16 de novembro de 2012

Celebrar e viver a fé

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Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem algo contra ti, deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois volta para apresentar a tua oferta. Mateus 5:23-24

Alguém dizia que a vida do cristão decorre entre a Igreja e o mercado. "Ite missa est", dizia o sacerdote em latim ao despedir os cristãos após a celebração eucarística dominical. Esta expressão não só significa que a missa terminou, mas também que estamos em missão. O cristão ou está em missa, celebrando a sua fé, ou em missão, vivendo a sua fé. A celebração e a vida são inseparáveis. Celebramos o que vivemos e vivemos o que celebramos.

Não é possível ser cristão sem ter uma relação pessoal com Cristo, que se expressa na oração, e sem celebrar esse mesmo Cristo na Eucaristia, em comunhão com os outros que partilham a mesma fé. Se a oração e a penitência são a celebração individual de Cristo, a Eucaristia é a celebração comunitária de Cristo com a comunidade à qual pertencemos, pois não se pode ser cristão sozinho.

Celebra-se o que se vive, vive-se o que se celebra
Iludimo-nos ao pensar que, mesmo sem qualquer manifestação pública ou privada da nossa fé, continuamos a ser católicos. Mas isso não é verdade. Quem não consegue viver conforme aquilo em que acredita, tarde ou cedo começa a acreditar conforme vive.

Tudo o que é valioso na vida só se alcança com esforço; a passividade, o “dolce fare niente”, não nos leva a lado nenhum, pois na vida o que é bom ou custa dinheiro, ou custa esforço, ou ambas as coisas.

Os motores de um avião não só o impulsionam para a frente, como também o mantêm no ar. De facto, quando o piloto quer fazer o avião descer, o primeiro que faz é reduzir a potência dos motores, e assim o avião vai descendo gradualmente. Porém, se reduzir a potência para menos de 200 km/h, o avião cai. Neste mundo, pela lei da gravidade, o que não tem força para subir, desce.

A nossa natureza caída e os nossos instintos já exercem sobre nós uma força gravitacional para o mal; para vencermos o mal e crescermos como pessoas, temos de nos esforçar e contrariar essa força. A oração, o confronto com a Palavra de Deus e todas as práticas religiosas são uma ajuda essencial. Sem elas, estamos à mercê dos nossos instintos e dos valores que a sociedade promove. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação.”

“O espírito está pronto, mas a carne é débil.” (Mateus 26:41). O próprio Jesus experimentou que a fraqueza da natureza humana requer a ajuda da oração como exercício de autoconsciência, para nos mantermos em estado constante de alerta, e como solicitação da assistência divina, pois, como disse Jesus: “Sem mim, nada podeis fazer” (João 15:5).

Dizer que alguém é "católico não praticante" é um contrassenso, uma falácia. Não há pianistas, cantores ou futebolistas "não praticantes". Os dons, talentos ou aptidões que temos, se não os utilizarmos, perdemo-los. A fé é um desses dons que só se mantêm na medida em que são vividos e exercitados. “O que não se usa, atrofia-se”, diz o provérbio.

“O amor é como a lua: quando não cresce, mingua.” A fé também é assim: ou está a crescer e a fortificar-se, ou está a minguar e a enfraquecer. A liturgia da fé são os sacramentos, sobretudo a Eucaristia, a oração e a escuta da Palavra de Deus.

O amor também tem as suas liturgias: se não se expressa em palavras, poesia, canções, carícias e intimidade, começa a decrescer. A fé leva à prática das boas obras, e estas fazem a fé crescer. O amor é a mesma coisa; amar é querer o bem do outro e colocar-se ao serviço desse bem.

Eucaristia e Caridade
O pão eucarístico repartido é uma imagem ou um ato simbólico que nos recorda que, para sermos cristãos, outros Cristos, devemos repartir o nosso pão com os necessitados. Neste sentido, a Eucaristia, além de ser a celebração da paixão, morte e ressurreição do Senhor, é também um sacramento da memória.

Não apenas dos factos históricos, mas um ato simbólico que nos lembra outros gestos de Cristo (como montar num jumento em Jerusalém, lavar os pés aos discípulos ou expulsar os vendilhões do templo). Tudo isso nos mostra que a celebração da Eucaristia ritual só tem valor para quem celebra também a Eucaristia existencial, ou seja, quem reparte o pão com os pobres.

