15 de abril de 2015

"Felix Culpa"

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Ó indispensável pecado de Adão,/ Pois Cristo o dissolve em seu amor; /Ó feliz culpa, que há merecido/ A graça de um tão grande redentor!Pregão Pascal

A expressão latina “Felix Culpa” deriva dos escritos de Santo Agostinho sobre a queda de Adão e Eva, que arruinou a natureza humana dando início ao pecado original, que qual doença genética se tem vindo a propagar de geração em geração.

À luz da Ressureição de Cristo, Santo Agostinho reinterpreta, de forma “positiva”, o pecado de Adão e Eva, estendendo assim a positividade do presente à negatividade do passado. Por esta razão a Igreja colocou esta exclamação do santo no pregão pascal que é o momento litúrgico, dentro da vigília Pascal, em que se proclama a ressurreição de Cristo.

Na vida do dia-a-dia encontramos exemplos desta realidade: A mulher que dá à luz, ante a alegria tamanha que sente com o seu filho nos braços, depressa esquece as dores do parto, ou olha para a dor de uma forma distinta; Que a garrafa está meia de vinho é um facto irrelevante; o que é relevante é a minha interpretação do facto; para o pessimista está meio vazia, para o optimista está meio cheia.

“Não há males que por bem não venham”
O cavalo de um velho agricultor fugira para as montanhas. “Azar”, declararam os vizinhos por empatia, ao que o velho retorquiu “Azar ou sorte quem sabe?” Uma semana depois o cavalo voltou com uma manada de cavalos selvagens e desta vez os vizinhos felicitaram o agricultor pela sorte. A sua resposta foi a mesma “Sorte ou azar, quem sabe?” Sucedeu então que o filho do agricultor ao tentar domar um dos cavalos selvagens caiu e partiu uma perna. Todos, viram nisto azar, mas o velho limitou-se a repetir “Azar ou sorte quem sabe?” Algumas semanas mais tarde passou por ali o exército e recrutaram todos os jovens aptos para o serviço, menos o filho do velho que ainda andava de muletas…

A maçã do jardim do Éden tinha bom aspecto; muito do que aparentemente parece bom pode ser mau e vice-versa, o que parece mau pode ser bom. As palavras sorte ou azar fazem sentido só para o supersticioso; o crente vê tudo o que acontece, de bom e de mau, como providência divina orientada para um final feliz. 

Como a antimatéria existe por oposição e em função da matéria, assim Deus criou a possibilidade do mal, como uma alternativa a Si mesmo, para que o homem fosse livre para O amar ou rejeitar. Foi o mau uso, ou abuso, dessa liberdade que criou os males concretos, dos quais a humanidade tem vindo a sofrer desde aquele momento.

Desta feita, como nada existia antes de Deus e a possibilidade do mal foi criada por Ele, podemos concluir que Deus é indirectamente responsável pelo mal no mundo. Ao colocar aquela árvore no jardim Deus sabia o risco que corria. Por outro lado, a alternativa, a não criação da possibilidade do mal faria de nós robots, marionetas, extensões de Deus mas não seres pessoais, livres, autónomos e independentes, como Deus quis que fossemos, desde o primeiro momento.

O salário do pecado é a morte (Romanos 6,23) Com a morte do Seu Filho, Deus pagou o preço de ter criado a possibilidade do mal para que o homem fosse livre. A providência divina diz-nos que, nada acontece que seja alheio à vontade de Deus. Se Deus permite o mal é porque tem em mente um bem maior. A mesma Providencia divina convida-nos a não interpretar nenhum acontecimento, seja individual seja comunitário, desligado do seu contexto. Cada acontecimento deve ser visto como a peça de um puzzle, no qual só Deus tem a visão da totalidade; cabe-nos, a nós, termos fé de que, Deus orienta tanto a nossa história como a da humanidade, para um bem maior e um final feliz.

