15 de junho de 2012

Autoconhecimento

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Conhece-te a ti mesmo, Oráculo de Delfos (469 AC)
Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres. João 8, 32

Depois de me dar conta de quem sou, do lugar que ocupo e do tempo em que vivo, pela prática da autoconsciência, a busca do sentido da minha vida requer que eu me questione sobre a minha identidade, que me conheça, que saiba quem sou, o que sou e como sou.

Para viver a vida com sentido preciso de conhecer os meus talentos, as minhas inclinações naturais e tendências, os meus defeitos, a minha forma de ser e atuar, para saber com o que posso contar antes de decidir o que fazer com a minha vida.

Processo contínuo
O ser humano não é um objeto físico que possa ser delimitado, medido e pesado, não pode ser colocado num tubo de ensaio, não é estático, pelo que não é sempre o mesmo ao longo do tempo, cresce, muda e transforma-se. As regras gerais são tantas como as exceções, pelo que não é possível uma definição final, porque o ser humano sempre escapa a todo o tipo de conceptualização.

Não sendo possível delimitar e definir o ser humano por completo e de uma vez por todas, podemos no entanto encontrar constantes, sentimentos, emoções, formas de agir e de pensar que se repetem, deixando antever um determinado tipo de caráter e personalidade que nos sirvam de orientação para viver com sentido o momento presente. São conclusões inconclusivas que servem para formular outras perguntas e para ir dando um rumo e um sentido ao nosso viver.

A janela de Johari
É uma técnica que nos faz entender de uma forma clara a relação que estabelecemos com os outros e connosco próprios. Como as janelas clássicas das nossas casas, divide-se em quatro pequenas janelas e duas áreas que se intercetam. A primeira área diz respeito ao que os outros conhecem e desconhecem de mim; a segunda diz respeito ao que eu conheço e desconheço de mim. Da interceção destas quatro áreas resultam vários tipos de eu: o eu aberto, o eu cego, o eu escondido e o eu desconhecido.

O Eu aberto – É formado pelas atitudes, valores, comportamentos que eu conheço e que os outros também conhecem acerca de mim. Trata-se do eu público, uma área que contém informação que é do conhecimento de todos: nome, idade, factos, talentos etc.

O Eu cego – Formado por coisas que eu desconheço acerca de mim e que os outros conhecem. Esta é a prova de que o ser humano é um ser social. A nossa individualidade é formada no confronto contínuo com os outros, começando pelas pessoas que são mais significativas, os nossos pais e irmãos.

Somos incapazes de ver a nossa cara tal qual ela é. A imagem que vemos no espelho sempre é uma distorção da realidade pois não há espelhos perfeitos. Os outros veem a minha cara tal qual ela é; por isso, uma das chaves para a minha intimidade, para o meu autoconhecimento são os outros que a têm. Quem está dentro da floresta só vê árvores, não vê a floresta, não tem uma visão global; o outro traz-me objetividade e uma visão global do que eu sou…

Quem dizem os homens que Eu sou? (…) E vós, quem dizeis que Eu sou? (Marcos 8, 27,29) Os outros podem ter uma ideia e uma imagem bem diferente daquela que possuímos, e tão verdadeira é a deles como a nossa. Eu sou, ao mesmo tempo, o que eu penso que sou e o que os outros pensam que eu sou.

É importante manter uma relação de amizade com uma pessoa significativa para nós, de modo a que possa dar-nos sempre o feedback sobre o que somos e como estamos a ser vistos pelos outros. O próprio Jesus precisou deste feedback dado pelos seus discípulos.

O Eu escondido – Formado pelo que nós conhecemos de nós mesmos e que decidimos não revelar, por medo ou outras razões; é o que chamamos a nossa privacidade e intimidade, sentimentos e experiências passadas que preferimos não revelar. Em geral, se esta área for muito grande, podemos ser julgados por falta de autenticidade.

É psicologicamente saudável ter alguém que sabe tudo ou quase tudo acerca de mim; é importante que eu possua uma pessoa amiga com a qual sou um livro aberto, com a qual o meu Eu é totalmente aberto. Mas, por segurança, não podem ser muitas, estas pessoas.

Não sem razão o povo diz, “Livre-me Deus dos meus amigos que dos meus inimigos me livro eu”, ou ainda “ninguém descubra o seu peito por maior que seja a dor, pois quem o seu peito descobre de si mesmo é traidor”.