O cristão autêntico, o cristão a 100%, é aquele que celebra a memória do Senhor com a comunidade na Igreja, mas também individualmente na sua vida, dando esmola, ajudando e pondo em prática as palavras de Mateus 25: "Tive fome e deste-me de comer…". Quem reparte o pão apenas na Igreja, mas não o faz na vida, é meio cristão, assim como quem reparte o pão na vida, mas não o faz na Igreja.

Cristo está no pão que se dá em alimento; assim também nós devemos transformar-nos em pão para os outros. Devemos repartir o nosso tempo, energias e recursos, até nos darmos a nós mesmos. Cristo é pão, o pão é Cristo, e o pão que repartimos é Cristo dado aos outros. Deste modo, a prática cristã une-se à praxis cristã. A Eucaristia estende-se pela vida. "Ite missa est": termina o ritual e começa o existencial. Quando repartimos o pão físico, após o espiritual, reconhecemos Cristo nos outros.

Conclusão – A fé é uma atitude ante a vida que se celebra nos sacramentos especialmente na eucaristia, e se vive na caridade para com os outros. Não se pode divorciar a vida da celebração nem a celebração da vida. Quem não celebra o que vive não vive o que celebra.

Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de novembro de 2012

Fé: A Moeda das relações humanas

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Pois andamos pela fé, e não pela vista
. 2 Coríntios 5:7

O ser humano não é apenas um ser autónomo, livre e independente, mas também um ser profundamente relacional. Nascemos de uma relação de amor, crescemos como seres humanos se formos amados incondicionalmente. Podemos ter tudo na vida, mas sem amor, nada temos. Podemos alcançar o topo da sociedade mas, se não amamos e não somos amados, não seremos felizes. Mais importante do que saber por que vivemos é compreender para quem vivemos.

A vida humana nasce e desenvolve-se no seio das relações com os outros. Estas relações podem ser analisadas pelas ciências, especialmente pelas ciências humanas, mas possuem algo que ultrapassa o âmbito científico. A ciência serve para conhecer as coisas, mas não é suficiente para conhecer as pessoas. A fé e o amor são os alicerces das relações humanas, e nenhum dos dois pode ser objeto de estudo científico.

Conhecer e amar
Conhecer algo implica domínio e controlo. Se sei o princípio que regula a chuva, posso manipulá-la, como fizeram os chineses antes da abertura dos Jogos Olímpicos para garantir que não chovesse durante a cerimónia. No entanto, Deus não se conhece dessa maneira. Conhece-se a Deus como se conhecem as pessoas: através da intimidade e da relação.

Uma pessoa só se revela e se dá a conhecer quando é amada. Pelo contrário, quando um inimigo nos conhece, tornamo-nos vulneráveis. Tal como uma pessoa, Deus só se revela àqueles que O amam. Não podemos conhecer a Deus ou a outra pessoa sem nos envolvermos pessoalmente. Deus e as pessoas humanas não podem ser reduzidos a objetos de laboratório. Amar implica um compromisso; o conhecimento sem amor torna-se manipulação.

A fé: a base da confiança nas relações humanas
A fé é um salto razoável, sustentado pela razão. É como quem caminha por um caminho e, ao chegar a um precipício, precisa saltar para o outro lado. Fé é avançar rumo ao futuro ou ver o presente a partir de uma realidade ainda não concretizada. É como navegar sem uma rota visível ou, como uma criança que se lança para os braços do seu pai ou mãe, confiando que será apanhada.

No âmbito do conhecimento, a fé não se encaixa na análise lógica dedutiva. Relaciona-se mais com a síntese e o conhecimento intuitivo. Ter fé é intuir que algo é correto, mesmo sem garantias absolutas; é como passar um cheque em branco, emprestar dinheiro ou um livro, confiando que será devolvido. Fé é arriscar e apostar no incerto.

A teoria da relatividade geral de Einstein foi, durante muito tempo, um ato de fé, nascido de uma intuição do próprio Einstein e só recentemente conseguimos obter provas da sua veracidade.

Quando aceito um cheque por um serviço prestado, acredito que ele tem cobertura. Seria ofensivo e poderia perder um amigo se o recusasse. Ao entrar num avião, confio que as autoridades fizeram o seu trabalho para evitar qualquer perigo e que os pilotos estão preparados e bem-intencionados. Ao comer num restaurante, confio na qualidade da comida, sem exigir que seja analisada previamente. Em algumas culturas, como na Etiópia, a cozinheira prova a comida à frente dos convidados para garantir segurança, mostrando como a confiança está no centro de todas as interações humanas.

