15 de abril de 2021

3 Importantes apóstolos: Pedro - Tiago - Paulo

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Para além dos muitos discípulos que Jesus possuía, pelo menos 72 que o evangelho de Lucas diz que enviou em Missão (Lucas 10, 1-24), Jesus tinha um círculo mais fechado de discípulos chamados Apóstolo, ou enviados. Embora o seu número fosse 12, não nos consta que Jesus tivesse chamado um de cada tribo de Israel.

Se assim fosse, ficaria provado que Jesus procurava a restauração de Israel, mas assim não foi. Jesus escolheu 12 apóstolos de entre os seus muitos discípulos, sem obedecer a nenhum critério humano. Aparentemente, do ponto de vista humano, parece que os escolheu ao acaso. Mas segundo o provérbio, “quem vê caras não vê corações”: nós só vemos caras, Deus vê o coração de cada um e, segundo esse coração, terá Jesus escolhido os seus 12.

Eis que faço novas todas as coisas (Apocalipse 21, 5) – ao escolher ao “acaso” 12 apóstolos, Jesus quis instituir algo novo porque, como ele mesmo diria, “O reino de Deus ser-vos-á tirado e dado a um povo que produza frutosMateus 21,43

Dentro do círculo dos discípulos, temos o círculo dos apóstolos e, dentro deste círculo, temos ainda um outro formado, por coincidência ou providência, por três apóstolos. Pedro, Tiago e João são os apóstolos mais chegados a Jesus, os seus imediatos que o acompanham a lugares onde os outros não vão, os únicos que presenciam a sanação da filha de Jairo, os únicos que sobem com ele o Monte Tabor da Transfiguração e os únicos que o vêm suar sangue e água no jardim das Oliveiras.

Pedro, Tiago e João são, portanto, a tríade dos apóstolos dos tempos evangélicos da vida de Jesus, mas não são a única tríade. Mesmo já sem a presença física de Jesus, com a Igreja agora guiada pelo Espírito Santo, foram também três os apóstolos que agiram como pilares. São eles Pedro, Tiago e Paulo.

O mesmo Pedro dos evangelhos, para estabelecer a continuidade entre Jesus e a sua Igreja como seu corpo místico, faz também parte da segunda tríade. O segundo é Tiago, mas não é o mesmo Tiago dos evangelhos, também conhecido como O Maior, irmão de João, ambos filhos de Zebedeu; este Tiago é O Menor, também conhecido como o irmão do Senhor. Por fim, o terceiro da tríade dos primeiros tempos da Igreja é Paulo, o grande Paulo de Tarso, que anteriormente perseguira a Igreja.

Em que baseamos a existência desta segunda tríade? Pelo livro Atos dos Apóstolos, vemos como a figura de Pedro aparece como autoridade, se não efetiva na primeira comunidade cristã de Jerusalém, pelo menos moral, que inspira a comunidade e a chama à união. Tiago, o irmão do Senhor, é a autoridade efetiva da comunidade cristã de Jerusalém, a primeira a ser formada; esta autoridade faz-se sentir no Concílio de Jerusalém. Paulo é o protagonista de quase todo o livro dos Atos dos Apóstolos, com as suas três viagens apostólicas de evangelização.

TEMPOS APOSTÓLICOS: PEDRO – TIAGO – JOÃO
Pedro dos tempos evangélicos
Simão João seria o seu nome, pois em Israel e ainda hoje em países semitas como a Etiópia, o apelido do filho é o nome próprio do pai. Em algumas ocasiões, Jesus chamou Pedro pelo seu verdadeiro nome; quando o encontrou pela primeira vez e lhe deu a alcunha de Pedro (João, 1,42) e, mais tarde, quando lhe perguntou se o amava (João 21, 15-17).

Pedro, os outros apóstolos e, em geral, todas as pessoas que entraram em contacto com Jesus experimentaram salvação, ou seja, saúde na alma e no corpo, o perdão das suas culpas e mudança de identidade e até de nome; mudança na forma como viam a Jesus, na forma como se viam a eles mesmos e na forma como viam o mundo à sua volta. Por outro lado, é também por intermédio destas relações que Jesus estabelece com as pessoas que encontra pelo caminho que se nos revela a Sua verdadeira identidade.  

Pedro e André seu irmão
Caminhando à beira do mar da Galileia, Jesus viu Simão e o irmão deste, André, lançando as redes ao mar, pois eram pescadores. Então disse-lhes: “Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens”. E eles, imediatamente, deixaram as redes e seguiram-no. Marcos 1, 16-17

No dia seguinte, João estava lá, de novo, com dois dos seus discípulos. Vendo Jesus caminhando, disse: “Eis o Cordeiro de Deus”! Os dois discípulos ouviram esta declaração de João e passaram a seguir Jesus. (…) André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que tinham ouvido a declaração de João e seguido Jesus. Ele encontrou primeiro o próprio irmão, Simão, e lhe falou: “Encontramos o Cristo!” (que quer dizer Messias). Então, conduziu-o até Jesus, que lhe disse, olhando para ele: “Tu és Simão, filho de João. Tu te chamarás Cefas!” (que quer dizer Pedro). João 1, 35-37, 40-42

Jesus chama pessoas ocupadas, não gente que não fazia nada, pessoas que já tinham uma profissão. Diz-se que se quiseres pedir um favor a alguém, pede-o a uma pessoa ocupada e não a uma desocupada, pois esta última inventará mil e uma coisas para não te atender. O evangelho de S. Marcos é famoso pela palavra “imediatamente” que repete inúmeras vezes.

Há oportunidades na vida que não vêm duas vezes. Quando o fundador dos Missionários da Consolata, o Beato José Alamano decidiu fazer-se sacerdote, os irmãos trataram de dissuadi-lo dizendo “Pensa melhor e decide depois”; ele respondeu, “Jesus chama-me hoje, não sei se me chamará amanhã.

Os pastores foram os primeiros a visitar Jesus, porém, para seus discípulos, Jesus escolheu pescadores. Um pastor só é preciso quando existe um rebanho para guardar e cuidar. Jesus não tinha ainda rebanho, por isso precisava do talento do caçador ou pescador, para atrair gente a si a fim de os enviar a pescar outros para a sua causa: a transformação do mundo no reino de Deus. No relato de João, vemos como André faz isso mesmo com o seu irmão Simão.

A versão de João do chamamento dos primeiros discípulos parece mais credível e mais histórica que a de Marcos, apesar de Marcos ter sido o primeiro evangelho a ser escrito. Marcos escreveu o seu evangelho para os romanos de Roma, por isso dá propositadamente mais ênfase a Pedro. Na versão de João, André conhece a Jesus primeiro porque já era discípulo de João Batista.

Pedro - pescador e pecador
Quando acabou de falar, disse a Simão: “Avança mais para o fundo, e ali lançai as vossas redes para a pesca”. Simão respondeu: “Mestre, trabalhamos a noite inteira e não pescámos nada. Mas, pela tua palavra, lançarei as redes”. Agindo assim, pescaram tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam. (…) Vendo isso, Simão Pedro caiu de joelhos diante de Jesus, dizendo: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador!” O mesmo ocorreu a Tiago e João, filhos de Zebedeu e sócios de Simão. Jesus disse a Simão: “Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador de homens!Lucas 5, 4-6, 8, 10

Jesus pesca Pedro na sua imperfeição até como pescador. Jesus não busca santos, porque não há santos diante de Deus. Jesus busca pecadores que estão cientes da sua condição e isso é um santo; santo não é o perfeito, mas o que reconhece as suas imperfeições. Esta qualidade, encontramo-la já no rei David, também ele pecador ciente da sua condição.

A humildade é a mãe de todas as virtudes, o orgulho o pai de todos os vícios. O que é humilde deixa-se moldar por Deus, como a criança que deixa que o pai guie a sua mão ao escrever as primeiras letras. Quando sou débil sou forte, diz S. Paulo (2 Coríntios 12, 10), quando sou consciente da minha culpa obtenho o perdão de Deus; quando sou consciente das minhas limitações deixo que o poder de Deus atue em mim e por mim.

Pedro é realista acerca de si mesmo, não pretende ser quem não é, aceita que é pecador em frente de Jesus e chora o seu pecado quando o nega, não busca justificações, desculpas ou escusas nem perante os outros nem perante Deus nem perante si mesmo. Faz-se responsável pelo seu pecado e chora a sua culpa.

Mais tarde, Jesus dá-lhe a oportunidade de se redimir, perguntando-lhe três vezes se o amava. E até aqui Jesus parece contentar-se com o seu melhor, abdicando da perfeição, pois ao fazer a pergunta usando a palavra “ágape”, amor oblativo com que ele nos amou, aceita que Pedro o ame só com amor de amizade, pois este usou a palavra “philia”. Ou seja, Jesus perguntou a Pedro, “Pedro amas-me?” e Pedro respondeu “Eu gosto de ti”.

Não nos atraem as pessoas que escondem as suas vulnerabilidades, os seus complexos e sentimentos de inferioridade com orgulho e vanglória, mostrando-se superiores aos outros. Quem procura mostrar-se superior, frequentemente esconde um sentimento de inferioridade. Pedro faz-se amar por Jesus e pelos seus companheiros porque, apesar de ter sido escolhido entre os doze para chefe, não esconde as suas vulnerabilidades, a sua condição.  

Perfil psicológico de Pedro - Sanguíneo
Cálido, profundo, dinâmico, emotivo, impulsivo e vibrante; desinibido e loquaz, mas não se fica só pelas palavras, decide e age muitas vezes sem pensar, mas com valentia; embora no fundo seja uma pessoa medrosa, como líder, arrasta os outros consigo.

É aberto e livre nos seus sentimentos e ações. Boa capacidade de comunicação e sociabilidade, relaciona-se bem com os outros. Como negativo, salientamos a pouca força de vontade; instável emocionalmente, explosivo, impaciente e egoísta. Inseguro, inconstante, inconsistente e medroso. Por ser ativo, é pouco dado à introspeção.

