15 de maio de 2023

III Mistério - Visita de Maria à sua prima Isabel - 2ª Parte

A Anunciação evoca a escuta da Palavra de Deus – A Visitação evoca o encarnar da Palavra
Na Anunciação, Maria está atenta à escuta da palavra de Deus que lhe é transmitida por intermédio do anjo Gabriel. Esta é a atitude do verdadeiro discípulo, como Maria de Betânia aos pés do Senhor, escolhendo, segundo o Mestre, a melhor parte. Na Anunciação, Maria tem a mesma experiência que o profeta Jeremias, para quem a palavra de Deus é doce ao paladar, tão doce como o mel.

A Visitação é o tratar de encarnar a Palavra, de a colocar em prática para assim sermos não só discípulos do Mestre, mas também familiares íntimos d’Ele a de sua mãe, que passou pelo mesmo processo, bem como os seus irmãos e irmãs. Quem ouve a Palavra e não a faz comportamento do dia a dia, não a encarna, não a coloca em prática, é como o que construiu a sua casa na areia. (Mateus 7, 24-27)

A Palavra revela-nos a vontade de Deus a nosso respeito; colocá-la em prática é fazer a vontade de Deus que era já para Jesus o seu próprio alimento, pelo que assim deve ser também para nós. A Palavra, como diz a Bíblia, é viva e eficaz, é na sua prática que ela se transforma em vida e em eficácia.

Nem todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor", entrará no reino dos céus, mas o que faz a vontade do meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: "Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizámos? Não foi em teu nome que expulsámos demónios? Não foi em teu nome que fizemos numerosas ações poderosas?". Confessar-lhes-ei então: "Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade! Mateus 7, 21-23

Senhor, abre-nos", então, respondendo, ele vos dirá: "Não sei de onde vós sois". Começareis, então, a dizer: "Comemos e bebemos na tua presença, e ensinaste nas nossas praças". E ele dir-vos-á: "Não sei de onde vós sois. Afastai-vos de mim, todos os que praticais a injustiça"
. Lucas 13, 25-27

Comentando e parafraseando os textos acima, "Senhor, Senhor" é o equivalente a ouvir a Palavra de Deus. Se o Senhor nos conhece ou não, depende da prática da Palavra de Deus. Deus não nos conhece da nossa prática religiosa na igreja, mas pela forma como nos comportamos na rua. O texto de Mateus acima citado é seguido pela metáfora de construir sobre a arei ou sobre a rocha. Aquele que põe a palavra em prática constrói sobre a rocha, não sobre a areia como aquele que não pratica aquilo em que diz acreditar.

Jesus não nos conhece quando lhe dizemos “Senhor, Senhor,” mas quando o visitamos no próximo, nos necessitados, nos mais pequenos, onde Ele está escondido. Parafraseando S. João, na escuta da Palavra amamos a Deus que não vemos, na visitação do próximo vemos a Deus a quem amamos.

Se a Anunciação evoca a semente e a sementeira da Palavra – A Visitação evoca o terreno onde a Palavra cai e frutifica
Na parábola do semeador, a Palavra de Deus é comparada a uma semente de qualidade que tem em si mesma a potencialidade de dar fruto; uma semente que pode até ser tão pequena como um grão de mostarda, mas que se transforma numa árvore suficientemente grande para as aves do céu fazerem ninho e procriarem, gerando assim mais vida.

A semente é a palavra de Deus e o semeador é Cristo; depende do terreno se esta semente vai dar fruto ou não. Não é culpa da semente nem do semeador, mas sim do terreno em que a semente cai. O trigo que Deus semeou no seio de Maria tornou-se para nós pão de vida eterna.

Se a Anunciação evoca a fé e a esperança – A Visitação evoca a caridade
"De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: “Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos”, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma.

Queres ver, ó homem vão, como a fé sem obras é estéril? Abraão, nosso pai, não foi justificado pelas obras, oferecendo o seu filho Isaac sobre o altar? Vês como a fé cooperava com as suas obras e era completada por elas. Assim se cumpriu a Escritura, que diz: Abraão creu em Deus e isto lhe foi tido em conta de justiça, e foi chamado amigo de Deus (Gn 15,6). 24. Vedes como o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé?"
Tiago 2, 14- 24

Esta é uma questão que divide protestantes e católicos e que eu entendo que é um grande equívoco. S. Paulo, nos seus escritos, não tem em conta muitas partes do evangelho, sobretudo o juízo final de Mateus 25 que é sobre as obras e não sobre a fé. Todas as perguntas que nesse juízo se fazem são referentes ao amor ao próximo não ao amor a Deus.

