1 de novembro de 2015

A obediência é devida somente a Deus


Importa mais obedecer a Deus do que aos homens. Actos 5, 29

Ao longo desta reflexão tive sempre o cuidado de me referir aos votos de pobreza, castidade e obediência, não só como coisa de monges, frades, padres e freiras, mas como valores humanos válidos para todos os que confrontam as suas vidas com o evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

De uma forma simplista, poderíamos então dizer que o voto de pobreza define e pauta a nossa relação com as coisas; o voto de castidade a nossa relação com os outros, e o voto de obediência a nossa relação com Deus. É certo que os três têm implicações com as três realidades mas, também é verdade que, para cada um deles, uma delas é predominante.

No que se refere à obediência, a título de exemplo, os apóstolos recusaram obedecer às autoridades mais altas do povo de Israel, o Sumo-sacerdote e o Sinédrio constituído por sacerdotes, escribas, fariseus e anciãos do povo, num total de 71 membros. Justificaram esta desobediência civil ao entender que deviam obedecer a Deus e não aos homens.

O nosso lugar no mundo
Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações (Mateus 6, 33-34).

É a obediência que nos faz despertar de altos sonhos de grandeza individual com a convicção de que, como cidadãos deste mundo, não estamos aqui para nós mesmos e que a nossa vida não é acerca de nós. A Obediência reconhece e valoriza, ao mesmo tempo, o direito e o dever de pertencer, participar e ter um lugar na história da humanidade.

É certo que cada um de nós é um ser autónomo, independente, livre, e no entanto a nossa individualidade não se explica por si mesma; eu não existiria sem a existência prévia e a coexistência do meu pai e da minha mãe. Somos ao mesmo tempo livres e interdependentes porque somos parte de uma família, de uma comunidade, de um país, da humanidade.

A um estudante foi-lhe dada a oportunidade de observar bactérias ao microscópio. Pôde de facto ver como uma geração destes seres vivos microscópicos nascia, crescia, se reproduzia e morria, deixando o seu lugar à geração seguinte. Viu, como nunca tinha visto antes, a vida transmitindo-se de geração em geração. Entendendo a lição subjacente a esta observação de que o valor da sua vida dependia do forma como ocupava o lugar que ocupava no amplio contexto do bem comum, afirmou, “comprometo-me durante a minha vida a não ser um elo fraco”.

Esta história sugere que a humanidade também é uma sucessão de gerações ligadas entre si como numa corrida de estafetas. Depois de encontrar o nosso lugar no mundo, para que a nossa vida seja produtiva e não só reprodutiva, deve tornar-se numa contribuição para o progresso da humanidade; devemos comprometer-nos a deixar cá mais do que o que cá encontramos. Neste contexto, a Obediência é, portanto, a minha participação, o meu grão de areia na construção de um mundo melhor, o Reino de Deus.

Ninguém se auto-realiza fora da comunidade ou contra a comunidade, pelo que não há auto-realização que não seja um contributo para a comunidade. Só nos sentimos bem, connosco próprios, quando os outros se sentem bem connosco. É valorizando os outros que nos valorizamos a nós mesmos, é reconhecendo os direitos dos outros que reconhecemos os nossos. Perifraseando Neil Armstrong, cada um dos nossos pequenos passos ou sucessos são um salto para a humanidade.

Para que assim seja, como sugere Jesus no texto acima citado, temos de procurar primeiro o Reino de Deus e a sua Justiça; ou seja, em atitude de obediência, rejeitar a tentação de atender à satisfação das nossas necessidades, pois não é na sua satisfação que encontramos a felicidade e a auto-realização; aliás o texto até sugere que não nos devemos preocupar com esta satisfação, pois no processo de buscar o Reino de Deus ou seja, de realização da tarefa para a qual Deus nos chamou, encontramos a satisfação das nossas necessidades.

Como cristãos, todos nós formamos o corpo místico de Cristo, a Igreja; como tal, estamos chamados a actuar no aqui e agora da história da humanidade, as obras de salvação que ele começou há 2000 anos atrás. Cristo não podia viver duas vezes num corpo físico, por isso, e porque a sua salvação era para toda a humanidade e não só para os seus contemporâneos, os cristãos, de cada tempo e lugar, devem ser as pernas, os braços e a voz de Cristo. Nesta perspectiva, a obediência de cada cristão assemelha-se à submissão de todos, e de cada membro individual como sucede num corpo físico, para a harmonia e o bem comum de todo o corpo.

