15 de março de 2024

Cosmovisão e a sua expressão

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Refletimos que a cosmovisão é como a placa-mãe de um computador à qual se agregam elementos como, mitos, lendas, contos populares, crenças, rituais, religiões, arquétipos, símbolos, normas ou regras e valores. Todos estes conteúdos são de alguma forma abstratos, virtuais e precisam de um suporte físico para se fazer ver.

Podemos estudar a cosmovisão de povos antigos que já não existem, os seus mitos e lendas, os seus símbolos e crenças, pelos documentos que nos deixaram. Sabemos muito da cosmovisão, da maneira de viver e pensar de povos como os Vikings do norte da Europa, dos Maias e dos Aztecas da América Central

Para descobrir a estrutura do pensamento de um povo, a sua cosmovisão e os elementos que a compõem, como os mitos e crenças, a religião, as regras e valores, precisamos de estudar os veículos onde esses elementos se encontram plasmados ou expressados. Essas formas de expressão coincidem com as sete artes clássicas. Preferimos dividi-las de uma forma mais antropomórfica, usando os nossos cinco sentidos: artes literárias, gráficas, visuais, auditivas, audiovisuais.

ARTES VISUAIS:  arquitetura, escultura
As primeiras coisas que o ser humano fabricou - martelos de pedra, machados e facas de pedra lascada – foram utensílios que mais tinham a ver com a ciência que com a arte. Estes utensílios estavam ligados ao conhecimento das coisas e à sobrevivência num mundo hostil. Referimo-nos à Idade da Pedra e dos Metais, há milhares de anos, portanto.

Imediatamente após a saída do homem de África, há cerca de 150 000 anos, as primeiras manifestações artísticas que porventura tinham também o objetivo prático de ensinar técnicas de caça, foram as pinturas rupestres, relacionadas com as artes gráficas, pois são, de alguma forma, antepassadas da escrita.  

As três construções mais antigas da humanidade pertencem à primeira civilização humana que o nosso planeta conheceu, o Crescente Fértil, hoje chamado Médio Oriente. São elas: Tell Qaramel, construída há cerca de 11 000 anos AC na Síria, 25 Km a norte de Aleppo; Göbekli Tepe, construída há 9 600 AC no sudeste da Turquia, a 12 km da cidade de Sanhurfa e a Torre de Jericó construída há 8 000 AC nesta que é a cidade mais antiga do mundo.

Podemos estudar as diferentes cosmovisões, desde as mais antigas à mais moderna, pelo tipo de construções criadas pelo ser humano. Os antigos não faziam palácios sumptuosos com piscina e todos os luxos para habitar.

Mais preocupados com o Além do que com o aqui e agora, verifica-se que desde as pirâmides dos egípcios, dos Maias e dos Aztecas, aos zigurates da Mesopotâmia, passando pelas catedrais góticas e pelos templos hindus e budistas, a transcendência, a religião são o principal motivo para construir, não a política nem o bem viver.

É caso para pensar… que deixa para a posteridade este mundo materialista, consumista, utilitarista, pragmático, ateu, agnóstico? Nada ou reflexos do seu vazio interior, arranha-céus, as pinturas chamadas de modernas e contemporâneas que não são mais que quatro rabiscos que uma criança do ensino básico também podia fazer. O ser humano moderno não cria arte, por isso o turismo de hoje vive da arte criada pelos antigos há muitos, muitos anos.

ARTES GRÁFICAS: pintura, desenho, escrita
As pinturas rupestres mais antigas encontram-se na Península Ibérica e França, sendo a mais antiga de há 62 000 anos. No progresso da pintura para a escrita, o documento mais antigo do mundo vem precisamente da cultura mais antiga também, a suméria do Crescente Fértil - a escrita cuneiforme da antiga Mesopotâmia, anterior aos hieróglifos egípcios.

As pinturas rupestres ilustram a cosmovisão do homem pré-histórico, a sua vida, os seus costumes e até os seus sentimentos. Estas gravuras ou manifestações artísticas do Paleolítico, Mesolítico e do Neolítico representam frequentemente cenas de caça, mas também danças e outras cenas da vida diária, fenómenos cósmicos, mitos religiosos, costumes, campanhas militares.