Inconstante e incoerente
Disse-lhe Pedro: “Senhor, porque não posso seguir-te agora? Eu daria a vida por ti!” Replicou Jesus: “Darias a vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo, antes de me teres negado três vezes!” João 13,37-38

Impulsivo
Pedro respondeu-lhe: “Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas”. Mateus 14,28
Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: “Senhor, é bom estarmos aqui; se quiseres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.
Mateus 17,4

Nessa altura, Simão Pedro, que trazia uma espada, desembainhou-a e arremeteu contra um servo do Sumo Sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. O servo chamava-se Malco. João 18,10

Gabarolas
Jesus disse-lhes, então: “Nesta mesma noite, todos ficareis perturbados por minha causa, porque está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas do rebanho serão dispersas. Mas, depois da minha ressurreição, hei de preceder-vos na Galileia.” Tomando a palavra, Pedro respondeu-lhe: “Ainda que todos fiquem perturbados por tua causa, eu nunca me perturbarei!” Mateus 26-31-33

Egocêntrico, inseguro, medroso
Tomando a palavra, Pedro disse-lhe: “Nós deixámos tudo e seguimos-te. Qual será a nossa recompensa?
Mateus 19,27
Tomando-o de parte, Pedro começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus te livre, Senhor! Isso nunca te há de acontecer!” Mateus 16,22
Mas, sentindo a violência do vento, teve medo e, começando a ir ao fundo, gritou: “Salva-me, Senhor!
Mateus, 14, 30

Desinibido e franco, obediente e gostando de agradar
“Mestre, trabalhámos durante toda a noite e nada apanhámos; mas, porque Tu o dizes, lançarei as redes.” Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe. As redes estavam a romper-se, Lucas 5, 1-6

Primado de Pedro
O papel de Pedro entre os doze foi proeminente; os primeiros escritos do Novo Testamento referem-no como um líder dos doze e um dos primeiros a ver Jesus ressuscitado (1 Coríntios 15, 5). Foi considerado por Paulo e todos no seu tempo como sendo um dos pilares do movimento da igreja primitiva (Gálatas 2, 9).

Em todos os evangelhos, Jesus diferenciou Pedro dos outros apóstolos, desde que o encontrou pela primeira vez. O ter-lhe dado a alcunha de “rocha” sobre a qual ia edificar a sua Igreja, pode ser interpretado, como alguns protestantes o fazem, como referindo-se à fé de Pedro sobre a qual, de facto, se edificou a Igreja. (João 1,42; cf. Marcos 3,16; cf. Mateus 16,18).

Esta interpretação seria correta se este fosse o único texto que alude à primazia de Pedro sobre os demais apóstolos; mas como não é assim, como há muitos outros textos que confirmam esta primazia, o nome Pedro indica a função dentro da Igreja que lhe estava reservada a ele e só a ele.

Em todas as menções dos apóstolos, na lista dos 12, Pedro vem sempre em primeiro lugar; o evangelho de Mateus (10, 12) chama-o expressamente o primeiro. Pedro, juntamente com Tiago e João, foram os únicos testemunhos da ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5,37), da transfiguração (Mateus 17,1) e da agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras (Mateus 26,37).

Jesus prega às multidões a partir da barca de Pedro (Lucas 5,3), quando está em Cafarnaum, a casa de Pedro é a sua própria casa, (Marcos 2, 1-12), de todos os familiares dos apóstolos só curou um: a sogra de Pedro (Lucas 4, 38-44). Jesus diz a Pedro que pague o tributo ao Templo por eles os dois (Mateus 17,27), exorta-o a que ampare a fé dos outros apóstolos depois da sua própria conversão (Lucas 22,32); depois da ressurreição, aparece primeiro a Pedro, antes de aparecer aos outros apóstolos (Lucas 24,34; 1 Coríntios 15,5). Pedro atua quase sempre como o porta voz dos apóstolos que raramente falam diretamente com Jesus.

Pedro foi o único apóstolo que viu em Jesus algo mais que um profeta ou a reincarnação de João Batista; o único que afirmou que Jesus era o messias, o esperado pelas nações (Mateus 16,17-19). Embora este mesmo poder tenha também sido dado mais tarde aos outros Apóstolos, é significativo que o tenha dado primeiro a Pedro individualmente. Atar e desatar, nos termos da terminologia rabínica do tempo, significava declarar estar em comunhão com a Igreja ou excomungar da mesma. Portanto, Pedro tem não só a função de ensinar e amparar, como também a função jurídica.

A primazia de Pedro vem revelada nos evangelhos, até nos episódios negativos sobre a sua figura. O medo de se afundar no lago, (Mateus 14, 30) a negação do mestre, (Lucas 22, 54-62) a pesca milagrosa, (Lucas 5, 4-6, 8, 10). Até mesmo quando Jesus o chamou de Satanás (Mateus 16, 23).

Só não vê quem não quer ver; a negação da primazia de Pedro, a sua importância dentro do colégio dos apóstolos, só pode ser feita por motivos ideológicos para justificar as Igrejas Ortodoxas e Protestantes.

Quando a Missão de Jesus foi concluída e voltou para o Pai, a Igreja que ele próprio fundou, tornou-se o seu corpo místico para continuar o seu trabalho de salvação de geração em geração até ao fim dos tempos. Como um corpo, por uma questão de unidade, só pode ter uma cabeça, é lógico que o chefe da Igreja seja Pedro pois era o líder dos discípulos de Jesus, como vimos.

Por tudo o que sabemos, Pedro viveu os seus últimos anos, e deu o seu último suspiro em Roma, a capital do Império Romano. De acordo com São Ireneu (130-202), bispo de Lyon, e o historiador Eusébio Bispo de Cesareia marítima no ano 314, Linus, um romano mencionado em 2 Timóteo 4:21 foi nomeado para ser o segundo bispo de Roma pelos apóstolos Pedro e Paulo.

A importância do primado de Pedro é a unidade da Igreja. “Cada cabeça, sua sentença”, duas autoridades não levam à união, mas sim à divisão. O monoteísmo, antes de ser distintivo do povo de Israel, tinha sido a política seguida por um faraó do Egito no intuito de criar uma maior coesão entre os povos do Nilo. A existência de vários deuses, como a existência de várias igrejas, não é conducente a harmonia e paz, mas sim a divisão e guerra. As guerras religiosas podem chegar a ser piores que as outras.

Quando se adora um só Deus que se tem como Pai de todos, é mais fácil ver no outro o nosso irmão, independentemente de quem ele for. Este mesmo princípio se verifica na primazia de Pedro. Jesus não quis várias Igrejas, só fundou uma, rezou, ele mesmo, pela união de todos os cristãos. (João 17, 20-23)

Tiago e João filhos de Zebedeu
Prosseguindo um pouco adiante, viu também Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão, João, consertando as redes no barco. Imediatamente, Jesus os chamou. E eles, deixando o pai Zebedeu no barco com os empregados, puseram-se a seguir Jesus. Marcos 1, 19-20

Segundo os primeiros três evangelhos, Jesus chamou no mesmo dia e à mesma hora quatro discípulos que eram dois pares de irmãos. Os primeiros, Pedro e André, seriam mais velhos que os segundos, pois pescavam sozinhos; os segundos, Tiago e João, seriam mais novos, pois estavam a consertar as redes com o seu pai.

Os primeiros estavam a pescar, os segundos a consertar as redes. As duas atividades são importantes; não se pode pescar sem consertar de vez em quando as redes que se rompem com o uso. À primeira vista, passa-nos despercebido o facto de que uns pescavam e os outros consertavam as redes, mas não creio que este facto esteja no evangelho casualmente, sem nenhum significado especial.

Pescar é atividade, consertar as redes pode ser muitas coisas; pode ser rezar, orar. Jesus abandonava a atividade, ia para sítios ermos, na calma da noite ou ao raiar da aurora, para estar a sós consigo mesmo e com Deus seu Pai. Antes de começar a sua vida pública, passou 40 dias e 40 noites em jejum e oração. Durante a sua vida pública, antes dos momentos mais importantes, rezou, terminou a sua vida na Terra rezando. Ensinou os seus apóstolos a rezar e exortou-os várias vezes a que o fizessem para não sucumbir diante da tentação.

Consertar as redes pode significar o ato de pensar, de programar a atividade ou mesmo o estudo de métodos de pescar, de diferentes redes e anzois para diferentes tipos de peixe. Todo o evangelista e pregador sabe que tem de se adequar à cultura, idade e idiossincrasias das pessoas a quem prega, para que estas entendam a palavra.

Um à direita e outro à esquerda
Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus e disseram-lhe: “Mestre, queremos que faças por nós o que te vamos pedir”. Ele perguntou: “Que quereis que eu vos faça?” Responderam: “Permite que nos sentemos, na tua glória, um à tua direita e o outro à tua esquerda!” Marcos 10, 35-37

 De forma geral, em todo o evangelho de S. Marcos, os apóstolos não saem muito favorecidos e estes dois, apesar de pertencerem ao círculo interno dentro dos doze, são os que saem pior. Mesmo pensando que o reino de que Jesus falava era a restauração do reino Davídico, a independência de Israel dos romanos, não faz sentido o pedido, uma vez que os dois já pertenciam ao círculo mais próximo de Jesus; portanto, quando esse reino se tornasse realidade, iam sentar-se um à direita e o outro à esquerda.

A única explicação viável é a de que queriam destronar Pedro da sua posição de destaque em relação aos doze. O episódio é tão vergonhoso para os dois irmãos que Lucas não o menciona e Mateus coloca o pedido na boca da mãe dos filhos de Zebedeu. O mais certo é que tenham sido eles mesmos a fazê-lo e isso até em Mateus fica evidente porque Jesus não responde à mãe deles, mas a eles em pessoa.  