O Eu desconhecido – Constituído por todo o material que está no meu inconsciente e que às vezes aflora sem aviso prévio quando algo acontece; é material que não é conhecido por mim nem pelos outros. Trata-se de informação sobre nós mesmos que ainda está por descobrir; áreas de reconhecido talento, potenciais, motivos ou memórias de infância que estão adormecidas e influenciam o nosso comportamento de uma forma desconhecida para nós.

Ao eu desconhecido aplica-se uma máxima da psicologia que bem poderia ser escrita no Oráculo de Delfos dos tempos modernos: o que sabemos de nós próprios, conseguimos controlar, o que não sabemos controla-nos a nós. É neste sentido que Jesus nos aconselha a conhecer a verdade, pois só conhecendo a verdade acerca de nós mesmos podemos ser livres, podemos ter a nossa vida nas nossas mãos, possuir-nos para nos podermos doar.

Quanto ao eu desconhecido, somos um mistério para os outros e para nós mesmos. Só não o somos para Deus. Neste sentido, podemos comparar-nos a um iceberg: há uma grande parte da nossa personalidade que não é acessível de uma forma direta e voluntária, como uma base de dados para a qual eu não possuo a palavra-passe.

No entanto, não está completamente velado e trancado como uma caixa-forte. Há momentos e circunstâncias em que o inconsciente se revela; são momentos que estão fora do nosso controlo e que devemos aproveitar. Podemos dizer que são mensagens que o nosso inconsciente manda ao consciente, mensagens que devem ser entendidas, descodificadas e aproveitadas na vida do dia-a-dia.

Lapsus linguae – São afirmações que fazemos inadvertidamente sem querer e, às vezes, fora de contexto: é o que o povo chama de fugir a língua para a verdade. É uma forma que o inconsciente tem de se revelar ao consciente. Como são inconscientes, quem as diz não se apercebe delas mas um amigo ou um psicoterapeuta pode revelá-las através de feedback.

Sonhos – Todos sonhamos, sempre sonhamos e os sonhos são sempre e exclusivamente acerca de nós. Cada objeto, cada personagem, faz parte de nós. O sonho é sempre subjetivo, nunca objetivo: se sonho com o meu pai, não é verdadeiramente com ele que estou a sonhar mas com o tipo de relação que tenho com ele, como o conceptualizo, etc.

Trabalhar ou analisar um sonho é como viajar ao subconsciente. Muitas vezes os sonhos são metafóricos, fantasmagóricos e até ridículos; estas são formas que o inconsciente tem para nos chamar a atenção para algo.

Linguagem corporal – O que digo, o que faço, é consciente; a linguagem corporal é inconsciente, só o outro se apercebe dela e a pode interpretar. Como é inconsciente é mais verdadeiro o que digo com a linguagem corporal que o que digo de viva voz. De facto, como dizemos em português, o gesto é tudo e grande parte da nossa comunicação é não-verbal. Ela diz mais do que o que digo por palavras porque não a controlo.

Crescer como pessoa humana é sinónimo de crescer no conhecimento de mim mesmo. Este conhecimento não é só resultado da introspeção; um psicoterapeuta disse um dia que para nos conhecermos a nós próprios, não há quantidade de introspeção ou autoexame será suficiente. Podemos autoanalisar-nos por semanas ou meditar por meses e não avançamos nem um centímetro: é como tentar cheirar o próprio hálito ou rirmos ao fazermos cócegas a nós próprios.

A introspeção é evidentemente um fator no processo para um maior autoconhecimento, mas não é o único. O processo é constituído por outros dois fatores que atuam em forma de triângulo dinâmico.

O que aprendo sobre mim mesmo pela introspeção é completado pelo feedback das pessoas que são importantes para mim; desta forma, ficam harmonizados os quatro eus e de alguma forma fundidos num só Eu. Quando vivo uma relação de amor com pessoas que querem o meu bem, o seu feedback pode ajudar-me também a conhecer cada vez mais e mais do meu inconsciente.

A aventura de viver
“A situação faz o ladrão” – o feedback sobre o que sou verdadeiramente nem sempre me é dado pelos outros mas pelas situações em que me encontro e pelas experiências que vou tendo. Os erros, os insucessos e os sucessos dizem mais de mim que a introspeção. Para saber quem sou, devo observar a minha atuação, se estou ou não à altura do que se espera de mim. Só posso saber se tenho ou não um talento quando tento usá-lo na altura devida.