Desde que o Homem começou a pintar, nunca mais deixou de o fazer. Muito do que sabemos das primeiras civilizações da Mesopotâmia, Egito e Grécia foi-nos transmitido por estas gravuras, imagens, desenhos, grafitis deixados por estas civilizações.

A imagem foi a primeira forma de expressão do ser humano e foi a evolução desta forma de expressão por imagens que nos levou aos pequenos desenhos que traduziam ideias - a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, juntamente como os hieróglifos egípcios, que foram os antecessores do alfabeto grego e romano.

Outras línguas, como o chinês, mantiveram e mantêm até aos nossos dias uma escrita pictórica, ou seja, cada letra é uma pequena gravura ou desenho que representa um conceito, uma ideia; por isso necessitam de milhares de desenhos para se expressarem. Se considerarmos que o ser humano começou a usar imagens há 40 000 anos e que a escrita só foi inventada há 3 500 anos, a imagem pode ser considerada como a pré-história da escrita.

Desde o início, a imagem nasceu da comunicação e para a comunicação; nasceu da necessidade de comunicarmos e também como forma de comunicação. Atingiu o seu apogeu na segunda metade do século XX, quando foi inventada a fotografia, ou seja, a fixação ou gravação da imagem em fotografia. Na nossa sociedade visual, é frequente ouvir que “uma imagem vale mais que mil palavras”.

ARTES LITERÁRIAS: literatura, provérbios, ciências humanas
Se o ser humano fosse um ser solitário como o tigre, nunca teria desenvolvido uma língua. A língua nasceu no seio da sociedade, da comunidade, como forma de os seres humanos comunicarem entre si. Esta necessidade aconteceu quando os humanos se tornaram bípedes e conseguiram olhar-se nos olhos.
Começou provavelmente por expressar necessidades, como acontece quando viajamos para um país estrangeiro cuja língua não falamos e procuramos comunicar as nossas necessidades por sons e gestos. Numa fase posterior, os seres humanos expressaram emoções, sentimentos, e, mais tarde, pensamentos.

O que verdadeiramente cria um povo é uma obra literária. É impensável o povo judeu sem a Torah, sem os livros da lei e os profetas. O que define e caracteriza o povo grego são a Ilíada e a Odisseia de Homero; ex libris do povo italiano é a Divina Comédia de Dante Alighieri; o que define o carácter do povo espanhol é o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes; a alma russa encontra-se em Dostoievski no seu livro Os Irmãos Karamazov. A alma portuguesa ou lusitana está nos Lusíadas de Camões.

Para o rei D. Afonso Henriques, Portugal eram as suas terras, os seus domínios. Foi Camões que criou a nacionalidade; que nos deu uma pré-história, os feitos dos lusitanos, que descreveu o nosso caráter e a nossa história no decorrer da grande epopeia da nossa nação, a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Foi fiel às raízes da nossa língua, escrevendo em verso ao estilo das cantigas de amigo, berço do português.

O provérbio é decerto o género literário que concentra mais a cultura, a idiossincrasia e a cosmovisão em menos palavras. Fácil de recordar porque rima, frequentemente deita mão de uma metáfora ou comparação, ou seja, não usa nunca a linguagem abstrata, mas sim a narrativa e metafórica. O provérbio passa de geração em geração mais facilmente que outra forma de cultura porque é fácil de recordar; as pessoas usam-no na sua vida diária como conselho e como forma de justificar e encorajar comportamentos específicos.

ARTES AUDITIVAS:  música, oratória
A palavra música é de origem grega e significa a “arte das musas”. É constituída por uma associação de sons entremeados por pausas ou curtos períodos de silêncio ao longo de um determinado tempo. A música é, de facto, a arte de combinar sons com silêncio. A história da música acompanha a par e passo o desenvolvimento da inteligência, da linguagem e da cultura humanas. Também há quem pense que a música é anterior à humanidade, se considerarmos o canto melodioso de alguns pássaros.