A sede do poder
Pilatos disse-lhe, então: «Não me dizes nada? Não sabes que tenho o poder de te libertar e o poder de te crucificar?» Respondeu-lhe Jesus: «Não terias nenhum poder sobre mim, se não te fosse dado do Alto. Por isso, quem me entregou a ti tem maior pecado.». João 19, 10-11

Ao contrário de todos os povos, o povo de Israel nunca quis ter um rei. O único Rei era Deus, que em cada tempo suscitava um líder para governar e guiar o povo segundo os seus desígnios. Todos os que ao longo da história da humanidade tiveram poder davam-se conta que, de alguma forma, o seu poder vinha de Deus ou o tinham em representação de Deus, o único verdadeiramente Todo-poderoso. A associação e identificação de Deus com o poder, levou alguns imperadores de Roma autoproclamarem-se deuses.

Francisco Franco, caudilho de España por la gracia de Dios – Assim estavam cunhadas as pesetas durante o fascismo em Espanha. Reconhecendo Franco que não tinha legitimidade para ocupar o lugar que ocupava, pois nem era um presidente de república eleito, nem era filho de monarca, recorreu a este subterfugio que a seu modo confirma o facto de que verdadeiramente o poder vem de Deus, que o delega temporariamente a este ou aquele líder.

Isto mesmo quis dizer o Sto. Tomás Moro quando um dia, em oração, foi várias vezes interrompido por um mensageiro do Rei Henrique VIII que o queria ver de imediato. Com a calma que lhe era característica, o santo disse ao mensageiro, ide dizer a sua majestade que de momento me encontro ocupado com alguém superior a ele, o rei do Universo.

Dura lex sed lex – A lei é dura mas é a lei; o capricho, a arbitrariedade de um ditador ou de alguém que abusa do poder, que lhe foi conferido, e governa por decreto lei é bem mais dura. A lei ao ser, em princípio e por princípio igual para todos, faz a todos iguais perante ela. A supremacia da lei, ou a supremacia da Moral ou Ética, são imagem da supremacia de Deus, que como é Pai de todos nos faz a todos iguais perante Ele. É esta a base da dignidade da pessoa humana.

Voz do povo voz de Deus - Em democracia o poder reside no povo e sempre no povo. Este, periodicamente delega-o em pessoas que o representam no governo da nação. O mesmo sucede ao interno de uma Ordem Religiosa; o poder reside nos confrades que, também periodicamente o delegam, por eleições, na pessoa do superior ou Abade. No caso da vida religiosa o Abade representa ao mesmo tempo a vontade de Deus, e o compromisso que cada religioso assumiu com Deus, a comunidade e a Igreja em geral, quando fez os votos. Como o voto de obediência é feito a Deus, a Ele é também devida a obediência com a mediação ou por intermédio do Superior.

O voto de obediência
Quem recebe os meus mandamentos e os observa esse é que me tem amor. João 14, 21

Desde a desobediência, de Adão e Eva, pela qual entrou o mal no mundo, a história de Israel pode ser lida como uma história onde se mistura a desobediência com a obediência. Para Jesus só pela obediência, à palavra ao coloca-la em pratica, é que se pode construir alguma coisa, de resto palavras inconsequentes, que não operam nada, leva-as o vento. (Mateus 7, 24-27)

Jesus apelou a todos os que o ouviram a aceitar e obedecer os seus ensinamentos, a incorpora-los na sua vida quotidiana, a fazer deles atitudes e comportamentos do dia-a-dia. No entanto, Jesus também chamou a 12 para deixar as suas vidas anteriores; empregos e famílias para se colocarem à Sua total disposição; a estes, disse-lhes detalhadamente como comportar-se, o que fazer, onde ir, como ir e o que dizer.

A Obediência é devida somente a Deus e o voto religioso de obediência não pode ser uma excepção. Não existe porque pertencemos a uma instituição que precisa de uma autoridade; mas porque precisamos de mediações entre nós e Deus. O voto, baseia-se então na fé de que a vontade de Deus vem através de um governo.