“Quem não arrisca não petisca” – não sei se tenho ou não um talento até ao dia em que sou confrontado por uma situação que o requer. Winston Churchill e o que representou para a Inglaterra na II Grande Guerra não podem ser entendidos sem ela. Foi a resposta deste homem ao desafio do momento, a II Guerra Mundial, que o fez grande. Os heróis, os santos fazem-se e conhecem-se quando são postos à prova, quando confrontados por grandes desafios.

Ferramentas de Autoconhecimento
Há teorias psicológicas que se fizeram muito populares e que podem ajudar as pessoas a conhecer-se melhor. Na linha da religião e mística temos o Eneagrama; na linha da psicologia existencial de Freud temos a Análise Transacional; na linha de Jung temos Myers/Briggs.

Conclusão
Autoconhecimento é um processo contínuo e nunca acabado de desvendar quem somos, harmonizando os nosso talentos e as nossas limitações, para viver com sentido, propósito e autenticidade.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de junho de 2012

Autoconsciência

Sem comentários:

(…) E, caindo em si, disse: “Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai.Lucas 15, 17-18

No momento em que o filho pródigo pediu ao pai a sua parte da herança, ele estava deslumbrado pela perspetiva dos prazeres que o aguardavam e, enquanto esses prazeres duraram, ele esteve fora de si. Frequentemente, o prazer torna as pessoas irrealistas e inconscientes, enquanto a dor tem o poder de trazê-las de volta à realidade, como ocorreu com esse jovem.

Da inconsciência à consciência
Antes do "Big Bang", há 15 mil milhões de anos, toda a matéria do cosmos existia sob a forma invisível de uma partícula subatómica extremamente densa e quente, que eventualmente explodiu, dando origem ao Universo em expansão. À medida que as temperaturas se suavizaram, os átomos, que compõem a matéria, começaram a se agrupar em moléculas cada vez mais complexas, as quais se uniram formando membranas que deram origem às células primitivas.

Todas as formas de vida na Terra – vírus, micróbios, bactérias, plantas, animais, e humanos – compartilham elementos comuns, pois procedem de um tronco comum. A célula é a forma mais simples de vida; os primeiros organismos formados na Terra foram unicelulares, como a ameba, que ainda hoje sobrevive nas águas contaminadas da África. A transição de organismos unicelulares para formas de vida mais complexas, compostas por múltiplas células, levou cerca de 3 bilhões de anos.

Como a vida procede de um tronco comum, podemos concluir que a ontogénese recapitula a filogénese, ou seja, o processo de desenvolvimento de um indivíduo da espécie humana, desde a sua conceção até à idade adulta, recapitula ou sintetiza a história da vida neste planeta. O nosso organismo em estado adulto é composto por uns 300 triliões de células; mas, no momento da nossa conceção, quando meia célula do nosso pai se une a meia célula da nossa mãe, somos uma única célula.

O que acontece a nível de um só indivíduo reproduz o que acontece a nível global; a vida que começou com uma única célula, ao longo de milhares de milhões de anos de evolução, diversificou-se em muitas espécies de seres vivos. Assim, desde o momento da nossa conceção até ao nosso nascimento, recapitula-se a evolução das espécies até chegar ao ser humano.

Desde o nascimento de um bebê até a idade adulta, revivemos a evolução humana que, há cinco milhões de anos, começou a se desviar dos primatas, seus ancestrais mais próximos. Assim como um bebê aprende primeiro a andar e depois a falar, a humanidade também evoluiu até alcançar a autoconsciência. No contexto da evolução, para Karl Marx, o Homem é o momento em que a Natureza ganha consciência de si mesma.

A autoconsciência é a capacidade para a introspeção, é debruçar-se sobre si próprio, reconhecendo-se como um indivíduo diferente e separado do meio ambiente e dos outros indivíduos. A autoconsciência é a subdivisão ou duplicação do indivíduo que se torna, ao mesmo tempo, sujeito e objeto dos próprios pensamentos.

Cogito ergo sum dizia Descartes, mas também se pode dizer senso ergo sum: sinto alegria ou tristeza, prazer ou dor, logo existo. A autoconsciência é o significado que atribuo às minhas vivências do dia-a-dia, no contexto geral do que é a minha vida para mim.