É provável que na espécie humana a música tenha surgido há 40 000 anos, a julgar pelas cenas de dança que aparecem nalgumas pinturas rupestres e que sugerem um provável acompanhamento musical. Ao longo do tempo, foram aparecendo flautas primitivas e outros instrumentos, como o xilofone. Os instrumentos musicais dividem-se em três tipos: de percussão, de cordas e de sopro. A voz humana é o instrumento musical mais complexo, pois é, ao mesmo tempo, de cordas e de sopro.

A palavra comunica o pensamento, a música comunica o sentimento, a emoção. Neste sentido, é a linguagem de comunicação universal, utilizada como forma de sensibilizar para uma causa, para fins religiosos, para protestar, para acompanhar filmes e intensificar uma mensagem ou emoção. Um filme de terror sem música que lhe é própria, não aterrorizaria ninguém. Tal como a língua, faz parte da idiossincrasia de um povo e fala da sua cultura - por isso existe a chamada música popular. Traduz atitudes, sentimentos e valores culturais de um povo.

Oratória é a arte de falar em púbico comunicando ideias, ideologias e pensamentos com eloquência, articulação e clarividência, no intuito de ensinar ou persuadir os ouvintes e motivá-los a determinada ação. É uma arma muito importante na política e na religião, para o bem e para o mal. Tanto os grandes políticos e filósofos como os profetas foram bons oradores, como Nelson Mandela, Mahatma Ghandi, Martin Luther King. Porém, também os grandes ditadores tinham o mesmo poder de convencer, como Hitler e Estaline.

A oratória tem o dom de unir as diferentes e dispersas vontades numa só, faz de muitas cabeças uma só; transforma os indivíduos numa comunidade ou numa massa, num rebanho, tanto para o bem como para o mal.  

ARTES AUDIOVISUAIS: teatro, cinema, dança
As artes audiovisuais combinam o som e a imagem. Por isso têm mais força que o som e a imagem em separado. O teatro, o cinema e a dança são algumas das mais importantes artes que movem as multidões e também a economia.

Antigamente, os grandes atores de cinema iniciavam a sua carreira no teatro, e o cinema era mais parecido com o teatro. Favoreciam-se aptidões como a expressividade, tanto linguística como corporal, a dicção, o timbre de voz. Hoje, o cinema é mais ação que diálogo, pelo que os dotes do ator de teatro ficam mais reservados ao teatro e menos ao cinema. O teatro está em franca decadência se o compararmos com o cinema.

Inicialmente, o cinema pretendia comunicar valores, dentro do binómio herói/vilão, em que o herói sempre vencia. O cinema moderno, porém, já não é usado com fins pedagógicos, mas sim para mostrar a realidade tal qual ela é; por isso, vemos muitas vezes a injustiça triunfar sobre a justiça, a mentira sobre a verdade e o crime sobre a lei e a ordem. Esta situação é perigosa, pois quem vê estes filmes, sem consciência crítica, sobretudo as gerações mais jovens, pode crescer na convicção de que o ser e o dever ser são uma e a mesma coisa, de que na vida vale tudo…

A dança sempre foi uma manifestação cultural muito importante. Culturalmente, pode dizer muito pouco o ballet ou a dança clássica; mas um tango diz muito da cultura argentina, um passo doble diz muito da cultura espanhola, e o samba representa bem a cultura brasileira. Todos os povos têm uma forma própria de bailar. Se quem canta reza duas vezes, quem dança reza três.

“Ars lunga vita brevis”, a arte é eterna, a vida é breve. Ao cultivar uma arte, o indivíduo entra numa relação simbiótica com ela. Ele dá-lhe a sua temporalidade, elevando essa arte a um novo máximo ou record; ela dá-lhe a sua eternidade, tanto na mente da comunidade humana, humanizando-o, como na mente de Deus, fazendo-o seu filho.