Quem não vive para servir, não serve para viver. A autoridade em Jesus é serviço, ele mesmo disse de si mesmo que veio ao mundo para servir não para ser servido (Mateus 20,28). E também disse que a sua posição entre os apóstolos era a de servir (Lucas 22,27). E para que ficasse claro, na última ceia fez um dos serviços mais baixos daquele tempo, o lavar os pés aos seus discípulos; o ato em si foi tão dramático que os discípulos nunca o esqueceram. (João 13, 1-17)

Jesus era um leigo, não era escriba nem fariseu nem sacerdote e, no entanto, os seus contemporâneos reconheciam nele mais autoridade que a que tinham os sacerdotes, os escribas e fariseus (Marcos 1,22). Eleita democraticamente ou nomeada, a verdadeira autoridade para Jesus é a que surge de dentro da pessoa, é uma autoridade carismática e moral, não é inerente ao posto que se ocupa na sociedade.

Mais importante que o lugar que se ocupa na sociedade é a forma como se ocupa esse lugar. O respeito pela autoridade já não é automático, como antigamente, inerente ao cargo, mas deve ser ganho; uma autoridade eleita ou nomeada sem autoridade moral não ganha o respeito das pessoas, mas o seu desprezo.

Por outro lado, a ninguém devemos chamar Senhor, pois somos todos iguais, só há um Senhor que é Deus. Numa moral heterónoma, as pessoas acriticamente seguem regras, mandamentos, leis, configurando a sua vida segundo normas exteriores a si mesmas.

A moral que Jesus pregou não é heterónoma de seguimento de regras, mas autónoma de seguimento da própria experiência adquirida na vida e da própria consciência moral como poder legislativo e executivo. Ele mesmo assim fez rompendo com a lei do Sábado em situações em que a sua própria consciência achou que curar um doente era um valor mais alto que o de observar o Sábado.

Tiago e João filhos do trovão
Tomando a palavra, João disse: “Mestre, vimos alguém expulsar demónios em teu nome, mas nós proibimo-lo, porque não anda connosco”. Jesus respondeu: “Não o proibais, pois quem não é contra vós, está a vosso favor”. Lucas 9, 49-50

(…) os samaritanos não o queriam receber, porque ia para Jerusalém. Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu, para que os destrua?” Ele, porém, voltou-se e repreendeu-os. E partiram para outro povoado. Lucas 9, 54-56

Para além da alcunha de Pedro, Jesus batizou também como “filhos do trovão” os outros dois apóstolos que faziam parte do círculo interno dos seus discípulos. Não é difícil saber por que Jesus escolheu este nome para dar a estes dois irmãos. O fanatismo e a intolerância sempre foram a tentação dos que se creem os únicos detentores da verdade ou de toda a verdade.

A Igreja entende que existem “Semina verbum”, sementes da Palavra de Deus em todas as religiões. Estamos longe da “Extra eclesia nulla salus”, não há salvação fora da Igreja. Não há salvação fora de Cristo, porque Cristo é o filho de Deus e veio para salvar toda a humanidade. Quem mesmo sem conhecer a Cristo o segue como caminho, verdade e vida, é um cristão anónimo, como disse Karl Rhaner. Cristo não veio implantar uma nova religião, mas veio ensinar os homens a ser homens.

Cristão e humano são sinónimos, por isso quem é autenticamente humano é autenticamente cristão. No ocaso da nossa vida, seremos julgados não pela nossa confissão, não pela nossa identidade, mas pelas nossas obras. No evangelho de Mateus capítulo 25, nas perguntas sobre o juízo final, não há nenhuma pergunta referente à identidade da pessoa, referente ao que é ou foi; todas são referentes ao que fez.

Ao contrário do fanatismo dos filhos de Zebedeu, Jesus aconselha a avançar, não a forçar as pessoas a uma conversão. Basta que o outro não esteja declaradamente contra mim para, de alguma forma, estar comigo. Se não está declaradamente contra mim, se me tolera, de alguma forma está comigo. A versão fanática e intolerante desta frase diz o contrário, “Quem não está comigo está contra mim”.

Deus que nos criou sem o nosso consentimento, não nos salva sem ele. A liberdade humana é a impotência do omnipotente Deus. A salvação é de livre escolha, não pode ser forçada a ninguém; é isto que vemos desde o princípio em Abraão, em Isaac, em Jacob e no Novo Testamento, em Maria que livremente disse que sim, podendo ter dito que não.

Nos evangelhos, os filhos de Zebedeu aparecem poucas vezes em separado. Tiago nunca aparece separado do seu irmão João, aparece separado duas vezes no episódio que já mencionámos e quando corria para o túmulo com Pedro e, apesar de ter chegado em primeiro lugar, deixou que fosse Pedro o primeiro a entrar.  

João, filho de Zebedeu, não é o autor do quarto evangelho: nenhum dos evangelistas foi apóstolo de Jesus pois os evangelhos foram escritos depois da pregação dos apóstolos; os apóstolos pregaram e os discípulos destes apóstolos foram quem escreveu os evangelhos. Lucas era discípulo de Paulo, Marcos era discípulo de Pedro, e Mateus também não é o que antes de ser apóstolo foi cobrador de impostos; é muito provavelmente um escriba convertido ao cristianismo. João, filho de Zebedeu, sempre nos foi apresentado como o discípulo amado, porém hoje quase todos parecem concordar que não é e que não era nenhum dos doze.

Dos três grandes apóstolos do círculo próximo de Jesus, dos tempos evangélicos, só Pedro, passa para os tempos do Novo Testamento e primeiros passos da Igreja, fazendo parte de uma outra tríade, juntamente com Tiago Menor ou irmão do Senhor e Paulo. Tiago, filho de Zebedeu, foi martirizado por Herodes Antipas no ano 44 (Atos, 12,2), acabando por beber o cálice que tinha desejado beber. João é provavelmente o único dos doze que cruzou o limiar do primeiro século, e morreu de velho.

Afinal os filhos de Zebedeu não conseguiram destronar Pedro, este acabou por ser a continuidade entre os tempos evangélicos e os tempos dos Atos dos Apóstolos. Os filhos de Zebedeu ainda são mencionados neste livro, mas não são importantes; uma outra tríade se formou, mas os outros dois não pertenciam ao grupo dos doze. Tiago Menor e irmão do Senhor e Paulo, um fariseu convertido.

PRIMEIRA IGREJA – PEDRO – TIAGO – PAULO
A História diz-nos que depois de um grande carismático, visionário e fundador de qualquer movimento, vem sempre uma pessoa que o institucionaliza, ou seja, que o integra na realidade social e cultural de um lugar, num determinado momento da sua História. Se assim não fosse, aquele carisma não passaria de um sonho de uma noite de verão que se esfuma tão depressa quanto apareceu.

Esta tarefa não podia ser realizada por simples pescadores que depois da morte de Cristo não possuíam uma identidade definida: enquanto Jesus tinha criticado certas leis dos judeus, os apóstolos continuavam a segui-las. Jesus tinha criticado o Templo, no entanto os apóstolos continuavam a frequentá-lo diariamente, como nos diz o livro dos Atos; eram incoerentes e inconsistentes, reconciliavam o irreconciliável, as visitas ao Templo com a celebração da Eucaristia nas casas.

Sem S. Paulo, que institucionalizou os ideais de Jesus e lhes deu uma consistência teológica, talvez o cristianismo nunca tivesse ganho asas para voar, nunca tivesse passado de uma seita do judaísmo, que este, tarde ou cedo acabaria por absorver, suplantar ou eliminar. E foi precisamente o pior inimigo deste novo movimento que se tornou no seu melhor amigo e no seu salvador: Saulo de Tarso.

Esta tríade dos primeiros passos da Igreja, como nos revela o livro dos Atos dos Apóstolos, não é um grupo mais ou menos coeso como o primeiro que vivia juntos com o mestre. Ao contrário, estes três apenas se conhecem, pois habitam em diferentes lugares e têm diferentes filosofias. Cada um deles tem um papel muito importante nas primeiras comunidades cristãs.

Cada um deles é líder à sua maneira e as suas lideranças chegam a causar alguns atritos entre si. Paulo respeita e aceita a Pedro como líder dos cristãos, mas não o poupa a algumas críticas; está em claro confronto com Tiago, o irmão do Senhor.

Tiago muito provavelmente não aceita a liderança de Pedro pois, como é da família de Jesus, acha que deve ser ele o líder e, de facto, é o líder da primeira comunidade cristã, a de Jerusalém. Pedro está na corda bamba entre estes dois e faz de fiel da balança; reconhece o carisma arrebatador de Paulo e tem por ele muita simpatia; procede com cautela, respeita ou tem medo de Tiago e tacitamente não parece perturbado com a liderança e poder fáctico deste.

Pedro nos Atos dos Apóstolos
Mas Pedro e João retorquiram: “Julgai vós mesmos se é justo, diante de Deus, obedecer a vós primeiro do que a Deus. Quanto a nós, não podemos deixar de afirmar o que vimos e ouvimos.” Atos 4, 19-20

Nos Atos dos Apóstolos, vemos o que o Espírito pode fazer por uma pessoa. Vemos Pedro transformado no seu melhor, menos impulsivo e mais calmo como a situação o requeria, pois ele era o mediador entre dois furacões; mas, por outro lado, também o vemos mais proativo e menos medroso, desobedecendo aos sumos sacerdotes e até chegando a acusá-los de terem morto Jesus de Nazaré. (Atos 5, 28, 50-42).

Depois do grande discurso na manhã de Pentecostes, Pedro parece tomar o lugar de Jesus, seguindo as pisadas do mestre, pregando e curando tal como Jesus fazia. O primeiro ato de Pedro como líder foi nomear um substituto de Judas.

A Igreja primitiva começa a estender a sua missão fora do âmbito de Jerusalém e quando os apóstolos ouviram falar do sucesso de Filipe na pregação de Samaria, Pedro e João deslocaram-se lá para impor as mãos sobre os novos cristãos. Mais tarde, Pedro desloca-se a Lydda e cura um paralítico chamado Aeneas; depois a Joppa, hoje Jaffa, e ressuscita Tabitha, uma senhora que tinha acabado de falecer e que ajudava muito os pobres.

