"Naqueles dias, Maria levantou-se e foi às pressas às montanhas, a uma cidade de Judá. Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu seio; e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. E exclamou em alta voz:
“Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor? Pois assim que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu seio. Bem-aventurada és tu que creste, pois se hão de cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas!”. Lucas, 1:39-45
A notícia de que a prima Isabel ia já no sexto mês de gravidez foi dada pelo anjo como prova de que a Deus nada é impossível. Maria, porém, sem comentar a notícia com o anjo, guardou-a e quando terminou o encontro com o mensageiro de Deus imediatamente partiu para Ein Karen, a 145 km de Nazaré. A viagem foi feita em caravana, na companhia de outros viandantes e deve ter demorado entre 7 e 10 dias.
Com o encontro e as palavras de Isabel a Maria completa-se a primeira metade de uma oração muito querida e repetida pelos católicos – Ave Maria – que na sua primeira parte é composta pelas palavras do anjo, seguidas das palavras de Isabel e terminando em Jesus que é o centro da oração, como sempre foi o centro da vida de Maria.
A segunda parte desta oração reflete o que Maria é para nós e o seu papel na História da Salvação do género humano e de cada um de nós individualmente. Por isso lhe pedimos que peça, que ore a Deus por nós “agora” em todos os “agora(s)” da nossa vida e, sobretudo, naquele “agora” derradeiro da nossa passagem deste mundo para o Pai. Como ela esteve aos pés da cruz do seu filho na sua agonia, assim nos acompanhe a nós na nossa.
Anunciação/Visitação
Há uma dialética entre a anunciação do anjo à Nossa Senhora e a visitação da Nossa Senhora à sua prima Santa Isabel, que faz com que estes dois mistérios tanto gozosos como marianos sejam inseparáveis um do outro, ou seja não possam nem devam ser entendidos individualmente, mas sempre em relação um com o outro.
Nestes dois mistérios e no que eles podem significar e evocar, vai toda a vida do cristão, ou seja, sintetizam em si a vida do cristão. Por isso, Maria é para nós modelo de vida cristã; ela de facto não foi só Mãe do Senhor, foi também sua discípula. Mãe porque discípula, discípula porque mãe. (Lucas 8, 21). Assim, pois, se:
Se a Anunciação evoca o “Ora”, a oração, a Visitação evoca o “Labora”, a prática de boas obras
Um dia, um grande rei visitou o seu mestre espiritual e perguntou-lhe, “Como posso alcançar a União com Deus? Quero que me respondas com uma só frase, pois sou um homem muito ocupado”. “O mestre disse-lhe: Até lho posso dizer numa só palavra”. “Qual é a palavra?” perguntou o rei”. “É o silêncio”, respondeu o mestre espiritual. “E como posso alcançar o silêncio”? “Através da oração”. “E o que é a oração?” “É silêncio”, respondeu o mestre.
No silêncio encontro-me a mim próprio e encontro a Deus no fundo do meu ser. No ruído perco-me a mim próprio e perco a Deus. O filho pródigo fez o que fez porque andava divorciado de si mesmo; quando caiu em si, voltou a Deus; então estar com Deus e connosco próprios implicam-se mutuamente. Quem está fora de si mesmo, está fora de Deus. Porque, como dizia Sto. Agostinho, “Deus intimior intimo meo”. Deus está mais fundo que o meu íntimo, está para além do meu íntimo, ou seja, não posso chegar a Deus sem passar por mim mesmo.
O “conhece-te a ti mesmo” do filósofo Sócrates, não é possível sem a oração. Sem um tempo dedicado à oração, como fazia Maria e o seu filho, não chegamos a conhecer os nossos talentos, as nossas virtudes e os nossos defeitos e limitações. Uma vida não autorreflexiva, dizia também Sócrates não vale e pena ser vivida. Pois é na autoconsciência que podemos exercer controlo sobre os nossos impulsos e maus instintos. Sem autoconsciência, não há autocontrolo.
Os Evangelhos apresentam frequentemente, sobretudo nas escolhas decisivas, Jesus que se retira sozinho para um lugar longe das multidões e dos próprios discípulos, para rezar no silêncio e viver o seu relacionamento filial com Deus. O silêncio é capaz de escavar um espaço interior em nós mesmos, dizia o Papa Bento XVI, para fazer habitar Deus esse espaço, para que a sua Palavra permaneça em nós, para que o amor por Ele se enraíze na nossa mente e no nosso coração, e anime a nossa vida.