Conclusão: "Ars lunga vita brevis" - "As artes são eternas, a vida é curta" Usa a tua vida para cultivar artes e valores humanos e serás eterno, viverás para sempre, em Deus e na memória da humanidade.
Pe. Jorge Amarao, IMC




1 de março de 2024

A Cosmovisão e os seus componentes

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Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer. João 15, 5

É n’Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, Atos dos Apóstolos 17, 28

Para o cristão, Cristo é o Caminho a Verdade e a Vida; é a cepa à qual se conectam todos os ramos para receber a seiva da vida. Desconectados d´Ele definhamos, secamos e morremos. Como ramos enxertados em Cristo (Romanos 11, 11-24), é n´Ele que nos movemos, somos e existimos e sem Ele não poderíamos fazer nada, d´Ele recebemos a vida, a salvação. Cristo é para o cristão a placa-mãe (motherboard), o fundamento, o alicerce onde assenta a sua vida, a pedra angular que o mantém de pé (Efésios 2:20-22).

Cosmovisão, a placa-mãe da nossa mente
A placa-mãe (ou motherboard, em inglês) de um computador é uma placa normalmente em plástico verde rígido, que tem impresso em cobre ou alumínio um circuito elétrico que permite interligar todos os componentes de um computador - o processador, a memória, a CPU, a placa de vídeo, a placa de rede, a placa de áudio, as portas de comunicação do computador com o exterior que permitem a sua ligação a outros dispositivos.

A placa-mãe de um computador serve-nos perfeitamente como alegoria ou metáfora do que é uma cosmovisão e de como esta é composta por elementos que individualmente são diferentes entre si, com uma função diferente, mas que assentam numa mesma placa, com base na qual interagem harmonicamente. Vejamos quais são estes elementos e qual a sua função ou contributo para a cosmovisão.

A cosmovisão, como sistema ou alicerce do nosso pensamento e da nossa vida, é um conjunto ordenado de muitos elementos. Tal como o nosso ADN ou código genético é composto por muitos genes, assim uma cosmovisão é composta por muitos elementos. Alguns desses elementos são:

O mito
Na linguagem dos nossos dias, a maior parte das vezes que ouvimos a palavra “mito” é em referência a algo que não é verdadeiro. Quando dizemos ou ouvimos “isso é um mito”, quer dizer, hoje em dia, “isso é falso”. Na realidade, um mito pode não ser ou, melhor dizendo, nunca é histórico, mas também nunca é falso. Histórico e verdadeiro não são sempre sinónimos. Histórico significa que aconteceu; os mitos são relatos que descrevem realidades e como tal nunca aconteceram, porém, o que dizem dessas realidades é completamente verdadeiro no tempo e nas sociedades onde eles nasceram.

No contexto da antropologia cultural, o mito é uma explicação pré-científica da realidade, um relato fantástico e fantasmagórico de tradição oral, geralmente protagonizado por deuses que encarnam e representam as forças da natureza, assim como aspetos gerais da condição humana.

Dentro da antropologia cultural, os mitos pertencem a uma disciplina chamada cosmogonia, que se compõe de relatos sobre a origem, a natureza e a função de tudo o que existe e que o ser humano não compreende. Como conjunto de mitos, a mitologia é uma forma de dar sentido à existência humana. As suas diversas histórias nasceram para saciar a curiosidade humana acerca de questões fundamentais como "de onde viemos?", "para onde vamos?" ou "por que motivo num dia chove e no outro faz sol?".

Exemplos de mitos
O mito de Cronos – Cronos era o deus do tempo, daí as palavras cronologia, cronómetro, para medir o tempo. Na Grécia antiga, a realidade do tempo era explicada pela existência de um deus que era o senhor do tempo; este senhor paria filhos e depois de os parir comia-os. É claro que não é histórico, mas é verdadeiro.

Ou seja, numa mentalidade primitiva serve perfeitamente para explicar o tempo. Cada dia em que acordo e me levanto pelo fato de estar vivo, tenho um dia a mais na minha existência, um dia para viver; ao fim deste, quando me deito, tenho um dia comido, consumado e consumido, um dia a menos na minha existência.