Na Cesareia, tem a experiência mística que o vai ajudar a guiar o resto dos cristãos na decisão tomada sobre os gentios no concílio de Jerusalém. Esta experiência culmina no batismo de um centurião romano chamado Cornélio e de toda a sua família.

Por este tempo Herodes começou a perseguir os cristãos, encarcerou Tiago, O Maior e decapitou-o como tinha feito com João Batista. Ao ver que isto agradou aos judeus, encarcerou também Pedro por ser o líder do movimento. Porém, em virtude do Espírito Santo que guiou a Igreja desde o princípio, Pedro foi milagrosamente liberto.

Para fugir da jurisdição de Herodes, Pedro voltou a Jerusalém, sob jurisdição direta dos romanos, como sabemos. Em Jerusalém, Pedro refugiou-se na casa de Maria, mãe do evangelista João Marcos (Atos 12, 12). Aliás, esta parece ser a residência da primeira comunidade cristã, a de Jerusalém. Pelo que sabemos por Papias que escreveu por volta do ano 90, Marcos, depois de ter sido por um tempo curto discípulo de Paulo, seguiu os passos de Pedro como seu discípulo e secretário, desde Jerusalém, Antioquia até Roma; por isso, o seu evangelho escrito em Roma e para romanos é um reflexo da pregação de Pedro

Tiago, o irmão de Senhor
Estavam ali também algumas mulheres olhando de longe; entre elas Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago Menor e de José, e Salomé. Marcos 15, 40

Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu. Mateus 27, 56

Junto à cruz de Jesus, estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. João 19,25

Se compararmos esses três relatos, vemos três mulheres chamadas Maria ao pé da cruz: Maria, a mãe de Jesus; Maria Madalena; e Maria, a esposa de Cléofas, que também era mãe de Tiago e José. Marcos e Mateus dizem-nos que aos pés da cruz do Senhor estava Maria, mãe de Tiago Menor, João coloca Maria a mãe do Senhor e Maria Madalena ao pé da cruz e revela o nome da outra Maria, dizendo que é a mulher de Cléofas e dizendo também que é a irmã da mãe de Jesus.

Podemos então concluir com toda a segurança que Tiago é primo do Senhor, não irmão de sangue: Jesus e Tiago Menor são filhos de duas irmãs. Sabemos por Mateus (10,3) que o pai de Tiago era Alfeu, nome hebreu que em grego se traduz por Cléofas, pelo que Cléofas e Alfeu, são a mesma pessoa.

O que sabemos de Tiago é que não só é o líder da comunidade de Jerusalém, como é também o líder de uma das fações do cristianismo: os cristãos hebreus opostos aos cristãos helenistas, cujo líder era Paulo. Tiago é também escritor de uma carta emblemática que aparentemente se opõe à teologia de Paulo. Parece aceitar que a salvação nos vem da nossa fé em Jesus, mas declara perentoriamente que a fé sem obras é uma fé morta. (Tiago 2, 14-26)

Paulo, o apóstolo dos gentios
Podemos dizer que no Novo Testamento, depois dos evangelhos, Paulo é o nome mais repetido e indiscutivelmente a figura mais importante da Igreja primitiva. Cronologicamente, o primeiro escritor e o mais prolixo é Paulo com as suas cartas. Os Atos dos Apóstolos bem poderiam ser chamados as aventuras e desventuras de Paulo como apóstolo dos gentios, pois, tal como o evangelho de Lucas, foram escritos por um dos seus discípulos.

A vida de Paulo pode ser recolhida nos Atos dos Apóstolos e nas suas cartas, nas quais Paulo menciona que era um fariseu da tribo de Benjamim, o seu nome judeu era Saulo, (O nome do primeiro rei de Israel também da tribo de Benjamin), nascido em Tarso na Ásia Menor. Foi educado na mais estrita observância do judaísmo, durante a sua juventude em Jerusalém, por Gamaliel (Fil. 3:5-6; cf. 2 Cor. 11:22; Rom. 11:1, Gal. 1:14; 2:15.).

Ao mesmo tempo as suas raízes estão na cultura grega, sobretudo no que respeita à filosofia e retórica. É também um cidadão romano, título que foi conseguido pelo seu pai e era extensivo a toda família. Paulo é um homem que vive entres dois ou três mundos, familiarizado com a cultura hebraica e grega, assim como com a política romana.

De perfil marcadamente colérico, Paulo era instintivo e a sua inteligência era intuitiva e sagaz, muito controverso, impulsivo e conflituoso. Apesar de ter sido praticamente contemporâneo de Jesus, não o conheceu pessoalmente, nem antes da morte nem depois dela, pois não teve, como os demais apóstolos, uma experiência real de Cristo ressuscitado.

Foi perseguidor do movimento de Jesus até ter uma experiência mística, um encontro com o mesmo Jesus a quem ele perseguia. Antes da sua conversão, Paulo usava a sua força e talento em favor do judaísmo, aterrorizando os cristãos. Os mesmos talentos são usados para difundir o cristianismo pelos pagãos.

Como tinha sido perseguidor do movimento de Jesus, poucos acreditavam nele e até pensavam que era um espião; porém, Barnabé acreditou nele e assim começou Paulo a colocar os seus talentos de persuasão, anteriormente ao serviço do judaísmo, agora ao serviço de Cristo. Os Atos falam de Barnabé e Paulo, mas logo a seguir falam de Paulo e Barnabé e mais tarde só de Paulo.

Paulo possuía excelentes dotes teológicos, mas sabia pouco de Jesus. Por isso se fez rodear por João Marcos, mais tarde discípulo de Pedro e escritor do primeiro evangelho. Seguir a Paulo era bem difícil e João Marcos, com saudades da família em Jerusalém, abandonou Paulo. Quando voltou, teve uma discussão muito violenta com Paulo. Este último não queria perdoar a Marcos e este, com Barnabé, provavelmente seu tio, tiveram de deixar Paulo (Atos 15, 39). Paulo ter-se-á arrependido e quis ter outra vez Marcos na sua companhia; mas nessa altura, já Marcos era discípulo de Pedro. (2 Timóteo 4, 11)

Empenhado a 100% na causa de Cristo, reclama para si o título de Apóstolo pelo muito que fez pelo evangelho, fundando comunidades cristãs entre os gentios no decorrer de três grandes viagens que realizou. Baseado na filosofia de Jesus, Paulo entende que ser apóstolo não é um título com pedigree, exclusivo dos doze, que nunca se perde, mesmo que não se exercite, algo assim como ter sangue azul. Fiel ao “pelos seus frutos os conhecereis” de Jesus, para Paulo é apóstolo quem atua como tal.

E ninguém mais que ele atuou como apóstolo pelo muito que difundiu o evangelho ao longo de três viagens, pelas comunidades cristãs que fundou a norte e a sul do Mediterrâneo, nas suas viagens, e pelo muito que escreveu: metade do Novo Testamento. Paulo não só reteve para si o título, como também o deu aos seus colaboradores e colaboradoras.

Competente, autodisciplinado e firme (1 Coríntios 9, 24-27), chegando a ser afetivo e sentimental, (Filipenses 1, 7-8), é impossível ficar indiferente a Paulo: ou se odeia ou se ama. Prisoneiro, tornou-se no capitão do navio. Julgado por Tertullus, Félix e Agrippa tomou ele as rédeas do seu destino e, na prisão, os guardas foram os seus prisioneiros.

Concílio de Jerusalém
A maior parte das pessoas entende que o concílio de Jerusalém, como todos os concílios, foi acerca de uma questão doutrinal entre duas fações do cristianismo, os judaizantes e os helenistas. Porém, não foi bem assim.

Rivalidade entre os familiares e os discípulos de Jesus
Nesta reunião, após longas discussões, Pedro levantou-se e falou aos presentes do seguinte modo: “Irmãos, todos sabem que Deus me escolheu há muito, de entre vós, para pregar o evangelho aos gentios, a fim de que também eles possam crer. (…) A discussão acabou, passando todos a ouvir Barnabé e Paulo que relatavam os sinais que Deus fizera por seu intermédio entre os gentios. (…) Quando terminaram, começou Tiago: “Irmãos, escutem-me. Pedro falou-vos do tempo em que Deus primeiro visitou os gentios para de entre eles levantar um povo que honrasse o seu nome.  E este facto da conversão dos gentios está de acordo com as predições dos profetas. Atos 15, 7, 12-15

Em jogo neste concílio esteve também uma questão menos conhecida, mas que se antevê tanto nos evangelhos como no mesmo texto dos Atos sobre o concílio: a rivalidade entre os familiares de sangue de Jesus e os seus discípulos.

Tiago, o irmão do Senhor e o líder da comunidade de Jerusalém, não era só o líder dos judaizantes, mas também se autoconsiderava o sucessor de Jesus por ser o seu familiar mais direto. Não devemos esquecer que Jesus é da linhagem de David e que todos os reis depois de David foram seus descendentes. Por isso, Tiago entende que ele e não Pedro deve ser o líder do movimento de Jesus.

No texto do concílio acima citado, vemos que Pedro dá a inspiração aos conciliares, tendo presente sobretudo a sua experiência no batismo do centurião romano Cornélio; Paulo e Barnabé apresentam a questão, mas quem decide e bate com o martelo na mesa é de facto Tiago.

Marcos, o primeiro evangelho a ser escrito desde a pregação de Pedro o líder dos discípulos, de facto, transmite uma má imagem dos familiares de Jesus, chega a dizer que o consideravam louco; e quando os familiares de Jesus pretendem falar com ele, Marcos faz dizer a Jesus que os seus familiares não são os de sangue, mas são os que fazem a vontade de Deus. (Marcos 3, 31-35).

