15 de outubro de 2023

VIII Mistério, Maria discipula e mãe

Enquanto ele assim falava, uma mulher levantou a voz do meio do povo e lhe disse: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos que te amamentaram! Mas Jesus replicou: “Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a observam! Lucas 11, 27-28

Jesus falava ainda à multidão, quando veio sua mãe e seus irmãos e esperavam do lado de fora a ocasião de lhe falar. Disse-lhe alguém: “Tua mãe e teus irmãos estão aí fora, e querem falar-te”. Jesus respondeu-lhe: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”. E, apontando com a mão para os seus discípulos, acrescentou: “Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. Mateus 12, 46-50

Estes dois textos devem ser lidos no contexto um do outro. No primeiro, a maternidade de Maria é exaltada; no segundo, esta não é rebaixada porque os dois textos dizem o mesmo, isto é, a maternidade de Maria é consequência do seu discipulado. Maria, antes de ser mãe, foi discípula pois ouviu a Palavra de Deus por intermédio do Arcanjo Gabriel e colocou-a em prática ao aceitar ser a mãe do filho unigénito de Deus. Maria foi mãe porque foi discípula e não discípula porque foi mãe.

Em certo sentido, Maria não é mãe por especial privilégio, mas por ter sido discípula. “Feliz és tu porque acreditaste”, diz a sua prima Isabel, o que significa que infeliz teria sido Maria se não tivesse acreditado. Em Maria, como em todos nós, foi a fé que a salvou e o cumprimento da Palavra que a fez mãe de Jesus.

Este mesmo caminho nos é oferecido por Jesus, o de sermos íntimos com ele tal como ele e sua mãe o são. Basta ouvir a Palavra e colocá-la em prática. Pois quem me ama, diz Jesus, ou seja, quem é ou pretende ser íntimo comigo, cumpre os meus mandamentos (João 14, 21).  

Ouvir a Palavra sem a pôr em prática é como construir uma casa ou uma vida sobre a areia (Mateus 7, 21-27) e estar à mercê dos ventos e das marés, dos tempos, das modas e das situações, ser uma pessoa sem personalidade própria guiada pelo exterior, uma cana agitada pelo vento, (Mateus 11, 7) e, ao fim de uma vida inconsequente arriscar a que o Senhor, ao batermos à porta da eternidade, nos diga lá de dentro que não nos conhece (Lucas 13, 27).

Uma outra forma de provar que a maternidade, tanto em Maria como em todos nós, é consequência do discipulado, ou seja, do ouvir a palavra e colocá-la em prática, é o facto de que Jesus entregou sua mãe nos braços do discípulo amado, ou seja, do discípulo preferido, do que melhor cumpria a sua palavra. Esse discípulo, por ser autêntico, passou a ser também filho da Sua mãe. (João 19, 25-27)

Textos e contextos
O texto que exalta a maternidade de Maria é único em Lucas, não tem paralelo nem em Mateus nem em Marcos. Se as feministas tivessem que escolher um evangelho, Lucas seria certamente o evangelho eleito, pois é o que coloca mais atenção no feminino, o que confere mais protagonismo às mulheres, tanto na vida de Jesus como nas suas parábolas e eventos.

Ambos os textos acima citados, Lucas 11, 27-28 e Mateus 12, 46-50, são precedidos pelo episódio da alma limpa de demónios que, ao não ser preenchida com boas obras, foi assaltada por outros demónios piores, ficando numa situação pior que antes.

Deste facto podemos concluir que o episódio da alma e dos demónios serve, tanto para Lucas como para Mateus, de ilustração e prova de que de facto a Palavra de Deus ou é posta em prática ou de nada lhe aproveita ao que a escuta, podendo a sua situação ficar pior depois de ter escutado a Palavra e não a ter posto em prática como o jovem rico.  

Espiritualidade negativa
Quando um espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos, buscando repouso; não o achando, diz: Voltarei à minha casa, donde saí. Chegando, acha-a varrida e adornada. Vai então e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele e entram e estabelecem-se ali. E a última condição desse homem vem a ser pior do que a primeira. Lucas 11, 24-26

O texto não o diz, mas as palavas da mulher foram certamente inspiradas pelo Espírito Santo. Para fazer justiça à mulher, o texto devia dizer “uma mulher no meio do povo cheia do Espírito Santo exclamou…” A exclamação da mulher aconteceu depois de Jesus ter narrado o que acontece quando uma pessoa consegue erradicar o mal da sua alma, mas não a enche de bem. A sabedoria de Jesus chegou ao coração desta mulher.

Este texto é insólito, mas alude a uma espiritualidade a que eu chamo de negativa, ou seja, colocar todo o nosso tempo e energia a combater o mal sem fazermos nada de bom. Diz o povo, quando a morte vier que nos apanhe confessados, ou seja, o importante é não ter pecado. Esta espiritualidade é negativa, pois o foco não está em fazer o bem, mas sim em evitar o mal, em não pecar.