Todos nós temos na vida exemplos de como, de facto, “não há males que por bem não venham”: Foi uma desavença entre São Paulo, Bernabé e Marcos que levou o ultimo a deixar a companhia do santo, e em vez de este, seguir São Pedro, desta forma tivemos um evangelho nascido da pregação de São Pedro, o de São Marcos, como tivemos, mais tarde, um nascido da pregação de São Paulo, o de São Lucas.

Quando Sto António de Lisboa foi para Itália, o seu trabalho era lavar tachos e panelas. Foi preciso que ficasse doente o pregador, designado para pregar na ordenação de um sacerdote, para tirar Sto. António da cozinha e o colocar no seu devido lugar, o púlpito, pois depressa se revelou um exímio pregador.

Foi uma doença, e o tempo de convalescença, que transformou a vida de São Francisco de Assis, de Sto. Inácio de Loiola e de tantos outros santos, que seguiam um caminho que não levava à santidade, muito pelo contrário.

“Felix Culpa” na nossa vida
“Deus escreve direito por linhas tortas” e vai um passo à nossa frente. Ao falhar o plano A, com a queda de Adão, Deus arranjou logo um plano B; quando a humanidade matou o Seu Filho, Deus ressuscitou-o. Podemos ler a história da humanidade, com as linhas tortas, onde Deus escreve direito.

Felix Culpa é uma exclamação feita no presente sobre algo que aconteceu no passado.
Felix culpa é a leitura presente de uma realidade passada.
Felix culpa é a reinterpretação do passado negativo à luz do presente positivo.

A parábola do trigo e do joio (Mateus 13:24-30) sugere que no mundo e na sociedade, tal como o trigo e o joio, o mal e o bem estão tão interligados que resulta difícil distinguir um do outro pelo que o melhor é não precipitar-se, confiar na providência divina e esperar pelo fim.

O Felix culpa não é só aplicável à história da salvação, da humanidade, mas também à nossa história pessoal de salvação. Só nos sentimos como pessoas salvas quando, olhando para a negatividade do nosso passado, entoamos o nosso “Felix Culpa”.

O primeiro passo é fazermo-nos responsáveis, de tudo o que fizemos e de tudo o que nos aconteceu. Não podemos culpar os outros, dizer que foi o diabo que nos tentou, ou apelar à nossa herança genética, culpar o nosso meio social, ou os nossos pais. É verdade que todos estes factores moldaram-nos, e contribuíram para dar forma ao que hoje somos, seria um erro negar a sua importância. Conscientes de que não há sociedades, famílias, pais e educações perfeitas, devemos fazer-nos responsáveis, por tudo o que fizemos e por tudo o que nos aconteceu, agarrando assim, nós próprios, as rédeas da nossa vida.

Fazer-se responsável não significa instalar-se, e chafurdar numa espécie de culpa falsa e insalubre, cruel, abusiva e depressiva; estas são as “areias movediças” de uma espiritualidade suicida. Para sair deste impasse é preciso olhar para o conjunto da nossa vida, entoar o nosso Felix Culpa e verificar que não há males que por bem não venham.

Na vida aprendemos mais com os nossos erros que com os nossos acertos. Cada facto negativo é um presente que a vida nos dá. Todo o presente vem dentro de uma caixa; a caixa é o facto negativo, o seu conteúdo, o presente, é a lição que nos proporcionou esse facto negativo, ou seja o que aprendemos com ele.

Conheci uma jovem que não conseguia superar o trauma, de ter sido abusada sexualmente pelo tio e entoar o seu Felix Culpa, até ao dia em que se deu conta que a visão negativa que tinha do sexo, de alguma forma a livrou de uma vida sexual promiscua, de gravidezes e de abortos, que foram a realidade de algumas das suas amigas.

Não há famílias perfeitas, nem pais, nem tios perfeitos, nem primos, nem professores, nem catequistas; muito antes de sermos auto conscientes, antes de nos conhecermos como pessoas, já o pecado nos tinha tocado de mil e uma maneiras.

O “Félix Culpa” não transforma o mal em bem, nem justifica, nem desculpa os que praticaram o mal. Apenas ajuda a reinterpreta-lo, para o encaixar no contexto geral da vida, a olha-lo de uma forma menos negativa, evitar que arruíne o presente.