Pelos vistos levou tempo a dirimir-se a questão da rivalidade entre os familiares de Jesus e os seus discípulos, pois o evangelho de João, o último a ser escrito volta a ela, colocando na boca de Jesus uma forma de reconciliação entre os familiares de Jesus e os seus discípulos: Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mulher, eis o teu filho!” Depois disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!” A partir daquela hora, o discípulo recebeu-a em sua casa. João 19, 26-27

Rivalidade entre os judaizantes e os helenistas
Tiago: Assim, na minha opinião, não devemos causar dificuldades aos gentios que se voltam para Deus. Devemos escrever-lhes, sim, que se abstenham de coisas consagradas aos ídolos, da prática da imoralidade sexual, de carne de animais estrangulados e de sangue. Atos 15, 19-20

“Contra factos não há argumentos” diz o povo, porém, no que respeita ao facto “Jesus de Nazaré”, logo desde o princípio surgiram argumentos discordantes. Uma coisa é o que acontece, outra são as diferentes versões do que acontece e as diferentes interpretações do que acontece. Não é suficiente ver os factos, é preciso saber interpretá-los. Os discípulos de Emaús viram os factos, mas não conseguiam interpretá-los, precisaram da ajuda de Jesus. Agora a Igreja nascente, na falta de Jesus, tinha a ajuda do Espírito Santo que a ajudava a interpretar a revelação acontecida em Jesus de Nazaré.

Quando falamos da primeira Igreja de Jerusalém, temos a tendência para entender que se tratava de uma Igreja unida numa mesma doutrina, mas não era assim. Logo desde o princípio, houve dois tipos de cristianismo em conflito um com o outro:

Os judaizantes - eram ao mesmo tempo cristãos e judeus que conciliavam contraditoriamente o templo com a Eucaristia, a lei de Cristo com a lei de Moisés e que eram uma mistura de cristianismo. Ainda hoje se encontram na Etiópia os cristãos coptas que colocam ao mesmo nível a lei de Moisés e a de Cristo, que não comem carne de porco, por exemplo, proibida pela lei de Moisés.

O líder deste movimento não era Pedro nem João que o acompanhava muitas vezes, mas Tiago, o irmão do Senhor. Pedro terá a princípio favorecido este movimento, pois no livro dos Atos vemos como ele e João frequentavam o Templo. Porém, depois da sua experiência na Cesareia, estava mais do lado dos helenistas, sobretudo desde que Paulo se tornou líder desse movimento. O Espírito Santo terá dito a Pedro que pouco futuro havia com os judeus.

Os helenistas – eram judeus da diáspora que tinham regressado a Jerusalém; os seus primeiros líderes foram Estevão e Filipe (Atos 6,5). Os helenistas, como o próprio nome indica, não falavam aramaico, mas grego; a sua cultura era grega. Como vemos no discurso de Estevão antes da sua morte, entendiam que Jesus se tinha oposto à lei dos judeus e ao Templo, pelo que era para eles uma contradição continuar a ser judeu e cristão ao mesmo tempo.

Alguns destes helenistas, familiarizados com a cultura grega, começaram a pregar com sucesso aos gentios. A conversão dos gentios ao cristianismo era muito maior que a dos judeus, pelo que entendiam que estes novos cristãos que não possuíam o judaísmo como base da sua cultura, não deviam submeter-se a nenhuma das prescrições da lei de Moisés, sobretudo à circuncisão.  

Os helenistas absolutizam a figura de Jesus como sendo o novo Moisés, como sendo superior ao sábado, como sendo o novo Templo, como muito bem prova o evangelho de Mateus, aliás escrito para os judeus. E para eles Cristo veio acabar com as divisões culturais, políticas ou raciais; entendem que o cristianismo tem uma vocação universal de unir os povos, pelo que subscrevem plenamente o que S. Paulo disse:  
Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus. Gálatas 3, 28

Entre Tiago, representando o judaísmo onde nasceu o movimento de Jesus, e Paulo, representando o mundo helénico, se consolidaria e cresceria o cristianismo. Pedro é o Pontifex Maximus, não só unindo, naquele tempo, os dois mundos, como permitindo que a nova fé transitasse de Jerusalém para o resto do mundo.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de abril de 2021

3 Nascimentos celebra a Igreja: Maria - João Batista - Jesus

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Nascimento e morte são uma e a mesma coisa. A morte pode ser vista como um nascimento e o nascimento como uma morte. Tanto o ato de nascer como o ato de morrer são passagens transitórias, de uma forma de vida a outra forma de vida.

A Igreja celebra a morte dos santos como nascimento para a eternidade; na sua veneração, a Igreja nunca celebra a sua vinda a este mundo, mas a sua partida para a eternidade. Para além do nascimento de Jesus, a Igreja celebra os nascimentos de Maria, porque é a sua mãe, e o de São João Batista, porque é o seu precursor.

O primeiro evangelho a ser escrito foi Marcos e nele não há referências à infância de Jesus: começa com a atuação de Jesus adulto. Depois de Marcos, a Igreja quis saber o que havia para trás, antes de Jesus se revelar ao povo, e isso implicava falar de duas personagens que fizeram parte da vida de Jesus: Maria, sua mãe, que o concebeu, deu à luz e o acompanhou toda a sua vida até ao fim, e João Batista que foi o seu precursor e iniciador na sua vida pública.

MARIA
Os nossos irmãos protestantes não querem saber da mãe de Jesus e têm para com ela a mesma atitude que os muçulmanos têm para com a mãe de Maomé e os Budistas para com a mãe de Buda. Podemos ignorar a mãe de Buda e a mãe de Maomé e ser bons budistas e muçulmanos, porque o seu nome não figura em nenhum escrito dessas religiões.

O mesmo não acontece com a mãe de Jesus: o seu nome aparece várias vezes nos 4 evangelhos. Maria não foi só a mãe de Jesus, foi também discípula do seu filho pois, juntamente com outras mulheres, nunca abandonou a sua companhia e, depois da morte do filho, nunca abandonou a companhia dos discípulos de Cristo. Não é, portanto, um cristão autêntico aquele que ignora completamente a mãe de Cristo; não é possível amar o filho ignorando a mãe.

Com o mesmo rigor com que Lucas (Lucas 1, 1-4 e Atos 1, 1-4) escreveu o seu evangelho sobre a vida de Jesus e o livro dos Atos dos Apóstolos sobre os primeiros passos da Igreja, queremos investigar o que se sabe ou é possível saber sobre Maria. É certo que não temos as testemunhas oculares dos factos que Lucas tinha, apenas alguns documentos que dizem pouco sobre a mãe de Jesus.

Maria em S. Paulo
O primeiro escritor do Novo Testamento, S. Paulo, não fala de Maria em nenhuma das suas cartas. Podemos aludir a várias razões para este facto. Ainda que muitos especialistas em S. Paulo pretendam ilibar o apóstolo da sua mentalidade patriarcalista ou machista, há demasiadas provas que dão testemunho deste facto. Como a grande maioria dos homens do seu tempo, S. Paulo reserva para as mulheres um papel secundário.  

Uma outra razão para não mencionar o nome da mãe de Jesus é o facto de as cartas de Paulo serem doutrinárias, não históricas, pois S. Paulo, ao contrário dos outros apóstolos, não foi testemunha ocular nem teve a preocupação histórica de Lucas. Como bom fariseu que era, a sua preocupação era somente doutrinal.

Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. Gálatas 4, 4-5 (ano 40-50)

Neste único texto onde se menciona que Jesus não veio ao mundo como um meteorito ou por vias de qualquer outra forma milagrosa, mas que nasceu de uma mulher como todos os humanos, o que está em jogo, como em toda a perspetiva dos Gálatas, é a oposição entre a Lei e a graça. Não se menciona o nome da mulher da qual nasceu Jesus, pois este não é o tema central da carta nem destes versículos.

Maria em S. Marcos
Tendo Jesus chegado a casa, de novo a multidão acorreu, de tal maneira que nem podiam comer. E quando os seus familiares ouviram isto, saíram a ter mão nele, pois diziam: «Está fora de si!» Marcos 3, 20-21

A primeira menção muito indireta e tangencial de Marcos a Maria, mãe de Jesus, acontece neste texto muito controverso. Pois literalmente diz que os familiares de Jesus pensavam que ele estava louco. Pelos outros evangelistas e pelo próprio S. Marcos sabemos que Maria está sempre perto de Jesus, interessada e preocupada com o seu filho, com o que dizem dele, e agindo como qualquer outra mãe. Por isso, Maria parece estar incluída na palavra familiares.

Não me parece provável por duas razões: no conjunto dos evangelhos, vemos que Maria é uma mulher muito ponderada no que diz e no que faz, sem comportamentos reativos. Não diz nem faz nada sem deliberar na sua mente e no seu coração e, quando está confusa e não sabe o que dizer ou fazer, permanece em silêncio, guardando e meditando tudo no seu coração (Lucas 2, 16-21).

Por outro lado, se “familiares” incluísse a mãe de Jesus, não faria sentido dizer a seguir, como refere o outro texto em que ela é mais diretamente mencionada, “Mãe e irmãos de Jesus”, sobretudo porque o texto diz dentro do mesmo capítulo de Marcos que ela e os irmãos do Senhor acabavam de chegar.

Jesus várias vezes se aproveita de uma determinada situação para apresentar a sua doutrina. Um dos exemplos disto é o facto de os apóstolos de Jesus se terem esquecido de comprar pão. Como o pão é cereal fermentado, Jesus aproveitou a deixa para falar do fermento dos fariseus. (Mateus 16, 5-12)

É claro que os apóstolos são levados a pensar que Jesus está a criticá-los indiretamente por não terem comprado pão, mas Jesus explicitamente diz que essa não pode ser a interpretação do que disse, pois, ele que multiplicou pão para milhares de pessoas, podia fazer o mesmo para os seus discípulos.
 