O mito de Andrógino – Na tradição grega o pai dos deuses, Zeus, criou um ser que possuía os dois géneros; como se fosse um homem e uma mulher colados pelas costas. Posteriormente, Zeus teve medo da sua criatura, como o ser humano tem medo de tantas coisas que cria, como a bomba atómica e utilizou a arma de sempre, a divisão: “divide et impera” e dividiu o ser andrógino em dois, criando assim o varão e a mulher.

Assim se criou a realidade do amor romântico; como inicialmente estavam unidos, a tendência é voltarem a unir-se; daí a atração sexual. Os dois, homem e mulher, passam metade da sua vida à procura da sua cara metade ou da sua metade da laranja, como ainda hoje se diz.

O mito de Adão e Eva – A Bíblia diz, em três relatos mitológicos da criação do ser humano, o que a mitologia grega diz num só.

Em Génesis 1, 27 - Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. É-nos dito que o varão e a mulher, criados os dois à imagem e semelhança de Deus, são iguais em dignidade.

Em Génesis 2, 7 - O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. É-nos dito que o ser humano está ligado a tudo o que existe, quase aludindo ao facto de ser fruto de uma longa evolução.

Em Génesis 2, 22 - Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. É-nos dito que os dois são carne da mesma carne e pertencem um ao outro.

O mito da origem do mal – Tanto a mitologia grega como a hebraica culpam a mulher pela origem do mal. Assim como lhe atribuem a curiosidade “científica” por saber e conhecer e descobrir a razão das coisas. Na mitologia grega, Pandora era a mulher de Zeus que abriu por curiosidade a caixa onde estavam todos os males; ao descobrir, Zeus veio a correr para a fechar, mas já muitos males tinham escapado e logo se reproduziram em muitos outros, numa sequência de causa e efeito. Na mitologia hebraica, Eva comeu e deu a comer a Adão o fruto proibido.

O mito sobre o amor e a morte – Orfeu, músico e cantor a quem o pai Apolo tinha dado uma Lira, enamorou-se perdidamente de Eurídice com a qual ia casar. Porém, antes do casamento, Eurídice foi mordida por uma cobra ao fugir de um admirador e morreu; inconsolável, Orfeu desceu ao mundo dos mortos e pediu a Hades que lhe devolvesse a sua esposa. Este aceitou, na condição de que, ao sair do mundo dos mortos com ela, não olhasse para trás. Desconfiado, Orfeu como sempre acontece com o amor romântico, olhou para trás e voltou a perder Eurídice. Envolvido numa tristeza profunda, não comia nem bebia nem respondia à sedução de outras mulheres, pelo que estas decidiram matá-lo; pela morte, uniu-se finalmente à sua esposa.
    
O mito de Narciso – Narciso, filho do deus do rio, Cefiso, possuía uma beleza estonteante que despertava o amor de muitas ninfas, entre as quais Eco. Porém, Narciso, absorvido por si mesmo, era arrogante e orgulhoso, apaixonado pela própria imagem quando se mirava nas águas plácidas do rio. Nestas se afogou um dia, depois de tanto se admirar.

Em psicologia, o narcisismo é o nome dado a um conceito desenvolvido por Sigmund Freud que determina o amor exacerbado de um indivíduo por si próprio; sinónimo de egoísmo, de uma pessoa centrada em si mesma que nega a dimensão social da pessoa humana.

Lendas e contos populares
Os protagonistas das narrativas mitológicas são sempre deuses; os das lendas são pessoas humanas, heróis da antiguidade em determinado momento histórico que se destacam pelo seu contributo para a humanidade. Por esta mesma razão, o mito é historicamente atemporal, a lenda é histórica, embora exagere os factos, distorcendo-os, dando-lhes um ar fantástico e excessivo para aumentar a fama de alguém importante do passado.  