No casamento, acredito que a união será para toda a vida. Mesmo num empréstimo bancário, o banco, após a devida análise, concede crédito baseado na confiança de que o cliente devolverá o montante. Até o cartão de crédito funciona com base na fé. Fala-se em "fé nos mercados" como se fala em "fé em Deus".

Até a autoestima se relaciona com fé em nós mesmos. Podemos acreditar ou não nas nossas capacidades e essa crença influencia como nos lançamos na vida. Muitas vezes, arriscamos sem ter certezas, esperando que o sucesso confirme os nossos talentos.

Se Deus não existe, a vida humana carece de sentido
(...) Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé (...) aqueles que morreram em Cristo perderam-se. E, se esperamos em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.
1 Coríntios 15:17-19

O enigma da existência humana está profundamente ligado à existência de Deus. Se Deus não existe, o ser humano, de certa forma, também deixa de existir como pessoa, e a sua vida perde o sentido. Filósofos que seguiram a ideia da "morte de Deus" — Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Søren Kierkegaard — afirmaram que, sem a existência de um ser superior, a vida se torna absurda. Para que a vida tenha sentido, é necessário que existam critérios que guiem a nossa existência e que não sejam fruto da criação humana — princípios que transcendam a nossa origem e que possuam autoridade sobre nós.

Sartre afirmou: "O inferno são os outros". Assim como os soldados do sumo sacerdote prenderam Cristo, Deus foi aprisionado por Feuerbach, julgado por Marx e Freud — que, ironicamente, tal como Anás e Caifás, também eram judeus — e, por fim, condenado à morte e executado pelo "Pilatos" de Nietzsche.

Ironia do destino, com a morte de Deus, morreu também o ser humano, pois a vida perdeu o seu sentido. Após Nietzsche, os filósofos tornaram-se pensadores do absurdo e da náusea, como Sartre, não tanto em resposta ao "cadáver de Deus", que não possui corpo, mas ao do Homem.

Contudo, após reconhecermos que a existência do ser humano está intrinsecamente ligada à existência de Deus, e embora Deus preexista e exista independentemente do homem, o ser humano é a criatura para a qual Deus existe. Apenas uma criatura consciente de si própria pode atingir a consciência da existência de Deus.

Tal como mencionámos ao falar do animismo, foi a constatação da morte do nosso corpo físico que originou o nosso "eu" espiritual; foi o reconhecimento da morte como um fim que moldou a nossa compreensão da existência como um "ser". A existência é temporal, mas o "ser" é eterno. O desejo de eternidade, em contraste com a realidade da nossa temporalidade, fez-nos acreditar na existência de Deus, criador de tudo e de todos, e alimentou a nossa sede de O conhecer.

Outra ironia do destino: agora, o outro, o meu semelhante, com quem vivia em harmonia na sociedade, como afirma Sartre, transformou-se num inferno para mim. E, segundo ele, a única forma de sair deste inferno seria eliminá-lo.

No auge do absurdo, estes pensadores chegam a negar a natureza trinitária do ser humano. Um ser humano não existe isoladamente, mas em coexistência com outros dois — o pai e a mãe. Ou existem três, ou não existe nenhum. Como podem os outros ser o inferno? É o amor ao próximo, como a nós mesmos, que garante a igualdade, um princípio fundamental para a sociedade e para o ser humano como ser social e integrante dela.

Sem o amor ao próximo, a vida em sociedade seria impossível e, sem esta, a própria vida individual cessaria de existir. Se todos pensassem como Sartre, este mundo seria verdadeiramente um inferno.

Por outro lado, é o amor a Deus acima de todas as coisas e pessoas que nos garante a verdadeira liberdade, um princípio essencial para a dignidade da pessoa humana. Sem liberdade, não há vida humana plena, não há indivíduo. Só nos libertamos das coisas e das pessoas quando entregamos o nosso coração a Deus e aceitamos o Seu senhorio.

Se não rendemos vassalagem a Deus, que nos faz livres, acabamos por nos submeter a outras realidades humanas e mundanas — o poder, o prazer, a riqueza, a popularidade, a beleza física — tornando-nos escravos dessas realidades e, consequentemente, idólatras, ou seja, adoradores de ídolos.

Conclusão – Sem Fé, a vida humana não é possível. Para viver como indivíduo livre, autónomo e independente, o ser humano precisa de confiar em si mesmo. Para viver em sociedade, na família, na comunidade, na sociedade em geral, é essencial confiar nos outros.

Pe.Jorge Amaro, IMC