Da mesma forma, Jesus não está a desrespeitar a sua mãe, mas apenas a aproveitar a situação para dizer que ser discípulo de Jesus é mais importante que ser familiar de Jesus. No caso da sua mãe, também ela foi primeiro discípula, ouviu a palavra e colocou-a em prática e só depois e precisamente por ter colocado a Palavra em prática, foi mãe, ou seja, por ter feito a vontade de Deus. Em Maria, então, ser discípulo precede a maternidade. Nós também nos podemos tornar família de Jesus seguindo o caminho de Maria.

(…) partiu dali. Foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no. Chegado o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» Marcos 6, 1-3

Finalmente, mais tarde, Marcos diz-nos o nome da mãe de Jesus pela boca do povo da sua aldeia, numa pergunta tática cheia de desprezo e humilhação. Na época, em Israel, quando se queria insultar alguém, bastava nomear a pessoa pelo nome da mãe e não do pai. A expressão “filho de Maria” é altamente depreciativa, mesmo no caso de José ter já falecido.  

Marcos é um evangelho pequeno, com apenas 16 capítulos e lacónico acerca de muitas outras coisas; também não nos dá uma boa imagem acerca da compreensão que os discípulos têm do Mestre. Pelo menos, dá-nos o nome da mãe do Senhor, Maria. Se quisermos saber mais acerca de Maria, temos de recorrer aos outros dois evangelhos que são mais completos e se debruçam mais sobre a infância de Jesus e as circunstâncias do seu nascimento.

Imaculada Conceição de Maria
É uma doce e piedosa crença esta que diz que a alma de Maria não possuía pecado original; esta de que, quando ela recebeu a sua alma, ela também foi purificada do pecado original e adornada com os dons de Deus, recebendo de Deus uma alma pura. Assim, desde o primeiro momento de sua vida, ela estava livre de todo o pecado.  (Martinho Lutero, Sermão sobre o Dia da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, 1527)

Os grandes reformadores protestantes, Lutero, Calvino e Zuínglio, aceitam todos os dogmas marianos. A indiferença, o desprezo e quase ódio por Maria que certos protestantes manifestam nos dias de hoje, não provêm dos reformadores, mas de fanáticos posteriores a eles.

A imaculada conceição da virgem Maria, solenidade que a Igreja celebra no dia 8 de dezembro, já perto do Natal do Senhor, é uma outra forma de começar de novo. É a substituição do dilúvio que destruía o antigo, o pecado, para começar de novo. Em Maria, Deus desistiu da destruição do mundo. Por isso Maria é um “dilúvio não destruidor” porque, pouco a pouco, com o Reino do seu filho, vai inundar o mundo da Graça divina que mata o pecado. Maria é, portanto, a nova arca de Noé que salva a humanidade do pecado, porque contém este Salvador que é Cristo seu filho.

Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho… Hebreus 1, 1-2

Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher… Gálatas 4,4

Maria não é o começo da História da Salvação: esta começou com Abraão e foi continuada de geração em geração por profetas, juízes, reis e outros líderes do povo escolhido. Maria é o culminar desta história, é como refere acima o autor da carta aos Hebreus, os últimos dias, ou como diz S. Paulo, a plenitude do tempo.

A história da Salvação é acerca de pessoas que vão passando de geração em geração o germe do Bem, no meio de um mundo que vive a história do Mal. Porém, este germe do bem convive na mesma pessoa com o mal. Os que eram portadores do germe do Bem ou do testemunho do Bem nesta corrida de estafetas não eram pessoas perfeitas, como sabemos pela Bíblia, onde os seus defeitos e pecados estão bem documentados, desde Abraão, Moisés, David a tantos outros que eram, como diria mais tarde Sto. Agostinho ao definir o Homem, “simul justus et peccator”, ao mesmo tempo justo e pecador.

Maria é o último elo desta cadeia do Bem, Deus em Maria fez os últimos retoques para eliminar todo o vestígio do mal na preparação da Encarnação do seu filho. É lógico que se Deus ia assumir a natureza humana para falar aos homens, não ia assumir a natureza humana caída em pecado, não ia assumir a natureza humana decadente de pecado dos nossos pais, mas sim a natureza humana que Ele tinha criado no princípio. Ou seja, ia assumir a natureza de Adão e Eva antes do pecado. Por isso se diz que Maria é a nova Eva e Cristo o novo Adão.

No momento em que o material genético da meia célula de Joaquim se uniu ao material genético da meia célula de Ana para formar um novo código genético, o ADN de Maria, Deus interveio na engenharia genética e substituiu os genes estragados ou corrompidos pelo pecado que vinham de geração em geração desde Adão e Eva, pelos novos genes, aqueles que o próprio Adão e Eva possuíam antes de arruinarem a natureza humana pelo pecado. Por outras palavras, substituiu as peças estragadas pelas peças originais.

Quando o Anjo Gabriel visita Maria reconhece nela a nova Eva ao pronunciar este mesmo nome ao contrário como saudação. Maria é obra da engenharia genética de Deus, Maria é a recriação de Deus em virtude da sua direta e intencionada intervenção na História da humanidade. Porque Maria, em comunhão com o mesmo Deus, vai gerar, produzir a vacina contra o pecado que é Cristo seu filho. Maria não é apenas o início da Salvação para o mundo; na sua Imaculada Conceição, como preparação para a vinda de Jesus, ela é a primeira a ser salva.

Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto, a fim de que todo o que nele crê tenha a vida eterna. João 3, 14-15

O filho de Maria é o que vai substituir a serpente erguida no deserto por Moisés, o salvador do povo judeu, para curar a todos da mordida da antiga serpente que envenenou Eva, Adão e os seus descendentes de geração em geração.

Natividade de Maria
Não podemos reconhecer as bênçãos que nos trouxe Jesus, sem reconhecer ao mesmo tempo quão imensamente Deus honrou e enriqueceu Maria, ao escolhê-la para Mãe de Deus. (João Calvino," Comm. Sur l‟Harm. Evang.",20)

Nove meses depois da Imaculada Conceição da virgem Maria, a Igreja celebra a natividade de Nossa Senhora no dia 8 de setembro. Num contexto bíblico de tantos nascimentos nas mesmas circunstâncias, desde Isaac, Samuel, Sansão etc., segundo reza a tradição, Maria nasceu de pais de avançada idade e estéreis, de nome Joaquim e Ana. Como resposta à sua perseverança e constância na oração, estes pais foram agraciados por Deus com o dom de terem uma menina.


Há quem os coloque residentes em Nazaré, porém a tradição mais fidedigna coloca-os em Jerusalém, ao lado da piscina de Betesda, onde os peregrinos se purificavam antes de entrar no templo e onde hoje se ergue a Basílica de Santa Ana, muito perto de uma das entradas principais do Templo e da atual Porta dos Leões na muralha da cidade velha, no quarteirão muçulmano da cidade de Jerusalém.

A menina recebeu o nome de Miriam que significa vidente, senhora soberana. Era muito provavelmente um nome egípcio pois, como sabemos, Miriam era o nome da irmã de Moisés. Há quem pense que deriva do nome sânscrito Maryá e que literalmente significa pureza, virtude, virgindade; a tradução latina é Maria. Tal como Samuel, foi também ela oferecida ao Templo de Jerusalém aos três anos, tendo lá permanecido até os doze anos, data em que foi dada em casamento a José.

Como sabemos, os evangélicos canónicos nada nos dizem sobre o nascimento de Maria. A base da tradição porém é bastante antiga, pois provém de um escrito apócrifo do século II, o Protoevangelho de Tiago, escrito por volta do ano 150.

A virgindade de Maria em função da sua maternidade
Estimo grandemente a Mãe de Deus, a virgem Maria perpetuamente casta e imaculada. Firmemente creio, segundo as palavras do Evangelho, que Maria, como virgem pura, nos gerou o Filho de Deus e que, tanto no parto quanto após o parto, permaneceu virgem pura e íntegra. (Corpus Reformatorum: Zwingli - principal líder da Reforma Protestante na Suíça - Opera 2,189).

Cristo foi o único filho de Maria, e a Virgem Maria não teve filhos além Dele… Estou inclinado a concordar com aqueles que declaram que ‘irmãos’ significam realmente ‘primos’. A Sagrada Escritura e os judeus sempre chamaram aos primos irmãos. Martinho Lutero, Sermão, 1539.

Maria é a Mãe de Jesus e a Mãe de todos nós, embora fosse só Cristo quem repousou no colo dela… Se ele é nosso, deveríamos estar na situação dele; lá onde ele está, nós também devemos estar e tudo aquilo que ele tem deveria ser nosso. Portanto, a mãe dele também é nossa mãe... (Martinho Lutero, Sermão de Natal de 1529.)

Uma vez mais constatamos que os reformadores protestantes veneravam Maria tanto quanto a veneram hoje os católicos e os ortodoxos e até mesmo os muçulmanos. O problema surge, tanto para protestantes como para católicos, na excessiva ênfase que se dá à virgindade de Maria, como se nela ou em qualquer outra pessoa, a virgindade fosse um valor em si mesmo, tanto num sentido espiritual como físico.

Manifesto-me em total desacordo com o uso exclusivamente feminino do nome “Virgem”, como o faz a Igreja na celebração das santas Cecília, Inês, Felicidade, Perpétua, Águeda, que são santas exclusivamente por serem virgens. A igreja não usa o nome virgem para santos como Francisco de Fátima, Sto. António de Lisboa, S. Domenico Savio e S. Luigi Gonzaga que decerto também eram virgens.

Se é um valor humano, a virgindade não pode ser um valor exclusivamente feminino. Não há valores femininos e valores masculinos, só há valores humanos. Quando se dá demasiada ênfase à virgindade feminina, está a exacerbar-se a importância do hímen que as mulheres possuem e que os homens não possuem. O hímen nasceu como meio profilático para fechar as entranhas de uma mulher e a proteger contra as infeções. Ao longo da história da Humanidade, em todas as culturas, numas mais noutras menos, tem sido usado pelos varões como instrumento de vexame, domínio, humilhação e vergonha das mulheres.