Há personagens no imaginário humano, meio históricos meio ficcionais, que cativam a mente humana porque cada um deles reflete uma faceta da nossa personalidade. O rei Salomão, Péricles, Aquiles, Heitor, Ulisses, Alexandre Magno, Genghis Khan, Júlio César, Spartacus, Carlos Magno, Godofredo de Bulhões, Joana d´Arc, Marco Polo, Vasco da Gama, Cristóvão Colombo, Robin dos Bosques, etc…

Personagens como Robinson Crusoé, Guliver, Tarzan; o Super-homem, o Homem Aranha, a Branca de Neve, a Cinderela… são personagens ficcionais que pertencem a um outro género literário semelhante ao da lenda: o conto popular. A única diferença é que a lenda parte de um personagem histórico e engrandece-o para além da realidade, o conto popular é todo ele atemporal pois sempre começa com “era uma vez, num país distante”; nunca nos situa no tempo nem no espaço, mas sim dentro da psique humana, revelando aspetos desta.

Crenças
Muito do que dissemos do mito vale para a crença. Pois todo o mito é uma crença, mas nem todas as crenças são mitos. A crença é mais genérica, ou seja, muitas das nossas crenças são também mitos. O mito pertence ao reino da filosofia, antropologia cultural ou cosmogonia, a crença pertence mais ao reino da psicologia, da religião e espiritualidade, pois se trata de uma convicção interior sobre um aspeto da realidade que está para além dos cinco sentidos e de toda a verificação empírica.

A crença é a aceitação mental ou convicção de uma “verdade”, ideia ou teoria com ou sem provas empíricas. É ter como verídico algo que não pode ser provado pela ciência. Neste sentido, entra no campo do conhecimento intuitivo e não no do conhecimento logico-dedutivo da ciência.

A crença pode ser irracional, ou seja, supersticiosa ou razoável. O Concílio Vaticano I define a Fé como uma crença razoável. Bruxarias, magias, conferir a um objeto material como uma chave, uma ferradura, um corno, valor ou poder espiritual é uma crença irracional e, portanto, uma superstição, um regressar ao tempo em que os animais falavam e as coisas tinham alma: ao animismo.

Há crenças na vida moderna comprovadamente falsas e, no entanto, continuam a existir porque cumprem uma função positiva. Até as crianças sabem que o Pai Natal não existe, no entanto, no imaginário coletivo consciente ou inconsciente, este representa, personifica o amor, a bondade e generosidade de um pai, de uma mãe, de Deus como nosso Pai.

Rituais
Porque os mitos são uma narrativa que explica o porquê de muitas realidades humanas e da natureza, o rito ou ritual é o pôr em prática, agir, expressar ou aplicar o mito ou crença na vida real. O objetivo da atuação ou expressão do mito através do rito é o de reforçar a crença no mito.

Uma cerimónia ritual, sagrada ou não sagrada, é um ato que sempre se realiza da mesma maneira e que celebra uma crença ou mito importante no contexto de uma cultura ou religião. A realização ou celebração de rituais tem uma função psicológica e espiritual muito importante; alivia o stress e a ansiedade, aumenta a autoconfiança, reforça a fé ou crença. Os rituais relembram-nos o que é mais importante na vida e mantêm-nos unidos à fonte vital; dão-nos um sentido de estabilidade e continuidade na nossa vida.

Realizamos montes de rituais, mesmo na nossa vida moderna e nem nos apercebemos de que os realizamos. Mas o facto de o fazermos, prova a sua importância e função no nosso equilíbrio emocional e racional. A entrada na vida adulta, as despedidas de solteiros, o cortar da fita numa inauguração, o atirar ao ar o chapéu no dia da licenciatura, a noiva que atira o ramo de flores para trás de si para uma donzela o apanhar, a celebração do dia de anos, o apagar de uma vela por cada ano.

A nossa vida cristã está cheia de ritos. Também todos os sacramentos têm por trás uma crença e um ato cerimonial. A imposição de mãos, a bênção, o batismo, são a porta de entrada para a comunidade – de facto, o padre, vem à porta da igreja receber o neófito. A eucaristia é a reconstituição da vida, doutrina, paixão e morte de Cristo, pois fazemo-la em memória d’Ele e mantém-nos unidos como comunidade. A confissão é uma catarse libertadora do negativo da minha vida; quando ouvimos “eu te absolvo” (“ego te absolvo” em latim) sentimo-nos mais limpos, com vontade de começar de novo. A unção dos doentes é um refrigério na nossa dor.