Portanto, a primeira direção: reaprender o silêncio, a abertura para a escuta, que nos abre para o alto, para a Palavra de Deus. Como dizia Karl Rhaner, o grande teólogo jesuíta do século XX, os cristãos do futuro ou são místicos ou não são cristãos.
Alguém dizia que a vida do cristão decorre entre a Igreja como templo e a praça ou o mercado. No templo, o cristão está em oração e contemplação de Deus e de si mesmo; no mercado, o cristão está vivendo a sua fé na caridade e no amor ao próximo. Mesmo os monges contemplativos que dedicam muito tempo à oração “Orat”, também têm atividade, “laborat”.
"Intimamo-vos, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, a que eviteis a convivência de todo o irmão que leve vida ociosa e contrária à tradição que de nós tendes recebido. Sabeis perfeitamente o que deveis fazer para nos imitar. Não temos vivido entre vós desregradamente, nem temos comido de graça o pão de ninguém. Mas, com trabalho e fadiga, labutamos noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós.
Não porque não tivéssemos direito a isso, mas foi para vos oferecer em nós mesmos um exemplo a imitar. Aliás, quando estávamos convosco, nós vos dizíamos formalmente: quem não quiser trabalhar não tem o direito de comer. Entretanto, soubemos que entre vós há alguns desordeiros, vadios, que só se preocupam em intrometer-se em assuntos alheios. A esses indivíduos ordenamos e exortamos a que se dediquem tranquilamente ao trabalho para merecerem ganhar o que comer. Vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem." II Tessalonicenses, 3, 6-13
Para S. Paulo, não há profissionais nem da oração nem do anúncio do Evangelho. Isto deve ser tarefa de todos. Ele mesmo, como refere o texto, trabalhava, fazia tendas para ganhar o próprio sustento, não vivia nem à custa da oração nem da evangelização. Era, pois, contrário àquela divisão tradicional das classes sociais na Idade Média, em que o clero, rezava, os nobres protegiam o povo e o povo trabalhava para o sustento do clero e da nobreza. Mesmo já nesta Idade Média, os que muito se dedicavam à oração, os monges Beneditinos e Cistercienses, trabalhavam não só para o próprio sustento, mas também para o sustento das povoações vizinhas, às quais ensinavam práticas agrícolas.
Se a Anunciação evoca o “amar a Deus sobre todas as coisas” – A Visitação evoca o “amar ao próximo como a ti mesmo”.
Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos que hoje te imponho estarão no teu coração. Repeti-los-ás aos teus filhos e refletirás sobre eles, tanto sentado em tua casa, como ao caminhar, ao deitar ou ao levantar. Atá-los-ás, como símbolo, no teu braço e usá-los-ás como filactérias entre os teus olhos. Escrevê-los-ás sobre as ombreiras da tua casa e nas tuas portas.» Deuteronómio 6, 4-8
Jesus disse à samaritana que não era nem no monte Gerasim, onde Jacob tinha construído um santuário Bétel, nem em Jerusalém, onde Salomão tinha construído o templo. Adora-se a Deus em espírito e em verdade. E noutro sítio da escritura, Jesus até diz que quem quiser rezar, entre no seu quarto. Na oração exercemos o nosso amor a Deus. É certo que em todo momento o amamos, porém, a oração é a manifestação desse amor que em todo o tempo sentimos.
Para todos os efeitos, o Criador sabe sempre mais da criatura que a criatura sabe de si mesma. O Criador ama mais a criatura que a criatura se ama a si mesma. O Criador sabe tudo da criatura, passado, presente e futuro, por isso, mais que a criatura, está capacitado para defender os seus interesses.
Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. Mateus 10, 37
Tudo o que a criatura pode e deve fazer é entregar-se nas mãos do Criador, tal como um bebé sem hesitação se lança nos braços do pai. Assim, podemos entender o texto clássico do amor a Deus que é o credo, que todo o judeu recita quando se levanta de manhã. O amor a Deus é sobre todas as coisas, sobre todas as pessoas, completa e absolutamente exclusivo, acima do amor que temos por nós mesmos.