Alguém dizia que estamos acordados quando dormimos e dormimos quando estamos acordados. Temos consciência do que verdadeiramente somos durante o sono, nos sonhos. Os sonhos revelam a nossa verdadeira identidade, pois por muitas personagens que apareçam neles, estas não são mais que partes de nós mesmos.

Freud e toda a psicologia depois dele deram muita importância aos sonhos, pois neles está uma das chaves para a nossa verdadeira identidade. Quando estamos acordados usamos máscaras que não só velam a nossa identidade aos outros mas também a nós mesmos. Aliás, a palavra pessoa significa isso mesmo, máscara, personagens que representamos durante o dia.

Estar vivo não é igual a viver
Uma vida que não seja auto-reflexiva, não merece a pena ser vivida, Sócrates (469 AC)

No mesmo momento em que a criança, por volta dos 7 anos de idade, toma consciência de si mesma, de que existe, de que está viva, nesse mesmo momento se dá conta da sua finitude, de que não existirá sempre e de que um dia vai deixar de existir como existe agora. É a morte que dá sentido à vida; ou melhor dizendo, é a existência da morte que nos faz buscar um sentido para a vida.

Neste sentido não é o mesmo estar vivo e viver. Os animais estão vivos mas, como não sabem que um dia deixarão de existir, acabam por não saber também que existem, que estão vivos; como não sabem que estão vivos, não vivem. Não vivem porque não têm muito poder e controlo sobre a própria vida; obedecem cegamente ao seu instinto, pelo que são autómatos.

Somente os seres humanos realmente vivem, porque compreendem que, entre o presente de suas vidas e a morte certa, possuem tempo e energia para moldar o que desejam da sua existência.

Ser consciente é desligar o piloto automático
Com frequência, tranco o carro com o comando e depois de me afastar um pouco pergunto-me se verdadeiramente o fechei; na dúvida, volto ao carro e verifico que sim que o tinha fechado. Como este, todos temos automatismos, coisas que fazemos por rotina e das quais não temos consciência no momento em que as fazemos.

Mais vezes do que gostaríamos de admitir, temos o piloto automático ligado: o nosso comportamento é reativo, muito parecido com o dos animais; a um dado estímulo segue-se uma dada resposta, prevista e previsível. Quando nos comportamos como se estivéssemos em piloto automático, não temos consciência, não estamos em nós mas fora de nós.

O que dizemos ou fazemos não é fruto de uma decisão proativa depois de avaliar a realidade ou situação, mas de uma reação mais ou menos instintiva, pré-determinada, repetitiva e rotineira. Algo parecido com um reflexo, como quando involuntariamente retiro a mão de uma superfície quente para evitar queimá-la.

Ter consciência significa dar-se conta de tudo o que se passa dentro e fora de si.
Ter consciência significa estar instalado no presente, no aqui e agora.
Ter consciência significa ter a alma onde se tem o corpo.
Ter consciência significa auto observar-se.
Ter consciência é estar totalmente presente em cada um dos seus pensamentos, sensações, emoções e ações.

A oração é um exercício de autoconsciência
Quando o filho pródigo voltou a si, voltou ao Pai; enquanto esteve longe do Pai, também esteve longe de si mesmo; enquanto esteve fora da casa paterna, também esteve fora de si mesmo; enquanto esteve dissociado, divorciado, de costas para Deus, também esteve dissociado, divorciado e de costas para si mesmo.

Deus intimior intimo meo dizia Sto. Agostinho, Deus está mais além do meu íntimo, pelo que a oração não é só o encontro com Deus é também um encontro comigo mesmo; não é só um dialogar com Deus mas um dialogar comigo mesmo. A oração é, antes de tudo, um exercício de autoconsciência.

Os que rezam conhecem-se melhor do que aqueles que não rezam. Se Deus, como diz Santo Agostinho, está além de nosso íntimo, além de nós mesmos, não podemos chegar a Deus sem primeiro passar por nós; não podemos conhecer a Deus sem antes conhecer melhor a nós mesmos.

Conclusão
No passar de uma existência inconsciente para a profunda autoconsciência, percebemos que viver não é apenas existir; é moldar o nosso destino, tornando-nos o autor consciente da nossa própria história.

Pe. Jorge Amaro, IMC