No meu entender, quando S. Paulo fala das obras que por si sós não nos salvam, refere-se às obras inspiradas ou feitas pela obediência formal à lei de Moisés, essa mesma lei que o concílio de Jerusalém decidiu não impor aos cristãos vindos do paganismo. Os fariseus pensavam que se salvavam pela obediência formal à lei de Moisés; enquanto que para o cristão o que o salva é o ser como Jesus, praticando obras de misericórdia, mesmo que não acredite n’Ele.

Baseados nesse passo da escritura, se tivéssemos que escolher entre o amor ao próximo e o amor a Deus, devíamos escolher o amor ao próximo, pois amando ao próximo estamos a amar a Deus indiretamente; amando só a Deus estamos certamente muito enganados, pois o Deus que pensamos que amamos é Pai do nosso próximo a quem nós ignoramos. O caminho mais seguro para a salvação não é portanto amar a Deus diretamente mas sim indiretamente através do amor pelo nosso próximo.

O amor a Deus sem amor ao próximo é uma religião ópio do povo, é uma fé sem verificação nem confirmação, pois o próximo vê-se e Deus não se vê. Deste modo, é uma imagem falsa de Deus aquela que não te leva a amar o próximo. Se a fé é a conta, a caridade, o amor ao próximo é a prova dos nove dessa conta, a confirmação de que está exata; por isso, só pelas obras se pode verificar se a fé é autêntica.

"A caridade jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência findará. (…) Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade – as três. Porém, a maior delas é a caridade." I Coríntios 13, 8, 13

Se a Anunciação evoca a liberdade – A Visitação evoca a fraternidade e igualdade
Na Anunciação, Maria estava rezando, em contacto com Deus e exercendo o amor a Deus sobre todas as coisas. Estava, portanto, exercendo o valor humano da liberdade onde assenta a vida individual de cada ser humano.

Só somos verdadeiramente livres quando amamos a Deus sobre todas as coisas e sobre todas as pessoas. Quando O adoramos, ou seja, quando nos submetemos só a Ele, quando só Ele é o Senhor a quem prestamos homenagem e vassalagem, quando isto acontece somos verdadeiramente livres de tudo e de todos.

A ideia que aflora à nossa mente quando se fala de liberdade é a de viver de forma independente e autónoma, sem constrangimentos. A liberdade, no sentido de autonomia, é inerente a todo o tipo de vida ou matéria orgânica; é fazer coisas por si mesmo, é ser autónomo e independente como a célula, ou como a árvore que produz o seu próprio alimento pleo processo da fotossíntese.

Muito mais que para os animais, a liberdade é “condictio sine qua non” da vida humana. Os animais ou plantas fazem o que a natureza tem predestinado para eles, não saem fora desses moldes, pelo que não têm poder sobre a própria vida, não têm poder de opção.

O ser humano, pelo contrário, não está predestinado pela Natureza nem esta exerce poder sobre ele. O ser humano não tem propriamente um “habitat”, um ambiente propício à vida humana, ou seja, um único lugar onde a vida humana é possível. Em vez de se adaptar à Natureza, o ser humano tem a capacidade de adaptar a Natureza às suas necessidades.

Hoje a palavra “artificial” tem má fama, soa a plástico, nocivo para a saúde… Porém, a palavra na sua origem é boa pois significa “ars facere” do latim, fazer arte. Para o ser humano, o artificial é natural, o natural é artificial. O que é natural no ser humano é a criatividade de usar a Natureza a seu favor.

Os animais estão vivos; o ser humano não só está vivo, como vive, porque pode fazer da sua vida e com a sua vida o que quiser, orientá-la como quiser e até acabar com ela se assim o decidir. O ser humano tem a sua vida nas próprias mãos, não porque a possui, mas porque tem a capacidade de a administrar como quer, de a dirigir, de a gastar toda num projeto, uma opção fundamental para a qual tem talento e se sente chamado. Assim fez Beethoven ao dedicar a sua vida à música, Picasso à pintura, Ghandi à independência da Índia sem violência.

Na Visitação, Maria está em contacto com o próximo, exercendo o seu amor pelo próximo na pessoa da sua prima Isabel. Estava a ser uma boa samaritana pois estava a socorrer a sua prima mesmo sem esta lho pedir, como aliás fez nas bodas de Caná mais tarde. Sem que ninguém lho pedisse, ela solucionou o problema do vinho: provavelmente deu-se conta antes do noivo da existência de tal problema e, num ato de profunda empatia para com o noivo e a sua família, resolveu o problema, envolvendo o seu Filho e o seu poder de fazer novas todas as cosias.