A virgindade de Nossa Senhora, descrita como virgem antes, durante e depois do parto, alude certamente a este instrumento de domínio de uma história patriarcal e chauvinista. Sobretudo no caso da virgindade durante o parto, não pode referir-se ao hímen como se fosse possível que uma mulher desse à luz sem que este se rompesse.

Se a virgindade é um valor, deve ser estendida a todo o género humano e não só às mulheres, pelo que não pode ser associada ao físico, mas sim ao espiritual. Uma mulher ou um homem casado podem ser virgens, se forem puros e totalmente fiéis um ao outro. Por outro lado, se a virgindade é um valor humano espiritual, uma mulher ou homem podem ser virgens mesmo depois de terem perdido a virgindade física.

Ou seja, se a virgindade é um valor, está sempre ao alcance do ser humano e não é uma coisa que se perca. Aliás, se é um valor, não é dado à nascença, mas conquistado a pulso com esforço e dedicação. A única coisa que pode perder-se para sempre, de uma forma irrecuperável, é a inocência ou a ingenuidade, não a virgindade.

Conta-se que se apresentou diante de Deus uma pessoa depois da sua morte e disse. Olha Senhor, as minhas mãos estão limpas e puras. Bem vejo, disse o Senhor, mas estão vazias… antes estivessem sujas, mas cheias de boas obras…

A virgindade, tanto no caso de Maria como em qualquer outra pessoa, existe em função da maternidade. A virgindade por si só não é um valor humano, mas sim a preparação para uma maternidade física natural ou para uma maternidade espiritual como a de madre Teresa de Calcutá. O mesmo se aplica dos homens. Uma virgindade que existe para si mesma e não está em função de uma maternidade fecunda, é esterilidade espiritual, não virgindade no sentido espiritual cristão.

Temo que a exagerada exaltação da virgindade seja inversamente proporcional à visão negativa da função sexual. Ou seja, quem mais exalta o valor da virgindade, mais olha com suspeita para a função sexual, desenvolvendo uma espiritualidade puritana que olha para o sexual como feio e sujo. Quem assim faz esquece que o pecado de Adão e Eva não foi sexual, que o sexo foi criado por Deus como meio de colocar em prática o seu mandamento “crescei e multiplicai-vos”. (Génesis 9, 7)

Conclusão
Como devoto de Maria a quem tenho como minha mãe do Céu, afirmo que foi concebida sem pecado por virtude de especial favor de Deus a ela e à Humanidade; que concebeu por obra do Espírito Santo, que foi mãe de um só filho nela gerado, mas mãe espiritual de toda a humanidade e que, em virtude desta maternidade, permaneceu virgem por ter sido amante de um só Deus, de um só marido, da Igreja nascente e de toda a humanidade.

JOÃO BATISTA
Jesus de Nazaré, discípulo de João Batista

«Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento? Que fostes ver, então? Um homem vestido com roupas finas? Os que usam trajes sumptuosos vivem regaladamente e estão nos palácios dos reis. Que fostes ver, então? Um profeta? Sim, eu vo-lo digo, e mais do que um profeta. (…) Digo-vos: Entre os nascidos de mulher não há profeta maior do que João; mas, o mais pequeno do Reino de Deus é maior do que ele. Lucas 7, 24-26, 28

João Batista, primo do Senhor segundo a tradição, é uma figura intencionalmente ignorada pela Igreja e pelos próprios evangelistas que tudo fazem para lhe retirar importância apesar de, sendo honestos consigo mesmos, terem de falar dele. A Igreja apresenta-o como precursor, especialmente no tempo do Advento, como sendo aquele que prepara o caminho do Senhor, embora pouco se diga sobre como o caminho foi preparado.

Foi só precursor, ou foi algo mais que isso? Foi iniciador de um movimento que Jesus de Nazaré continuou. De facto, alguns dos discípulos de Jesus eram antes discípulos de João. Hoje quase todos os biblistas concordam que Jesus foi discípulo de João Batista e, se bem que os evangelistas, cada um à sua maneira, tratem de esconder este facto, Jesus não se envergonha de o dizer como se subentende no texto acima citado. Sobre João, seu Mestre, Jesus só tem palavras positivas de veneração e estima. Porém, como coloquei a negrito, os evangelistas agregam uma frase que não só neutraliza como quase anula o que Jesus disse ao referirem que o mais pequeno do Reino de Deus é maior do que ele.

No princípio da sua vida pública, o povo e Herodes Antipas confundem Jesus, o discípulo, com João, o mestre, o que é perfeitamente normal. Todo o bom discípulo imita o mestre até se despegar e independentizar dele, mais tarde afirmando as suas diferenças ou as suas nuances. Jesus parece aceitar que o comparem com João, pois é sinal de que era um bom discípulo dele. (Lucas 9, 7-9; Mateus 16, 13-20)

Nas suas conferências e livro sobre Jesus, o teólogo Dennis MacBride debruça-se sobre este assunto de uma forma brilhante. João Batista é o nome mais citado nos evangelhos, mais do que qualquer apóstolo, inclusive Pedro. Quando Pedro levantou a voz e expôs os critérios para a eleição do substituto de Judas, disse que tinha de ser alguém que tivesse estado com eles desde o Batismo de João até à Ressurreição de Jesus. (Atos 1,21-22)

Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do batismo que João pregou (Atos 10, 37) – O mesmo Pedro ao fazer um sumário do ministério de Jesus, começa por referir que este começou onde terminou o ministério de João Batista. Todos os quatro evangelistas começam a história de Jesus onde termina a história de João.

Marcos abre o seu evangelho com o ministério de João; João Evangelista menciona-o logo no prólogo como testemunha da Luz que é Cristo e repete-o várias vezes para que fique claro, chegando a dizer que ainda que João preceda a Jesus cronologicamente, Jesus como filho de Deus existe antes de João. Lucas e Mateus, ao tratarem da infância de Jesus, vêem-se obrigados a tratar da infância de João Batista também.

É, portanto, claro que o ministério de João tem a ver com a vida oculta de Jesus antes da sua vida pública, começa antes do ministério de Jesus e, ainda que Jesus tome o seu lugar após a sua morte, como faz todo o discípulo substituindo o mestre, o ministério de João não termina.

MacBride afirma que ainda hoje existem no Iraque seguidores de João, que acreditam que João era o Messias e que Jesus foi o seu primeiro discípulo. O argumento que apresentam como prova é que Jesus deixa a sua terra para se juntar a João, para seguir João e não o contrário. Jesus segue João e submete-se ao seu Batismo, João não segue Jesus.

Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Marcos 6, 2 – Sugere que Jesus não permaneceu em Nazaré durante toda a sua vida oculta. O texto sugere que, em determinado momento da sua vida, Jesus deixou o seu ofício de carpinteiro, a sua mãe, a sua terra, para se juntar ao movimento do Batista e foi como seu discípulo que adquiriu toda a sabedoria que maravilhava os seus conterrâneos. O texto também sugere que Jesus esteve fora bastante tempo, não foi só passar um fim de semana com o Batista, mas ficou na sua companhia por vários anos.  

O batismo de Jesus
Por aqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no Jordão. Quando saía da água, viu serem rasgados os céus e o Espírito descer sobre Ele como uma pomba. E do céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado.» Marcos 1, 9-10

Então, veio Jesus da Galileia ao Jordão ter com João, para ser batizado por ele. João opunha-se, dizendo: «Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti, e Tu vens a mim?» Jesus, porém, respondeu-lhe: «Deixa por agora. Convém que cumpramos assim toda a justiça.» João, então, concordou. Uma vez batizado, Jesus saiu da água e eis que se rasgaram os céus, e viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre Ele. E uma voz vinda do Céu dizia: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu agrado. Mateus 3,13-17

Todo o povo tinha sido batizado; tendo Jesus sido batizado também, e estando em oração, o Céu rasgou-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. E do Céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus todo o meu agrado. Lucas 3,21-22

E eu não o conhecia, mas quem me enviou a batizar com água é que me disse: ‘Aquele sobre quem vires descer o Espírito e poisar sobre Ele, é o que batiza com o Espírito Santo’. Pois bem: eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus. João 1, 33-34

O episódio do batismo do discípulo Jesus pelo mestre João era para os evangelistas um escândalo embaraçoso. É certo que a reputação do grande João Batista deixou perplexos e nervosos os evangelistas porque queriam provar aos seus leitores de uma forma contundente, sem fugir à realidade dos factos, que Jesus era maior que João porque era ele e não João o messias, o esperado das nações.

Marcos, o primeiro a reconhecê-lo, admite que Jesus se submeteu ao batismo de João sem questões. Porém, e sem descrever o ato do batismo em si, desvia a nossa atenção para a voz vinda do alto.
Mateus não parece aceitar este facto e coloca ali um diálogo explicativo e justificativo entre Jesus e João onde se vê que a autoridade reside em Jesus.
Lucas ignora o episódio, referindo-se a ele depois deste ter acontecido, desviando também ele a nossa atenção para a voz vinda do alto.
João não aborda o batismo de Jesus, elimina-o por completo, pois nem o próprio João Batista se chama Batista neste evangelho, mas só João, testemunha de Cristo.

Os discípulos de João informaram-no de todos estes factos. Chamando dois deles, João mandou-os ao Senhor com esta mensagem: «És Tu o que está para vir, ou devemos esperar outro?» Ao chegarem junto dele, os homens disseram: «João Baptista mandou-nos ter contigo para te perguntar: ‘És Tu o que está para vir, ou devemos esperar outro? Lucas 7, 18-23

Os quatro evangelhos são unânimes em dizer que João não conhecia a verdadeira identidade do seu discípulo Jesus e morreu na prisão sem chegar nunca a esse conhecimento. Como é possível que o batismo de Jesus tenha decorrido como no lo descrevem os evangelhos e mais tarde João Batista na prisão não saber quem é aquele que ele mesmo batizou?