O que interessa é o resultado final
Se o pecador renuncia a todos os pecados que cometeu, se observa todas as minhas leis e pratica o direito e a justiça, ele deve viver, não morrerá. Não serão lembradas as faltas que cometeu, viverá por causa da justiça que praticou. (…) Mas se o justo se desvia da sua justiça e pratica o mal, (…) A justiça que praticou não será recordada; por causa da infidelidade a que se entregou e do pecado que cometeu, morrerá. Ezequiel 18, 21, 22, 24

Esta passagem da escritura sugere que, o que verdadeiramente conta é a forma como nos encontramos no fim das nossas vidas
; o que conta é o momento presente; o que chegamos a ser. Positividade e negatividade são como os andaimes da construção da nossa vida. Como sugere o profeta Ezequiel, Deus não tem memória histórica do bom e do mau que fazemos durante a nossa vida; o importante, não são portanto os actos mas as atitudes; ou seja as pessoas que nos tornamos, no fim da construção da nossa vida. É portanto a situação ou o resultado final que conta; por isso, como dizem os espanhóis com certa ironia, “que Dios nos coja confessados”.

Inspirando-nos na parábola dos talentos, podemos afirmar que, Deus não nos pede o que não nos deu; inspirando-nos na parábola do semeador, podemos afirmar que, Deus não pede a todos que dêem 100%; Fica igual de contente com 60% ou até mesmo com 30%, o importante é que não escondamos o talento e que o façamos render; que façamos a omelete com os ovos que nos deram e nunca concluir que não temos ovos suficientes para a fazer.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de abril de 2015

As coisas que o dinheiro não compra

1 comentário:
Deus manda no outro mundo, o dinheiro manda neste. Não há nada que o dinheiro não te faça fazer; todos têm um preço.

Quanto custas? Ouvimos tantas vezes nos filmes; o dinheiro compra tudo e todos; ninguém resiste ao vil metal. As pessoas que chegam ao ponto de venderem a sua honra, a verdade e a sua dignidade fazem-no na certeza de que o dinheiro lhes vai comprar tudo, que é essencial para a auto-realização e para a felicidade.

A verdade é que o dinheiro, longe de comprar tudo, não compra sequer as coisas mais importantes, as de que realmente precisamos na vida. É por isso que não é difícil encontrar pessoas deprimidas e infelizes entre os ricos, e pessoas felizes e auto realizados entre os pobres.

O dinheiro pode comprar uma cama, mas não pode comprar o sono; pode comprar comida, mas não o apetite; pode comprar livros, mas não a inteligência; pode comprar luxo, mas não beleza; pode comprar uma casa, mas não um lar; medicamentos, mas não a saúde; reuniões sociais, mas não amor; brincadeira ou diversão, mas não felicidade; um crucifixo, mas não a fé; um lugar luxuoso no cemitério, mas não no céu. Não há nada mais valioso do que a vida e a vida é um dom de Deus; o amor, que é o princípio da vida, é livre e não pode ser vendido nem comprado. Em essência, só se compram os meios materiais, essenciais para estarmos vivos; a vida, nem se compra, nem se vende, nem se possui.

A Princesa Diana, de Gales, tinha tudo que uma jovem poderia pedir na vida: juventude, beleza, poder, dinheiro, fama, "sangue azul" e dois filhos preciosos, e mesmo assim não estava feliz porque lhe faltava, o principal, o que o dinheiro não pode comprar, amor. À procura deste, abandonou tudo e foi nessa busca que perdeu a vida. Outros há, que tendo o essencial, o amor, fazem o oposto da princesa, buscando afanosamente tudo aquilo que ela desprezou, gastando nisso as suas vidas, muitas vezes acabando por perder o que de antemão tinham, o amor.

