se sentir interpelado e provocado o soldado que não só não precisou de coerção para obrigar o judeu como até excedeu o previsto. Ao privar o soldado da previsibilidade da resposta da vítima, este ficou desequilibrado e sem autoridade moral.

Agora é o soldado que tem de pedir a bagagem de volta para evitar de ser castigado pelos seus superiores. O humor desta cena pode-nos ter escapado, mas dificilmente escapou aos ouvintes de Jesus, que se devem ter deleitado com a perspetiva de ter dado uma lição de moral. Concluindo, Jesus é contra a passividade e a violência; o mal pode ser confrontado e vencido sem o uso da violência.

A terceira via
Ante um perigo ou uma ameaça, “Fight ou flight” – luta (revolta armada, rebelião violenta, vingança) ou fuga (submissão, passividade, rendição, retirada) são as duas reações possíveis de qualquer ser vivo vertebrado pois estão impressas como veremos no nosso primeiro cérebro, o cérebro reptílico.

Segundo Walter Wink, Jesus oferece uma terceira via. Este novo caminho marca uma mutação histórica no desenvolvimento humano: a revolta contra o princípio da seleção natural. Com Jesus uma nova via emerge, pela qual o mal pode ser combatido sem ser espelhado. Estas seriam as diretivas que se deduzem do Evangelho:
  • não fiques inativo e toma uma iniciativa moral;
  • encontra uma alternativa criativa à violência;
  • asserta a tua humanidade e dignidade como uma pessoa;
  • reage à violência com desdém e humor;
  • quebra o ciclo de humilhação;
  • sê insubmisso recusando qualquer posição de inferioridade;
  • expõe a injustiça do sistema;
  • assume dinamicamente uma posição de poder;
  • envergonha e verga o opressor ao arrependimento;
  • mantem-te firme;
  • obriga os poderes a tomar decisões para as quais não estão preparados;
  • reconhece o teu próprio poder;
  • esta disposto a sofrer, em vez de te vingares;
  • obriga o opressor a olhar para ti sob um novo prisma;
  • priva o opressor de uma situação onde uma demonstração de força seja eficaz;
  • está disposto a pagar o preço por quebrar leis injustas;
  • vence o medo ao sistema de dominação e às suas regras.
Pe. Jorge Amaro, IMC

3 comentários:

  1. Riquíssima reflexão para todos os dias e principalmente estes dias da Quaresma. Obrigada Padre Jorge

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  2. Gratificante partilha que muito me enriquece ,um grande abraço amigo Jorge

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  3. ...imagem,texto...impossível ficar indiferente. Obrigada Pe .Jorge Amaro

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