Religião
Como atrás dissemos, é ela própria uma cosmovisão, pois responde à pergunta “de onde viemos” e “para onde vamos”, assim como dá sentido, razão e finalidade a tudo quanto existe, estruturando não só a natureza, como também a vida dos homens em relação a si mesmos, a Deus e à Natureza. Entre muitas coisas, a religião engloba crenças, mitos e rituais.

Arquétipo
É um elemento da filosofia grega, sobretudo da neoplatónica, que designa ideias, modelos, primigénios ou protótipos, paradigmas do comportamento humano que residem no inconsciente coletivo da humanidade, como demonstrou Carl Jung, discípulo de Freud. Para Platão, os arquétipos são formas mentais, ideias primordiais impressas na alma antes de esta assumir um corpo.

Jung descobriu no nosso inconsciente coletivo 12 paradigmas, modelos ou padrões de comportamento que podem coincidir ou não com funções de indivíduos na sociedade ou profissões, mas também configuram uma maneira de ser, estar e comportar-se perante si mesmo e os outros. Sãos estes o Sábio, o Inocente, o Explorador, o Governante, o Criador, o Cuidador, o Mago, o Herói, o Vilão, o Amante, o Tolo, o Órfão. A lista podia continuar, mesmo em relação a personagens significativos que configuram modelos padronizados de comportamento.

Para além destes que se restringem a formas de comportamento, há outros paradigmas impressos no nosso inconsciente coletivo, que se referem mais à sociedade e à maneira como esta opera. Por exemplo, eu tenho como paradigma ou arquétipo o processo Egito – Deserto – Terra Prometida. Karl Marx, apesar de ser declaradamente ateu, seguia consciente ou inconscientemente este arquétipo no seu materialismo histórico. Para ele, o Egito era o capitalismo, o deserto era a ditadura do proletariado e a Terra Prometida o comunismo ou a sociedade sem classes.

A recuperação de um vício segue também este arquétipo. O Egito é o vício que te retirou a liberdade e o controlo da tua vida; o deserto é o preço apagar, a purificação do corpo e da mente das toxinas que o escravizam; nele se sente a vontade de voltar atrás, como o povo judeu, ou a síndrome de abstinência para o que luta contra um vício, e por fim, a Terra Prometida quando estás completamente livre deste vício.

Símbolos
Emblemas, formas ou sinais que contêm um significado poderoso dentro da cultura, representando o seu modelo de vida ou a sua tradição ancestral, ou algum elemento considerado icónico ou totémico e identificando-o, como a cruz com o cristianismo, por exemplo.

Normas, regras e leis
Toda a cosmovisão contém também um código de leis, normas ou regras de conduta para harmonizar a convivência entre os indivíduos, para determinar os direitos e os deveres na relação dos indivíduos entre si e com a comunidade em geral. Um regulamento pelo qual as empresas optam por governar-se, quer explicitamente (formato legal), através de um protocolo ou subjetivamente.

Nem todas as leis são ditas, nem escritas em pedra. Há leis ou normas não escritas e, no entanto, todos as observam. A forma como vestimos obedece muitas vezes a uma norma não escrita, tal como o abrir a porta a alguém e deixá-lo passar primeiro, o não meter o dedo no nariz em público e tantas outras pequenas coisas às quais obedecemos e que não estão escritas em nenhum lado nem obedecem a nenhum código de conduta.

Valores
São mais inerentes à natureza humana em geral que a uma cosmovisão em particular. Valores como a liberdade, a igualdade, a justiça, a verdade, a honestidade, o amor, a fidelidade, são invariáveis no tempo e no espaço. O dever, o compromisso, configuram a vida humana e são invariáveis de cultura para cultura ou de época para época. Uma determinada cosmovisão pode ter uma interpretação dos mesmos um pouco distinta, sem variar o fundamental. 

Conclusão – Como na placa-mãe ou motherboard de um computador se inserem todos os componentes que o fazem funcionar como um todo harmonioso, assim a cosmovisão é composta por mitos, ritos, crenças, normas, símbolos, arquétipos e valores que dão sentido e forma à nossa vida.
Pe. Jorge Amaro, IMC