Tal como Diana de Gales, São Bento de Nursia, São Bernardo de Claraval, São Francisco de Assis, Sto. Inácio de Loyola, São Francisco Xavier, Sto António de Lisboa, Sta. Isabel de Portugal, São Nuno Alvares Pereira, Sta Beatriz da Silva etc., os santos da Igreja católica, na sua grande maioria, eram de classe media alta, cultos, jovens, belos, ricos alguns de sangue azul, e todos abandonaram tudo por Cristo, tal como São Paulo outrora fizera, por causa dele, tudo perdi e considero esterco, a fim de ganhar a Cristo, Fl, 3, 8.

O valor e não valor da pobreza
A pobreza, exaltada na Bíblia, não é a que impede os seres humanos de sustentar as suas vidas e viver com dignidade. Desde o princípio, a Biblia apresenta-nos um Deus que, longe de ser neutral ou imparcial, luta contra este tipo de pobreza.

Com efeito, Deus está do lado dos pobres contra os ricos, como vemos no cântico de Maria (Lucas 1:53). Alegra-se com a queda dos ricos, como tal, não como seres humanos. Enquanto seres humanos, Deus quer a conversão do pecador não a sua morte. Deus é provavelmente o único que diferencia entre o pecador e os seus pecados, condenando o pecado, salvando o pecador.

Como religiosos, o nosso voto de pobreza brota da segunda bem-aventurança, que São Mateus cita no seu Evangelho: a opção pela pobreza (Mateus 5:3). A escolha da pobreza, portanto, é motivada pela liberdade em relação ao dinheiro, que pode dominar o coração, e também pelo desejo de testemunhar o amor de Deus pelos últimos, os discriminados, os rejeitados, partilhando a sua condição. Procuramos partilhar da condição dos pobres tanto, ou da mesma forma, como o fez Jesus: que sendo rico se tornou pobre... 2 Coríntios 8,9.

O voto de pobreza
Como os votos religiosos de castidade, pobreza e obediência fazem referência a valores eternos, aqueles que os encarnam transformam-se em sacramentos, embaixadores, signo e símbolo de eternidade para o resto dos cristãos. Ao viverem, já no aqui e no agora, os valores que todos estamos chamados a viver no céu, relativizam realidades como o dinheiro, o poder, o prazer.

Quanto ao voto de castidade, como no céu não há morte, não há nenhuma necessidade de haver casamentos como sugere Mateus 22,30. Viver em castidade, ou amizade universal, é o que a todos nos espera.

Quanto ao voto de obediência o que o religioso quer relativizar é o amor pelo poder, que tantos têm; a mania de querer chegar ao topo, pensando que uma vez lá não se tem que obedecer a ninguém. Obedecendo o religioso quer mostrar que é fazendo a vontade de Deus que melhor nos auto realizamos.

A necessidade de bens materiais está relacionada com o facto de ter, de sustentar a vida nas suas implicações biológicas. No céu, teremos um corpo glorioso (1 Coríntios 15, 44) ou espiritual, feito à imagem e semelhança do nosso corpo físico mas não é o corpo físico. Como é um corpo imaterial, não há necessidade de possuir e armazenar bens materiais.

Muitas pessoas vivem na ilusão de que, por possuir mais meios de vida, têm mais vida, ou podem alongá-la mais. Em si mesma a vivência do voto apregoa a verdade de que não se pode amar a Deus e ao dinheiro; o possuir, para além do necessário para nos mantermos em vida, impede de “armazenar tesouros no céu”, (Mateus 6,19-20), ou seja gastar a vida cultivando valores humanos. São estes valores que dão sentido e relevância à nossa vida, tanto do ponto de vista individual como social, e a sustêm na eternidade fazendo parte do nosso corpo espiritual, com o qual viveremos com Deus.

Vivendo o voto de pobreza, no contexto de uma comunidade religiosa, destacamos o valor da partilha de bens comuns, assim como o valor de os usar e administrar com responsabilidade, sem possuí-los. Nós acreditamos, na verdade, que só Deus é o verdadeiro dono de tudo o que as pessoas pensam, que possuem. Não somos proprietários de coisa nenhuma, nem de nós mesmos, nem da nossa vida; apenas somos administradores de tempo, de talentos, de recursos e dessa administração prestaremos um dia contas.
Pe. Jorge Amaro, IMC