15 de junho de 2022

Saramago já deve saber...


 


Os filhos de Israel subiram à cidade, cada um pela brecha que tinha na sua frente e tomaram a cidade. Votaram-na ao anátema, passando ao fio da espada quanto nela encontraram, homens e mulheres, crianças e velhos, e os bois, as ovelhas e os jumentos. Josué 6, 20-21

Mas, se não expulsardes da vossa frente todos os habitantes do país, aqueles que tiverdes poupado serão como espinhos nos vossos olhos e como aguilhões nos vossos flancos; atormentar-vos-ão no território que ocupardes e eu tratar-vos-ei a vós como tinha resolvido tratá-los a eles. Números 33, 55-56

Nestes textos de uma violência extrema Deus não só ordena o genocídio dos cananeus como fica irado por terem sido poupados alguns. No capítulo 15 do 1º livro de Samuel lemos que o rei Saul perde a confiança de Deus, que passa para David, por ter sido bom demais e ter poupado alguns amalequitas, quando o mandamento de Deus era exterminar todos, inclusive as mulheres, as crianças e os idosos.

O Antigo Testamento está repleto de histórias de violência que contradizem a ideia de um Deus compassivo e misericordioso do Novo Testamento. Não é sem razão, portanto que o finado Saramago (Prémio Nobel da Literatura em1998) disse que a Bíblia era um livro violento. Embora em número menor, mesmo no Novo Testamento também encontramos algumas imperfeições que poderiam envergonhar-nos.

História de Israel e natureza humana
No que se refere ao Antigo Testamento, a Bíblia contém a história de Israel e a idiossincrasia do povo judeu, tal e qual ele foi ao longo dos tempos. Neste sentido, a Bíblia é uma obra literária que é para os judeus o que “Os Lusíadas” de Camões, é para os portugueses.

Para além da história e idiossincrasia de um povo, na Bíblia descreve-se a natureza caída do ser humano: o ser humano tal qual ele é, com os seus altos e baixos, perfeições e imperfeições. Apesar de inspirados por Deus, os autores da Bíblia não esconderam esta natureza caída debaixo do tapete, pois o que não é assumido não é redimido, como disse mais tarde Sto. Atanásio.  

O episódio dos fariseus que trouxeram a Jesus uma mulher apanhada em flagrante ato de adultério (João 8, 1-11) pode ser lido como uma metáfora do que a Bíblia é: o encontro de Deus com o Homem, ou seja, o encontro da misericórdia divina com a miséria humana.

Desde o princípio, logo depois do primeiro pecado, Deus não abandonou o homem a si mesmo, mas foi pedagogicamente acompanhando-o e enviando-lhes profetas, preparando-o para a Sua própria vinda como ser humano modelo ao encontro do ser humano caído em desgraça.

Jesus de Nazaré assumiu a natureza humana, pois foi em tudo igual a nós exceto no pecado, porque o pecado não pertence à natureza humana tal como Deus idealizou e criou, mas sim à natureza humana que o homem arruinou com o pecado. Jesus, Deus feito homem, assume e aceita esta natureza humana caída, entrando em comunhão com os pecadores, comendo com eles nas suas casas e andando na sua companhia, sem lhes exigir que mudem de vida. São eles que decidem mudar de vida ao verem-se incondicionalmente aceites por Jesus tal como são, como se vê no episódio de Zaqueu (Lucas 19, 1-10).

Ouvistes o que foi dito… eu digo-vos
Ouvistes o que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. Mateus 5, 38-40

Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Mateus 5, 43-44

No Sermão da Montanha, Jesus contrapõe a sua doutrina, à qual metaforicamente se refere como vinho novo, à doutrina de Moisés e aos costumes do Antigo Testamento. Também estabelece uma nova e eterna aliança que revoga a antiga.

Por isso, a norma para nós é o que diz o Novo Testamento e o que no Antigo Testamento está em linha com o Novo. Neste último, é o próprio Deus, através do seu filho Jesus Cristo, a falar à natureza humana, a partir do interior da natureza humana. Com Cristo e a sua doutrina em mente, interpreta mal a Bíblia quem pretenda com ela justificar atos de violência.

Ler a Bíblia da frente para trás
Ninguém, nem no céu nem na terra, nem debaixo da terra era capaz de abrir o livro nem de olhar para ele. (…) O Cordeiro aproximou-se e recebeu o livro da mão direita do que estava sentado no trono (…) Tu, és digno de receber o livro e de abrir os selos; porque foste morto e, com teu sangue, resgataste para Deus, homens de todas as tribos, línguas, povos e nações; Apocalipse 5, 3, 7, 9

Ao contrário dos outros livros, a Bíblia deve ser lida da frente para trás. É Cristo, cordeiro imolado, que pode “abrir”, ou seja, interpretar a Bíblia. É a partir d’Ele, palavra definitiva do Pai, que tudo deve ser lido, pois tudo aponta para Ele. Ele e só Ele tem a chave da sua interpretação.

A Bíblia deve ser lida da frente para trás, ou seja, o Antigo Testamento deve ser lido a partir do Novo, a partir da perspetiva que adquirimos com a leitura do Novo. Neste caso, a chave de interpretação destes textos é a figura de Cristo como o cordeiro de Deus sacrificado.

Ler o Antigo Testamento em sentido metafórico
Face a isto, os textos violentos, sobretudo os que apelam ao genocídio, podem ter um valor simbólico e metafórico. Neste sentido, Israel representa a vontade de Deus, o fermento do Reino de Deus, o povo que Deus chamou para com Ele começar uma história de salvação para toda a humanidade. Os inimigos de Israel, cananeus, filisteus, amalequitas, babilónios ou assírios, são os inimigos do plano universal de salvação. A luta deixa de ser física e passa a ser espiritual.

Quando se luta contra o mal, chame-se este como se chamar, não podemos usar meias medidas, pois não é com meias medidas que se erradica o mal, mas sim com o radicalismo de o arrancar pela raiz. Acabar com os inimigos de Israel, matando homens, mulheres e crianças e até os seus animais domésticos tem agora o sentido de erradicar o mal pela raiz. O vício do tabaco, do álcool ou qualquer outro também não se combate com meias medidas, mas com radicalismo e determinação. 

Conclusão: O finado escritor José Saramago, ateu e Prémio Nobel da Literatura de 1998, já deve saber que Deus existe de facto e que a Bíblia é constituída por dois testamentos – o Antigo, representa o homem tal como é e o Novo o homem como deve ser, à imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo.   

Pe. Jorge Amaro, IMC

 

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