Deus só ama os que o amam
Ao entrardes numa casa, saudai-a. Se a casa for digna, venha sobre ela a vossa paz, mas se não for digna, volte para vós a vossa paz. Mateus 10, 12-13
Frequentemente em sermões, para obter a atenção dos que estão meio adormecidos, lanço uma granada no meio da audiência dizendo “Deus só ama a quem O ama”. Em seguida, os que se consideram teólogos objetam e dizem que não, que Deus ama a todos por igual, e até me citam a Bíblia, que faz chover sobre o justo e sobre o injusto.
E é verdade, em teoria Deus amou tanto a Hitler como a Francisco de Assis. No entanto, a vida dos dois não foi a mesma; se os dois tiveram a mesma quantidade e qualidade de amor de Deus, por que foram tão distintos? Francisco aceitou o amor de Deus, fez-se eco dele amando a Deus; Hitler não. O sol, antes de chegar ao nosso planeta e de o aquecer e iluminar, passa pelo espaço onde a temperatura é de 300 graus negativos. Porquê? Porque está vazio, nada há nele que faça eco e acolha essa luz e esse calor. A única forma de fazer-se eco do amor de Deus é amá-l’O também.
“Amor com amor se paga” – Como diz a escritura, Deus amou-nos primeiro e sempre nos ama, mas se eu não faço eco do Seu amor em mim, é como se Ele não me amasse. Só com o amor podemos fazer eco do amor de Deus em nós. Ao amor, ou se responde com amor ou somos ingratos. Por isso, se bem que em teoria Deus ama a todos por igual, só o que aceita esse amor, só o que está aberto ao amor de Deus, sente os efeitos desse amor. O ato de aceitar o amor de Deus, o estar aberto ao amor de Deus, é amar a Deus.
Como o texto bíblico acima citado (Mateus 10: 12-13) sugere, a bênção volta para quem bendiz quando não é bem recebida. Assim, é com o amor de Deus que não encontra um coração aberto para receber o amor que Deus tem para dar.
Amar e ser amado
Amar e ser amado é a primeira necessidade humana, depois das necessidades físicas. Não há vida humana sem amor; viver é amar. Durante toda a nossa vida teremos esta necessidade. Por isso, por ser uma necessidade humana e por não haver vida humana autêntica sem amor, amar é, ao mesmo tempo, um dever e um direito.
Como necessidade inerente à natureza humana e à dignidade da pessoa humana, todos os seres humanos têm o direito de ser amados e o dever de amar. Como crianças, a prioridade é sermos amados, pois é sendo amados incondicionalmente que aprendemos a amar incondicionalmente. Como adultos, a prioridade é amar; se um adulto tem como prioridade ser amado mais que amar, não é um adulto maduro. É um desses tipos de adultos que vemos nas telenovelas, que usam mil e um estratagemas para obter a estima de alguém e pouco ou nada fazem para amar alguém.
A nível educacional, o amor é um dever dos adultos para com as crianças, um direito inerente e inato das crianças em relação aos adultos. Fora do âmbito educacional, a necessidade de amar e ser amado permanece para o resto da vida, pelo que é sempre, simultaneamente, um direito, ainda que não o reivindiquemos, e um dever, ainda que não o exercitemos.
Porém, Deus continuamente nos perguntará “onde está o teu irmão?” (Génesis 4, 9). Responder que não somos o guardião do nosso irmão não é uma resposta que satisfaça a Deus nem à nossa consciência. Convém também lembrar que a matéria do Juízo Final é a mesma matéria da vida: o amor. Se amaste, viveste; se não amaste, não viveste, eras um morto vivo, ou seja, o corpo estava vivo, mas a alma já estava morta. Com a morte do corpo, regressas ao nada a partir do qual Deus te tinha criado para fazer de ti alguma coisa; mas tu não colaboraste com a Sua graça.
Conclusão: Se na Anunciação Maria manifesta o seu amor a Deus, na Visitação à sua prima manifesta o seu amor ao próximo. Nestes dois mistérios gozosos e marianos se resume a vida do cristão.
Pe. Jorge Amaro, IMC
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