Por isso, o primeiro objectivo da obediência, o que mais importa, não é a estruturação da Comunidade mas a auto-realização de cada um dos seus membros; assim, obediência tem menos a ver com a submissão ou a renúncia à sua vontade e mais a ver com a afirmação da vontade de Deus, apesar dos desejos e forças contrárias que operam dentro de nós e também dentro dos superiores.

Não é a nossa vontade que antagoniza a Deus, quando decidimos livremente dedicar-nos ao Reino dos céus; muito pelo contrário, é o mal que reside dentro de nós, que em todo momento antagoniza a nossa opção fundamental. Em última análise, e tal como Jesus a coloca, a obediência é uma consequência do amor, Eu amo o Pai e actuo como o Pai me mandou. (João 14, 31)

Coordenador de carismas
Não vos deixeis tratar por 'mestres', pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis 'Pai', porque um só é o vosso 'Pai': aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por 'doutores', porque um só é o vosso 'Doutor': Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado. (Mateus 23, 8, 12)

Abade, primus inter pares, prior, provincial, superior, responsável, são alguns os títulos que ao longo da história se deram a essa pessoa que, eleita por todos, representa aquilo que prometemos a Deus, sacramento da autoridade divina a quem em última análise devemos obediência. Todos estes títulos de alguma forma vão em contra to texto acima citado pois colocam esta pessoa num nível superior aos outros.

No meu entender, o melhor título para este cargo, é o de coordenador de carismas, porque diferentes são os carismas de cada irmão ou irmã e para que todos esses carismas se harmonizem, com vistas a formação de um só corpo e ao bem comum, é necessário que exista um coordenador.

Como coordenador de carismas, a função do "superior" tem mais que ver com a comunidade como um todo que com cada um dos seus membros. Cada religioso, cada pessoa rege-se pela sua consciência, e esta, além de Deus, não deve satisfações a ninguém. Como seres autónomos livres e independentes, não precisamos que ninguém nos dite o que devemos ou não fazer.

Como o próprio conceito de coordenador de carismas indica, cada comunidade precisa de uma pessoa que tal como o mestre de uma orquestra, harmonize as diferentes individualidades para que vivam ao uníssono. Numa orquestra cada músico toca um instrumento diferente, uma música única e diferente das outras; cabe ao mestre, segundo uma partitura geral à qual ele mesmo obedece, fundir numa só melodia os contributos dos diferentes músicos.

Assim deve ser numa comunidade, cada um deve ser ante tudo autêntico, fiel a si mesmo e ao seu projecto ou Missão, tendo em conta que este não faz sentido se não se enquadra no contexto do bem comum. Cabe ao coordenador velar por este bem comum.

Em caso de conflito
Rebelar-se contra um tirano é obedecer a Deus, Benjamin Franklin

O Poder nem sempre corrompe, mas pode corromper também aquele que na comunidade tem a faculdade de coordenar os carismas de todos para o bem comum. Tanto o coordenador, como o membro da comunidade, devem estar permanentemente à escuta de Deus e em diálogo entre si, para que tanto a coordenação como a obediência sejam segundo a vontade de Deus.

Sempre se deve obedecer, quando o que nos é pedido vai de acordo ao nosso projecto e ao que prometemos a Deus. No entanto, se um membro de uma comunidade tem a certeza de que o seu coordenador demanda obediência por motivos que não se coadunam com a vontade de Deus, em consciência o membro da comunidade pode e deve desobedecer, pois nessa desobediência está obedecendo a Deus.

À falta desta certeza, em caso de dúvida é preferível obedecer; vai requerer certamente um acto de fé no coordenador mas a história da salvação, tal como nos é descrita na bíblia desde Abraão, está cheia de exemplos onde a questão da obediência se transforma, muitas vezes, numa questão de fé… ou acreditas, arriscas, confias e te lanças no vazio e no escuro ou não acreditas te retrais e ficas paralisado.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 comentário:

  1. Simplesmente um belíssimo momento de reflexão caro amigo Jorge ,um grande abraço Emanuel.

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