Como primeiro valor da Revolução Francesa, a liberdade dizia respeito à relação entre indivíduo e sociedade; como segundo, dizia respeito à relação entre os indivíduos no interior da sociedade. O ser humano é um ser pessoal, individual, mas não é uma ilha: sempre faz parte de uma família, de um clã, de uma tribo, de uma nação.

Como já refletimos num texto anterior, o ser humano é uno e trino, tal como Deus e a sua criação. São precisos dois seres humanos para dar origem a um, pelo que um não existe, mas coexiste com outros dois. Se o valor base de um ser humano como ser pessoal e individual é a liberdade, o valor onde assenta o ser humano como ser social é a igualdade.

Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor. Levítico 19, 18

Não há em todo o mundo uma definição melhor de igualdade. O outro é um alter ego, ou seja, é um outro eu; não um tu, uma entidade externa, estranha, estrangeira, distante, mas sim o meu próximo, tão próximo que é um outro eu, um alter-ego, de onde provém a palavra altruísmo.

O que me é devido a mim, é-lhe devido a ele, pois é um ser humano como eu e todos viemos do mesmo tronco comum, nascido no Vale do Rift há 5 milhões de anos. A igualdade e a convivência na sociedade assentam no princípio de que os meus direitos são os deveres do meu próximo e os meus deveres são os direitos do meu próximo.

Não julgueis, para não serdes julgados; pois, conforme o juízo com que julgardes, assim sereis julgados; e, com a medida com que medirdes, assim sereis medidos. Mateus 7, 1

– É uma exortação divina à igualdade não nos colocarmos acima dos outros, julgando-os, pois somos todos iguais. Ninguém nos constituiu juízes, e só o seríamos, só poderíamos atirar uma pedra, se não tivéssemos pecado. Mas pecámos e frequentemente julgamos os outros pelos mesmos pecados e defeitos que nós temos, pelo que o nosso julgamento é hipócrita.

Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. Gálatas 3, 28

– Jesus curou estrangeiros e frequentemente exaltou a sua fé. Tratava o homem e a mulher de igual para igual, foi o único Rabino que teve discípulas. Nas parábolas que contava procurava um equilíbrio entre os homens e as mulheres como protagonistas. Combateu o cliché de que a mulher devia dedicar-se exclusivamente ao trabalho doméstico, tendo como única vocação ser mãe. Desta forma, 2000 anos antes, já Jesus era a favor da integração da mulher no mundo do trabalho, ao lado do homem. (Cf.  Lucas 10, 38-42, Lucas 11, 17)

As visitas de Maria
Explicamos e justificamos que Maria é medianeira e nossa intercessora no Céu com o episódio das bodas de Caná (João 2, 1-11), no qual ela apresenta as necessidades dos convivas ao seu Filho, ao mesmo tempo que os exorta a fazer tudo o que Ele disser. Por que não explicar e justificar as visitas de Maria com o episódio da visita à sua prima Isabel? (Lucas 1, 39-45)

Nas suas visitas, Maria não traz um evangelho novo, uma mensagem nova, mas tal como o Espírito Santo de quem ela é Esposa, recorda partes esquecidas da mensagem (Cf. João 14, 26) do seu Filho e reinterpreta-as no “aqui e agora” da história dos homens. De facto, um dos fatores importantes da genuinidade destas mensagens é a sua concordância com o evangelho.

Maria continua a visitar aqueles de quem ela é mãe em momentos fulcrais da História dos seus filhos, para ajudar a encarnar nesses momentos e lugares a Palavra eterna do seu filho.

Guadalupe – Apoio à evangelização
Como iam os indígenas, em 1531, aceitar de bom grado a religião dos conquistadores, exploradores e assassinos espanhóis, se Maria não tivesse aparecido a um indígena. De facto, os indígenas até àquele tempo reticentes ao cristianismo, converteram-se em massa depois das aparições.

Lourdes – O Céu confirmou
Parte importante da mensagem de Lourdes é a confirmação do Céu, no ano de 1858, do dogma da Imaculada Conceição instituído pelo papa Pio IX quatro anos antes em 1854.

Fátima – “Penitência e Oração” são a solução
Entre duas guerras mundiais, Maria propôs em Fátima, entre outras coisas, a “Penitência e a Oração” como meios para fazer frente ao ateísmo militante, naquele tempo e ainda hoje.

Conclusão: depois da doação total de si mesma a Deus na Anunciação, Maria doa-se em igual medida ao próximo, ao visitar a sua prima Isabel.

Pe. Jorge Amaro, IMC









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