Uma pessoa não é boa porque evita o mal, mas porque faz o bem. Quem evita o mal supera a negatividade e coloca-se a zero; só quem faz o bem se coloca acima de zero. O jovem rico que foi ter com Jesus eram um digno representante do Antigo Testamento, pois desde os seus tempos de criança tinha observado os mandamentos; mas quando Jesus lhe pediu uma única coisa positiva, voltou atrás; evitar o mal é bem mais fácil que sair da minha zona de conforto e fazer o bem.

O sacerdote e o levita passaram ao largo do homem roubado e agredido pelos salteadores e que jazia à sua frente, precisando de ajuda porque a preocupação deles não era fazer o bem, mas evitar o mal. O mal que presenciavam nesse momento não tinha sido causado por eles, por isso era perfeitamente moral passar-lhe ao largo. Uma vida baseada em evitar o mal leva à falta de solidariedade para com o próximo. Como a melhor defesa é o ataque, a melhor maneira de combater o mal é fazer o bem.

A natureza tem horror ao vazio
É uma lei da física cuja aplicação no campo espiritual vemos exemplificada no texto evangélico que abre este artigo. A mania da limpeza é uma doença psíquica: há pessoas que passam a vida a lavar as mãos. Talvez possam apresentar-se diante de Deus com as mãos limpas, mas Deus vai dizer-lhes que estão vazias…

Se quisermos retirar o ar de um copo podemos extraí-lo artificialmente com uma máquina, criando um vácuo ou podemos naturalmente enchê-lo de vinho. Ou seja, se ocuparmos o tempo e as energias dos nossos dias a fazer o bem, não nos resta tempo para fazer o mal. Desta forma, matamos dois coelhos com a mesma cajadada, fazemos o bem e evitamos o mal. É isto que sugere o texto insólito de Jesus sobre uma alma vazia sem mal nenhum dentro que, se não for preenchida com bem, rapidamente volta a ser ocupada pelo mal.

No Juízo Final, os que se salvam são os que socorreram o Senhor no pobre e desvalido e lhe deram de comer, de beber, o acolheram quando era estrangeiro ou peregrino, o vestiram quando estava nu e o  visitaram quando estava na prisão ou no hospital.

Os que se condenaram não foram os maus, mas os que voltaram as costas a todas as oportunidades que a vida lhes deu para fazerem o bem, pois a sua preocupação era evitar o mal (Mateus 25, 31-46). São os maus samaritanos, os que passam ao largo quando vêm um irmão em necessidade, os que dizem que o problema não é seu.

Segundo o texto do juízo final em Mateus 25, a nossa confissão já não deveria ser fazer um exame de consciência para buscar o mal que fizemos, mas sim buscar o bem que não fizemos. Devíamos até esquecer o mal que fizemos e praticar o bem, procurar oportunidades para fazer o bem e não perder as que a vida nos apresenta para isso. São os pecados de omissão que levam à condenação, as oportunidades que tivemos de fazer o bem e em que nada fizemos.

O mandamento do amor e a regra de Ouro
Jesus substituiu os 10 mandamentos que praticamente só nos dizem o que não devemos fazer, por um mandamento positivo: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. (Mateus 22, 37-39). Sto. Agostinho é quem melhor interpreta estes dois mandamentos na sua célebre frase, “Ama e faz o que queres”. O que fazes por amor nunca será errado. Entendendo, é claro, o amor como o define S. Tomás de Aquino, amar é querer o bem do outro.

"Guarda-te de jamais fazer a outrem o que não quererias que te fosse feito.” Tobias 4, 16
Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas. Mateus 7,12

A própria regra de ouro existe em todas as religiões e a Bíblia formula-a numa regra que todos aprendemos nos bancos da catequese: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. O minimalismo está tão enraizado na nossa psique, a espiritualidade negativa de evitar o mal sem fazer o bem, que os nossos catequistas não nos ensinaram a regra de ouro de Jesus que está redigida em tom positivo. Ensinaram-nos sim a regra negativa, a que se encontra no livro de Tobias e que é a regra dos judeus, incluída no Antigo Testamento.

Conclusão – Maria é mãe de Jesus porque antes foi discípula, ou seja, ouviu a Palavra e a colocou em prática. Se ouvirmos a Palavra e a colocarmos em prática, também nós podemos gozar da mesma intimidade que Jesus e Sua mãe tinham.

Pe. Jorge Amaro, IMC



1 comentário:

  1. Más que nunca necesitamos de este buen hacer o hacer buenas obras para mantener no solo la mente ocupada sino en el beneficio que causemos a otros( y a nosotros mismos)
    Y todo ello ha de venir precedido por una formación de amor al otro y de comunidad ,que hoy está ausente en los corazones, pues la enseñanza parece ir por Ámate a tí mismo y SALVESÉ quien pueda.
    Bella reflesión y mensaje.

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