Aparentemente, temos aqui uma incongruência; porém, temos de ter em conta que entre os factos históricos de Jesus e João e a sua descrição nos evangelhos escritos, decorreram cerca de 50 anos de pregação apostólica. Ou seja, é muito provável que o episódio da voz seja obra dos evangelistas para tentar explicar teologicamente o facto de Jesus se ter submetido ao Batismo de João e de ter feito parte do seu movimento como discípulo.

Já vimos como João Evangelista retira o título de Batista a João, dando-lhe o nome de testemunha de Jesus. No entanto, é o único evangelista que coloca os dois a desenvolver o seu ministério ao mesmo tempo, ou melhor dito Jesus, como discípulo, trabalhando no movimento do Mestre Batista; João a batizar na Samaria, território ainda não evangelizado, e Jesus na Judeia onde João já tinha evangelizado.

JESUS
O carpinteiro, filho de Maria, nasceu segundo a tradição em Belém, no decurso de uma viagem que os seus pais Maria e José tinham empreendido para se recensearem na terra de origem dos seus antepassados. Não é deste nascimento que aqui tratamos, mas dos longos anos de preparação ou “gestação” para nascer ou se revelar ao mundo. Se a gestação do corpo físico de Jesus é obra de Deus e de Maria, a gestação da sua formação humana é obra do seu Mestre João Batista.

Tal como vimos, Jesus tem relativamente a João muitas originalidades. Mas tem também muito em comum com o mestre. Tanto Jesus como João, seu mestre e precursor, eram leigos carismáticos em linha com os profetas de Israel que surgem num tempo para um tempo, ou seja, surgem como solução divina para um problema humano concreto num tempo e situação concretos. Em linha com o profetismo de Israel, o profeta não é uma autoridade instituída ou eleita, mas sim uma autoridade moral carismática que surge espontaneamente ou por vontade divina.

Neste sentido, e ao contrário da autoridade instituída, o profeta não só profere a voz de Deus, como também a encarna com a sua vida, em gestos dramáticos como Isaías que andou nu no meio do povo para lhe mostrar o que estava para acontecer aos que iam ser exilados. O profeta Oseias casou com uma prostituta para que a sua vida fosse um audiovisual da infidelidade do povo a Deus.

Em linha com os profetas anteriores a eles, Jesus e João estão contra a autoridade instituída, não se submetem a ela e criticam-na porque carece de autoridade moral. E quando estes apresentam as suas credenciais, revelando as suas raízes, João diz que o machado já está posto à raiz das árvores; tanto João como Jesus manifestam mais tarde não estarem interessados em raízes, mas sim em frutos, pois é pelos frutos, ou seja, pelas obras que se conhece alguém. E quando as pessoas dizem que são fulanos e beltranos, que são filhos de Abraão, tanto João como Jesus chamam-nos raça de víboras e afirmam que Deus tem o poder de tirar das pedras filhos de Abraão. (Mateus 3, 7-12)

Em linha com os profetas anteriores, Jesus e João estão contra o Templo e os seus sacerdotes e repetem também eles o refrão transversal a todo o profetismo de Israel: quero misericórdia, não sacrifícios. (Oseias, 6, 6; Mateus 9, 13).

Semelhanças e diferenças entre Jesus e João
Segundo Dennis MacBride há muitas semelhanças entre o mestre João Batista, iniciador do movimento, e Jesus, seu discípulo. Ambos são profetas, não se casam, não são sacerdotes nem doutores da lei, não pertencem a nenhum grupo religioso; ambos são profetas independentes e confrontam o status quo religioso. E são as autoridades religiosas perseguidas pelas autoridades civis para apagar a sua palavra e cessar a sua ação.

Acreditam que a história de Israel está a ponto de acabar e que um outro reino vai substituir Israel. Ambos operam longe dos lugares sagrados. Abertos a todo tipo de gente, até mesmo àqueles que eles mesmos criticam, manifestam preferência pelos pobres e marginalizados da sociedade, pelos publicanos, pelos pastores, pelas prostitutas…

Jesus distingue-se de João, porém pela imagem que tem de Deus, pai amoroso e misericordioso. Leva a salvação às aldeias e cidades onde vive o povo, não está fixo num lugar. Cura, faz exorcismos, coisa que João nunca fez. Ao contrário do ascético João que vivia isolado no deserto, Jesus vive com o povo mistura-se com o povo, come e bebe e festeja com o povo; em tudo igual ao povo, exceto no pecado.

O poder de perdoar os pecados
(…) para que saibais que o Filho do Homem tem, na terra, poder para perdoar pecados - disse Ele ao paralítico: ‘Levanta-te, toma o teu catre e vai para tua casa. E ele, levantando-se, foi para sua casa. Ao ver isto, a multidão ficou dominada pelo temor e glorificou a Deus, por ter dado tal poder aos homens. Mateus 9, 6-8

O poder e a faculdade de perdoar os pecados em todas as tradições religiosas é reservado aos sacerdotes. Em Israel, como sabemos, só existia um lugar onde podiam perdoar-se os pecados: o templo de Jerusalém. O perdão dos pecados tinha-se tornado, no tempo de Jesus e João, num negócio rentável para a casta sacerdotal.

Anás e Caifás tinham grandes rebanhos e para darem saída aos seus inúmeros cabritos facilmente declaravam defeituosos e rejeitavam os cabritos e cordeiros que o povo trazia dos seus rebanhos para oferecer a Deus como expiação pelos seus pecados.

Todos os dias havia sacrifícios no templo, pelo menos um pela manhã e outro à tarde. Mas nos dias festivos havia muitos mais, em especial pela Páscoa. Calcula-se que, à hora em que Jesus morria na cruz, mais de 3 000 cabritos e cordeiros eram sacrificados no altar do Templo.

João trazia um traje de pelos de camelo e um cinto de couro à volta da cintura; alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. Iam ter com ele os de Jerusalém, os de toda a Judeia e os da região do Jordão, e eram por ele batizados no Jordão, confessando os seus pecados. Mateus 3, 4-6

De um momento para o outro, surgiu um leigo que fez um bypass ao Templo de Jerusalém com uma cerimónia de água que invocava a higiene corporal e espiritual, a pureza, tão cara aos judeus e perdoava os pecados sem exigir dinheiro em troca - toda a casta sacerdotal se sentiu ameaçada.

Terá sido mesmo João Batista que iniciou este movimento ou, como sugere o provérbio “Libris ex libris fiunt”, os livros surgem de livros, Jesus inspirou-se em João Batista para iniciar algo que foi muitíssimo mais além de João. Não terá acontecido o mesmo com João, ou seja, também ele se inspirou em algo que já existia para levar este perdão do pecado, original e revolucionário, não só a Israel mas ao conjunto de todas as religiões, pois todas elas exigiam sacrifícios para apaziguar a ira divina.

É certo que se levantava a questão de o movimento do Batista ser puramente humano ou ser de inspiração divina. Jesus usa esta dúvida para se defender perante a pergunta insistente dos fariseus sobre a sua autoridade para dizer o que dizia e fazer o que fazia. “Também eu vos faço uma pergunta, responderei à vossa se vós responderdes à minha. O batismo de João era do Céu ou dos homens?” Bem sabia Jesus que eles pensavam que era dos homens, pois só eles podiam perdoar os pecados, mas como havia por ali muito povo responderam a Jesus com silêncio. (Marcos 11, 30)

Qumran
Se no deserto das margens do Mar Morto, mesmo ali ao lado, onde João e Jesus batizavam, não existisse uma comunidade de monges, os essénios, que partilhavam os mesmos ritos e as mesmas ideias dos dois profetas, ocupando o mesmo espaço geográfico no mesmo tempo histórico, estaríamos inclinados para que o ritual de perdão dos pecados tivesse sido uma criação original de João. Mas existindo esta comunidade a dois passos do rio Jordão, somos levados a pensar que a mesma terá inspirado João e Jesus.

Tantos os monges de Qumran como João eram críticos do sistema sacrificial de Jerusalém. Ambos eram apocalípticos e pensavam que Israel estava a chegar ao fim dos seus dias. Ambos enfatizavam a necessidade de se purificar com água; os essénios de facto purificavam-se várias vezes ao dia.

A diferença entre estes monges e João Batista é que os monges eram elitistas e segregacionistas, retinham a salvação só para eles, enquanto que João provavelmente abandonou esta comunidade para oferecer a salvação a toda a gente; Jesus abandonou o Jordão para levar a salvação a todo o Israel, de aldeia em aldeia, de casa em casa, e ordenou aos os seus discípulos que a levassem a todo o mundo.

Eis o cordeiro de Deus – João 1,29
Esta é a afirmação de João Batista que coloca ponto final na disputa entre o perdão por via de sacrifícios e o perdão gratuito por via do batismo. Jesus declara que o sacrifício de outros não tem poder salvador, o que tem poder salvador é o sacrifício próprio.

Com Jesus acabam-se os sacrifícios da antiga lei de oferecer algo externo a mim mesmo e começam os sacrifícios da nova lei que é o oferecer-se a si mesmo. No alto da cruz, Jesus oferece-se a si mesmo num ato sacrificial absolutamente perfeito. Um non plus ultra – porque ele é o sacerdote, o templo, o altar e o cordeiro. O ato de Jesus é perfeito, inigualável e irrepetível pois não se pode morrer duas vezes.

Fazei isto em memória de mim – a Igreja, de geração em geração, repete, atua e atualiza o único sacrifício que tira o pecado do mundo. Aceite ou não aceite o povo de Israel este sacrifício para a sua redenção, o caso é que depois da morte de Jesus o Templo, providencialmente ou por ironia do destino, foi destruído e até aos dias de hoje não foi reconstruído.

Conclusão
Maria dá à luz Jesus de Nazaré, João Batista abre-lhe o caminho para a Missão na qual Jesus se descobre a si mesmo como Filho de Deus e Salvador da Humanidade.

Pe. Jorge Amaro, IMC